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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.28 n.2 São Paulo dez. 2008
TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS
Construções e “garimpagens” - quais as possibilidades?
Constructions and “diggings” - what are the possibilities?
Suzana Grünspun1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
A autora, através do enfoque teórico-clínico, apresenta uma reflexão sobre o tema “Construções em Análise” instituído por Freud em 1937. Com essa finalidade, utilizase do termo “garimpagem”, entendido simbolicamente como a extração das riquezas naturais para o aproveitamento de substâncias minerais. Procura articular esses conceitos através das idéias de Bion. Sugere que esses conhecimentos surgem da apreensão do material durante a sessão, enriquecendo a compreensão do processo psicanalítico e catalisando-o para fins do desenvolvimento psíquico do paciente. Apresenta dois casos ilustrativos.
Palavras-chaves: Construções; Modelo; Garimpagem.
ABSTRACT
The author, through a theoretic-clinical focus, presents a reflection on the theme “Constructions in Analysis” instituted by Freud in 1937. With this purpose, she utilizes the term “digging”, symbolically understood as an extraction of the natural richnesses for the utilization of mineral substances. She tries to articulate these concepts through Bion’s ideas. She suggests that this knowledge emerges from the apprehension of the material, during the session, improving the comprehension of the psychoanalytic process and catalyzing it toward the patient’s psychic development. Two illustrative cases are presented.
Keywords: Constructions; Model; Digging.
1. Introdução
Freud, no texto Construções em Análise (1937-1975), discute questões a respeito da qualidade do material que o paciente coloca à disposição do analista para que possa auxiliá-lo no recuperar lembranças perdidas. Salientou o quanto a relação transferencial que se estabelece com o analista é especificamente calculada para favorecer o retorno de conexões emocionais. Em relação às associações do paciente, escreveu: é dessa matéria-prima, se assim podemos descrevê-la, que temos de reunir aquilo do que estamos à procura (p.292).
Considerou o quanto as repetições dos afetos pertencentes ao material reprimido podem ser encontradas em ações do paciente, tanto fora como dentro do contexto da análise e realçou, nesse estudo, a importância de um modelo para descrever o processo de construção e reconstrução em análise.
Apoiando-se no modelo arqueológico, comparou as escavações de um arqueologista com o trabalho de um analista. Argumentou serem os dois processos semelhantes, exceto pelo fato de que o analista trabalha em melhores condições e tem mais material à sua disposição, pois aquilo de que está tratando não é algo destruído; semelhante àqueles encontrados nas escavações arqueológicas, mas algo que ainda está vivo.
Freud utilizou os termos “construção” e “reconstrução” indiferentemente e, ao comparar o trabalho do analista ao do arqueólogo, salientou apenas a diferença de que o passado com o qual o analista relaciona-se é continuamente recriado no presente e, por isso, é força vital. Neste sentido, uma construção seria uma conjetura acerca do passado que suscita averiguação, validação ou rejeição pelo paciente.
A evolução do conceito analítico de reconstrução é detalhada por Pyles (2006). Segundo esse autor, as reconstruções já aparecem nos primeiros trabalhos de Freud. Em “Lembranças Encobertas”, descreveu os germens dessas questões, pois aquelas representam a idéia que ainda não pode ser compreendida, mas a recordação e as vivências a elas ligadas poderão ser reconstruídas durante o processo analítico (Freud, 1899-1975).
No relato do sonho de Irma encontrado no trabalho: “O método de Interpretar um Sonho: Uma Análise de um Sonho Modelo” (Freud, 1900-1975), encontra-se o primeiro sonho analiticamente interpretado por Freud e considerado a primeira reconstrução analítica conhecida. Ele propôs com seus argumentos, a hipótese de que a análise de um sonho implica em atribuir um significado ao conteúdo relatado. Alguma compreensão é alcançada que se ajuste à cadeia de associações e assim tenha um sentido importante para o paciente, adquirindo validade.
Esse conceito de reconstrução permeia sua obra; “Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância” (Freud, 1910-1975), na qual apontou que de um modo geral, os limites da psicanálise no campo das biografias, devem ser esclarecidos, pois o que não for logo comprovado será considerado como um fracasso e não validado. Assim, o material de que dispõe a psicanálise para uma pesquisa e possível reconstrução analítica, consta de dados da história da vida de uma pessoa; das circunstâncias acidentais e das influências do meio e, de outro lado, as reações conhecidas do indivíduo.
