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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.33 no.85 São Paulo Dec. 2013

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

Maria Julia Kovács: uma pesquisadora refletindo sobre a morte

 

Maria Julia Kovacs: a researcher reflecting upon death

 

Maria Julia Kovács: Una investigadora reflexionando sobre la muerte

 

 

Eda Marconi Custódio1

C. 20 – "João Toledo"
USP – UMESP

 

 


RESUMO

Este artigo é apresentado pela autora, na Sessão Solene da Academia Paulista de Psicologia quando da saudação à Maria Julia Kovács, em 18 de setembro de 2013, por ocasião de sua posse na Cadeira nº 24. Trata-se, a partir de sua formação em Psicologia pela PUCSP, sua inserção nos estudos e práticas profissionais relacionados às pessoas com deficiência, seu ingresso no Programa de Pós Graduação no IPUSP, seu interesse pelos estudos em Psicologia da Morte. Apresenta sua grande produção nessa área e sua contribuição aos pacientes hospitalizados, seus familiares e profissionais da área da Saúde. Descreve o impacto que todos temos diante do tema da morte e como vários autores têm abordado esse tema, tanto do ponto de vista social quanto psicológico. Resgata algumas produções humanas, que demonstram como temos nos defrontado com a questão da morte na tentativa de superá-la, ou representa-la artisticamente no cotidiano. Apresenta a ideia de que a morte não diz respeito apenas ao término da vida, mas como alguns autores e a própria Júlia, assinalam ao processo de experienciar micro mortes no cotidiano.

Palavras-chave: Maria Julia Kovács, Psicologia da morte, morte no cotidiano.


ABSTRACT

This article was presented by the author at the Solemn Session of the São Paulo Academy of Psychology for the greeting to Mary Julia Kovács on September 18, 2013, during her tenure at Chair 24. It is about her training in Psychology at PUCSP, her inclusion in studies and professional practices related to people with disabilities, her entry into the Post-Graduate Program at IPUSP, her interest in studies about the Psychology of Death. Most of her production is in this area and contribution to hospitalized patients , their families and professionals of Health. It describes the impact we all have on the subject of death and how various authors have addressed this issue, both from the social and the psychological point of view. Some human productions are recalled, that demonstrate how we have to face with the question of death in an attempt to overcome it , or represent it artistically in daily life. The idea presented is that death is not just about the end of life, but as some authors and even Julia, indicate the process of micro deaths in everyday experience.

Keywords: Maria Julia Kovács, Psychology of Death, death in daily life.


RESUMEN

Este artículo es presentado por la autora en la Sesión Solemne de la Academia Paulista de Psicología, en el homenaje a María Julia Kóvacs, realizado el 18 de septiembre de 2013, durante su acto de posesión de la silla nº 24. Es a partir de su formación en psicología en la PUCSP, su inclusión en estudios y prácticas profesionales relacionadas con las personas con discapacidad, a partir de su ingreso al Programa de Post grado en el IPUSP emerge su interés por los estudios en Psicología de la Muerte. Presenta una gran producción en este ámbito, así como su gran contribución a los pacientes hospitalizados, sus familias, así como a los profesionales de la Salud, describe el impacto que todos tenemos sobre el tema de la muerte y cómo varios autores han abordado esta cuestión, tanto desde el punto de vista social como psicológico. Rescata algunas reacciones humanas que demuestran cómo nos hemos enfrentado con el problema de la muerte en el intento de superarlo, bien sea representándolo artísticamente en la vida cotidiana. Presenta la idea de que la muerte no es sólo el final de la vida, pero como algunos autores e incluso la propia Julia, indican el proceso de vivenciar micro muertes en lo cotidiano.

Palabras-clave: María Julia Kovács, Psicología de la muerte, muerte en lo cotidiano.


