Uma breve reflexão acerca da ciência, da liberdade, da ignorância e da opressão
A ciência permite o aumento da compreensão do ser humano acerca de sua condição existencial, movendo-se da formulação de uma indagação a outra, em uma dinâmica na qual cada resposta acena para outras dúvidas, e cada autor com sua perspectiva contribui com um tijolo, em uma construção coletiva dialética e muitas vezes contraditória, que caracteriza o processo de aquisição de conhecimento e de libertação do homem. Em um país de terceiro mundo, como é o caso do Brasil, como cientistas e cidadãos interessados na evolução do homem e na construção de uma sociedade justa, poderíamos, no âmbito das preocupações cientificas e profissionais da Psicologia e, em conformidade com os dispositivos do Código de Ética Profissional do Psicólogo, antes de todo e qualquer estudo, nos perguntar:
Qual fator permite a exploração de um ser humano por outro?
Considerando que a opressão e a exploração se configuram como modalidades de violência naturalizadas em nossa sociedade e geradoras de inúmeras formas de sofrimento psicológico e físico, inferimos que a miséria é o fator que permite a exploração de um ser humano por outro. Resultante de séculos de exploração, a miséria é simultaneamente perpetuadora de si mesma, na medida em que se mantém as condições de desigualdade estrutural, sobre as quais se alicerçam múltiplas formas de opressão, bem como instituições pouco comprometidas com o desenvolvimento e a formação de cidadãos críticos, visto encontrarem seu espaço de existência justamente a partir de indivíduos pouco instruídos. Apesar do paradigma industrial ocidental contemporâneo demandar a boa educação popular para o alcance de melhores resultados econômicos, na formulação e implantação de seu programa educacional popular, o Brasil parece ainda apostar no sucesso de um sistema educacional pouco eficaz, incapaz de promover o desenvolvimento de indivíduos críticos e quiçá plenamente alfabetizados, no qual jamais veríamos nossos governantes e outros representantes da elite matricularem seus filhos. A desigualdade social, a pobreza e a miséria parecem, portanto, premissa e resultado de um sistema que naturaliza o acúmulo de bens, por meio do qual uns se tornam mais donos dos recursos naturais e culturais do que outros, ou seja, um sistema fundamentado na pobreza e na exclusão, no qual os valores humanos propagados não correspondem às práticas institucionais e pessoais excludentes e exploratórias presentes na realidade. Neste cenário, consideramos premente a necessidade de pensarmos uma Educação para todos, inclusiva e eficaz, competente ao abordar e intervir nas condições de miséria e pobreza. À Psicologia compete contribuir exercendo ação preventiva e profilática no contexto educacional, voltando seus conhecimentos para a redução de desigualdades e ampliação do escopo de iniciativas para eliminação da pobreza e dos inúmeros quadros de sofrimento psíquico associados a situações de exclusão, opressão e exploração, que encontram na escola um excelente palco para sua manifestação e, portanto, cuidado.
África
Sou porque somos. Só posso ser feliz Se formos.
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FRIAS, E. R. (2020, p. 32)
Diante da necessidade de eliminar fatores excludentes de alunos nas escolas e das escolas, e do reconhecimento de que tais fatores afetam principalmente o segmento negro da população, propomos a (re) leitura da tese Sucesso Escolar de Negros em Território Negro da Cidade de São Paulo (FRIAS, 2020) aqui retomada visando a reflexão e ampliação de mecanismos que contribuam para o sucesso escolar e da escola no Brasil. Uma vez apresentado esse cenário, vejamos os principais tópicos a serem considerados para explanação do fenômeno psicossocial de nosso interesse.