No seu artigo “Recordar, Repetir, Elaborar” (1914-1975), discutiu com afinco questões relacionadas entre transferência e lembranças infantis rememoradas. Nesse trabalho, Freud considerou o quanto a conhecida amnésia infantil é contrabalançada pelas lembranças encobertas. As situações ditas esquecidas pelo paciente, na realidade, são situações que ele sempre soube, mas nunca pensou, pois não lhe dava a devida atenção. Em “Uma dificuldade no Caminho da Psicanálise “(Freud, 1917-1975) ele argumentou a favor do trabalho psicanalítico, considerando o quanto a psicanálise procura explicar os distúrbios psíquicos com o empenho da investigação para delinear hipóteses e formular construções científicas.
O melhor exemplo dos esforços de reconstruções aparece no artigo de Freud - “História de uma Neurose Infantil “(1918-1975). Nele analisa o pesadelo de seu paciente com lobos, podendo explicar assim o surgimento de novas lembranças até então ocultas, fato que proporcionou significado à neurose grave por ele manifestada.
O seu trabalho definitivo sobre esse tema é “Construções em Psicanálise” (Freud, 1937-1975). A importância desse conceito em psicanálise é relevante, pois, através das construções, o paciente reúne suas experiências, faz ligações, o que propicia as simbolizações, tarefa essa de suma importância para o processo de elaboração. Reflexões clínicas sob esse vértice contribuem para que se observe a análise à luz de parâmetros conceituais estabelecidos na literatura psicanalítica, possibilitando a validação do processo analítico.
2. Relato de casos
Os pais de R. procuraram-me por estarem preocupados com o sofrimento da filha. Ela estava com 8 anos. Manifestava fortes crises de ansiedade; não suportava ficar só, pois sentia medo de que os “monstros” estivessem nos diversos aposentos da sua casa. Mal conseguia adormecer no seu quarto e já procurava os pais durante a noite, o que acontecia com muita freqüência. Insegura para ir à escola, chorava muito ao ter que se afastar de sua mãe, roía as unhas até causar ferimentos nos dedos. A paciente é caçula, com uma irmã com dezenove anos e um irmão, com dezesseis. Os pais relataram um tipo de atenção e educação para R. diferente dos seus irmãos. Não dispuseram de tempo suficiente para oferecer-lhe um ambiente próprio, necessário e saudável para ela, pois tinha que acompanhar as atividades dos irmãos, o que lhe ocasionava um ritmo de vida conturbado. Esse fato exigia que se adaptasse rapidamente às exigências do ambiente.
Relato uma vinheta de sessão onde R. disse-me: hoje nós vamos fazer uma reunião para escolher o novo símbolo da nossa construtora, pois o antigo sumiu. Em seguida, pega um papel e escreve: estou reconstruindo a minha vida aos poucos; estou tirando a tristeza da cabeça, quero minha vida completa.
Observo R. escrever e colocar essa folha escrita sob as outras, permaneço em silêncio e ela comunica-me: sabe como nós vamos fazer a reunião? Juntas vamos carimbar figuras! Cada uma dará sua opinião sobre elas, assim encontraremos a que será o novo símbolo da construtora. Após carimbarmos um raio, um globo terrestre, um ninho e um dominó, trocamos nossas opiniões, ela então escolheu o dominó, dizendo ser a figura que mais lhe agradou, pois lembra tijolo de uma construção. Acrescentei que o jogo de dominó constrói-se da seguinte maneira: uma peça começa aonde a outra termina. R. olha-me com ar de contentamento e exclama: eu gostei do dominó! Pronto, então vai ser o dominó o novo símbolo, você concorda?
R. quer reconstruir suas experiências emocionais, propõe uma parceria para buscar novas representações. Aparece a possibilidade de ampliar sua capacidade simbólica. Escolhe um novo símbolo para a construtora, o dominó, jogo no qual as peças combinam-se de diferentes formas, caracterizando a qualidade polissêmica da simbolização. As novas representações geram novos sentidos, podendo desenvolver recursos para facilitar a elaboração da tristeza que R. sente. No final da sessão, R. diz: faz de conta que o símbolo antigo, que era uma poltrona, não sumiu, nós é que enjoamos dele e procuramos outro para nos representar. Eu falo: bom, você se lembrou do símbolo antigo; ele não sumiu da sua cabeça.
