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Construção psicopedagógica

versión impresa ISSN 1415-6954versión On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.34 no.36 São Paulo  2024  Epub 03-Feb-2025

https://doi.org/10.37388/cp2024/v34n36a04 

ARTIGOS ORIGINAIS

NARRATIVAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E NO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM: DIALÓGICA COMPARTILHADA, MÚLTIPLAS VOZES, DIFERENTES “ESTILOS COGNITIVOS-SOCIOAFETIVOS”

NARRATIVES IN IDENTITY CONSTRUCTION AND LANGUAGE DEVELOPMENT: SHARED DIALOGICS, MULTIPLE VOICES, DIFFERENT “COGNITIVE-SOCIOAFFECTIVE STYLES”

Caroline Gemas1 

Graduada em História pela PUC-SP.Psicopedagoga formada pelo Instituto Sedes Sapientiae.

Eloisa Quadros Fagali2 

1Psicanalista com atuação clínica formada de Centro de Estudos Psicanalíticos.Brasil

2 Doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP. Pesquisadora do grupo de pesquisa psicopedagógico do Instituto Sedes Sapientiae. Professora Supervisora e Orientadora de pesquisa do curso Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae e da PUC.Brasil


RESUMO

O artigo apresenta recortes de experiências psicopedagógicas, sobre as narrativas de quem expressa e de quem escuta, ressaltando o valor da pesquisa cientifica com base na narrativa compartilhada. As narrações se desenvolvem durante e após as experiências do diagnóstico e intervenção psicopedagógica de uma criança, e propostas de continuidade das orientações com integrantes familiares, professores e outros educadores. As mediações terapêuticas destacam as criações das narrativas expressas pelo cliente que são valorizadas e ampliadas nas compartilhas com a terapeuta. As análises qualitativas das dinâmicas transferenciais, escutas terapêuticas e identificações do potencial e desenvolvimento da criança que revela o desenvolvimento de sua autoconfiança e reconhecimento do seu potencial associado a um estilo “intuitivo criativo”. As bases teóricas aproximam diferentes pensamentos que se complementam apesar das diferenças epistemológicas: desenvolvimento da linguagem, dialógica e plurilinguismo de Bakhtin (1992), os conceitos de Winnicott (2012) e Dias (2017) sobre a relação transferencial entre “criança e mãe ambiente suficientemente boa” e os pensamentos analíticos de Jung (1991) e de Fordhan (2006) sobre a dinâmica entre inconsciente e consciente, as diferenças dos tipos psicológicos e desdobramentos dos “estilos cognitivos-socioafetivos” que se revelam na dinâmica terapêutica e na aprendizagem (Fagali, Azevedo e outros: 2020 - 2024).

Palavras-Chave: Narrativa; Dialógica; Self; Estilos; Expressão não verbal e verbal

ABSTRACT

The article presents segments of psychpedagogical experiences, focusing on the narratives of both the speaker and the listener, highlighting the value of scientific research based on shared narratives. These narratives unfold during and after the psychpedagogical diagnosis and intervention of a child, including proposed ongoing guidance with family members, teachers, and other educators. Therapeutic mediations emphasize the creation of narratives expressed by the client, which are valued and expanded upon in shared exchanges with the therapist. The qualitative analyses of transference dynamics, therapeutic listening, and the identification of the child’s potential reveal the development of self-confidence and recognition of their potential, associated with an “intuitive-creative” style. The theoretical foundations bring together different but complementary perspectives despite their epistemological differences: the development of language, Bakhtin’s (1992) dialogic and multilingualism, Winnicott’s (2012) and Dias’s (2017) concepts of the transference relationship between the “child and the sufficiently good mother-environment,” and the analytical thoughts of Jung (1991) and Fordham (2006) on the dynamics between the unconscious and conscious, the differences in psychological types, and the unfolding of “cognitive-socioaffective styles” that emerge in the therapeutic dynamic and learning process (Fagali, Azevedo et al.: 2020-2024).

Key words: Narrative; Dialogic; Self; Styles; Nonverbal and verbal expression

Introdução

Entre os temas e conceitos fundamentais ressaltados nos procedimentos do trabalho e nas análises dos dados, destacamos inicialmente a importância das narrativas compartilhadas entre quem fala e escuta, considerando a dinâmica relacional terapêutica ou educacional e a importância da modalidade da pesquisa científica mediada pela narrativa, que integra os fundamentos teóricos às práticas (Moutinho & de Conti, 2016). O método das narrativas compartilhadas valorizam a escuta e as expressões das experiências dos sujeitos envolvidos e necessita da escuta e respeito às diferenças dos estilos e singularidades de cada um que expressa suas experiências numa “dialógica dinâmica” aberta e contínua, em que se “entrelaçam” múltiplas vozes do mundo interno e externo dos interlocutores (Bakhtin,1992).

No presente artigo, esses “entrelaçamentos de múltiplas vozes” foram possibilitados na relação terapêutica psicopedagógica, durante a dinâmica de diagnóstico integrada às intervenções psicopedagógicas, que continuaram com novas compartilhas entre a criança (cliente), o estagiário psicopedagogo, supervisor, orientador, professor e integrante familiar: a avó responsável pela criança. Essas escutas e expressões verbais se complementavam de forma contínua e aberta, possibilitando novas ressignificações das experiências narradas e ampliações das percepções e análises compartilhadas. A personagem central - a criança - necessitava da escuta e acolhimento das dores e da sua potencialidade, que possibilitaram o seu desenvolvimento psíquico (Winnicott, 2012).

