Introdução
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou situação de pandemia devido à disseminação mundial do novo coronavírus (Sars-CoV-2), chamado também de Covid-19. Seu alto potencial de contágio e de letalidade, e o insuficiente conhecimento científico a seu respeito geraram incertezas sobre quais seriam as melhores estratégias para frear sua propagação nos diferentes contextos mundiais (Werneck, & Carvalho, 2020). Por conta deste cenário, medidas como o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social da população foram utilizadas por governos de vários países para impedir a rápida disseminação do vírus a fim de diminuir o número de pessoas contaminadas, de internações hospitalares e de mortes (Giamattey, Frutuoso, Bellaguarda, & Luna, 2021). Em novembro de 2021, no mundo todo, foram registrados mais de 258 milhões de casos de Covid-19 e mais de 5 milhões de mortes em decorrência da doença, segundo dados da OMS (2021). Além das perdas de vidas, em uma pandemia são vivenciadas também perdas de empregos, de interações sociais e de rotinas (Giamattey et al., 2021). A pandemia pelo novo coronavírus, portanto, configurou-se como uma situação de crise global em diversos âmbitos: econômico, sanitário e humanitário. Acerca das mortes causadas pela Covid-19, se observou que a necessidade de distanciamento social dificultou a experiência de luto das pessoas que perderam entes por essa doença. A dificuldade é vivenciada já no momento de internação hospitalar, em que a comunicação entre as pessoas internadas e seus familiares é restrita, em sua maioria, ocorre através de videochamadas, sem contato presencial face a face (Crepaldi, Schmidt, Bolze, & Gabarra, 2020; Giamattey et al., 2021). Para além disso, as mudanças necessárias nos rituais de despedida por conta do isolamento social complexificaram as experiências de luto na medida em que as interações sociais presenciais, consideradas importantes nos rituais de despedida para elaboração da perda, deixaram de existir. Outro aspecto foi a ocorrência, não rara, de perdas múltiplas em uma mesma família, na maioria dos casos de lutos sequenciais e que acarretaram maiores desafios para as famílias enlutadas (Crepaldi et al., 2020; Dantas et al., 2020). Destaca-se também o fato de que a pandemia do novo coronavírus causou mortes em massa, e em um curto período de tempo Dantas et al. (2020) trazem à luz o termo “luto coletivo”, como sendo aquele experienciado por várias pessoas e que geralmente decorre de mortes que impactam a sociedade como um todo, como nos casos de grandes desastres e da pandemia pela Covid-19. Desse modo, enlutar-se no contexto de uma pandemia envolve lidar com um luto coletivo e individual, com a necessidade de manter o isolamento social (Van Ee, Lenferink, Eidhof, & Boelen, 2021), modificar os rituais fúnebres (Crepaldi et al., 2020) e criar formas de cuidado, como o uso de psicoterapias, aconselhamentos psicológicos e grupos de apoio de forma virtual. Segundo Luna (2020), o luto individual e o coletivo são expressos publicamente pelo enlutado em seu conjunto de relações qualificadas por este como de apoio à sua experiência de sofrimento. A partir disso, um dos desafios do suporte psicológico ao luto durante a pandemia é construir espaços coletivos e de sociabilidade no luto que facilitem o compartilhamento do sofrimento, sobretudo porque a experiência de luto vivida em um contexto pandêmico é descrita como aguda e mais grave, independente da causa da morte (Eisma, & Tamminga, 2020). Por sua vez, diversos autores (Crepaldi et al., 2020; Mayland, Harding, Presto, & Payne, 2020; Pearce et al., 2021; Robinaugh, Simon, & Boelen, 2021) destacam o suporte psicológico ao luto como parte integrante da assistência social e de saúde de toda sociedade civil, de modo que se observam várias possibilidades de suporte psicológico grupal ao luto durante a pandemia, especialmente por meio do uso de ferramentas online - plataformas que possibilitam reuniões grupais pela internet e que marcaram desafios relevantes a serem considerados. Nos estudos de Luna (2020), Kabad et al. (2020) e Lopes, Lima, Arrais e Amaral (2021) são apontados os espaços de sociabilidade para a expressão do luto de forma online, como as iniciativas de grupos de trabalho e redes solidárias. Como exemplo, citam-se