Segundo Freud (1937-1975), uma construção se dá quando o analista introduz um fragmento para completar o que parece ter sido esquecido pelo paciente. O material analítico não é algo que está destruído, mas permanece vivo e pode ser recuperado, ser reconstruído. O trabalho de análise dá-se no cerne da relação transferencial, é sob este fenômeno que o paciente investiga suas recordações e suas experiências emocionais que serão evocadas do passado para o presente.
O jogo de dominó suscita o modelo de construção sugerido por Freud. Ele descreveu o trabalho de análise como uma atividade executada lado a lado, analista e paciente; um deles, um pouco à frente e, o outro, a segui-lo. O analista propõe um fragmento da construção e comunica-o de maneira que possa agir junto ao paciente; este constrói então um outro fragmento a partir deste novo material que sobre ele derrama-se. Paciente e analista lidam com este material e prosseguem desse modo alternado.
No Vocabulário de Psicanálise de Laplanche & Pontalis (1999), é descrito o quanto Freud sustentou como ideal do tratamento a rememoração completa, quando esta se revela impossível, seria nas “construções” que iria confiar para preencher as lacunas do passado.
Construir é dar estrutura a elementos, a fatos; organizando-os gradualmente para alcançarem uma ordem e favorecer um arcabouço para a disposição das partes formarem um todo. A construção no trabalho de análise facilita o processo de elaboração que é feito gradualmente na relação transferencial. A elaboração conduz a experiências emocionais esclarecedoras e relacionadas entre si de forma dinâmica que proporcionam maior integração psíquica.
Klein (1957-1991), ao ampliar o conceito de transferência a partir de suas reflexões a respeito das relações objetais primordiais, considera-a como palco dessas primeiras experiências, sendo esta permeada por emoções inconscientes, fantasias pré-verbais e ansiedades primitivas que foram operantes desde o início da vida. Assim as denominou como “lembranças em sentimentos”, que são vivências reconstruídas e colocadas em palavras com o auxílio do analista.
O trabalho de análise é um movimento de desvelamento do inconsciente. Durante esse processo, os pensamentos emergem de súbito, muitas vezes parecendo algo estranho para a consciência, podendo propiciar resistências. É importante que se faça a ligação contínua das experiências mais recentes com as anteriores. Construir é também colocar palavras nas frases, formar períodos, assim ampliar a capacidade de pensar. (Freud, 1937-1975)
Com a finalidade de ampliar essas reflexões, relato o caso de M.
Esse paciente procurou análise aos 49 anos, sentia-se mal e angustiado; referia uma insônia antiga e seus relacionamentos afetivos eram muito atribulados. Ao contar-me sobre sua infância e seu pai, M. parecia não querer emocionarse, mantinha na sua mente uma lembrança apagada do pai. Durante uma sessão, disse-me: eu nem lembro muito bem do meu pai; de tanto que ele viajava para trabalhar, é como se ele fosse um desconhecido. Hoje em dia parece que eu nunca tive um pai. Convivi com ele até os meus três anos, época em que ele foi para outra cidade e só nos víamos nas férias. Quando eu estava com nove anos, ele morreu.
Durante o seu relato, transmitiu-me frieza e distância como se fossem escudos contra os golpes sofridos pela perda precoce de seu pai. Descrevia-se irônico com os colegas, captava seus pontos fracos e ridicularizava. Um dia disse estar preocupado, pois sentia que poderia destruir os outros . Percebia que alguma coisa não estava bem e exclamou numa sessão: tenho que reavaliar minha vida. Eu lhe falei que talvez tivesse um vislumbre da dor mental que essas experiências causavam. Até aquele momento aprendera a escamotear suas dificuldades e agora se dava conta do quanto sua vida psíquica empobrecera-se. M. respondeu que suas atitudes eram devido ao fato de ter sido criado por uma mãe severa e um pai ausente e completou: tenho falhas de percurso na minha vida, por isso eu preciso de análise.