Portanto, nosso objetivo foi abrir espaço para a compreensão mais ampliada e contemporânea sobre a dinâmica dialógica mediadas pelas narrativas entre “eu-outros”, escutando e compartilhando as vozes “eu – nós”, que se confrontam devido as diferenças, mas que podem ser aceitas e complementadas por meio da dinâmica das “narrativas dialógicas”. Para isso é necessário compreender a complexidade sobre a constituição do sujeito e o processo de individuação da psique (Fordhan, 2006; Jung, 1991; Winnicott, 2012) e a complexa dinâmica sobre a “dialógica eu-outro” e desenvolvimento da linguagem (Bakhtin, 1992).

Método de pesquisa

O método adotado foi a “pesquisa narrativa compartilhada”, que valoriza a qualidade científica, fundamentando teoricamente as vivências e análises das narrativas. A escolha deste método se justifica pela valorização atribuída a escuta que respeita as diferenças e aspectos comuns das narrativas de experiências, numa “dialógica aberta e contínua”, onde o próprio pesquisador é o psicopedagogo que narra e analisa as suas experiências que envolvem o diagnóstico e intervenção psicopedagógica de uma criança. As compartilhas de experiências e orientações foram ampliadas devido a escuta de múltiplas vozes, expressas pela criança, pela autopercepção da própria psicopedagoga, pelo professor e gestão da escola, pelo cuidador familiar (avó) e pelas orientações das supervisões, e da monografia, utilizando no método a pesquisa das narrativas compartilhadas.

As experiências apresentadas na monografia e os recortes de experiências narrados na presente publicação estão presentes na dialógica entre o psicopedagogo que escuta, respeita e acolhe afetivamente as experiências narradas e desenvolvidas pela criança. No relato e análise da pesquisa, ele se coloca como pesquisador que se auto percebe e amplia a dialógica, mantendo a escuta da criança, da cuidadora familiar (avó), da professora, do supervisor e do orientador da monografia, buscando as elaborações conscientes dos sentimentos e amplificações de possíveis soluções diante dos problemas expressos. As compartilhas continuam na elaboração da produção científica expressa na forma de narrativa com análises fundamentadas no eixo teórico apresentados neste artigo.

Gonzalez (2005) valorizou essas narrativas compartilhadas propondo um procedimento que denominou de “conversações”, fundamentando-se no enfoque teórico histórico cultural, na teoria da complexidade de Morin e nas análises dos sentidos de subjetividade. Merece destaque as pesquisas e reflexões teóricas de Scoz e Castanho (2012) que aprofundam no pensamento de Gonzalez (2005) e nas análises dos sentidos da subjetividade na educação e ensino. Fagali e Pugliese (2015), fundamentadas na teoria do referido pensador, utilizaram as análises das respostas possibilitadas pelas conversações entre alunos do curso de psicopedagogia, que apresentavam suas percepções sobre os sentidos das dificuldades de aprendizagem. Suas análises chegaram as falas que expressam sentimentos de inquietações diante das diversidades sobre dificuldades que geraram novas ampliações de percepção:

“(...) reconheceram o alcance da dificuldade de aprendizagem e das construções dos sentidos subjetivos que foram se configurando em meio às dúvidas, inquietações e preocupações acolhidas” (Fagali & Pugliese, 2015, p.108).

Souza e Cabral (2015) ressaltam a importância destas narrativas na formação de professores. Nas últimas décadas de 2020 intensificaram-se as práticas e análises qualitativas destas pesquisas nas áreas humanas, da educação e dos serviços sociais. Na área clínica, Moutinho e De Conti (2016) destacam a importância da pesquisa narrativa na construção de sentidos e identidade daqueles que relatam suas experiências com pessoas afetadas por questões corporais (obesidade):

“Ao contarmos uma história, circunscrevemos os personagens no tempo e no espaço, abrimos a possibilidade para tratar os personagens em processo de transformação e no enredo, colocamos os personagens em relação umas com os outras, criando um mundo social, no qual os personagens entram em conflito e emergem com qualidades morais (Moutinho & de Conti, 2016).

Há necessidade de diversificar as pesquisas e narrativas compartilhadas que envolvem a subjetividade, com autobiografias e protagonismos nas práticas clínicas psicopedagógicas, psicológicas, arte terapêuticas e outras especialidades na área de saúde.

A pesquisa narrada no presente artigo focaliza esta prática com fundamentos teóricos, que sustentam as análises de narrativas nos atendimentos psicopedagógicos, considerando a relação dialógica entre “terapeuta- criança” e as compartilhas de vozes que emergem da escuta e das expressões dos protagonistas envolvidos na experiência.

A dialógica compartilhada e escuta das diferentes vozes

Destacamos, no primeiro plano, as conceituações do filósofo e linguista Bakhtin que traz o princípio dialógico (relação eu-outro) valorizando a escuta e o diálogo entre diferentes vozes, aberto e contínuo:

“(...) o princípio dialógico traz em seu corpo uma abordagem da “não finalização” e do “vir a ser” configurando com isso um princípio da inconclusividade da perspectiva da heterogeneidade e da diferença da alteridade” (Bakhtin, 1929, como citado em Di Fanti, 2003, p. 97).

A proposta é a dimensão do plural, o plurilinguismo que não se fecha, que se constitui como uma conversa contínua entre múltiplas vozes conceituado como “um entremeado de discursos ordinários, isto é, discursos do dia a dia, já que o romance reconstitui passagem do cotidiano encarnado em linguagens diversificadas (Dias, 2017; Di Fanti, 2023). Segundo os fundamentos psicanalíticos e analíticos, essas diferentes vozes podem se associar as que os interlocutores escutam do meio em que vivem e aquelas que emergem a partir dos registros do inconsciente individual ou expressam as forças dos arquétipos coletivos. Essas diferentes vozes também se associam aos diferentes estilos, que facilitam ou impedem o desenvolvimento psíquico do cliente ou daqueles que participam dessa experiência de escuta e de expressão verbal compartilhada. Muitas dessas vozes se confrontam ou geram exclusões ou inclusões entre os diferentes.

