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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.35 no.88 São Paulo Jan. 2015

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

O Desenho da Figura Humana para avaliação da inteligência de adultos analfabetos

 

The Human Figure Drawing for intellectual assessment of illiterate adults

 

Dibujo de la Figura Humana para evaluación de inteligencia de adultos analfabetos

 

 

Irai Cristina Boccato Alves (Cad.31)1

Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O Desenho da Figura Humana (DFH) é usado para avaliação intelectual infantil, mas esta finalidade não é considerada apropriada para os adultos. Os analfabetos, em geral, apresentam desenhos empobrecidos comparados aos de adultos alfabetizados. Este estudo pretende investigar, se uma avaliação qualitativa das características gerais do DFH de pessoas analfabetas poderia ser usada como forma de estimar a inteligência desses adultos. Os DFH de 152 adultos não alfabetizados foram classificados de acordo com a qualidade da produção, atribuindo-se cinco conceitos usando o critério do Teste Metropolitano de Prontidão. O conceito A é dado para os desenhos muito bons, seguindo até o conceito E para os muito ruins. A maioria dos analfabetos apresenta desenhos classificados como C (médios), seguidos pelo D (médio inferior). As correlações obtidas são significantes e moderadas entre essas classificações e as pontuações no Teste de Inteligência R-1, sugerindo que o desenho pode auxiliar na avaliação da inteligência desse grupo de adultos.

Palavras-chave: Desenho da Figura Humana; analfabetismo; Teste R-1.


ABSTRACT

The Human Figure Drawing (HFD) is used for intellectual assessment of children, but this purpose is not considered appropriate to adults. The illiterate adults make impoverished drawings when they are compared with literate adults. This study intends to investigate, if a qualitative assessment of general characteristics of the HFD can be used for intellectual assessment of these adults. The HFD of 152 illiterate adults were classified according to production quality and were given concepts based on Metropolitan Readiness Test criteria. The concept A is given for the very good drawings, following until concept E for the very poor. The majority of illiterates were classified as C (average), followed by D (below average). Correlations obtained are significant and moderate between these classifications and the scores of Test R-1, suggesting that the drawing can be used to assess adult intelligence of this group of adults.

Keywords: Human Figure Drawing, illiteracy; R-1 Test.


RESUMEN

El test de la Figura Humana (DFH) se utiliza para la evaluación intelectual de los niños, pero este propósito no se considera apropiado para los adultos. Los analfabetos en general, presentan dibujos pobres en comparación con los realizados por adultos alfabetizados. Este estudio tiene como objetivo investigar si una evaluación cualitativa de las características generales del DFH en adultos no alfabetizados podría ser utilizada como un medio para estimar la inteligencia de estos adultos. Los DFH de 152 adultos no alfabetizados fueron clasificados de acuerdo a la calidad de la producción, atribuyéndoles cinco conceptos utilizando el criterio del Test Metropolitano de Preparación. El concepto A es asignado a dibujos muy buenos, siguiendo hasta el concepto E para los más pobres. La mayoría de los no alfabetizados presenta diseños clasificados como C (medio), seguido por D (media baja). Las correlaciones obtenidas son significativas y moderadas entre estas clasificaciones y las puntuaciones en el test de inteligencia R-1. Lo que sugiere que el diseño puede ayudar en la evaluación de la inteligencia de ese grupo.

Palabras clave: Diseño de la Figura Humana; analfabetos; Test de inteligencia R-1.


 

 

I. Introdução

Em 8 de setembro é comemorado o Dia Internacional da Alfabetização, no qual são discutidos e revistos os dados sobre o analfabetismo e são delineadas novas metas (ONU Alfabetização, Rádio das Nações Unidas, 2004). Segundo a ONU, quatro bilhões de pessoas não sabem ler e nem escrever, constituindo mais de 20% da população mundial, das quais dois terços são de mulheres, ou seja, mais de 580 milhões. De acordo com a UNESCO houve grandes avanços nessa área, pois em 1970 havia dois alfabetizados em cada três adultos; passaram a três em quatro e recentemente, quatro em cinco. Os países em que ainda mais de 50% da população é analfabeta, encontram-se na África Central e no Sudeste Asiático, enquanto os que mais aumentaram a taxa de alfabetização foram a Índia e Bangladesh. Os países considerados ricos também têm analfabetismo, porém pouco divulgado e em menor número (Revista Mundo e Missão, 2005).