M. sentia-se acolhido nas suas dificuldades e lentamente foi vivenciando e recordando-se de lembranças muito antigas de sua infância: a época que eu mais me lembro de meu pai foi dos três aos meus seis anos. Ocasião que fizemos uns bonecos de madeira e um teatrinho. Hoje eles estão escondidos numa estante, atrás dos livros. Freud (1937-1975) assinalou em suas considerações sobre reconstruções que seria possível duvidar de destruição total de estruturas psíquicas, o sucesso em trazer à luz o que está completamente oculto depende exclusivamente do trabalho analítico. Enfatiza que estamos à procura de um quadro dos anos esquecidos do paciente que seja digno de confiança e completo nos seus aspectos essenciais.
3. Discussão
Quais são as possibilidades de articular-se construções e modelos em análise? Descrevo outras vinhetas de sessões dos pacientes R. e M. para prosseguir com esta reflexão.
R. inicia a sessão desenhando; fomos mudando a nossa atividade, da tinta e papel acrescentamos a argila, esta ganhou algumas formas e depois foi misturando na água dentro da bacia. A mistura não ficou muito atraente; R. pôs a mão na água turva, sentiu a argila desfazendo-se e disse: ai que coisa feia! Continuou mexendo e não gostou da coloração barrenta da água. Encontrou umas pedras no fundo da bacia e as retirou exclamando: imagina se nós encontrássemos aqui pedras preciosas? Retirou outras pedras e disse-me para ficar de olho nelas. Quis colocar tinta no fundo da bacia e foi derramando várias cores, mas, a água continuava turva. Retirou outra pedra, esta já tinha absorvido a coloração azul; R. fez uma expressão de contentamento. Pediu para que eu ficasse olhando as pedras para acompanhar as mudanças. Senti com ela seu contentamento ao ver surgir da água turva, uma pedra azul, preciosa na sua cor.
Permanecemos olhando a água turva, onde toda a argila estava diluída e juntas tivemos a impressão de que não havia mais nada a ser encontrado. Ao despejarmos a água barrenta, ficamos cautelosas, observando e R. perguntoume: onde estão as tintas que eu despejei? Por um momento eu não soube o que lhe responder. Subitamente R. teve um impacto ao encontrar o fundo da bacia todo colorido. Ela experimentou um prazer sensorial, visual que eu também compartilhei, falou: as pedras preciosas são como os meus melhores pensamentos, os que eu mais gosto.
Eu lhe disse que aquele momento lembrava-me os garimpeiros, aqueles que ficam à beira do rio turvo à procura das pedras preciosas, perguntei se ela conhecia o que era batea, a peneira usada na garimpagem.
O processo de garimpagem que vivenciamos foi um instante no qual usufruímos de um estímulo visual que nos remeteu a uma apreciação estética, em que cada uma obteve uma experiência sensorial agradável.
Considera-se garimpagem a extração de riquezas naturais; é uma atividade de aproveitamento de substâncias que sejam garimpáveis tais como alguns minerais e pedras; só pode ser executada no interior de locais estabelecidos para esse fim. A garimpagem é um meio de sobrevivência para muitas famílias que, sem lavoura, retiram do subsolo seu sustento diário. Garimpar é uma atividade artesanal da qual se obtém os frutos e rendimentos possíveis.
A água turva na bacia mostrou-se como o nosso local de garimpagem, onde pudemos peneirar (batea do garimpo) até encontrarmos riquezas. Experienciamos a turvação da água como uma forte resistência; fui tomada pelas identificações projetivas de R. quando juntas duvidamos se haveria tinta colorida no fundo da bacia. Nesta sessão, vivenciamos a dúvida do saber, de maneira lenta e silenciosa. R. pôde viver estas experiências ao sentir a água na bacia, vê-la turva e feia para em seguida maravilhar-se com o colorido do fundo.
Garimpar é uma palavra exclusivamente utilizada no Brasil: em outros países, essa atividade recebe outras denominações, dependendo dos costumes locais, mas sempre contemplam o conceito de atividade extrativa. Nos países latino-americanos, utilizam-se designações diversas para os que realizam essas tarefas: garimpeiros (Brasil), barequeros (Colômbia), chichiqueros (Peru), coligalleros (Costa Rica), gambusinos (México), güireseros (Nicarágua), lavaderos de oro (República Dominicana), pirquineros (Chile e Argentina). (Viegas, 1997).