1. Fatores excludentes da participação de negros no contexto da educação
Tendo em vista a limitação e inoperância das teorias e técnicas psicológicas no enfrentamento das múltiplas formas de desigualdade e de exploração que caracterizam nossa sociedade e cultura, compartilho com Souza (2010) a convicção de que é preciso construir novos referenciais teórico-metodológicos, capazes de responder aos desafios contemporâneos da Educação e da Psicologia. Em um país marcado por múltiplas formas de exclusão e discriminação, compete à Psicologia firmar compromisso político com a luta por uma escola democrática de qualidade, e substituir abordagens adaptacionistas, mantenedoras do sistema vigente, por outras, propiciadoras de uma práxis psicológica capaz de atender a demanda de nossa realidade, e de despertar nos educandos o apreço à diversidade. Com esse objetivo, retomamos neste contexto dados provenientes da referida tese (FRIAS, 2020) para observação e debate de alguns fatores excludentes de negros no cotidiano da educação formal, conforme identificados nas narrativas biográficas de nosso(a)s entrevistado(a)s. Nessas narrativas de moradores do Parque Peruche, território negro situado na zona norte da cidade de São Paulo, identificamos valores da sabedoria e cultura negras preservados e materializados nas instituições negras sediadas no bairro. Dos milhares de moradores, negros, afrodescendentes, bolivianos e brancos que compartilham as mesmas condições de exclusão e pobreza, de incontáveis histórias esquecidas e outras, silenciadas, nos debruçamos sobre um pequeno fragmento de uma realidade que existe apenas para quem a habita e que permite aos demais um vislumbre de uma vida situada entre a invisibilidade e o nada.
Murmúrio
Pessoas esquecidas Guardam histórias Nunca ditas.
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FRIAS, E. R. (2020, p. 39)
Devemos primeiramente lembrar a recente e não superada história humana de sequestro e tráfico de negros e negras africanos. As práticas exploratórias, etnocidas e discriminatórias ainda persistem na estrutura de nossa sociedade, em nossa cultura, no imaginário coletivo e em nossa subjetividade, levando à naturalização das relações injustas. O empreendimento comercial que perdurou por mais de três séculos, implicou no sequestro de 10 milhões de negros, dos quais 40% vieram para o Brasil, país que mais utilizou a mão de obra escrava em seu desenvolvimento. A escravidão no Brasil perdurou oficialmente de 1534 a 1888: de cada dez dias de nossa história sete foram vividos sob regime de escravidão negra. Uma vez libertos, após 354 anos de escravidão, os negros e seus descendentes não receberam qualquer reparação pelos crimes aos quais foram submetidos, nem foram adotadas políticas estatais para mitigação dos danos a eles infringidos, conduta que perdura até nossos dias. O fato de havermos recebido quase metade do fluxo escravista mundial e de nos constituirmos como último país a abolir a escravidão, nos coloca no vergonhoso primeiro lugar no ranking de crimes praticados contra indivíduos e coletivos negros e, ainda hoje, perpetuadores e praticantes de crimes contra a humanidade. Diante desse panorama, nos damos conta da necessidade urgente de políticas públicas promotoras de justiça retributiva e mitigação dos danos produzidos ao longo dos 500 anos de holocausto negro, que ainda perdura visto seus descendentes estarem submetidos a condições sociais de miséria, exclusão, preconceito e discriminação étnico-raciais. As medidas públicas inicialmente voltadas à mitigação de danos e promoção da justiça foram marcadas a ferro e fogo por interesses oligárquicos nacionais e internacionais, e continuam sendo omissas frente à necessidade de atendimento das demandas sociais. Podemos dizer que a República Brasileira tem se assemelhado aos estados medievais absolutistas no quesito do interesse pelo desenvolvimento do ser humano e há no momento um tímido comprometimento do aparelho estatal com a Educação Popular emancipadora no país. Esse panorama histórico-social configura um cenário fecundo para crises éticas e econômicas, caracterizadas por alto índice de desemprego, pouca especialização e consolidação de múltiplas formas de subempregos, que contribuem para o aumento da pobreza, da exploração, da intolerância à diversidade, da violência, entros outros. O sociólogo Clemente Ganz Lúcio (2016), diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE, alude à obra O capital no século XXI, de Thomaz Piketty (2014), para ressaltar que a desigualdade no modo de produção e distribuição de riqueza e renda é a causa estrutural da maior parte dos problemas da sociedade brasileira, configurando-se como a maior fonte de nossos problemas sociais e econômicos. Uma vez que a dinâmica de interações é reproduzida em todos os níveis e âmbitos da estrutura social, as relações de causa e efeito se estendem à Educação, onde a escassez de oportunidades de desenvolvimento e formação profissional faz com que indivíduos previamente excluídos, uma vez pouco qualificados, permaneçam à margem do mercado de trabalho, o que perpetua relações de desigualdade social e econômica, constituindo um círculo vicioso de miséria, preconceitos e práticas discriminatórias.