No Brasil, um estudo produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Pinto, Sampaio & Brant, 2003), mostrou que, em apenas 19 cidades, a população possui um nível de instrução que corresponde a oito séries do ensino fundamental. Tais diferenças regionais tornamse mais evidentes ao se considerar o grau de instrução da população. Os dez municípios, com melhores índices, estão nas regiões sul e sudeste, enquanto as dez cidades com o menor número médio de séries concluídas estão localizadas nas regiões norte e nordeste. Nas famílias com renda superior a 10 salários mínimos, o índice de analfabetismo é de apenas 1,4%, enquanto nas que possuem renda inferior a um salário mínimo alcança 29%. No meio rural brasileiro, a taxa de analfabetismo é três vezes superior à da população urbana, 28,7% e 9,5% respectivamente. Acrescente-se a isso que 35% dos analfabetos brasileiros freqüentaram escola.

Os censos mais atuais, no caso o PNAD (2012) revelaram que 8,7% dos brasileiros com mais de 15 anos ainda não sabem ler e escrever, o que equivale a 13,2 milhões de pessoas. Considerando todas as grandes regiões, os grupos de idades mais elevadas têm mostrado uma maior taxa de analfabetismo. Para a faixa entre 15 e 19 anos, a taxa foi de 1,2% em 2012, enquanto para as pessoas com 60 anos ou mais, estava em 24,4%. Pode não parecer, mas estes dados mostram avanços, porque registram uma diminuição no total de analfabetos no país, pois em 2007 essa taxa era de 10,1%. Na região Nordeste, a taxa de analfabetismo foi de 17,4%, constituindo a região que concentra 54% do total de analfabetos do país (Junior, 2013). Do total dos analfabetos, mais de 12,3 milhões (94%), são pessoas de 25 anos ou mais e 24,4% têm 60 anos ou mais. As mulheres (6,3 milhões) são maioria dessa população. (notícias uol.com.br, 2013).

Segundo Oliveira (2004, p.223), o adulto não alfabetizado se diferencia dos que estudaram, pois a sua forma de pensar está mais ligada à experiência imediata e os estágios cognitivos não foram totalmente percorridos. "A principal modalidade de inserção da pessoa adulta na cultura é o trabalho e essa seria a categoria fundamental de análise no processo de construção de uma Psicologia do adulto". A autora comenta como a atividade exercida influencia o funcionamento psicológico e cita a conclusão de Tulviste de que os adultos pouco escolarizados pensam de acordo com sua experiência pessoal e de seu cotidiano e os que têm maior escolarização tendem a abstrair e descontextualizar mais. A respeito dos adultos trabalhadores e com pouca escolarização acrescenta:

A categoria 'adultos trabalhadores', especialmente quando associada à condição de alunos de cursos que se apresentam como oportunidade de recuperação ou elevação da escolaridade, remete a um grupo de sujeitos que compartilham um lugar social, caracterizado pela condição de adultos, de excluídos dos processos regulares de escolarização e de membros de determinados grupos culturais .... compostos primordialmente por cidadãos de baixa renda, migrantes que chegaram às grandes metrópoles provenientes de áreas rurais empobrecidas, filhos de trabalhadores rurais não qualificados e com baixo nível de instrução escolar (muito freqüentemente analfabetos), com passagem curta e não sistemática pela escola e inseridos no mercado de trabalho em ocupações urbanas não qualificadas, após experiência como trabalhadores rurais na infância e na juventude (Oliveira, 2004, p.220).

Tfouni (1988) acredita que a escrita surgiu mais como produto das modificações sociais do que como causa e, deste modo, propõe que o adulto analfabeto numa sociedade alfabetizada dispõe de recursos lógico-formais no pensamento. Pesquisou o raciocínio silogístico em 16 adultos não-alfabetizados e constatou que "cinco foram capazes de raciocinar logicamente diante dos silogismos apresentados" (p.87). Para a autora a natureza do pensamento destes adultos é diferente dos alfabetizados que têm controle e consciência dos processos cognitivos. Os adultos alfabetizados são capazes de descentração completa, equilíbrio estável e reversibilidade operatória.

Na literatura internacional algumas pesquisas realizadas na área da Neuropsicologia têm mostrado diferenças no cérebro entre pessoas com ou sem alfabetização, como por exemplo a de Petersson, Silva, Castro-Caldas, Ingvar e Reis (2007). Esses autores encontraram diferenças na especialização funcional entre esses dois grupos, em que os não alfabetizados apresentavam uma lateralização direita mais consistente, bem como existiam diferenças no córtex superior temporal entre ambos.

Diante desta realidade os estudos psicológicos ainda têm que avançar muito na compreensão desta população e de suas produções gráficas. Assim são necessárias mais pesquisas que auxiliem a obter dados e estabelecer normas que possibilitem a utilização de testes psicológicos para essas pessoas. Por essa razão, este estudo pretendeu investigar o desempenho de adultos não alfabetizados nos testes psicológicos R-1 e Desenho da Figura Humana (DFH).