Por outro lado, “grimpar” significa investir contra outrem, manter atividade clandestina, às escondidas. Os “grimpeiros” são considerados vadios, invasores, indivíduos que se intrometem com outros para desfrutar ou explorar em seu próprio proveito. Significado que tem sua origem no período da colonização portuguesa, pois só uma seleta elite de Portugal era autorizada a extrair os minérios, elas tinham a garantia, o conhecimento e a permissão para essa atividade. Eram assim denominados “grimpeiros” para os portugueses que se tornaram os “garimpeiros” para os brasileiros, que posteriormente puderam alcançar reconhecimento pelas suas atividades extrativas. A garimpagem foi considerada “clandestina” até sua legalização no Brasil; interessante notar a origem da palavra clandestina que significa planta herbácea cujas flores estão em parte encobertas pela terra.
Transpondo para a análise, consideram-se que os modelos que surgem da apreensão do material durante a sessão enriquecem a compreensão do processo analítico, este permeado de construções, inferências, reconstruções e transferência, coloca-nos diante de uma problemática subjacente. É necessário instrumentalizar-se com a técnica analítica para compreender os fenômenos mentais e também estarmos aptos, como analistas, para “garimpar” junto aos nossos pacientes suas preciosidades e não “grimpá-las”.
O paciente M. prosseguiu sua análise e iniciou o processo de desvelamento de lembranças mais soterradas. Sentia-se estar mais livre para voltar atrás no seu tempo vivido e falar sobre o teatro de bonecos de madeira. M. disse-me: sabe como o teatrinho ressurgiu em minha vida? Numa noite de insônia, há algum tempo atrás, encontrei, em minha casa, o teatro de marionetes construído pelo meu pai. Eu o limpei e montei novamente, mesmo assim, coloquei bem escondido numa estante. Acho tão piegas recuperar essa lembrança!
Eu lhe disse com muito cuidado: será tão piegas a lembrança de um teatro confeccionado pelo seu pai? Como era o teatro? M. respondeu: foi a época em que estive mais próximo de meu pai. Descíamos no porão, era aí que o teatro funcionava a todo vapor. Feito com uma moldura, uma cortina e uma plataforma. O palco continha três espaços como se fossem trilhos, um atrás do outro. Meu pai fez os marionetes e eles deslizavam sobre os planos. Ele colocou iluminação com luzes azul, vermelha e amarela para dar tonalidade do dia. O teatro reapareceu durante essa sessão com muita vitalidade. O palco iluminado coloriu as lembranças afetivas paternas.
M., descendo até o porão, ativou as recordações de sua infância, vieram à tona a moldura e a plataforma com trilhos, dispostos em profundidade. As lembranças, embora de início lhe parecessem piegas, foram de extrema riqueza. A tonalidade das luzes promoveu o aparecimento das lembranças soterradas no porão de sua mente. Estavam apagadas pelas vicissitudes da sua vida e emergiram durante a sessão para um palco iluminado e vivo.
Meltzer & William (1995) utilizam-se do modelo estético a fim de ampliarem sua compreensão analítica. Para eles a beleza do método analítico promove um encontro característico, proporcionando vivências interessantes e únicas entre analista e paciente durante um período das suas vidas. Esses autores afirmam que, ao celebrar a beleza do método, estamos compreendendo como a mente opera sobre as experiências emocionais de nossas vidas. (p.13). Como conseqüência desse processo, observam-se alterações e reorganizações estruturais da mente que evolui e desenvolve-se, alcançando crescimento, integração e proporcionando riquezas afetivas.
O modelo estético sugerido facilitou o trabalho analítico com esse paciente. É necessário, no encontro analítico, a existência de interação e comunicação para fornecer ao inconsciente uma riqueza de dados propiciadores de experiências emocionais estéticas facilitadoras de elaborações.
4. Conclusão
A tarefa do analista é um trabalho artesanal, recompõe os fragmentos, ajuda a promover uma suposta organização do material, sugere um jogo de paciência.
O que facilita a experiência emocional são os vínculos que existem entre os seres humanos, sem aqueles não haveria lugar para um processo de pensamento e desenvolvimento psíquico. São como pedras preciosas que constroem o edifício das nossas relações mais íntimas.