2. Sucesso Escolar de Negros em Território Negro e o panorama da produção teórica da Psicologia Escolar e Educacional no Brasil
Ao realizar o levantamento sobre estudos e práticas psicológicas desenvolvidas no âmbito da Psicologia Escolar e Educacional (PEE) identificamos haver escassez de estudos relativos aos temas “relações étnico-raciais no Brasil” e “racismo na educação”. Constatamos também que os pesquisadores da PEE ofereceram mais atenção ao tema do “fracasso escolar” do que ao do “sucesso escolar”. Assim, nos propusemos a reunir dados sobre as condições sociais e históricas da escolarização de negros no Brasil, ao considerar as especificidades que possibilitaram o sucesso escolar de negros moradores em um território negro, a despeito de todos os fatores desfavoráveis histórica e socialmente impostos a eles. Considerando que, historicamente, as vagas de ensino acadêmico destinavam-se exclusivamente aos filhos da elite, cabendo aos demais o ensino técnico, compreendemos a formação de negros no nível acadêmico como expressão de sucesso escolar. O já mencionado estudo (FRIAS, 2020), foi desenvolvido com o objetivo geral de produzir novos subsídios para a práxis da Psicologia Escolar e Educacional (PEE) crítica e com o objetivo específico de identificar especificidades da trajetória escolar de negros pertencentes a um território negro paulista, que lhes permitiram ultrapassar barreiras impostas a seu progresso educacional. Nosso estudo é academicamente relevante por contribuir com elementos para preencher lacunas identificadas no âmbito de debates sobre escolarização e ações emancipadoras da Psicologia, e é socialmente relevante por questionar a hegemonia do segmento branco da população e as relações étnico-raciais injustas estabelecidas a partir desse referencial, que dificultam ou impedem o acesso de indivíduos não-brancos a bens e serviços e lhes impossibilita o exercício pleno da cidadania à qual têm direito constitucionalmente garantido.
3. O método
Para a realização desse estudo foi adotada a pesquisa etnográfica, que supõe a participação do pesquisador no cotidiano dos entrevistados antes do levantamento e análise de aspectos históricos, sociais, culturais e geográficos do coletivo em questão e antes da realização das entrevistas. A adoção desse método favoreceu a compreensão de fenômenos individuais e coletivos complexos, cujas características mais significativas puderam ser melhor vislumbradas mediante a compreensão do cotidiano dos entrevistados. As informações de cunho pessoal e biográfico permitiram o acesso a códigos, regras, valores, ritos e práticas cotidianas desse coletivo de negros moradores de um território negro situado na zona norte da capital de São Paulo.
Itans
Nos olhos negros pude ver A sabedoria Africana.