 

II. O Desenho da Figura Humana (DFH)

Piaget e Inhelder (1994, p. 56) afirmam que "o desenho é uma forma de função semiótica que se inscreve a meio-caminho entre o jogo simbólico e a imagem mental, com a qual partilha o esforço de imitação do real". Esta imitação do real segue etapas maturacionais que são descritas sinteticamente por Di Leo (1991), quanto ao tipo de desenho esperado para cada estágio cognitivo. No período sensório-motor, em que a criança em geral, age por reflexo, o grafismo evolui de descargas motoras para as garatujas e casualmente as associa com objetos. Aos quatro anos, no estágio pré-operatório, seus desenhos entram no realismo intelectual, em que a criança desenha o que sabe e não o que vê. Aos sete anos se inicia o estágio das operações concretas, o escolar passa a pensar de forma mais lógica, desenhando com maior proporção e de modo mais próximo à realidade. Somente a partir dos 12 anos, no estágio das operações formais que, desenvolve a capacidade crítica, perdendo o interesse pelo desenho.

Goodenough (1971) desenvolveu em 1926 uma escala para avaliação da inteligência da criança por meio do DFH, a partir do Desenho do Homem, atribuindo pontos pela presença de elementos corretos no desenho. O pressuposto teórico é de que a criança não desenha o que vê, mas o que sabe sobre a figura, mostrando não a capacidade artística, mas o seu repertório conceitual (Harris, 1981). A evolução do desenho da criança acompanha sua maturação, sendo necessário conhecer suas etapas para que seja feita uma correta avaliação do potencial intelectual infantil, razão pela qual Harris preferiu considerá-la como uma medida da maturidade conceitual. Na revisão do Teste de Goodenough, Harris (1981) incluiu o desenho da "mulher" e o de "si mesmo"; manteve a proposta de pontuar os detalhes presentes no desenho e ampliou os 51 itens de Goodenough, para 73, no desenho do Homem e 71 no da Mulher.

No Brasil foi proposta uma nova escala por Wechsler (1996, 2003) com o objetivo de avaliar o desenvolvimento cognitivo de crianças pelo DFH, entre cinco e 11 anos, baseada nas escalas de Harris, Koppitz e Naglieri, para a qual a autora apresentou normas brasileiras. Flores-Mendoza, Mansur-Alves Abad, e Lelé (2010) compararam os sistemas de avaliação de Goodenough, Goodenough-Harris e Wechsler, tendo obtido correlações entre 0,58 e 0,85 para três faixas etárias e concluíram que existe uma grande similaridade entre esses três sistemas,.

Em nosso país, o DFH para a avaliação intelectual tem sido estudado com diversas técnicas e tipos de população, destacando-se os trabalhos de Alves (1981), Bandeira e Hutz (1994), Hutz e Antoniazzi (1995), Wechsler e Schelini (2002), Flores-Mendoza, Abad e Lelé (2005), Silva e outros (2005), Rosa (2008) e Bandeira, Costa e Arteche (2008), Rosa e Alves (2014). Estabeleceram normas para crianças de São Paulo, na faixa etária de 5 a 11 anos, para o Desenho do Homem, empregando a escala Goodenough-Harris. A descrição de alguns desses estudos pode ser encontrada em Domingues, Alves, Rosa e Sargiani (2012). Contudo a proposta deste trabalho foi conhecer a representação da Figura Humana em adultos não alfabetizados e as técnicas mencionadas, bem como outras usadas nas pesquisas realizadas para avaliação cognitiva, mais atuais têm sua utilização direcionada a crianças.

Em 1949/1974, Machover publicou seu trabalho, fruto de uma pesquisa de 15 anos em clínicas e hospitais sobre desenhos de pacientes psiquiátricos. Seu interesse inicial era estudar o Teste de Goodenough, porém a partir da constatação de que as crianças com a mesma pontuação faziam desenhos completamente diferentes, transmitindo impressões muito diversas e sem relação com o seu nível intelectual, decidiu encontrar outras explicações para este fato (Machover, 1966). Desenvolveu a interpretação projetiva destas produções a partir de uma prática empírica e se apoiou na Medicina Psicossomática, que afirma que cada órgão tem um significado emocional específico. Não apresentou estudos quantitativos, mas se mostrou favorável ao desenvolvimento do estudo de características de grupo. Machover (1974) destacou ainda a necessidade de se considerar fatores como a idade, o sexo, o nível mental e cultural, além das condições ambientais.