Se focalizarmos as contribuições das concepções de Winnicott, o espaço de abertura e acolhimento da “mãe suficientemente boa”, os indivíduos são escutados e acolhidos considerando as diferenças de seu estilo, acolhendo suas dores e medos, valorizando o potencial do seu “estilo” e possibilitando o desenvolvimento da autoestima e das suas expressões não verbais e verbais.

Winnicott ressaltou nas suas práticas e reflexões a necessária dialógica entre “a criança e a mãe-ambiente suficientemente boa”. A criança ou outros que buscam orientação e ajuda, necessitam da escuta, suporte e acolhimento afetivo de suas dores, que possibilita o desenvolvimento da autoconfiança e a superação de suas dificuldades.

Segundo concepções de Winnicott, Dias, Safra e Fordhan, nesse momento em que a criança é escutada e acolhida, ela expressa seu “gesto criativo” iniciando o desenvolvimento da sua relativa autonomia. O psicólogo Gilberto Safra aprofundou na sua prática clínica, fundamentado nas concepções de Winnicott, ressaltando o valor das narrativas compartilhadas necessárias na dinâmica clínica, familiar, escolar e comunitária. Safra traz a importância da mediação das narrativas e retoma o pensamento de Walter Benjamin, que valorizou as práticas das narrativas na dinâmica familiar e na cultura de um sistema educacional e sociocultural: “o narrar refere-se à possibilidade de se contar uma experiência, pois no cerne de todo narrar há uma experiência” (Safra, 2006, p.24). Dentre as narrativas de experiências destacam-se também o valor dos contos que podem ser ressignificados e criados pelo cliente:

“(...)As histórias infantis, por falarem da criança por meio de personagens existentes no campo da imaginação, recriam o fenômeno de ilusão que o paciente pode usar como parte de seu jogo, para que coloquem em devir o que o angustiava” (Safra, 2011, p.91).

Jung (2000), Fordhan (1994) e Bonaventure (1992) valorizam o valor das narrativas míticas e dos contos que apresentam heróis que superam as dificuldades, desafiando os monstros e atravessando os medos. Segundo pensamento analítico, esta abertura da escuta, aceitação e elaboração do que o outro expressa depende da condição e dinâmica, mobilizada pelo “arquétipo da grande mãe saudável possibilitada pela dinâmica clínica e educacional. Esta acolhida e escuta possibilitam o desenvolvimento da Psique, do self individual durante todo o processo de individuação, que se estende da infância até a fase de amadurecimento (segunda metade da vida). A analista Jette Bonaventure aprofundou nas análises dos contos, identificando o poder simbólico e suas recriações semelhantes aos símbolos dos sonhos que emergem do inconsciente e são elaborados no nível consciente.

“(...) ler um conto, para uma criança não seria um passatempo, ou talvez uma fuga da dura realidade, para ficarmos como princesa, príncipes, fadas que transformam essa dura realidade em algo maravilhoso ou heróis que vencem todas as provas impossíveis (...) será que sem que percebamos essas histórias falam da realidade do ser humano de suas buscas, de seus traumas e dificuldades com papai e mamãe?” (Bonaventure, 1991, p. 11,15, 16).

Fordhan, psiquiatra infantil e analista, buscava nas suas práticas as narrativas dos sonhos, desenhos, pinturas e narrativas das crianças. Ele incluiu nas suas análises a concepção de Winnicott, esta concepção dialógica entre “criança e mãe ambiente suficientemente boa”. Em suas reflexões e práticas apresenta as conexões entre o pensamento de Winnicott e de Jung que considera não só a relação pessoal ou individual entre a mãe que escuta e acolhe e a criança. Esta dinâmica está afetada também pela força arquetípica da grande mãe saudável ou sombria mobilizada pela cultura em que as crianças, adolescentes e adultos estão inseridos (família, escola e outros contextos culturais). Portanto as tendências arquetípicas das relações familiares, da dinâmica de aprendizagem escolar, e da cultura como um todo podem afetar positivamente ou negativamente as relações e o desenvolvimento subjetivo e cognitivo e as expressões da linguagem não verbal e verbal da criança.

Outro aspecto significativo a ser considerado se refere aos potenciais dos diferentes “estilos cognitivos-socioafetivos” baseados inicialmente nos tipos psicológicos de Jung, ampliados pelos conhecimentos científicos contemporâneos da neurociência, das diferentes inteligências e pelas pesquisas com enfoque fenomenológico. As diferenças conceituadas e denominadas de “estilos cognitivos-socioafetivos” se revelam como

“(...) um jeito de expressar mediado por uma determinada linguagem (verbal ou não verbal) e uma tendência de usar padrões comportamentais, ao dialogar com as emoções” (Fagali, 2001, p.13, como citado anteriormente em Fagali & Quilantes, 2024, p.155)