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FRIAS, E. R. (2020, p. 210)
Em conformidade com os procedimentos metodológicos da pesquisa etnográfica, a escolha do locus de pesquisa se deu em função de haver ali uma atuação e participação prévia do pesquisador, o que facilitou seu trâmite entre os participantes. Neste processo, utilizamo-nos tanto de levantamentos de dados históricos, sociais, culturais e geográficos, como de observação participante e entrevistas semidirigidas. Durante o levantamento de dados, permanecemos em campo ouvindo e registrando as narrativas biográficas de nossos participantes: três homens negros e duas mulheres negras residentes no bairro, que haviam concluído o curso acadêmico em período inferior a dois anos, ou estavam em vias de concluir sua formação universitária, para tornar possível a análise da situação nesse momento histórico. Todos concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), lido com eles antes das entrevistas. Nas entrevistas, buscamos relembrar junto aos participantes informações relativas à escolaridade e à vida estudantil de seus familiares, pais e avôs, a fim de observar a relação entre o negro e a educação ao longo do tempo e, simultaneamente, permitir o resgate de elementos biográficos implicados nas conquistas individuais. Constatamos que nossos entrevistados foram os primeiros de suas famílias a conquistarem um título acadêmico. Com base nos postulados da técnica de escuta ativa e empática de histórias de vida propostos por Josso (1999) e em conformidade com os princípios libertários propostos por Freire (1981,1994); Pichon-Rivière (1977, 1980), Martín-Baró (2011) e Oropeza (2009, 2014, 2015), realizamos o registro de biografias de pessoas socialmente excluídas, que vivenciaram e testemunharam diversos e minuciosos modos de exclusão. Suas falas denunciaram recursos muitas vezes invisíveis que pautam as relações de segregação e exclusão social, o que nos alerta para a necessidade de realizarmos ações transformadoras e servirmos de polos propulsores de reflexão.Na análise e interpretação dos dados de campo o conteúdo das entrevistas foi classificado em categorias extraídas das próprias entrevistas e organizado em torno de eixos de significados, conforme proposto por Santos (1999), o que possibilitou sua sistematização e o destaque de aspectos mais relevantes. Dados advindos da observação participante e de conversas informais realizadas em campo possibilitaram identificar similaridades nos relatos e nos significados compartilhados por todos os entrevistados. A interpretação dos dados de campo foi realizada com base em um referencial teórico que privilegia o enfoque histórico-cultural, libertário, e emancipador, cuja práxis não admite o uso de recursos educacionais que hierarquizem e/ou excluam sujeitos do conhecimento. Destacamos as contribuições de Alessandro de Oliveira dos Santos (2012), Clemente Ganz Lúcio (2017), Enrique Pichon-Rivière (1977 e 1980), Hélio Santos (2001), Ignácio Dobles Oropeza (2009, 2014, 2015), Ignácio Martin-Baró (2011), Maria Helena Souza Patto (1981, 1987, 1999), Marie-Christine Josso (1999), Marilene P. R. Souza (2009, 2010), Raquel Rolnik (1989), Rodrigo Ribeiro Frias (2019) e Ronilda Iyakemi Ribeiro (2013, 2016). Em conformidade com a proposição de Souza (2010), apreciamos o fenômeno escolar a partir de referenciais teóricos críticos, buscando durante a permanência do pesquisador em campo realizar
(...) um processo contínuo de análise dos vínculos sociais estabelecidos entre pesquisador e participante(s), bem como de análise das dimensões pessoais e institucionais e do contexto político, social, histórico e cultural em que são desenvolvidas as ações educacionais. (p. 30)
A partir desses norteadores procuramos, portanto, não perder de vista o contexto político, social, histórico, cultural, religioso e educacional no qual o fenômeno de nosso interesse se manifestou, incluindo também as políticas educacionais vigentes e relacionadas ao tema.