as páginas do facebook: vítimas do Covid-19; Brasil de luto; Famílias de luto no Brasil - Covid-19, Plataforma Inumeráveis. Ademais, as autoras citadas também discutem as propostas de intervenção voluntária de suporte emocional, psicanalítico ou de acolhimento individual e grupal que foram ofertadas. A população alvo dos trabalhos se mostrou diversa, incluindo pessoas que vivem os efeitos da pandemia, profissionais de saúde da linha de frente do combate da Covid-19 (em especial a enfermagem), quanto outras populações, LGBTQIA+29, enlutados pela Covid-19, sobreviventes do suicídio e pessoas idosas. No que tange os grupos de apoio ao luto, destacam-se os grupos de mútua-ajuda e terapêuticos com enfoque no acolhimento às necessidades de apoio aos lutos recentes. Estes grupos estão envolvidos com intervenções primárias e secundárias - recursos comunitários e de psicoeducação, propiciando a partilha de situações de vulnerabilidades quanto a recursos materiais, outras situações comuns de perda, bem como a obtenção de informações sobre o processo de luto pelas perdas da Covid-19 (Luna, 2020). Destaca-se também a importância dos requisitos éticos demandados à profissão de psicólogo (Código de Ética Profissional do Psicólogo, 2005) e a resolução nº 4, de 26 de março de 2020, do Conselho Federal de Psicologia, que agilizou o cadastro de psicólogos no sistema e-psi para que os atendimentos online pudessem ser realizados conforme a conduta ética no ambiente digital. Por sua vez, o suporte grupal online já ocorre desde a década de 90, mas atualmente houve um crescimento exponencial (Marmarosh, Forsyth, Strauss, & Burlingame, 2020; Viswanathan, Myers, & Fanous, 2020). Neste viés, a literatura consultada indica benefícios inerentes aos grupos de apoio online, pois o encontro virtual supera algumas barreiras logísticas para a participação dos integrantes. Há, nesse contexto, a facilidade de se reunir sem demandar um deslocamento, o que viabiliza a presença de pessoas residentes em outras regiões do país ou as que não têm condições de realizar a locomoção necessária (Beiras, Bronz, & Schneider, 2020; Knowles, Stelzer, & Jovel, 2017). Ademais, o grupo online também adiciona a ferramenta do chat, que se verifica como uma alternativa para a realização de comentários e questionamentos durante o encontro (Beiras et al., 2020). Em contrapartida, Robinson e Pond (2019) concluíram que há alguns aspectos negativos inerentes à modalidade grupal online, sobretudo a dificuldade de comunicação e problemas técnicos. O primeiro obstáculo relatado é representado pelos desentendimentos entre os participantes que podem ocorrer como efeito da ausência de expressões corporais, já o segundo refere-se às possíveis adversidades tecnológicas relacionadas à conexão com a internet, acesso ao computador e habilidades técnicas nas plataformas (Robinson, & Pond, 2019). No âmbito nacional, Beiras et al. (2020) também identificaram limites para esse formato, sendo eles a desigualdade de acesso tecnológico, a ausência de privacidade, e a instabilidade da internet. Diante deste cenário de pandemia, torna-se fundamental apoiar pessoas enlutadas e discutir recursos de acompanhamento psicológico que proporcionam cuidado ao luto no âmbito individual e/ou grupal virtual. Este artigo apresenta um estudo qualitativo e descritivo sobre a experiência com grupos reflexivos e de apoio ao luto (GRAL) online sob a perspectiva da equipe de facilitadores vinculada às ações de extensão do Serviço de Atenção Psicológica do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para o desenvolvimento do artigo foram utilizadas as reflexões compartilhadas pelos facilitadores dos grupos nos encontros de supervisão do projeto de extensão “Intervenções no luto: suporte psicológico e psicoeducação no contexto da pandemia por Covid-19”. Apresenta-se na sequência três tópicos, o primeiro aborda os fundamentos teóricos dos grupos reflexivos e de apoio ao luto no contexto da pandemia pela Covid-19, no segundo tópico apresenta-se os recursos para a formação e condução dos grupos e adaptações necessárias ao contexto online. No terceiro tópico analisa-se as características dos grupos formados, a postura reflexiva e ética para a condução dos encontros grupais e os indicadores de suporte grupal ofertados nos grupos.