O desenho do Homem também foi incluído no Teste Metropolitano de Prontidão Forma R (Hildreth & Griffiths, 1966) para classificar a maturidade da criança para a alfabetização. O teste foi concebido para avaliar a possibilidade de obter sucesso na alfabetização das crianças pré-escolares. É composto por seis subtestes que envolvem compreensão da linguagem, compreensão de frases, vocabulário, percepção visual, conhecimento de números, cópia e o desenho de um homem como um subteste suplementar. A avaliação do DFH é feita de forma qualitativa, considerando o grau de detalhamento do desenho, com o objetivo de verificar a maturidade para a alfabetização, razão pela qual se decidiu verificar como pessoas não alfabetizadas desenhariam a Figura Humana. Esse teste foi traduzido, adaptado e padronizado no Brasil por Poppovic.

Paín (1992) comenta que, segundo Piaget, não apenas os simbolismos nos desenhos são inconscientes, mas também a atividade cognitiva e que "será impossível na representação de uma figura separar um simbolismo afetivo de um simbolismo cognitivo (p.103)". Justifica essa afirmação explicando que o desenhar está integrado em esquemas do sujeito e por isso a interpretação simbólica deve contemplar o aspecto genético e não apenas as vivências emocionais pessoais.

Em 1948, quando Buck publicou o Teste da Casa, Árvore e Pessoa (HTP), propôs que este teste se destinava tanto à avaliação intelectual como da personalidade, sendo possível avaliar a inteligência de adultos. Hammer (1991) apresenta, em seu capítulo sobre essa técnica, exemplos de desenhos de adultos de diversos níveis de inteligência, extraídos de um dos manuais de Buck. Por esses desenhos é possível verificar as diferenças nos desenhos de pessoas de diversos níveis intelectuais.

Van Kolck (1973) fez uma revisão de pesquisas com o DFH e concluiu que sujeitos, com privação cultural, apresentam produção gráfica inferior e atraso progressivo no desempenho. Contudo são encontrados poucos trabalhos recentes sobre o DFH, sobretudo em adultos, e estes abrangem apenas a avaliação da personalidade, tais como o de Pasian, Okino e Saur (2004) e Saur e Pasian (2008).

Esteves, Santos, Cara e Alves (1998) discutiram as dificuldades na determinação de características do DFH em adultos de diferentes níveis de escolaridade, desde o estabelecimento de critérios de avaliação até o reconhecimento de partes do corpo, porque muitos podem estar mal representados, irreconhecíveis ou ambíguos. Assim é importante determinar, se a ausência da escolarização influenciou o desenvolvimento do grafismo de adultos não alfabetizados e, neste caso, se existe uma relação de sua produção com um teste de inteligência para adultos.

 

III. Teste Não-Verbal de Inteligência R-1

O R-1 é um teste de inteligência baseado na Teoria Bifatorial de Spearman, que propôs que a inteligência é constituída por dois tipos de fatores: o geral (g) e os específicos (e). O primeiro é associado com a energia mental e o segundo a fatores ligados à aprendizagem. O fator g está relacionado às três leis noegenéticas: apreensão da experiência, edução de relações e edução de correlatos. Portanto, testes de fator g não avaliam o conhecimento ou as funções cognitivas muito específicas, como a percepção e a memória, mas "enfatizam um conteúdo figurativo-abstrato dos itens, a novidade da tarefa e a centração nos processos de raciocínio" (Almeida 2002, p.8). Segundo Almeida (2002, p.7), "Spearman é autor da primeira teoria de inteligência baseada na análise estatística dos resultados nos testes".

O R-1 foi desenvolvido por Rynaldo de Oliveira, em 1973, para a avaliação de pessoas com pouca escolaridade, analfabetos e estrangeiros e para ser empregado na avaliação de motoristas. É um teste não verbal, constituído de 40 itens, que são apresentados da mesma forma que os das Matrizes Progressivas de Raven, com figuras com uma parte faltando e alternativas colocadas abaixo desta figura, entre as quais está a parte que falta. Para os 20 primeiros itens existem seis possibilidades de respostas e depois passam a ser oito, identificadas por letras que devem ser anotadas na folha de resposta.

Em 2009, Alves publicou uma nova edição do manual do Teste R-1 com estudos psicométricos atualizados, normas para diversos graus de escolaridade e regiões do país, mas que não contemplou estudos com analfabetos. Lelé, Esteves e Alves (2007) realizaram um estudo preliminar de padronização do R-1 para o uso com adolescentes de 14 a 20 anos, cursando o Ensino Médio de Minas Gerais, tendo sido encontrada diferenças em relação ao tipo de escola, com médias superiores para os alunos de escolas particulares em relação aos de escolas públicas, mostrando a importância de se considerar o nível socioeconômico indicado pelo tipo de escola.