4. Principais resultados
Entre os principais resultados obtidos, optamos nesse recorte por oferecer destaque a dados sobre o “Alfabetismo por variáveis demográficas no recorte referente ao item Raça/Cor”, advindos da pesquisa Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), realizada em 2018 pelo Instituto Paulo Montenegro em parceria com a ONG Ação Educativa, com apoio do IBOPE Inteligência. Nessa pesquisa o objetivo foi o de mensurar o nível de alfabetismo da população brasileira entre 15 e 64 anos, por meio da avaliação de habilidades e práticas de leitura, escrita e matemática aplicadas ao cotidiano. No que tange às relações entre pertença étnica e escolaridade, foi identificado que a escolaridade dos diferentes segmentos étnico-raciais no Brasil é desigual, sendo os níveis de escolaridade da população negra (pretos e pardos) mais baixos do que os da população branca. Na faixa etária compreendida entre 15 e 64 anos, 3% dos autodeclarados brancos e 8% dos autodeclarados negros são analfabetos. Entre os Analfabetos Funcionais 67% são pretos ou pardos, o que perfaz dois terços da amostra estudada. No outro extremo, 49% dos autodeclarados brancos e 12% dos autodeclarados negros se encontram na condição de Alfabetizados Plenos e somente 25% dos autodeclarados negros atingiram ou superaram o nível acadêmico de ensino. O levantamento do INAF 2018 demonstra que a pertença de um indivíduo a uma determinada classe socioeconômica ou a determinado segmento étnico-racial, configurase de partida como um forte determinante para seu fracasso ou sucesso escolar, leitura que pode ser estendida ao mercado de trabalho, e consequentemente, caracteriza-se como impossibilidade de indivíduos excluídos para progredir na sociedade, levando a perpetuação de condições de miséria e exploração. Nesse sentido, nossas entrevistas possibilitam constatar que uma forte pressão econômica é exercida sobre os negros universitários, dada a necessidade de trabalhar e gerar renda para investir na própria formação ao longo de anos. Durante o percurso educacional nos níveis fundamental e médio, crianças e jovens negros devem também enfrentar situações de discriminação e exclusão na escola, além de superar sofrimentos derivados de uma autoimagem negativa. Tais fatos permitem inferir que, não bastando o prolongado período da escravidão durante o qual todo tipo de crime foi praticado contra a população negra, os descendentes de africanos continuam sujeitos a humilhações e à miséria que os mantém na condição de excluídos.
Discriminação
Fui segregado Por causa da Diferença.
€_FR!@s
FRIAS, E. R. (2020, p. 193)
Conforme nossos entrevistados, a frequência e intensidade das manifestações de preconceito, discriminação e segregação foram maiores no ensino fundamental, diminuíram no ensino médio e se tornaram ainda menores no ensino superior, durante o qual se apresentaram oportunidades de revisão de vivências pregressas. Diante tantas adversidades, o sucesso escolar de nossos entrevistados teve como principais ingredientes sua capacidade de resiliência e superação das adversidades produzidas por situações de discriminação étnico-racial; o apoio de uma rede social composta por familiares e amigos; e a resposta ágil às oportunidades oferecidas pelos programas de incentivo financeiro. As informações reunidas no Quadro 4.1, apresentado a seguir, dão a conhecer os principais fatores que se constituíram como obstáculos para o ingresso ou permanência dos negros nos bancos universitários.
Quadro 4.1 Fatores que dificultaram o acesso e/ou a permanência de negros no Ensino Superior.
Fatores econômicos | Necessidade de participação do estudante na composição na renda familiar. Necessidade de trabalhar para garantir a própria subsistência. Escassez de recursos materiais : livros e equipamentos. |
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Fatores familiares | A ausência de referencial de pessoas que tivessem realizado cursos acadêmicos no grupo familiar. |
Fatores psicológicos | Ausência de sentido do próprio projeto educacional. |
Outros fatores | Dificuldade de acesso dada a distância que exige uso de transporte. |
O quadro 4.2, por sua vez, apresenta os principais fatores que facilitaram o acesso e a permanência dos entrevistados no ensino acadêmico.
Quadro 4.2 Fatores que facilitaram o acesso e a permanência de negros no Ensino Superior.