Fundamentos teóricos dos grupos reflexivos e de apoio ao luto no contexto da pandemia da Covid-19
Neste tópico apresentam-se os princípios teóricos e metodológicos do Grupo reflexivo e de apoio ao luto (Gral), a saber, a perspectiva construcionista social sobre grupos (Rasera e Japur, 2007) e sobre a experiência de luto (Luna, 2014), os princípios terapêuticos grupais descritos por Yalon e Leszcz (2006), a ética relacional (Gergen, 2016) e os procedimentos oriundos dos grupos reflexivos de gênero propostos por Beiras e Bronz (2004; 2016). Também são discutidas as questões teóricas que foram incorporadas ao Gral tendo em vista o cenário pandêmico e os lutos pela Covid-19. No Gral compreende-se a formação de um grupo e o processo grupal como práticas discursivas decorrentes de posições e compreensões das experiências grupais bem como as relações grupais e processos reflexivos engendrados no decorrer dos encontros (Rasera e Japur, 2007). Indo ao encontro desta visão, o luto também é visto como uma prática discursiva de todos do grupo e que envolve a construção intersubjetiva de histórias e sentidos sobre a perda vivida. Para tanto, entende-se que a experiência de luto é autorreferencial - envolve a reconstrução de significados pessoais e idiossincráticos, tendo em vista que a perda evoca uma crise de significados que estruturam o self - como também é uma experiência produzida e negociada recursivamente no âmbito dos relacionamentos do grupo, por meio de narrativas coletivas sobre como um luto deve ser vivido e externalizado em determinados contextos relacionais (Luna, 2014). Outro importante princípio teórico do Gral são os fatores terapêuticos grupais descritos por Yalon e Leszcz (2006), considerando, sobretudo, a possibilidade de se trabalhar com o suporte mútuo entre os participantes: a instilação de esperança frente a um futuro que está sendo reconstruído; a universalidade da situação vivenciada ao perceber experiências e angústias similares que podem ser compartilhadas; o compartilhamento de informações sobre os recursos de enfrentamento no luto; a possibilidade de contribuir com a experiência pessoal para ajudar outra pessoa; reconhecer que às vezes a vida não é justa e discutir questões sobre o sentido da vida e a morte; aprendizagem mútua decorrente da percepção de alguns benefícios decorrentes do en-frentamento de uma perda e o desenvolvimento de relações de confiança; entendimento e aceitação entre si, inclusive permitindo que conflitos possam ser expressos. A ética relacional é outro princípio teórico do Gral (Gergen, 2016) e que significa fomentar uma prática responsiva e empática entre os facilitadores e participantes, tendo em vista o que implica contar a história de perda uns para os outros, bem como construir um modo colaborativo de se construir o suporte psicológico no luto, considerando as várias necessidades de enlutamento e a singularidades das pessoas que buscam o apoio de um grupo para um luto. Também foram definidos os princípios metodológicos para a formação e condução dos grupos (e que também estão presentes nos grupos reflexivos de gênero de Beiras e Bronz (2004; 2016), como a constituição do grupo; a facilitação dos encontros e a avaliação final. Na Constituição do grupo, realizam-se entrevistas individuais e de acolhimento com pessoas enlutadas interessadas em participar de um Gral. Estas entrevistas não têm como foco selecionar ou triar as pessoas, mas tecer um apoio inicial às vivências de cada uma visando compreendê-las a partir do relato da história pessoal, bem como informar alguns objetivos do grupo para a pessoa identificar o seu interesse neste tipo de trabalho grupal. Sendo assim, após a realização das entrevistas, sugere-se que um Gral inicie com um número máximo de 10 ou o mínimo de 5 pessoas e que sejam realizados de 8 a 10 encontros semanais ou quinzenais, com o tempo de duração de no máximo duas horas. No que se refere à facilitação dos encontros reflexivos, realizam-se acordos para mediar o comportamento dos participantes, por exemplo, as formas de comunicação em caso de falta, atrasos e se novos participantes poderão entrar no grupo após o seu início. Além disso, constrói-se a agenda grupal a partir dos disparadores de conversa, ou seja, as perguntas feitas para os participantes ou entre estes à medida que cada um conta, ouve, pensa sobre a sua história de perda partilhada no coletivo. A construção da agenda grupal consiste em uma prática que viabiliza a construção de diálogos colaborativos, reflexivos e com foco na narrativa sobre o luto de cada um e que é retomada em todos os encontros do grupo. Nesse sentido, a pandemia da Covid-19 reforçou a importância de se incorporar na agenda grupai disparadores de conversa sobre luto coletivo e as especificidades do processo de luto impelidas pelo novo coronavírus e que incluem as múltiplas perdas, o sentimento de culpa pela possibilidade da pessoa ter sido agente transmissor ao ente querido, as limitações dos rituais de despedida, tanto a redução do número de pessoas nos funerais, a obrigatoriedade do caixão fechado, quanto à impossibilidade de estar presente junto no período que antecede a morte. (Dantas et al., 2020). Todas estas situações geram lutos invisibilizados e demandam questionamento reflexivo por parte dos facilitadores e participantes, de modo que surge um importante disparador de conversa introduzido na metodologia do Gral: quais sentidos são produzidos ao se contar as histórias de perda e reafirmar as necessidades de enlutamento de todos os presentes no Gral tendo em vista as vulnerabilidades da pandemia pela Covid-19?