O Teste R-1 destina-se a avaliar o fator g, portanto a inteligência fluida e global. Seus itens são compostos, essencialmente, por conteúdos figurativoabstratos que exigem raciocínios de edução de relações e correlatos. No entanto, a tarefa de realizar o teste, que inclui sentar-se numa mesinha acadêmica, manter atenção no material apresentado, usar lápis, observar figuras geométricas e procurar relações entre elas, está ligada à experiência da escolarização, que alunos adultos, ainda em processo de alfabetização, não dominam. Este é um dos diferenciais que afetam, negativamente, alguns indivíduos sem escolarização ou semi-alfabetizados nos testes de inteligência. Não há intimidade com o material empregado na avaliação, causando certo constrangimento e resistência em se envolver com a tarefa. Pode-se concluir que os aspectos associados ao ambiente desfavorecido, que não forneceu a escolarização na fase esperada, interferem diretamente no desempenho do indivíduo no teste. Conforme Roazzi e Souza (2002, p.44),

As influências culturais na aquisição de estruturas cognitivas não estão necessariamente restritas às diferenças observadas entre indivíduos de diferentes continentes, países ou regiões, mas abrangem também sujeitos de uma mesma localidade que pertencem a meios diferentes (por exemplo: classe social alta, média ou baixa, sociedade de origem urbana ou rural, etnia caucasiana, negróide, oriental, semítica ou mista). Os resultados indicam que, diferenças ambientais podem afetar significativamente a seqüência de desenvolvimento de um indivíduo, e até mesmo gerar modificações nas suas estruturas cognitivas.

Em pesquisa sobre a precisão do R-1 pelo método do reteste, Alves, Colosio e Ruivo (1995) obtiveram uma correlação de 0,677 numa amostra de 64 sujeitos, com idades entre 18 e 48 anos e escolaridade, variando entre a 5ª série do 1º grau e o 2º grau completo. Os sujeitos com mais escolaridade, obtiveram correlação maior (0,696), mostrando maior estabilidade nos resultados. Já a precisão obtida pelo método das metades, entre itens pares e ímpares, corrigida pela fórmula de Spearman-Brown, com amostra de um Estado Sudeste do Brasil, com 2102 candidatos à carteira nacional de habilitação, foi de 0,80, significante ao nível de 0,001 (Alves, 2002).

Sisto, Ferreira e Matos (2006) correlacionaram o R-1 e o Teste Conciso de Raciocínio (TCR), com o objetivo de verificar a validade dos testes. Os sujeitos constituíram-se de 65 voluntários, entre 18 e 48 anos, candidatos à carteira de habilitação de motorista. Encontraram uma correlação satisfatória entre os dois testes, 0,65 para o sexo masculino, 0,53 para o feminino e 0,60 para ambos os sexos, porém observaram que a distribuição de pontos do TCR era mais uniforme do que a do R-1.

Nascimento e Alves (2005) realizaram uma análise fatorial do R-1, tendo encontrado que um único fator explica 20,19% da variância, o qual pode ser considerado o fator g, sendo que para os 40 itens o alfa de Cronbah foi de 0,866. Contudo, 11 itens tiveram cargas fatoriais abaixo de 0,30, indicando que devem ser retirados do teste ou modificados. As normas do R-1 em percentis para os adultos analfabetos desta pesquisa, foram publicadas por Gottsfritz e Alves (2009), que constataram resultados mais baixos dos analfabetos em relação aos resultados de pessoas com escolarização. No manual do R-1 (Alves, 2009) também são apresentados dados mostrando o aumento das médias de pontos, conforme aumenta o grau de escolarização.

 

IV. Objetivo

O presente estudo pretendeu verificar se uma avaliação qualitativa das características gerais do DFH de pessoas analfabetas ou em processo de alfabetização poderia ser usada como forma de estimar a inteligência do adulto, por meio da correlação com os resultados do Teste R-1, bem como verificar se existe alguma relação entre idade e gênero e a influência da idade sobre os resultados do R-1..

 

V. Método

V.1 Sujeitos

A amostra foi constituída por 152 alunos de cursos de alfabetização de adultos, oferecidos por uma universidade e duas escolas de ensino fundamental e médio na região de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, com idades variando de 16 a 77 anos, sendo 63 homens (41,2%), e 89 mulheres (58,5%). Nas faixas etárias mais altas (> 40) ocorreu um predomínio das mulheres (68%) e nas mais baixas (< 39) dos homens (73%). Um participante de cada sexo não realizou o R-1. Os participantes eram adultos analfabetos em idade produtiva, o que provavelmente afetou sua capacidade de crescimento profissional, levando-os a trabalhar em empregos com salários menores.