Um dos traços que identificamos e analisamos na criança, conforme a narrativa posteriormente apresentada nesse artigo, se associa ao potencial de um “estilo cognitivo-socioafetivo intuitivo criativo”. O potencial do estilo intuitivo se associa a grande capacidade de imaginar e criar envolvendo-se com os saberes ainda misteriosos ou não reconhecidos pelos conhecimentos legitimados na cultura presente. Suas criações de histórias apontam para origens ou futuros ainda desconhecidos imaginados ou que possibilitam levantamentos de hipóteses sobre o possível e suas adaptações criativas aplicadas à realidade. São motivados pelas transformações com forte traço imaginativo que possibilitam suas criações. Quanto aos interesses ou motivações, apreciam contos do gênero das ficções, surrealistas ou futurista e das origens misteriosas da humanidade, dos animais e plantas ou do mundo. Os contos e suas criações são ricos de símbolos e metáforas. O potencial de inteligência deste estilo se associa as invenções e criações originais. Este estilo traz como suportes auxiliares as elaborações do pensamento e as avaliações do sentimento. Este pensamento é bem desenvolvido utilizando as associações múltiplas entre fatos e informações diferentes da lógica linear: “pensamento holo gramático”, que consiste na associação de múltiplas causas de um fenômeno e nas aproximações de múltiplos saberes (Fagali, 2000). O estilo intuitivo integrado a sua função auxiliar sentimento tende a se projetar nas narrativas sobre as personagens de heróis expressando simbolicamente as tentativas do seu lado herói de superação das dificuldades. Em relação a atenção, este estilo tem uma visão global, panorâmica, apresentando mais dificuldade de focar isoladamente os detalhes que poderiam ser observados. Portanto, o traço que precisa ser mais desenvolvido após a aceitação e validação da sua capacidade intuitiva e expressão de sua subjetividade seria o trabalho mais concreto, organizado e esquematizado, muitas vezes exigido no processo do aprender, durante as realizações das tarefas solicitadas pelo professor.

Na experiência relatada no presente artigo a dialógica interativa, potencializado pela escuta e atenção voltada para o cliente ou orientando, possibilitaram expressões dos potenciais de um estilo intuitivo criativo de uma criança, quando ela foi valorizada e acolhida ao expressar seus sentimentos e ser aceito suas expressões e criações (estilo cognitivo-socioafetivo intuitivo) que se compensava usando o pensamento. A escuta e espaço aberto de acolhimento possibilitou a expressão dos seus sentimentos e desenvolveu sua capacidade de buscar a concretude necessária nas realizações da escrita, desenvolvendo uma escrita de um livro com sua autoria.

Recortes da narrativa compartilhada com a criança no diagnóstico e intervenção psicopedagógica

No presente relato retomo e ressignifico minha experiência pessoal apresentando neste recorte narrado as intervenções psicopedagógicas complementadas pelas narrativas criativas de Rafael.

A metodologia narrativa foi apresentada na monografia de finalização de curso de Psicopedagogia (Gemas, 2023) apresentando as experiências de diagnóstico e intervenção que envolvia as narrativas minhas como terapeuta e de Rafael como cliente (2022- 2023).

A escolha do método narrativa desenvolveu-se através das trocas com a orientadora, Prof.ª Eloisa Fagali e atual parceira, pois continuamos com as ampliações da pesquisa narrativa compartilhada como as elaborações e extensões acrescentadas no presente artigo.

Durante o processo de orientação e nas atuais trocas ressignificamos as análises das vivências dos atendimentos de estágio utilizando minhas percepções subjetivas sobre o caso, em relação as experiências passadas e as outras ampliações de procedimentos que prosseguiram. Essas ressignificações das análises geraram criações de novos recursos, quando foi possível identificar o potencial desta criança e as ampliações de orientação aos adultos responsáveis (avó e professores) e que continuam com os cuidados de Rafael.

É de grande importância ressaltar, segundo o enfoque das compartilhas das narrativas e da necessidade de autoanálise do terapeuta, que as ampliações e ressignificações abrangeram também a autopercepção e ampliações minhas como terapeuta. Portanto, tais percepções subjetivas não fazem referência apenas as questões do cliente, mas também as minhas percepções subjetivas nos encontros anteriores e posteriores, que possibilitaram ampliações da autopercepção como terapeuta e do cliente. Alterações que possibilitaram o desenvolvimento da criança. Ou seja, o método narrativa compartilhada entre terapeuta-cliente, supervisor-orientadores favorece a releitura e ressignificações do diagnóstico e intervenções, pois considera não apenas os movimentos do cliente em atendimento, em um momento isolado ou com diagnósticos fechados, mas também o movimento constante e sempre em aberto de quem faz o atendimento, levando a uma análise de si diante do caso em andamento, considerando novas ressignificações com outros parceiros, com os quais compartilho minhas experiências clínicas.

Foi considerando todo o seu processo que pude observar uma linha da condução do trabalho, que não foi planejada previamente, apesar da preparação das atividades focadas nas dificuldades emocionais e nos conflitos escolares. Apesar de ser importante perceber os limites e conflitos, foi necessário ampliar a minha percepção e a do Rafael sobre os potenciais que precisavam ser valorizados e que podiam alterar a dinâmica interativa com seus colegas e professores. Após a análise dos resultados e conhecimento dos desbloqueios efetuados através do vínculo afetivo terapêutico e das ferramentas utilizadas de acordo com a mobilização dos diferentes “estilos cognitivos–socioafetivos” do cliente, foi possível observar o processo de constituição do “Eu Sou” que se associa ao “eu posso” de Rafael, liberando a sua intuição criativa espontânea e desenvolvendo sua escrita e expressão própria através da criação de uma história compartilhada comigo. De minha parte busquei ampliar minha escuta, sentimentos, percepção e intuição. Assim foi possível valorizar e mobilizar o potencial de um estilo “cognitivo-socioafetivo intuitivo criativo”, que se integra com o pensamento e que foi se desenvolvendo em direção a constituição do seu Self (eu sou, eu posso) e seu desenvolvimento da linguagem. Foi necessário escutar suas narrativas e compartilhar os diálogos com seu lado sentimento para ser possível as elaborações conscientes, atenuando suas feridas associadas ao abandono e perdas recorrentes desde o início do desenvolvimento infantil, que se repetiam em outros momentos de aprendizagem na relação com colegas e professores.