Esta questão é relevante quando se observam as vulnerabilidades a que está exposta a população brasileira, bem como as perdas pessoais e coletivas geradas pela pandemia, que perturbou os meios de subsistência e gerou escassez de alimentos que aflige o bem-estar em todo o mundo. Esses contornos trágicos são, também, reflexos de discursos conflitantes emitidos por governos que se opõem às medidas preventivas contra a transmissão do coronavírus. Destacamos, também, as múltiplas perdas sociais e coletivas pela falta de preparo e investimento por parte dos governos nos sistemas de saúde e demais políticas públicas para lidarem com as consequências negativas da pandemia, as quais acentuaram as vulnerabilidades sociais já existentes em nossa sociedade. Ademais, em contexto virtual, as pessoas têm acesso à maior quantidade de notícias irreais, em que mídias, com informações sobre a gravidade da pandemia, são deturpadas por suas legendas, inspirando discórdia e fomentando a violência entre a população. Para Sontag (2003, p. 16), é necessário refletir sobre “as inúmeras possibilidades oferecidas pela vida moderna de ver - à distância, por meio da fotografia - a dor de outras pessoas” e o quanto essa imersão às notícias constantes, em cenário de conflito político-ideológico, proporciona identificação ou aversão ao seu conteúdo, influenciando a perda da empatia, o desrespeito aos enlutados por entes queridos, além de aumentar ou reduzir o engajamento com o compromisso social em momentos de crise. O encontro grupal é finalizado mediante a síntese reflexiva que visa retomar os principais focos das conversas que circularam no encontro. Para avaliação final do grupo, os facilitadores solicitam aos participantes que relatem como percebem o seu processo de luto antes de participar do grupo. Sendo que nesse momento os facilitadores também retomam todas as sínteses reflexivas de todos os encontros realizados. O grupo reflexivo e de apoio ao luto durante a pandemia da Covid-19 tem finalidades terapêuticas e pode também ser considerado um grupo de promoção à saúde. Neste sentido, o principal objetivo é fortalecer as identidades, narrativas, reflexividades e vínculos de apoio entre os participantes que enfrentam situações traumáticas e têm necessidade de conexão, bem-estar e alívio da solidão devido à perda pela morte por Covid-19 ou outros tipos de perdas por morte. Isto é alcançado a partir do estímulo à narração de histórias pessoais sobre a perda vivida; da construção de empatia em torno das necessidades de enlutamento de cada participante; bem como da sociabilidade no compartilhamento de recursos de enfrentamento no luto (Luna, 2020). No tópico seguinte é analisada a experiência da equipe de facilitadores dos grupos no que tange à formação e condução dos grupos, considerando também as adaptações realizadas para o formato online.