 

 

Introdução: o ingresso na vida acadêmica

Conheci Maria Júlia em 1979, quando ingressou no Instituto de Psicologia da USP como aluna da Pós Graduação. Maria Júlia vinha da PUCSP, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde ingressara em 1971. Eu também havia sido aluna da PUC, portanto tínhamos algumas experiências em comum e trocávamos informações sobre o programa de graduação em Psicologia do meu tempo e do período cursado pela Júlia, como nós a chamamos.

Em seu Memorial, de onde pudemos trazer muitas informações aqui contidas, Júlia apresenta seus primeiros passos em direção à área de pesquisa e reflexões que desenvolveu. Aluna do Colégio Porto Seguro, queria fazer Medicina, pois estava interessada em estudar a loucura, mas ingressou no Curso de Psicologia. Inspirada no Dr. Petho Sandor, pensava em ser psicóloga clínica na abordagem junguiana, mas fazia estagio no Centro Ocupacional Avanhandava, escola especializada para crianças com deficiência mental e autismo, características que passou a estudar. Também foi contratada pelo Centro de Integração Empresa- Escola (CIEE) para atuar como auxiliar de classe na proposta de atividades compatíveis às características de desenvolvimento de cada aluno.

Necessitando dar conta de suas atividades de estágio do curso de Psicologia, saiu da escola e em 1975 começou a estagiar no setor de Psiquiatria da Santa Casa de São Paulo. Seu interesse pela loucura reascende, mas na unidade de internação para mulheres, de Vila Mariana, constata que a tarefa não era fácil.

Em 1975 se forma em Psicologia e em 1976 foi convidada pela Profa. Odete de Godoy Pinheiro, nossa professora na PUC para atuar como auxiliar de ensino na Cadeira de Técnicas de Exame Psicológico (TEP), nas Faculdades Objetivo (atualmente UNIP), dando início à sua carreira como professora universitária. Já no segundo semestre desse ano, assume, como professora responsável de TEP, três classes de 70 alunos cada.

Mas já em 1977 vai para Montreal, no Canadá, e passa a estudar e visitar escolas especializadas para crianças com deficiências múltiplas e autismo.

Em 1978, de volta ao Brasil, é contratada pela APAE de São Paulo e passa a integrar a equipe de Maria Theresia Litjens no Programa de Estimulação Precoce, trabalhando, em equipe multidisciplinar, com bebês e crianças com Síndrome de Down e suas famílias. Particularmente, com as famílias, promovia, juntamente com a assistente social, estratégias de atendimento para acolher os sentimentos ambivalentes dos pais após a notícia do nascimento de uma criança com deficiência. Nesse local começou a expandir seus conhecimentos e contatos, participando de congressos e proferindo palestras em várias partes do país. Saindo da APAE, passa a integrar novas equipes, retorna ao Centro Ocupacional Avanhandava, agora como psicóloga, e começa a atuar com Nylse Cunha, auxiliando-a a organizar o "Encontro sobre Recursos Pedagógicos em Educação Especial" na Universidade Mackenzie em 1981. Começa a atuar, também como psicóloga, na Escola Indianópolis, dirigida pela Nylse.

Com esta vasta experiência na área de estudos sobre a deficiência, foi natural o convite para integrar o corpo docente do Instituto de Psicologia em 1982, local onde ingressara para fazer seus estudos de mestrado e passa a ministrar as disciplinas Desenvolvimento do Deficiente Mental e Distúrbios da Aprendizagem do Deficiente Mental na Faculdade de Educação da USP até 1995.

Nesse período integraram sua equipe as professoras Maria Lúcia Amiralian e Elizabeth Becker, e o grupo propõe um curso de especialização sobre o tema. Posteriormente agrega-se a ele a Profa. Ligia Assumpção Amaral e em 1991 foi criado o Laboratório Interunidades de Estudos sobre a Deficiência (LIDE). Nesse momento, mais participantes se agregam como, Marcos Mazzotta e Elcie Salzano Masini, ambos da Faculdade de Educação da USP. Em 1995 a psicóloga Nancy Vaiciunas, sua colaboradora até o momento, se integra à equipe e Júlia permaneceu no LIDE até 1999.