Fatores econômicos | Famílias que podem prescindir da participação do estudante na composição da renda familiar. Suporte econômico familiar; bolsa de estudos (ProUni ou FIES); estabilidade prévia no emprego (cargo público ou trabalho estável) mantida durante o curso. |
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Fatores familiares | Solidariedade entre negros, solidariedade entre colegas, troca e compartilhamento de materiais. Apoio, incentivo e interesse por parte do grupo familiar. Determinação e persistência a despeito da ausência de modelo identificatório ou de ausência de referência parental. |
Fatores psicológicos | Sentido existencial atribuído ao projeto educacional por parte do aluno. |
Apesar da diferença de idade de nossos entrevistados (entre 26 e 55 anos de idade) todos foram unânimes ao relembrar situações de discriminação étnico-racial experimentadas ou presenciadas por eles no ambiente escolar ao longo de seu percurso estudantil. Conforme as narrativas, quanto mais fortes os traços fenotípicos negros, maiores e mais frequentes foram as manifestações de racismo e de segregação na escola, principalmente durante o ensino fundamental. Em tais situações, não houve qualquer mediação por parte dos educadores, isso quando representantes da equipe escolar não se constituíram como agentes de discriminação e disseminação do preconceito. A falta de mediação de ações de discriminação, segregação e racismo no ambiente escolar, intensificou os sentimentos de inferioridade aprendidos por esses alunos na interação com seus pares e demais atores escolares. Já no ensino médio, o racismo se manifestou por meio de atos de segregação e demonstrações de desinteresse advindas de representantes do sexo oposto. De modo similar ao que ocorreu no ensino fundamental, tais manifestações nunca foram alvo de debates, ou outras intervenções. Juntamente do acesso ao diploma, o ensino fundamental parece ter ensinado às crianças negras o sentimento de inferioridade, furtando dos segregados o pouco que lhes restava: a percepção de si como pessoas dignas, protagonistas e sujeitos de direito.
Furto
Roubou minha alma Sofrida.
Cerrou-a rapidamente em um jarro, E para sempre se foi Levando-me a luz De mim mesmo.
€_FR!@s
FRIAS, E. R. (2020, p. 204)
Excertos de nossas entrevistas ilustram parte das lições oferecidas às crianças negras no contexto escolar durante seu processo de formação:
Após ser acusado de furtar um objeto em sala de aula F. nos conta: “Fiquei chateado, porque eu tinha sido acusado de uma coisa que não fui eu que fiz”. E, sobre o sentimento de vergonha que inibia seu protagonismo e o impendia de se manifestar na escola, lembra: “(...) você fica quieto porque acaba se sentindo inferior. A verdade é essa. Agora nem tanto, mas quando criança, você pode ver... As crianças negras de antigamente queriam ser brancas”.
A fim de não se tornarem alvo do racismo, as crianças negras na escola aprendem a se calar, para em sua vida adulta se manterem calados em nossa sociedade, cuja democracia inibe a participação e a proatividade dos segregados, oprimindo-os. Na escola negros aprendem a discriminar outros negros, cujos traços fenotípicos são mais marcantes. Nesse sentido A. nos diz: “Mesmo entre os negros tinha esse negócio. O cara falava ‘Eu sou negro, mas o A. é azul’. Tinha essa coisa aí. É como uma autodefesa: vou criticar o outro, que tem um traço mais forte, para livrar o meu...”.
E com C. não foi diferente: “(...) me excluíam das brincadeiras, falavam do meu cabelo. Creolina! me chamavam”.
Sobre sua aprendizagem durante a educação fundamental, A. acrescenta: “O que me trouxe tudo isso aí foi minha baixa estima, porque me tirou até o que eu tinha. Porque mesmo você tendo algumas qualidades, essa coisa do racismo, de te colocarem pra baixo, tanto os professores, como os alunos, como seja quem for (...) te rouba a sua autoestima. E mesmo você sabendo, parece que você não sabe”.
A não aceitação, a negação da presença das crianças negras e sua discriminação no ambiente escolar, são formas de excluí-las da educação na escola. Cabe à escola ensinar sentimentos de inferioridade e menos valia às nossas crianças e jovens?
5. Algumas conclusões
As histórias de nossos entrevistados evidenciam a importância das políticas públicas vigentes para a ampliação do acesso de negros ao ensino acadêmico, apontando para a necessidade de criação de novas ações, capazes de ampliar e acelerar o processo de mitigação de injustiças históricas expressas nas desigualdades sociais atuais, dirigindose tanto para a mediação desses conflitos no meio escolar, como para a criminalização e penalização da discriminação e do racismo no âmbito jurídico. Em sociedades pluriétnicas e multirraciais marcadas pela hegemonia do segmento branco cristão e pela negação dos demais segmentos populacionais é de se esperar a ocorrência cotidiana de atos discriminatórios, eivados de racismo, machismo, elitismo, havendo sempre o risco de as diferenças serem transformadas em desigualdades. Considerando o padrão brasileiro de relações étnico-raciais, presente também no contexto escolar, podemos dizer que “o racismo vai à escola” e, se desejarmos aprender com nossas faltas, para assim proporcionar a gerações vindouras vivências de educação emancipadora, é preciso que os agentes educacionais e psicólogos escolares estejam sensibilizados e preparados para lidar com tais conflitos, o que exige autoconhecimento, habilidades pessoais, conhecimentos teóricos e recursos técnicos. Cabe à Psicologia Escolar e Educacional reconhecer a influência dos fatores resultantes da lógica das relações interétnicas e interraciais no Brasil durante a apreciação de elementos presentes na produção de queixas escolares para intervir sobre esses fatores.