Formação e facilitação dos grupos reflexivos e de apoio ao luto no formato online
A equipe de facilitadores dos grupos - 7 estudantes de psicologia, 2 psicólogas e a coordenadora do projeto de extensão - definiu que o público-alvo dos grupos seriam pessoas enlutadas acima de 18 anos oriundas da comunidade universitária ou que vivem em municípios próximos, e que normalmente buscam atendimento no Serviço de Atenção Psicológica da UFSC. Entretanto, devido a impossibilidade de limitação dos municípios em decorrência da divulgação dos grupos ser feita através das redes sociais que implicam em um alcance nacional, o público-alvo foi ampliado para pessoas oriundas de qualquer município brasileiro com acesso à internet e smartphone ou computador pessoal e que tenham vivenciado uma perda por morte de um familiar, sem definir o tempo desta perda. A decisão por este público está ancorada na complexidade dos lutos vividos durante a pandemia, no que se refere ao isolamento social a que todas as pessoas estão submetidas e não somente aquelas que vivenciaram a morte de um familiar devido à Covid-19. A divulgação da abertura de vagas para triagem e composição dos grupos ocorreu em períodos distintos, entre julho do ano de 2020 e julho de 2021. Por meio do portal de notícias da universidade e do perfil da rede social virtual do Laboratório de Processos Psicossociais e Clínicos no Luto (Instagram LAPPSILu-Ufsc), onde foi publicado um pôster com informações de horário, data de início dos grupos e público-alvo, bem como o endereço eletrônico institucional do LAPPSILu (lappsilu@gmail.com) para o contato dos interessados e formas de inscrição nos grupos. Outra forma de contato com a população ocorreu por meio de encaminhamentos de pessoas enlutadas realizados pelos profissionais e estagiários do próprio Serviço de Atenção Psicológica da Universidade e hospitais de municípios próximos da Universidade. Várias pessoas enviaram a ficha buscando informações sobre os grupos. No mês de agosto de 2020 foram recebidas 19 fichas, já no mês de março de 2021 foram 23, e no mês de junho de 2021 foram 52 fichas recebidas. No conteúdo das fichas recebidas foi possível identificar o público de enlutados interessados no projeto em cada período de abertura de um novo grupo. Assim, cada momento de triagem assumiu características particulares considerando a gravidade em que a pandemia do coronavírus estava no país (o tamanho da crise, número de mortes e casos confirmados, a superlotação dos hospitais, etc), a capacidade que a equipe do projeto de extensão dispunha no momento (número de voluntários, tempo e recursos de organização, etc), o local de origem das pessoas interessadas, a disponibilidade de horário dos interessados, o acesso à internet e o manejo da plataforma Google Meet, que foi proposta para as entrevistas iniciais de triagem e encontros grupais. Neste ponto, para os inscritos com dificuldades em lidar com esta plataforma e participar das entrevistas iniciais e dos grupos, foi produzido e disponibilizado um tutorial sobre o manejo do Google Meet. Foi possível realizar 89 entrevistas individuais que ocorreram nos três períodos de divulgação e triagens citadas. Levou-se em conta nesta triagem um roteiro de entrevista que permite compreender a idade, o tipo de vínculo com a pessoa que faleceu, a situação familiar e a rede de apoio social, circunstância da perda, reações de luto iniciais e que persistem até o momento, histórico de tratamento de saúde mental, expectativas quanto ao trabalho grupal, demandas de apoio psicológico ao luto, disponibilidade de horário e acesso à internet. Este roteiro foi construído a partir de outras propostas de triagem ligadas à mesma temática, como sugeridas por Franco, Mazorra e Tinoco (2002) e Souza, Moura e Pedroso (2010). Destaca-se que se remarcaram várias vezes as entrevistas online quando os interessados alegavam que não tinham condições de comparecer devido a problemas pessoais, com a internet/plataforma ou de trabalho. Este aspecto é especialmente importante quando se faz agendamento de entrevistas com pessoas enlutadas em um contexto de pandemia, considerando que as pessoas relataram que estavam enfrentando vários eventos estressores, como relacionados às questões financeiras, de saúde mental e impactos do luto na vida pessoal e familiar. Do montante de 89 pessoas que participaram da entrevista, 74 pessoas foram triadas para os grupos e 15 não foram inseridas pois não atendiam aos critérios para inclusão nos grupos. Tais pessoas viviam perdas não associadas à morte (como divórcio, desemprego e perdas simbólicas ligadas à pandemia), associadas à morte de um animal de estimação ou à morte por suicídio. Nestas circunstâncias, as pessoas foram encaminhadas para grupos de luto especializados nestas temáticas e que estavam sendo realizados de modo gratuito e de forma online ou presencial em outros estados brasileiros. Os enlutados que apresentavam na entrevista histórico de comorbidades em saúde mental e que não estavam sendo