Nesse ínterim participou da fundação do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Autismo e Psicoses Infantis (GEPAPI), composto por equipe multiprofissional da área da Saúde. Nele permanece até 1996. Nesse tempo todo, Júlia já se interessava pelas questões referentes à Psicologia da Morte.

 

Algumas questões sobre a morte

Poderíamos perguntar: com essa trajetória tão intensa e marcante na Área das Deficiências, como Júlia foi se interessar pela questão da morte, do morrer? E na verdade, em 1982, quando se declarou interessada em estudar esse tema muitos ficaram espantados. Que tema mais mórbido, poderíamos dizer! E porque este tema impacta?

Vou dar dois exemplos: alguns alunos da Universidade Metodista me procuraram para saber das possibilidades de se fazer estágio de Psicologia Comunitária junto a profissionais de cemitério e IML de prefeituras. A reação dos colegas da classe foi de estranheza, e ficaram imaginando porque alguns se interessavam por um tema tão avesso à maioria das pessoas? E o mais interessante é que esses profissionais que trabalham com a morte necessitam de uma atenção especial dos psicólogos conforme constatam a própria Julia e Elaine, sua orientanda (Kovács & Alves, 2004). Segundo Vizzotto e outros (1997), trabalhadores de cemitérios públicos são aqueles que não serviram para outras ocupações e foram colocados à disposição nessa atividade para não serem demitidos. Meus estagiários constataram falta de equipamentos de segurança, de auxílio para o transporte dos cadáveres, entre outros problemas.

O outro exemplo diz respeito ao estágio em um cemitério da rede privada e os coveiros entrevistados constantemente solicitavam a presença dos alunos durante uma exumação. Só assim eles teriam uma ideia do que é trabalhar no cemitério. O grupo de estagiários ficou impactado e isto é natural, pois a morte, o temor a ela é uma preocupação constante e grande parte da atividade humana "é destinada a evitar a fatalidade da morte, a superá-la negando, de alguma maneira, que seja o último destino do homem" (Becker, 1977, p.10). Aos poucos a dupla que fazia o estágio concordou em participar da exumação, um pouco à distância, e acompanhar os familiares presentes no processo.

Paul Barber, no seu livro Vampires, Burial and Death, argumentou que a crença em vampiros resultava da tentativa, por parte das sociedades pré-industriais, de explicar o processo de decomposição que, embora sendo algo natural, era para eles inexplicável (Barber, 1998). Também poder-se-ia dizer que um suposto ataque de vampiros talvez fosse, na verdade, a presença de uma doença altamente contagiosa e fatal, uma epidemia que dizimasse uma comunidade. Também se observava no passado que para se evitar o contagio com doenças, a sífiles, por exemplo, usava-se de uma máscara de mulher bonita, uma noiva, encobrindo a realidade, uma caveira, a personificação da morte (Carrara, 1996).

Ora, se dedicar ao estudo da morte assusta, pois em geral não ficamos à vontade com as mudanças que ocorrem em nossos corpos após o falecimento. Não conseguimos nos ver naquela massa informe, escurecida, decomposta, em forma de caveira. É uma mudança muito grande e nos assusta. Sería visualizar a velha átropos de dentuça arreganhada na descrição de Saramago (2005, p11).

Segundo Venutti, (2013),

Na Mitologia Grega, Atropos ou Átropos (do grego Aτρoπoζ, "Sem Retorno") era uma das três Moiras, deusas que regiam os destinos, sendo sua contraparte romana conhecida como Morta. Era considerada a mais velhas das Moiras, conhecida como a "Inevitável" ou "Inflexível" sendo ela que cortava o fio da vida. Seus atributos eram o quadrante solar, as balança e a tesoura ou ainda uma esfera e um livro onde ela lia os destinos.