Os modelos apresentam-se com a possibilidade do analista manter um estado de dúvida tolerada em relação ao material apresentado pelo paciente. Permite que, durante a sessão, ele suporte sentimentos dispersos e contraditórios até organizar suas percepções e alcançar uma compreensão maior do que lhe está sendo comunicado É na ausência de significados imediatos que o estado da mente do analista trabalha e possibilita reunir, por intuição, uma série de fenômenos inconscientes.
O fato selecionado corresponde ao nome de um elemento que introduz ordem na compreensão da captação psíquica do paciente; com isso precipita uma reação de síntese e ajuda o analista a formular suas comunicações. Este conceito tem sua origem na matemática. Bion (1963-1988) priorizou o modelo matemático no seu sistema de teorias psicanalíticas. Um sistema dedutivocientífico, segundo sua óptica, facilitaria a apreensão dos diversos momentos de vivências emocionais durante uma sessão de análise, facilitando assim, estabelecer um modelo de notação científica para auxiliar o registro das experiências singulares durante uma sessão de análise (Bléandonu, 1993).
Segundo Symington, J. & Symington, N. (1999), o analista, ao produzir seus modelos, facilita a percepção do fato selecionado. Este foi descrito anteriormente pelo matemático Jules Poincaré: para um novo resultado ter qualquer valor deve ligar elementos há muito conhecidos, mas até então dispersos e que pareciam estranhos entre si e subitamente introduzir ordem onde reinava a aparência da desordem. Deste modo, permite-nos com rápido olhar ver cada um destes elementos no lugar que ocupam no conjunto. O novo fato não é valioso por si só, mas dá um valor aos fatos antigos que une. A nossa mente, tal como nossos sentidos, é frágil; perder-se-ia na complexidade do mundo se tal complexidade não fosse harmoniosa. (p. 115)
Deveria o analista ser capaz de intuir e interpretar a situação no exato momento em que esta se processa?
A intuição do analista facilita encontrar o caminho correto para ele formular uma teoria científica e posteriormente obter provas verdadeiras para validá-la. O objetivo da ciência é a possibilidade de uma teoria prever, predizer novos eventos. As generalizações seguem às experiências de hipóteses formuladas, e as hipóteses merecem ser testadas continuamente.
Freud, no texto, Construções em Análise (1937-1975) salientou a necessidade de o analista observar as repetições dos afetos que pertencem ao material reprimido do paciente e que podem ser encontradas nas associações, quer sejam importantes ou triviais. Ele considerava ser nesses instantes que o analista recupera para o paciente seus objetos psíquicos, uma vez que estes têm seus elementos essenciais preservados. Segundo o modelo arqueológico, essa estrutura refinada permite que se estabeleça através de construções, um sentido imediato e amplo para as associações. Somente no curso da análise é que o analista poderá decidir se suas construções foram eficazes e deram sentido à experiência do paciente. Aqui estaria o germe das idéias de Bion (1963) sobre a aplicação do conceito do fato selecionado?
Essas idéias estimulam a reflexão psicanalítica e são de grande valor para a validação de uma proposição que de qualquer maneira é lenta, gradual e evolutiva.
O analista pode estar apto a trabalhar e investigar o funcionamento mental do paciente, mas está tão sujeito quanto este às interações e dinâmicas do processo analítico. Ao preservar sua função analítica, poderá acompanhar o paciente e não prejudicá-lo com suas intervenções. Assim, facilita a elaboração, considerada uma ação vital e nutritiva para o desenvolvimento psíquico.
Os pacientes R. e M. deram-me a permissão para caminharmos próximos a esta reflexão. Com a paciente R., remexemos juntas as águas, a argila, a tinta, garimpamos os seus sentimentos encobertos, mas não destruímos as flores expostas; mantivemos a seiva viva e recuperamos experiências emocionais ricas e de muita vivacidade.
Com o paciente M., ao reavivarmos o seu teatro durante as sessões de análise, tanto as lembranças encobertas como as experiências de harmonia e estética predominaram em suas rememorações. Recuperou memórias afetivas profundas e soterradas em sua mente, iniciando-o na elaboração de suas relações primitivas com o pai.
Referências Bibliográficas
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Recebido em: 10/05/2008
Aceito em: 04/09/2008
1 Psiquiatra e Psicanalista, Membro Efetivo e Docente da citada Sociedade. Contato: Rua Sergipe 2.503, conj. 67 CEP 01227-200. E-mail: sgrunspun@uol.com.br