A capacidade intuitiva e a progressiva expressão subjetiva e espontânea de Rafael ajudavam nas compartilhas e ampliações de suas criações intuitivas.

O diagnóstico e dinâmica psicopedagógica mediada pelas trocas das narrativas mobilizavam as conexões entre passado, presente e futuro, sem se deter nas repetições e reproduções mecânicas, mobilizando a ampliação dos sujeitos e personagens das narrativas.

Inicialmente comecei os atendimentos considerando identificar seus “estilos cognitivo-socioafetivos” superior, os potenciais auxiliares e a sua função inferior menos desenvolvida, para assim poder atuar tanto em seus pontos favoráveis, quanto auxiliá-lo em sua função inferior. Dessa forma, alguns recortes serão descritos a seguir para a maior compreensão do caminho percorrido ao longo de 1 ano e meio de atendimento psicopedagógico com Rafael.

Contato com a escola

A demanda inicial apresentada pela escola era de que Rafael não lidava bem com situações de conflito com seus colegas e professores. Envolvia-se com brigas e respondia aos professores diante da apresentação das regras em sala de aula. Outra queixa pertinente aos seus professores era que Rafael não realizava as atividades propostas, não fazia registro das mesmas em seu caderno, embora fosse alfabetizado. Por essa razão ganhou nomeações externas baseadas nesse relato, como preguiçoso, agressivo e até mesmo avaliações negativas de seu caráter. O cliente Rafael, no período dos atendimentos, era uma criança de inicialmente 7 anos cursando o 1º ano do Fundamental I. Demos continuidade durante todo o seu período cursando o 2º ano do Fundamental I, quando completou 8 anos.

Primeiros encontros com o cliente

Em nosso primeiro encontro Rafael mostrou-se aberto ao vínculo, sendo uma criança dócil e participativa diante das atividades propostas. Realizamos a leitura do livro “O monstro das cores” (Llenas, 2022) e me contou sobre seu gosto pessoal em relação a dinossauros. Não sabia ainda que ao final de nosso período juntos, Rafael terminaria escrevendo seu próprio livro de história, que embora não fosse diretamente sobre dinossauros, contava sobre seres gigantescos que invadiram a ilha de diversão das corujinhas irmãs. Mais uma vez me valendo da proposta do método narrativa, percebo o quanto a produção de sua história revelava o seu potencial criativo intuitivo ao inventar suas histórias com animais pré-históricos. Mas naquele momento minha atenção focava a manifestação de suas questões psíquicas e conflitos infantis, que estava elaborando através de seus interesses e de como estabelecia seus vínculos. Estes aspectos subjetivos também eram fundamentais para manter a cuidadosa função terapêutica materna, possibilitando a constituição da relação afetiva e a escuta e valorização de Rafael, que trazia também suas feridas de abandonos passados.

Devido a brevidade que se propõe este artigo não poderei expor todas as etapas de seu processo, mas salientarei aquelas mais significativas para a construção da linha que nos levou a escolha da finalização de nosso processo juntos com a construção de uma história, que inconscientemente atende a suas próprias questões existenciais. Também é intenção desse artigo vincular tais experiências de nossos atendimentos com as pautas teóricas, que podem atender a leitura subjetiva e as ampliações dos recursos psicopedagógicos e das narrativas associadas as criações de imagens e da escrita de Rafael.

Observações e análises sobre o que Rafael revelava

Nos primeiros meses de atendimento as atividades propunham-se tanto a investigação de seu “estilo cognitivo-socioafetivo”, com identificação das funções superior, inferior e auxiliares e de fortalecer nossa transferência associadas aos vínculos afetivos saudáveis, estabelecidos semana a semana.

Minha hipótese inicial era que seu potencial apontava a capacidade intelectual apoiada em outro potencial (função auxiliar) que apresenta o sensorial do fazer (ação) de movimentos e da inteligência cinestésicas concretos e utilização da percepção visual. Posteriormente percebi que o seu potencial não era este, mas buscava suas compensações no pensamento: função forte auxiliar, tentando com esforço para desempenho das tarefas estruturais que necessitavam do apoio da função sensorial concreta, aspecto que posteriormente identifiquei como a sua função menos desenvolvida, ao descobrir e mobilizar o seu potencial maior associado a intuição criativa.

Na continuidade dos atendimentos fui observando traços do estilo Intuição, que apareciam timidamente, segundo minha percepção que ainda não identificava o valor de sua intuição criativa.

Ao ressignificar estas análises nas trocas compartilhadas com a orientadora e atual parceira, Eloisa Fagali, retomei um dos fatores que possivelmente não me facilitou identificar o forte potencial intuitivo de Rafael, ao desenvolver minha própria autopercepção considerando o valor e atenção sobre esta capacidade intuitiva criativa: em minha própria trajetória, o uso da Intuição foi coibido. Portanto, ao perceber, nas trocas com a orientadora, retomando as experiências com Rafael e aprofundando nas fundamentações teóricas, foi possível considerar o meu próprio bloqueio da minha função Intuição. Esta negação deste meu potencial foi retomado e ressignificado por mim na minha história de vida e profissional. Provavelmente este foi um dos fatores que justificam esta não percepção e não mobilização da função intuitiva de Rafael inicialmente nos atendimentos. Outro fator se refere as outras necessidades de avaliar tarefas mais estruturantes exigidos no diagnóstico psicopedagógico e que são também importantes para as superações das dificuldades de aprendizagem do cliente.