Seria o equivalente às Parcas na mitologia Romana.

Se por um lado nos deparamos com a dificuldade de enfrentar as mudanças que ocorrem em nosso corpo, e num mundo atual onde a preservação da juventude, o culto ao belo é uma constante, seria muito natural não estar à vontade diante dos restos do cadáver. Tanto é assim que hoje instituímos a necromaquiagem para atenuar o desconforto da visualização da morte nos funerais. Muitos povos antigos instituíram a mumificação como estratégia de preservação do corpo, guardando no seu interior o coração para um eventual retorno à vida. Também instituímos a cremação o que nos poderia aliviar o desconforto da decomposição do cadáver. Mas temos que nos preocupar com os sentimentos de familiares em relação ao corpo do ente querido e até do moribundo que talvez não se sinta confortável diante da expectativa de ser cremado. Será que ele sentirá alguma coisa? Além disso, princípios religiosos poderão desaconselhar a cremação.

O corpo como ponto central de tudo, segundo Rubem Alves (1982), baseando-se nas idéias de Kierkegaard, nos atenta para o quanto nós estamos apegados a ele. Existirá algum lugar onde nos encontramos fora de nós mesmos, estando assim livres do radical corpocentrismo a que nossa carne nos obriga? (p.32). Alves pergunta se não seria o corpo, o sol em torno do qual gira o nosso mundo. Acrescenta ainda que um leitor cético (e saudável) diria que não, pois há coisas mais importantes. Mas basta padecer de alguma doença incapacitante, com dores, perda de controle sobre seu corpo... para que sua percepção mude. E o sofrimento do corpo, a dor, é o prelúdio da morte. Daí a promessa para nos aliviar da angústia: "creio na ressurreição do corpo". Por outro lado, aquela imagem nos faz tomar consciência da finitude do eu. Hoje nós somos, nós existimos, mas e depois da morte o que seremos, o que é não ser, deixar de existir, de ter o controle sobre nosso eu, nossas vontades...E nesse momento diante da aniquilação, da morte, o ser humano lança mão de mais uma possibilidade de continuar sendo – o encontro com o sagrado, com Deus. "E o fim, pela magia do poder, se transforma em início: morte em ressurreição: é morrendo que nascemos para a vida eterna" (Alves, 1982, p.59). Ou como o autor afirma, se baseando em Romain Rolland, "...sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas" (op. cit, p. 60).

E foi pensando nesse possível retorno que muitos povos antigos instituíram o costume de alocar seus mortos em sarcófagos, urnas funerárias, ao lado de seus bens, suas armas, de alimentos, pois eles "irão voltar e é bom que estejam preparados para continuar a vida" (Kübler-Ross, 1977).

Mas há outro detalhe que impacta o ser humano: separar-se de seus entes queridos, morrer e não poder ter mais contato com amigos, familiares, ou ainda acompanhar o fim de alguém muito querido: ele se vai, mas deixa um vazio difícil de ser preenchido. Como afirma Caruso (1984),

"A consciência ou, no mínimo o pressentimento doloroso da separação vai até às raízes da angústia que atormenta todos os homens: isso se torna tanto mais frequente quanto mais o homem se afastar da natureza – e esse afastamento constitui seu destino e sua história" (p.281).

Por conta dessa dificuldade de viver com a separação, a melancolia, o luto, ... o homem tem procurado se distanciar o mais possível da morte. E segundo o autor, "...para não ter que viver com a morte, preferimos reprimir a vida, limitá-la e restringi-la de múltiplas maneiras, dentro de nós e ao nosso redor" (p.283).

Imagina-se que os dragões, as imagens de esfinge, as mais variadas, personificando a astúcia (cabeça humana), a rapidez na ação (asas) e a força (corpo de leão), colocadas à frente dos palácios antigos, das entradas das cidades, indicam exatamente isto: para eu continuar vivo, eu intimido e posso destruir quem me ameaça.