V.2 Instrumentos

Foram utilizados o DFH de acordo com as instruções propostas por Machover (1949/1974) e o Teste Não Verbal de Inteligência R-1, com as instruções padronizadas do manual (Alves, 2009), porém sem considerar o limite de tempo, uma vez que os participantes não são alfabetizados e apresentaram muitas dificuldades para compreender a tarefa a ser realizada e um ritmo de trabalho muito lento

V.3 Procedimento

Após a aprovação da direção e da coordenação dos cursos de alfabetização de adultos, que concordaram em participar da pesquisa, os testes foram aplicados coletivamente por psicólogos com treino e formação nas duas técnicas usadas. Antes da aplicação elas se apresentaram e explicaram que se tratava de uma pesquisa para conhecer melhor como os adultos em alfabetização, desenham e como resolvem problemas. Para isso, fariam alguns desenhos e atividades, desde que concordassem. Frequentemente ocorreu uma reação de constrangimento e muitos alunos verbalizavam que não sabiam desenhar. Em todas as classes foi necessário explicar que as pesquisadoras não avaliariam se desenhavam bem ou não, mas como desenhavam e que qualquer coisa que pudessem fazer, seria suficiente para a pesquisa. Foi importante ser o menos formal possível e criar um clima de colaboração, comentando que os desenhos estavam muito bons, além de participar das piadas que eles faziam entre si.

O DFH foi aplicado em primeiro lugar. Foi entregue uma folha de papel sulfite "A4", colocando-a na posição vertical e pedindo que desenhassem uma pessoa completa. As perguntas foram respondidas pelas pesquisadoras, que circularam na sala durante a tarefa, atendendo os alunos nas dúvidas. À medida que concluíam o primeiro desenho eram anotados no verso da folha seus nomes e idades. Em seguida, era entregue a outra folha e solicitada uma pessoa do sexo oposto, geralmente esclarecendo que, se desenhou um homem, era para fazer uma mulher e vice-versa.

As aplicações coletivas levaram cerca de uma hora. Após o segundo desenho esperou-se todos acabarem para iniciar o R-1. As instruções foram lidas coletivamente de acordo com o manual. Utilizou-se uma cópia ampliada dos três primeiros itens nas explicações e também um caderno para cada participante. Esse procedimento, ainda que não faça parte do material padronizado do teste, teve o objetivo de facilitar a compreensão das instruções sobre os itens do teste pelos participantes, uma vez que eles não estão acostumados a realizar tarefas coletivamente. A avaliação do R-1 foi feita por meio do crivo, pertinente atribuindose um ponto a cada resposta certa, obtendo-se o total de pontos, conforme é indicado no manual do teste.

 

VI. Resultados e Discussão

Para a avaliação, os desenhos foram classificados com base nos critérios de avaliação do Desenho do Homem, de Hildreth e Griffiths (1966) para o Teste Metropolitano de Prontidão para Alfabetização, que são descritos a seguir:

Os desenhos que receberam o conceito "E" são considerados imaturos por ser uma figura não reconhecível como ser humano. O "D" é o médio inferior, a figura tem "braços em uma só dimensão, tronco, boca, nariz e cabelo". O "C" é o médio, acrescentando ao item anterior "dedos, orelhas, narinas e alguma proporção". O "B" é o médio superior acrescentando aos itens anteriores "braços e pernas em duas dimensões, melhor proporção, vestimenta perfeitamente indicada, detalhes como sobrancelhas e pupilas". O "A" é considerado superior, com "vestimenta completa, linhas firmes que se encontram no ponto certo e detalhes como pescoço, mãos, ombros e número correto de dedos" (p.12).

No anexo A são mostrados exemplos das classificações dos desenhos, porém é impossível negar que aspectos subjetivos quanto à "impressão global" da figura interferiram na nota atribuída, pois a sua apresentação final é de extrema importância. Mesmo que a figura tenha os itens esperados, seu aspecto, sua proporção, posição correta e grau de integração interferem na avaliação. Além de ser uma proposta de avaliação de desenhos infantis e não de adultos, esta serviu mais como um parâmetro do que como um critério absoluto. A Tabela 1 apresenta a distribuição de freqüências relativas à classificação das duas figuras (feminina e masculina) em relação à maturidade refletida nos desenhos para toda a amostra.

A maior parte das figuras, 52,0% das Femininas e 49,3% das Masculinas, obteve o conceito C ou médio, indicando que nesta amostra prevaleceram desenhos com um número médio de detalhes, sem apresentarem uma boa qualidade de traços e de integração. Em seguida a freqüência mais alta é o "D" ou médio inferior, 25,0% para a Figura Feminina e 29,6% para a Masculina. Um maior número de desenhos foi classificado como "E" (inferior), 10,5% para a figura feminina e 11,2% para a masculina, do que "B" (médio superior) ou "A" (superior), indicando que há predomínio de desenhos avaliados como pobres. Tratando-se de adultos, pode se dizer que são produções mais pobres, primitivas, mas coerentes com a expectativa frente à pouca ou nenhuma escolaridade dos sujeitos. Algumas produções são semelhantes às realizadas pelas crianças pequenas em processo de alfabetização, conforme discutido anteriormente.