6. Educação, Psicologia e Políticas Públicas: até onde chegamos
6.1. Participação do Psicólogo na rede pública estadual de Educação Básica
Entre os avanços nas iniciativas de promoção da igualdade e do sucesso escolar, em 12 de dezembro de 2019, com a vitória do PL nº 3.688/2000, foi promulgada pelo presidente da República e publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica. Essa lei entrou em vigor na data de sua publicação. Essa iniciativa decorreu de anos de esforços conjuntos e articulações do Sistema Conselhos de Psicologia (Conselho Federal e Conselhos Regionais), apoiado pela Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), pela Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI) e pela Associação Brasileira de Ensino e Psicologia (ABEP). A inclusão de profissionais de Psicologia e de Assistência social na Rede Estadual de Educação Básica tem por objetivo melhorar a qualidade do processo de ensinoaprendizagem por meio da mediação de relações sociais e institucionais. A proposta de aprimoramento da qualidade de ensino é consonante com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que tem por preocupação o desenvolvimento integral da criança, considerando o cuidado de suas dimensões física, psicológica, intelectual e social. É consonante também com o Plano Nacional de Educação (PNE), que busca o sucesso escolar e enfatiza a necessidade de prevenção e combate a situações de preconceito, discriminação e violência no ambiente escolar. Essa vitória ilustra o processo de construção coletiva de políticas públicas e salienta a importância de sua formulação para a redução da desigualdade social por meio da ampliação de ações inclusivas, voltadas para o aumento de oportunidades de qualificação pessoal como estratégia para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
6.2. Programas de incentivo à educação superior
Os dados provenientes de nosso estudo permitem concluir que os programas de incentivo ao acesso à educação superior, entre os quais o FIES, o ProUni, o SISU e o estabelecimento de cotas para negros em universidades públicas, se mostraram úteis à ampliação de oportunidades de acesso e permanência de negros no ensino acadêmico, sendo necessário manter e ampliar tais iniciativas.
7. Encaminhamentos: ações que podemos realizar
Na qualidade de fenômenos complexos e multifatoriais, resultantes de um processo histórico e cultural perverso, a miséria e o racismo somente poderão ser superados se forem adotadas múltiplas estratégias para a constituição de um contexto capaz de promover sua superação, conforme sugerimos a seguir.
7.1 No âmbito da reflexão e do aprimoramento pessoal
Considerando que as representações da África, dos africanos e seus descendentes, de suas religiões e culturas são ainda estereotipadas e impregnadas de elementos racistas e etnocidas compartilhados por No enfrentamento da discriminação racial e do racismo não bastam recursos teórico e técnicos. O passo inicial, e talvez o mais importante, é a reflexão pessoal e a revisão dos próprios valores. Todos no imaginário coletivo, não será possível superarmos a discriminação e o racismo sem o questionamento de nossos próprios valores e princípios. Em uma sociedade impregnada de valores machistas, racistas e elitistas, a inclinação ao preconceito e à discriminação está inscrita na subjetividade de todos, o que não exclui educadores e psicólogos. E como não estaria?