 

O percurso de Júlia na área da psicologia da morte

Diante desses impasses tão sofridos que dizem respeito ao morrer, ou tentar superar a morte, posterga-la, impasses que, conforme assinala Kübler-Ross (1977), tanto as esquipes de saúde, os religiosos, as pessoas... devem enfrentar, acreditamos que é muito importante para o mundo acadêmico que pesquisadores como a Júlia nos brindasse com suas reflexões sobre o tema. E isto começou, já na busca da ideia de pesquisa sobre a morte que poderia conduzir durante o mestrado.

Julia, em seu Memorial, afirma que buscar literatura sobre o tema naquela, época não foi fácil, mas em discussões sobre o projeto com seu orientador, Nelson Rosamilha, ficou definido que sua pesquisa seria sobre o medo da morte entre estudantes universitários das áreas de saúde, humanas e exatas. Com esse projeto passou a integrar o corpo docente do Instituto de Psicologia em regime de turno completo e em 1984 passou a Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa. Em 1985 defende sua dissertação (Kovács, 1985) e em 1987 apresenta um artigo sobre o tema – Medo da morte: uma abordagem multidimensional (Kovács,1987).

Próximo à sua defesa, seu orientador é internado e em seguida falece por conta de um câncer em estágio avançado. Assumo o papel de orientadora e continuo no papel também no doutorado. Papel muito fácil de ser desempenhado quando se tem uma orientanda inteligente, competente e produtiva como a Júlia. No seu doutorado, Júlia defende a tese "A questão da Morte e a formação do Psicólogo", em 1989.

A partir desse momento o crescimento de Júlia na área foi impressionante. Passou a ministrar disciplinas na graduação e pós-graduação, participar do CORA (Centro Oncológico de Recuperação e Apoio); contatos com Edit Elek, Edmundo Barbosa e a abordagem Simonton; foi para Londres patrocinada pela FAPESP e pelo Conselho Britânico e lá, novos contatos muito importantes lhe permitiram mergulhar no tema dos cuidados paliativos e a minimização do sofrimento de pacientes a partir da integração da equipe de saúde com familiares. Observou pacientes, em estágio terminal, conversando, sorrindo junto de seus familiares e a partir daí lutou para desenvolver programas de cuidados paliativos, dentro desses moldes, a serem implantados no Brasil.

Não foi fácil, pois conforme assinala em seu memorial, a mentalidade dos profissionais daqui entende que cuidados paliativos são tratamentos de segunda linha. Sobre esse tema escreve o capítulo Morrer com Dignidade, na obra coordenada por Maria Margarida Carvalho, Introdução à Psico-oncologia (Kovács, 1994). Em 1994 organizou o I congresso de brasileiro de Psico-oncologia marcando a sequencia de uma serie de outros que se realizaram de dois em dois anos, tendo sido o último, agora em 2013.

No desenvolvimento dessas atividades surgiu o embrião para o desenvolvimento de programas e filmes didáticos para falar sobre a morte com crianças adolescentes, idosos e profissionais da saúde, para a criação do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) e em 2002 defende a tese de Livre Docência Educação para a Morte: desafio na formação de profissionais de saúde e educação (Kovács, 2002). Mas não para por aí, desenvolve a pesquisa A questão da morte nas instituições de saúde e educação: do interdito à comunicação para profissionais de saúde e educação com Bolsa Produtividade do CNPq, onde busca avaliar o impacto dos filmes produzidos pelo LEM entre estudantes e profissionais que participaram dos cursos e atividades promovidos pelo laboratório. Parte deste trabalho também já foi publicada (Kovács, 2008).