Para verificar possíveis diferenças entre os desenhos feitos por homens e mulheres a Tabelas 2 apresenta a distribuição de freqüências da classificação da maturidade das figuras em relação ao sexo do sujeito, para as duas figuras.

 

 

É possível constatar pelos totais de desenhos apresentados nas tabelas que as mulheres tiveram mais desenhos classificados como A ou B (15,5%) do que os homens (4,8%), que tiveram mais desenhos avaliados como C, D e E, indicando que as mulheres tendem a ter um desempenho gráfico melhor do que o dos homens. O DFH é um teste que mede o autoconceito, além de verificar aspectos mais cognitivos, sugerindo a possibilidade de que as mulheres possam desenvolver um melhor autoconceito, provavelmente porque o não saber ler e escrever entre as mulheres, segundo os dados mundiais, é mais comum do que entre os homens.

Foram obtidas as correlações de Spearman entre as classificações das duas Figuras e os pontos obtidos no R-1 e entre as classificações dos dois desenhos, atribuindo-se os valores de 1 a 5 às figuras, sendo o valor 5 equivalente à classificação A (superior) e o 1 ao E (inferior). As correlações encontradas foram: entre o R-1 e a Figura Feminina de 0,481 e com a Masculina de 0,402 e entre as duas figuras de 0,864, todas significantes ao nível de 0,001, indicando equivalência satisfatória entre elas.

Portanto, a tendência dos sujeitos foi manter o mesmo nível de realização no desenho independente do sexo da figura, o que mostra um alto índice de confiabilidade na técnica e torna possível supor que distorções em uma das figuras provavelmente sejam devidas a fatores projetivos e subjetivos. Pode-se concluir que a validade do DFH para avaliação da maturidade intelectual pode ser considerada satisfatória, uma vez que apresentou significância estatística, ainda que a correlação tenha sido moderada.

Desta forma, pode-se constatar que o nível de realização do desenho, sua qualidade global e integração são compatíveis com o resultado no R-1, demonstrando que o desenho expressa também o potencial cognitivo, o que sugere a possibilidade de avaliar a capacidade intelectual de adultos analfabetos pelo DFH. Este resultado mostra a confirmação de que um "bom" desenho implica em capacidade intelectual, mas o mesmo não vale para o contrário, ou seja, um desenho pobre, pouco integrado não é uma constatação de falta de recursos cognitivos, sendo necessária uma avaliação mais completa.

A Tabela 3 apresenta as correlações de Spearman entre as classificações das Figuras Feminina e Masculina e com os resultados do R-1 para cada sexo, que foram significantes a 0,001.

Considerando os resultados para cada sexo separadamente, observa-se que para os homens a correlação entre os DFH e o resultado no R-1 subiu para 0,573 para a Figura Masculina e para 0,509 para a Feminina e entre as duas figuras a correlação sobe para 0,879. Já para as mulheres, os desenhos apresentaram maior correlação entre o R-1 e a Figura Masculina (0,449) e menor para a Feminina (0,383), indicando que, embora as mulheres tenham obtido um maior número de desenhos avaliados como A e B, o resultado no R-1 não manteve o mesmo desempenho. Talvez as mulheres tenham se sentido menos exigidas em atividades, nas quais a expressão é requisitada, o que melhorou seu desempenho. A correlação entre as duas figuras decresceu um pouco (0,860) em relação aos desenhos feitos por homens.

Com o objetivo de determinar se existe relação entre a idade do examinando e o número de pontos no R-1 foi feita a correlação de Pearson entre as duas variáveis, sendo obtida uma correlação negativa de -0,358 (p< 0,001), que é significante, mostrando que à medida que a idade aumenta, ocorre uma diminuição no resultado do R-1. Segundo Alves (2009) a escolarização é uma das variáveis ambientais que mais interferem na inteligência. Considerando que esta é uma amostra de adultos não alfabetizados, provenientes de camadas sociais mais pobres, este é um resultado esperado, sobretudo porque os mais velhos provavelmente tiveram ainda menos oportunidades de estudo e de desenvolvimento.

Para determinar se existiam diferenças entre as idades nos resultados do R-1, a amostra foi subdividida em dois grupos, um com idade até 40 anos e o outro, com 41 anos ou mais de modo a dividir a amostra aproximadamente na metade. A Tabela 4 apresenta as médias e desvios padrão do R-1 para os dois grupos e o teste t entre as faixas etárias.