7.2 No âmbito da formação e aprimoramento profissional de psicólogos
No que tange à formação de psicólogos para atuação na Educação, entendemos que a capacidade de realizar uma leitura crítica da realidade de cada região de nosso país seja tão importante quanto o domínio de teorias e técnicas. O racismo, os preconceitos, as relações entre pobreza e exclusão, fatores presentes na etiologia de transtornos mentais, devem integrar o quadro de preocupações desses profissionais. Em consonância a isso, fica evidente a necessidade de enfatizar em nossos educandos a capacidade de realizar uma leitura mais abrangente sobre a escolarização e as instituições escolares, na qual sejam considerados o processo histórico, a realidade social, as características regionais, o cenário político e as políticas públicas vigentes. A presença de docentes e supervisores críticos no estágio em Psicologia Escolar e Educacional contribui para a formação de profissionais preparados para realizar a leitura da escolarização, das relações interpessoais na escola e das instituições escolares com base na realidade social de cada região e nas políticas públicas vigentes.
7.3 No âmbito da construção de teorias e técnica de PEE Crítica
As lacunas ainda presentes na produção de estudos e pesquisas sobre relações étnico-raciais no Brasil e racismo na educação no âmbito da Psicologia Escolar e Educacional, não deixam dúvidas quanto à necessidade de produção de novos referenciais e recursos técnicos para o enfrentamento e superação de desigualdades. É preciso propor estratégias de combate a ações de intolerância à diversidade, para que diferenças não sejam interpretadas e tratadas como desigualdades. Cabe à Psicologia a tarefa coletiva de desfazer estereótipos negativos para que as diferenças na composição demográfica de nosso povo sejam reconhecidas como nosso maior potencial, tornando possível a construção de uma Cultura de Paz e não o avesso disso!
7.4 No âmbito da atuação de psicólogos no contexto escolar
Tendo por finalidade propiciar vivências de educação emancipadora, a apreciação e discussão de nossas entrevistas mostrou ser indispensável a inclusão de agentes mediadores no cotidiano escolar, capazes de atuar junto aos atores escolares com o propósito de desconstruir as múltiplas formas de discriminação, entre elas o racismo, por meio, entre outros, da mediação de conflitos e da ressignificação de representações negativamente estereotipadas. A ação mediadora da PEE deve intervir sobre os elementos perversos de nossa cultura, conforme se manifestem no contexto escolar, transformando situações de humilhação em oportunidades mútuas de aprendizagem e aprimoramento pessoal, ao exercer uma ação profilática e preventiva, capaz de oferecer oportunidades de ressignificação e de mudança de valores relativos à diversidade, seja qual for sua forma de expressão.
7.5 No âmbito das políticas públicas de Educação
Nosso estudo permite validar a importância das Políticas Públicas de Educação vigentes, como o FIES, o ProUni, o SISU e a adoção de cotas para negros em instituições de ensino superior e acenam para a necessidade de ampliar tais iniciativas. Acenam também para a necessidade de novas políticas capazes de promover avanços relativos à possibilidade de acesso a vagas, ao estabelecimento de condições de combate à evasão escolar, ao analfabetismo e ao analfabetismo funcional. Acenam, ainda, para a necessidade de intervir em manifestações discriminatórias e racistas, entre tantas outras ocorrências perversas que encontram na escola um lugar para sua expressão. Para que sejam coesas, fundamentadas e articuladas com base na realidade prática, entendemos que a proposição e a constante adequação das políticas públicas não se configuram como uma responsabilidade exclusiva do Estado, mas sim uma tarefa coletiva, na qual o envolvimento dos diversos agentes sociais e instituições voltadas a Educação e a Psicologia, permitem não só a formulação, como a adequação constante de tais iniciativas. Em sua implantação, devem se pautar na compreensão de pessoa e das características de cada região, incluindo a análise de aspectos socioculturais, históricos, políticos e econômicos imbricados no momento atual, para que a partir dele possamos desenvolver uma prática educacional e intervenções psicológicas socialmente comprometidas, promotoras de direitos e de transformações sociais. O engajamento da sociedade civil e sua participação no processo de formulação de políticas públicas contribui para o aumento da representatividade de segmentos excluídos, para a ampliação da consciência de direitos de cidadania e para que demandas sociais sejam atendidas com base na realidade existente.