Sua produção intelectual é farta, proporcionando aos interessados um conteúdo vasto sobre o tema da morte. No seu Currículo da plataforma LATTES (Kovács, 2013), atualizado em março de 2013, constam 30 artigos publicados, desses apenas um sobre deficiências ou correlatos; nove Livros publicados/ organizados ou edições, apenas um sobre a deficiência; 37 capítulos de livros, apenas dois sobre deficiência; quatro textos em jornais de notícias/revistas; 14 trabalhos completos publicados em anais de congressos, sendo apenas três sobre deficiência; sete resumos publicados em anais de congressos; 45 apresentações de trabalho em eventos; oito publicações do tipo Prefácio, Pósfacio/Apresentação; uma resenha.

Além dessa produção, há que se destacar sua participação em 76 bancas de mestrado; 47 de doutorado; 22 dissertações orientadas, 16 teses, 7 trabalhos de iniciação científica e 114 participações em eventos, congressos...

Com essa produção fica bem caracterizada sua dedicação a uma área tão importante no mundo atual.

 

A morte no cotidiano

A morte tem sido objeto de produção artística, romanceada, trabalhos magníficos como Romeu e Julieta de Shakespeare, apresentada também de forma melódica e em ballets clássicos; as várias óperas em que a cena de morte se faz presente e impacta; a produção dos grandes pintores que deixaram seus registros sobre a maneira de se ver a morte.

Poderíamos nos deter um pouco na música e para contrapor vida e morte lembremo-nos da Sagração da Primavera de Igor Stravinsky, obra do início do século XX, que segundo Santana (2013) "...narra a trajetória de uma garota marcada para ser entregue como oblação à divindade primaveril, no auge de um ritual pagão, com o objetivo de conquistar para seu povo uma colheita proveitosa." Em outras palavras, fica implícita a continuidade da vida desde que haja sacrifícios com morte.

Esta imagem pode nos remeter ao desejo da morte daquele que nos destrói, que ele seja destruído para nos manter vivos, presente no terceiro movimento da Sinfonia n. 1 de Mahler. Entrar em contato com a história da Primeira Sinfonia de Gustav Mahler, conhecida como "Titã" (Titan, no original), por si só nos faz lembrar os dilemas vividos pelo ser humano no dia-a-dia. Wilkens (1995) observa a dificuldade de se assinalar quando Mahler de fato começou a trabalhar nessa obra. O número exato de movimentos também é controverso, pois há partes que em versões posteriores foram retiradas, ou abandonadas. Sabe-se, a partir de várias cartas, que o término da composição ocorreu em março de 1888, como registra Gartenberg (1978) também.

O próprio Mahler viveu seu drama pessoal, um conflito intenso entre ser compositor e ser regente que o atormentou por longo tempo, tendo superado esta tensão somente quando compôs a Segunda Sinfonia. "Suas sinfonias são realmente 'mundos avassaladores' ", segundo Assumpção (2013a). Esse drama pessoal, vivido por cada um no seu dia-a-dia, nos lembra que é necessário morrer um pouco (sonhos, desejos, ambições) para continuarmos vivos.

E assim Mahler, na primeira parte (Parte I) dessa sinfonia nos brinda com um movimento allegro que trata da vida que se renova, flores, frutos, vegetação, aves, entre elas o cuco. Como afirma Assumpção (2013a), "...uma concepção cósmica, que parece visitar amplitudes desconhecidas." Já na segunda parte, temos o que é hoje conhecido como terceiro movimento, com a melodia infantil Frère Jacques tratada como marcha fúnebre para o caçador que é levado ao túmulo, acompanhado por vários animais. É a morte daquele que destrói vidas para permitir que a própria vida se refaça.

Outra melodia que poderia ser lembrada é a famosa Dança Macabra de Camille Saint Saëns, obra de 1874 na qual a Morte se apresenta personificada, cumprindo o seu papel de levar todos para seus túmulos, não importando questões de gênero, idade, prestígio social, ou seja, como a Profa. Dra. Aidyl M. Q. Pérez- Ramos assinalou durante a posse de Júlia na Academia Paulista de Psicologia em 18 de setembro de 2013, a morte como a mais democrática das entidades.