 

 

Constatou-se que a média de pontos no R-1 foi maior no grupo até 40 anos (15,31) do que no de 41 anos ou mais (11,34). Estes resultados ressaltam a influência da idade no desempenho cognitivo dos indivíduos.

As pesquisas que verificam a influência ambiental nas normas dos testes de inteligência vêm observando que os aumentos nas pontuações das Matrizes de Raven estão associados ao aumento da altura e da capacidade atlética no período equivalente, sugerindo que sejam resultados de melhorias na nutrição, prosperidade e higiene (Angelini e outros, 1999). A amostra estudada é de pessoas que ainda não usufruíram destas melhorias, pois não têm o total acesso a elas. Angelini e outros (1999, p.17) citam os trabalhos de Ombredane e Robaye (1953); Vernon (1966) e de Majumdar e Nundi (1971), ao afirmarem que "na ausência da estimulação, o desenvolvimento do pensamento lógico tende a ficar latente ou se manifestar um pouco mais tarde".

Ainda, segundo Angelini e outros (1999), há uma tendência a se acreditar que a inteligência diminui com o aumento da idade, mas estudos recentes comprovam que os resultados em testes de inteligência mostram que existe progressão nos escores independente da idade e que, se a inteligência fosse considerada em relação ao tipo de atividades que as pessoas valorizam, provavelmente se provaria que ela aumenta durante toda a vida. Alves (2009) discute que a inteligência do adulto aumenta até os 50 anos e apresenta um pequeno declínio após essa idade e que os resultados mais baixos das pessoas mais idosas são devidos à influência de variáveis culturais e nutricionais. Em vista disso, é possível supor que o baixo resultado apresentado pelos indivíduos mais velhos dessa amostra esteja relacionado com as vivências pessoais de cada um.

Deve ser lembrado que os participantes deste estudo obtiveram médias menores no Teste R-1 do que os encontrados em pessoas com maior escolaridade. Este estudo mostra que é possível uma avaliação qualitativa do Desenho da Figura Humana como uma estimativa da inteligência de adultos não alfabetizados, embora este uso não possa se estender a adultos escolarizados, o que constitui uma das limitações dessa técnica, porque não há uma progressão do desenvolvimento do grafismo nessa faixa etária. Na literatura internacional não foram encontrados estudos que tenham tentado estabelecer a relação proposta nesta pesquisa.

Outra limitação a ser considerada é que a amostra estudada é proveniente de cursos de alfabetização de adultos de uma única região da cidade de São Paulo, sendo sugerido que novas investigações sejam realizadas em outras regiões do país para que possa ser feita uma confirmação e generalização dos dados obtidos na presente pesquisa. Contudo os resultados obtidos abrem a possibilidade de um novo uso para o Desenho da Figura Humana em adultos não alfabetizados, principalmente quando se considera que mais de 13 milhões de pessoas com idades acima de 15 anos ainda não aprenderam a ler e escrever.

 

VII. Considerações Finais

Ainda que o Desenho da Figura Humana seja utilizado para avaliar o desenvolvimento intelectual em crianças, esta pesquisa teve o objetivo de mostrar a possibilidade de empregar essa técnica para uso no adulto analfabeto. Por essa razão foi empregada a proposta de avaliação do DFH incluída no Teste Metropolitano de Prontidão, uma vez que o mesmo tem o objetivo de predizer o sucesso na alfabetização de crianças e emprega apenas critérios qualitativos. Considerando que pessoas não alfabetizadas não costumam usar lápis e papel, é provável que não tenham desenvolvido habilidades gráficas, assim os seus desenhos poderiam ser semelhantes aos de crianças ainda não alfabetizadas. Os resultados mostraram que apenas 11,1% dos adultos obtiveram uma classificação no DFH acima da média, como seria esperado para sua faixa etária. Indica que nesse caso, esta técnica poderia ser usada para uma estimativa da inteligência dessa população.

A partir dos resultados obtidos, esta pesquisa mostra que é possível fazer uma estimativa da inteligência de adultos não alfabetizados, empregando uma técnica de baixo custo, uma vez que somente emprega lápis e papel, que também tem a vantagem de ser rápida, tanto na aplicação como na avaliação. É como uma alternativa a outros testes de inteligência, cuja ausência de escolaridade dos examinandos possa impedir o uso desses instrumentos, mais longos e complexos.

 

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Recebido: 10/02/2015 / Corrigido: 18/03/2015 / Aceito: 25/03/2015.

 

 

1 Docente Dep. Psicologia Escolar Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo. Contato: R. São Casimiro, 38, Santo Amaro, CEP 04721-030, SP, Brasil. Tel: 5686-2807 e-mail: iaicba@usp.br

 

 

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