Prossegui minhas análises mantendo o suporte afetivo e acolhimento da mãe suficientemente boa, trabalhando em paralelo meus próprios bloqueios, ampliando meus recursos e manejos, que poderiam facilitar as expressões de Rafael e desempenho de aprendizagem da criança. Nesse momento houve uma atualização da transferência em nosso vínculo através da possibilidade de retorno aos nossos primeiros encontros e acomodação criativa daquilo que havia passado e não percebido por mim, acolhendo seus sentimentos e suas expressões emocionais comigo e no contexto familiar e escolar e suas feridas associadas ao abandono materno infantil.

Adentrando mais sua história familiar e seu vínculo com os professores, pude focalizar o quanto havia complicadores na construção de sua vida emocional. Rafael estava constantemente invadido por dúvidas sobre sua importância na vida do outro. A professora, por suas próprias demandas pedagógicas, tendia a ler as reivindicações de atenção de Rafael como meios que ele usava para de atrapalhá-la nas aulas.

Ampliando as narrativas sobre sua dinâmica familiar obtive conhecimento de que seus genitores foram presos no período de seu nascimento. Ambos os genitores estavam envolvidos em delitos relacionados ao tráfico de drogas. Assim que ele nasceu foi retirado de sua mãe, que não lhe deu de mamar uma vez sequer, conforme relato de sua avó paterna, que foi quem assumiu a sua guarda no período de seu nascimento. Apesar do exercício da maternidade por parte de sua avó, Rafael demandava uma ordem de maternagem para desenvolver-se. Esta avó, que assumiu a guarda legal de Rafael, deixou uma leitura dúbia sobre sua relação afetiva com ele, ora parecendo um familiar distante nos assuntos escolares de Rafael, ora demonstrando um caráter de superproteção, não permitindo efetivamente a entrada de outra pessoa na vida de Rafael. Abordarei mais adiante no texto o perfil desta avó, que era a figura mais próxima de maternagem em sua vida. Considerei como hipótese a fragilidade do “Eu Sou” de Rafael, por falta da escuta e ausência do suporte de uma mãe suficientemente boa, que impediu a descoberta e reconhecimento do seu potencial intuitivo e o desenvolvimento mais elaborados de seus sentimentos: as feridas iniciais geravam as descargas agressivas projetadas sobre os colegas, gerando projeções agressivas nas relações de aprendizagem com aqueles que não o respeitava e o escutava. Nessas condições de perda e não escuta não era possível desenvolver o seu processo criativo. Assim, o pensamento e a função sensorial concreta que apresentam a razão e a elaboração mais estruturada, e que se distanciam das emoções subjetivas apareciam como um meio de compensar a defasagem de sua função Intuição posteriormente identificada por mim como sua função superior. Portanto, o pensamento que inicialmente se compensava usando com mais eficiência era sua função auxiliar, já que a intuição criativa e sentimentos precisavam ser mais valorizados.

O caminho para a mobilização e ampliação da sua função Intuição surgiu quando uma circunstância em sala de aula abriu para uma difícil vivência emocional, que desestruturou momentaneamente as conquistas alcançadas por Rafael até o momento, retomando as suas formas de envolvimento com brigas na relação com seus colegas.

Um fato ocorrido que envolveu seu aniversário desencadeou um processo de transformação que foi favorável para expressões de sentimentos e mobilizações do que estava bloqueado. Aniversário é uma data carregada de simbolismo relacionada a origem de um indivíduo. Considerando a complicada origem de Rafael, que em suas fantasias infantis pode ter marcas do abandono, seu aniversário é mais do que o festejo de sua vida. É também a reedição de uma história onde não contou com a presença de seus genitores. Muitas dúvidas sobre os motivos de não merecer ter a presença dos pais deviam rondar sua subjetividade. Dentro deste cenário psicológico familiar, Rafael, com a proximidade de seu aniversário, pede para a professora se poderia levar bolo para comemorar e cantar parabéns com seus colegas em sala de aula, no dia direcionado para o festejo do aniversário dos alunos da turma. A professora responde que ele, assim como era para todos os estudantes, poderia trazer o bolo para os parabéns em sala, mas que ele não merecia a comemoração de seu aniversário. Esse comentário, negando principalmente o seu desejo infantil, feriu profundamente Rafael, que voltou para a casa chorando muito e contou para a sua avó o ocorrido. Após esse episódio, nas semanas seguintes Rafael voltou a se envolver em conflitos com seus colegas, projetando sua raiva sobre o outro.

Se ressignificarmos o olhar e fala da professora, ela provavelmente tinha como intenção chamar a atenção de Rafael para as suas responsabilidades e consequências por não realizar suas tarefas. Em seu imaginário, Rafael precisava fazer suas lições para merecer sua festa. Porém, seu comentário tocou em um ponto sensível da história infantil e feridas da “criança interna” de Rafael, que não se manifestava há um tempo considerável, com suas explosões de raiva sobre os colegas. Ele foi afetado na sua emoção, projetando sua raiva e agressão sobre os colegas como forma de defesa. Nesse momento, ele revelava um fechamento do canal de mobilização saudável de suas potencialidades, necessárias para a constituição do “Eu Sou” e para o desenvolvimento do seu potencial intuitivo criativo. Naquele momento, as portas se fecharam para a criança criativa, conforme pensamento de Winnicott, impossibilitando manifestações de suas histórias imaginárias pré-históricas que buscava revelar na primeira etapa dos nossos encontros. Era necessário agora buscar as retomadas de seu “gesto criativo”.