Assumpção (2013b) descreve a concepção da melodia como segue:

"Neste poema sinfônico, temos logo de início as 12 badaladas do relógio fazendose ouvir pela harpa, e o violino solo que se segue anuncia o intervalo de trítono, considerado 'diabólico' por toda a Idade Média....Frequentemente, a utilização do xilofone na orquestração é entendida como sendo a busca do 'timbre dos ossos', em alusão aos esqueletos que dançam."

Essas produções artísticas são apenas algumas, muitas outras poderiam ser lembradas.

No nosso cotidiano Kovács (1992) baseando-se na obra de Meltzer, assinala que "...a morte é o inimigo que os vivos passam suas vidas tentando superar e derrotar para sempre, sem ideia da consequência disso" (p.28). Cassorla (1992) lembra seus leitores que na verdade vivemos muitas mortes todos os dias. "A morte física será a última, mas teremos mortes parciais ou totais nas áreas somáticas, mental ou social, lembrando que essa divisão é apenas didática, pois todas se interpenetram" (p.99). São as "micromortes da vida cotidiana". E é com essas mortes que temos que nos defrontar todos os dias. Júlia o fez na sua trajetória como acadêmica, abrindo mão de algumas atividades que apreciava para se lançar a outras.

Embora tenhamos muito pouco contato com essas ideias, pois não nos satisfaz pensar em morte, e os meios de comunicação só se referem às grandes desgraças, ainda nas igrejas é possível ouvir, por parte dos párocos, que na verdade nós morremos todos os dias um pouco. Padre Jordélio Siles Ledo, da Igreja Matriz Sagrada Família de São Caetano do Sul, assinala durante as missas que amar é morrer. Uma pessoa focada no seu eu não ama, pois amar é transcender a si mesmo, é enfrentar algumas micromortes da vida cotidiana para se tornar livre, superar o medo e crescer. É a possibilidade de renovação, tal como ocorre na natureza.

Essas palavras do Padre Jordélio também devem impactar alguns membros da Igreja. Nem todos concordam com elas, pois nossa atenção está focada na morte física e o desaparecimento total. Mas vamos supor que o ser humano consiga de fato superar a morte física. Quem nos apresenta uma possível experiência desse tipo é Saramago (2005) ao imaginar um país onde a morte física tinha deixado de existir. E aí se sucedem todos os percalços da situação: a rainha mãe, muito idosa e doente, com dificuldades para governar, não morre e consequentemente seu sucessor não pode ocupar o trono; assim como ela milhares de idosos, incapazes, ficam totalmente a mercê de cuidadores, abarrotando hospitais e centros de saúde; as verbas ficam escassas; os ministros religiosos entram em crise e vão falar com o primeiro ministro para tentar mudar a situação, pois sem morte não há ressurreição e sem ressureição não tem igreja; os serviços funerários entram em colapso por falta de cadáveres e consequente endividamento, e sugerem que o ministro torne obrigatório o sepultamento de animais de estimação; cria-se um serviço clandestino para transportar idosos e doentes para países onde a morte ainda existia...e assim por diante.

Diante desse quadro fantástico e assustador pode-se deduzir que todos nós, imortais da academia ou não, somos mortais e imortal é o legado, a produção humana, sua obra que também aos poucos parcialmente morre para se transformar, crescer e morrer... São as micromortes.

Mas a morte é imortal. Graças a Deus!

 

Referências

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Recebido: 20/10/2103
Corrigido: 22/10/2013
Aceito: 28/10/2013.

 

 

1 Cadeira nº 20 da Academia Paulista de Psicologia. Contato: R. Victor Meireles, 277, Jd. São Caetano, CEP: 09581-460, São Caetano do Sul, SP – Brasil. Tel: (11) 4238 – 7669. E-mail: edamc@cebinet.com.br

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