Ressignifiquei neste momento os motivos de sua fixação por dinossauros, apresentados anteriormente nos nossos encontros. Estes seres que existiram anteriormente na pré história e que nos remete a origem humana envolvendo muitos mistérios e sombras de medos de um complexo infantil inconsciente (Jung, 2000a; b). Usando nesse momento, o recurso da metáfora, associando seus contos sobre dinossauros que revelavam um traço do gênero intuitivo e as perdas originárias sentidas, associei às relações primárias sobre ausência do apoio materno: seus pais não estavam lá nos primórdios da sua infância. Eram anteriores a sua origem, como os dinossauros, e Rafael não teve contato direto com eles nos primeiros anos de sua infância, sendo criado pela avó paterna.

Diante do choro pelo episódio do seu aniversário e das retomadas de suas projeções agressivas, paralisando o que já estava elaborando de suas emoções associadas a dores das perdas primárias maternas, resolvi nesse momento utilizar um manejo ou mediação terapêutica que possibilitasse trabalhar projeções não verbais de conteúdos emocionais, possibilitando expressões dos sentimentos e elaborações conscientes.

As mediações das artes favoreciam pintura expressas como meio de apaziguar a turbulência despertada nele. Assim, iniciamos com a pintura de um cabideiro de corujinhas. Era um cabideiro antigo e desgastado pelo tempo. Enquanto pintávamos ia conversando com ele como é possível a renovação das cores na madeira, tentando fazer uma transposição para a realidade. Assim, sua realidade podia ser ressignificada. A experiência teve um efeito saudável. Na dinâmica fora dos atendimentos, os conflitos com seus colegas cessaram. Desde então estendemos a pintura do cabideiro para a construção de uma história de sua autoria sobre as “corujinhas irmãs”, que visitavam uma ilha invadida por um gigante e ajudavam os animais da ilha a fugirem desse monstro.

Durante a pintura perguntava para ele quem eram aquelas corujinhas. Ele embarcou nessa questão dizendo que eram irmãs e como era a personalidade de cada uma. A coruja rosa era muito chata e mandona, a azul era a mais velha e sabia voar, enquanto a verde era sabida e bolava os planos de aventuras das corujinhas irmãs. Há muitas interpretações possíveis para a história que construiu em sua autoria sobre as “corujinhas irmãs”. Relatava uma aventura onde visitavam uma ilha invadida por um gigante e ajudavam os animais da ilha a fugirem desse monstro. De qualquer maneira, olhando em retrospectiva toda nossa trajetória junto, percebo o profundo processo de elaboração que aconteceu no decorrer de nossas atividades e culminou em sua escrita – lembrando ser essa uma das queixas iniciais por parte dos professores, que reclamavam que Rafael não registrava as atividades em seu caderno. Através de suas personagens estava falando de seus sentimentos: descoberta diante do desconhecido, através da aventura empreendida pelas corujinhas irmãs a uma ilha; medo e angústia dos animais da ilha diante da invasão de um monstro gigante; solidariedade e amizade quando as corujinhas se unem em um plano para salvar os animais da ilha. Sentimentos que circulavam no seu imaginário, mas ainda não continham representação em seu psíquico.

Síntese da análise da trajetória do desenvolvimento do cliente Rafael

Guiando-me pela observação dos “estilos cognitivos-socioafetivos” do meu cliente de estágio, inicialmente trabalhamos com atividades voltadas as funções Sensorial e Pensamento. Rafael demonstrava maior interesse aparente sobre atividades que contemplassem essas funções, como uso de jogos de tabuleiro, construção de maquetes e atividades corporais jogando bolas.

Com o conhecimento da totalidade do processo de Rafael comigo nos atendimentos, hoje posso perceber que essa forma inicial dele se revelar para mim – psicopedagoga e seu par terapêutico naquele momento – era encoberta por suas defesas diante de um Ego fragilizado e ainda em busca do “Eu Sou”.

As direções tomadas, diante do episódio de seu aniversário desfizeram as defesas de Rafael e pude conhecer seu lado mais espontâneo. Nesse momento suas funções Sentimento e Intuição podiam ser exploradas e ampliadas. Considerando que os conflitos com seus colegas haviam se extinguido até o final do trabalho juntos e o desenvolvimento de sua escrita, que embora alfabetizado havia uma recusa em realizar os registros em sala de aula, podemos pensar que essas funções são mais favoráveis para o verdadeiro Self de Rafael.

Mais uma vez, utilizando o recurso do método narrativa de retomada das memórias vivenciadas pela dupla Psicopedagoga – Cliente, posso perceber que mesmo no início, ainda escondido em um Falso Self, Rafael me revelava seus traços intuitivos. E embora sempre tenha sido difícil a exposição de seus sentimentos, conseguiu expressá-los através de seu próprio conto.

Enfoque sistêmico com família e escola

A retrospectiva possibilitada pelo método narrativa também coloca em perspectiva a junção de todos os fatos que envolveram o caso na troca com os demais adultos cuidadores em torno de Rafael. Tanto a avó – representando o contexto familiar de Rafael – quanto a escola mantinham um contato muito restrito, que alimentava um imaginário negativo sobre a vida de Rafael fora da escola. Até antes de conhecer a avó tive uma impressão de uma vida muito mais precária e sofrida em relação as possibilidades materiais da família, o que, soube posteriormente, não era compatível com a real situação econômica familiar. Após o primeiro contato com a avó, tive acesso aos seus temores de trocar com a escola, pois se sentia oprimida em um ambiente em que se considerava aquém. Aos poucos fui promovendo um âmbito de trocas saudáveis entre família e escola, em especial entre a avó e a professora da turma de Rafael.

Até o momento em que esses importantes contatos meus como terapeuta escutando as narrativas e percepções dos representantes educadores e cuidadores da escola e com a avó que cuidava de Rafael, foi possível compreender e lidar com esta criança que era afetada pelas controvérsias que envolviam a dinâmica e percepção da escola sobre ela. Rafael estava constantemente envolvido em conflitos em que ele era apontado como culpado. Seus professores percebiam esta criança como um desestabilizador da ordem geral e causador de conflitos durante as aulas. O curioso era que nos atendimentos nada dessa “fama” de Rafael era compatível com a relação que estabelecia comigo e na sua disponibilidade para a realização das atividades propostas.

Considerei importante o estabelecimento de vínculo entre as partes para as trocas pertinentes ao processo de aprendizado e sociabilidade de Rafael na escola. Essa aproximação trouxe bons resultados e aconteceu em paralelo com a construção da sua história em formato de livro que confeccionamos juntos, a partir da pintura do cabideiro de corujinhas.

O efeito de saber-se olhado e de ter adultos preocupados com seu desenvolvimento conversando sobre ele também promoveu um efeito terapêutico em Rafael, que se mostrava satisfeito quando contava para ele o que havíamos conversado (eu na posição de psicopedagoga, a professora, a direção da escola e sua avó) sobre ele.

Enquanto estive em atendimento com ele através do estágio referente a formação em Psicopedagogia promovi reuniões com a equipe gestora e a família, deixando isso como recomendação para a continuidade desse vínculo.

A família e o sintoma da criança

Foi importante a aproximação com a avó de Rafael, para assim entender melhor seu contexto familiar. Porém, como já citado acima, a mesma me deixou uma impressão dúbia sobre seu real vínculo comigo – psicopedagoga de seu neto nesse momento.

Em um primeiro momento mostrou-se aberta para a continuidade dos atendimentos de Rafael em meu consultório particular, a partir de um alinhamento financeiro possível para a família, após a finalização do período de estágio na escola de Rafael. Enquanto durou o período dos atendimentos na instituição escolar a avó mostrou-se aberta e disponível, geralmente me acessando para que eu intermediasse alguma situação de Rafael com a professora. Com o final do estágio a avó assumiu uma postura distante, encerrando-se, portanto, meu processo junto a Rafael.

Considerando as ampliações alcançadas em nosso percurso, a continuidade do trabalho seria provavelmente frutífera, principalmente considerando que foi possível acessar seu “estilo cognitivo-socioafetivo” Intuição e liberar suas emoções, que abriu para seu processo criativo e destravou sua expressão escrita, que apresentava resistência antes de nosso percurso juntos.

Dessa maneira, fiquei com as questões relativas à atitude da avó, que se manteve, em todo o período dos atendimentos, ressaltando a importância dos mesmos e diferença para Rafael e posteriormente não correspondeu as minhas tentativas de contato.

Uma das hipóteses considerada por nós é de uma postura de superproteção sobre esse neto, que ela assumiu sozinha e formou uma dupla. Considerando uma inevitável triangulação com minha entrada como terapeuta nessa relação, podemos pensar sua dificuldade em permitir minha presença. Outra consideração sobre a forma da avó de se relacionar comigo enquanto psicopedagoga de seu neto, que formulamos enquanto hipótese para esse caso, é sua atitude manipulativa, entendendo que minha posição diante dos atendimentos era de conseguir vantagens para seu neto. Consideramos que é possível um não entendimento de sua parte sobre as conquistas de amadurecimento de Rafael, que foram revertidas positivamente em seu processo de aprendizado, a partir da revelação de seu “Eu Sou” e expressão de seu “estilo cognitivo-socioafetivo” Intuição. Também podemos entender que essa atitude manipulativa, caso tenha razão em ser, é uma forma dela de se relacionar em suas demais relações com Rafael.

Caso houvesse continuidade nos atendimentos com Rafael, conhecendo todas as partes do processo que vivemos juntos, consideramos a importância de trabalhar cada vez mais sua autonomia e busca de si, separando-se de seus fantasmas inconscientes e libertando-se de aspectos de seu vínculo com a avó que o amarram em seu desenvolvimento, seja por superproteção ou por uma tendência de obter vantagens por parte da avó devido a vivências de dificuldades socioeconômicas.

Considerações finais

Em nossas discussões sobre o caso de Rafael percebemos o seu percurso em conectar-se com seu “Eu Sou”, possibilitando seu processo de maturação, conforme a base conceitual em Winnicott. Ampliamos nosso olhar, aproximando o pensamento de Winnicott com o pensamento junguiano do psiquiatra analista infantil J. Fordhan, considerando o desenvolvimento do processo de individuação da Psique que integra seu potencial intuitivo, com sua capacidade de pensar logicamente e com seus sentimentos que foram liberados e compensados pela escuta materna terapêutica, principalmente no extravasamento de suas mágoas, como as dores expressas no seu aniversário.

No desempenho de suas funções nas expressões simbólicas de seus trabalhos, e principalmente na construção do seu livro assumindo sua autoria, Rafael acessou também o nível do sensorial concreto, sendo esse mais difícil para os intuitivos criativos. Foi facilitado pela valorização de seu poder intuitivo criativo presente nos trabalhos e na confecção do seu livro.

Paralelo ao desenvolvimento da autoestima e autoconfiança de Rafael, que possibilitaram o diálogo com suas dores e expressões dos seus sentimentos, Rafael desenvolveu a escrita criativa dando voz ao seu estilo intuitivo. Suas conquistas foram constatadas por nós e por Rafael, nas suas realizações no desenvolvimento do seu livro autoral associando expressões verbais e contos expressos na sua escrita.

Consideramos que ainda ficou algo a alcançar nessas contantes compartilhas de narrativas entre cuidadores e terapeutas da criança. Esta orientação ecossistêmica que implica em outras compartilhas das narrativas e diferentes vozes, do educador e dos responsáveis integrantes familiares, precisariam ser ampliadas, caso houvesse continuidade no processo de Rafael nos atendimentos psicopedagógicos.

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