acompanhadas no momento por algum profissional também foram encaminhadas para outros tipos de atendimentos, uma vez que se percebeu que a demanda de saúde mental estava sobreposta a demanda de apoio ao luto. Outras situações que não possibilitaram a inserção das pessoas no grupo foi a impossibilidade de elas participarem dos encontros online no horário previsto ou ainda não possuírem acesso à internet nos momentos das reuniões do grupo. As 74 pessoas triadas receberam por e-mail um formulário de cadastro online do Serviço de Atenção Psicológica da UFSC e que consistia na confirmação final de que iriam participar do grupo. O preenchimento deste formulário foi fundamental pois se obtinha acesso a contatos da rede de apoio dos enlutados, caso fosse necessário contatá-los em uma situação de crise ou emergência vivida pela pessoa participante do grupo. Observou-se que nem todos preencheram o formulário de cadastro online e que 5 pessoas foram consideradas desistentes, não chegando a serem incluídas em nenhum grupo. Obteve-se 69 pessoas aptas para participar de grupos considerando todas as etapas que foram descritas no processo de triagem, de modo que outro desafio foi a definição do número mínimo e máximo de participantes para iniciar os grupos. Definiu-se que o limite máximo de participantes chamados para iniciar cada grupo seria de até 19 pessoas, levando em conta a possível evasão no transcorrer dos encontros; e o mínimo seria de 5 pessoas para que o grupo fosse iniciado. Também foi acordado entre os facilitadores que o número total de encontros reflexivos seria 10, com duração de duas horas cada e com intervalos semanais ou quinzenais. Este número de encontros está embasado no objetivo de um Gral, que vai além de um acolhimento breve ou de psicoeducação, pois visa fortalecer identidades, narrativas pessoais de luto, fomentar a postura reflexiva e promover a legitimação do suporte grupal online ao luto durante a pandemia. Para definir os facilitadores dos grupos, acordou-se que somente quem realizou as entrevistas iniciais poderia atuar como facilitador, bem como teria que ter disponibilidade para participar das supervisões semanais do projeto de extensão. Por sua vez, a equipe de facilitadores do grupo também adaptou procedimentos para a facilitação dos encontros no formato online. Neste sentido, redigiu-se um texto em torno de alguns aspectos relevantes para o modo de andamento do grupo no formato online, por exemplo, as datas das reuniões, faltas, atrasos e em até qual encontro novos participantes poderiam entrar no grupo. Além disso, neste acordo foi proposto que os participantes mantivessem as câmeras ligadas sempre que possível com o objetivo de manter uma interação de qualidade, bem como com o microfone mutado enquanto não estivessem falando para evitar ruídos durante o encontro. Por fim, haviam combinados relacionados à preservação do sigilo e da identidade de cada participante; estratégias relacionadas a conselhos pessoais e disponibilidade dos coordenadores em caso de desconforto ou necessidade de encaminhamentos para atendimento especializado. Este acordo de convivência foi discutido com os participantes no primeiro encontro quando foi exposto pela tela do computador e depois enviado por e-mail com todos os itens, acrescido da identificação dos facilitadores e sua inscrição no conselho profissional de Psicologia, outros modos de acesso a eles e o link fixo da reunião virtual. Outro recurso adaptado para o formato online e que esteve presente nos 10 encontros reflexivos programados foram os disparadores de conversa. Como exemplo, cita-se as músicas específicas sobre a dor da perda e da restauração; filmes ou séries com temáticas de perda de pais, irmãos, cônjuges, filhos; frases e poesias de luto; livros lidos sobre o luto, morte e o morrer; e técnicas específicas trazidas pelos facilitadores como “kit de primeiros socorros”, “pote de lembranças”, “caixa de memórias”, pertences do falecido, árvore da vida com mural de fotos das pessoas falecidas e da família (Rodriguez, 2021) e folder com informações sobre o processo de luto. Para trabalhar com a “árvore da vida”, os participantes selecionaram fotos das pessoas que faleceram e as apresentaram no grupo com a narração do vínculo que tinham com a pessoa que morreu e qual era seu papel nesta relação. Com este mesmo enfoque, o “pote de lembranças” foi utilizado como um disparador de conversas, no qual foi solicitado aos participantes levar ao encontro um pote e papéis coloridos. O disparador para a construção do pote foi que pensassem em temas relacionados à pessoa falecida como vivências, características que ama na pessoa, músicas e filmes significativos na relação, lugares especiais que estiveram juntos, mudanças que teve na relação com a pessoa, aspectos em comum que possuíam, conquistas que tiveram, coisas que gostaria que o falecido soubesse e pontos que se inspira ou se orgulha na pessoa. Utilizou-se um slide com a foto de um pote e recursos visuais como modelo. Conversar e ouvir músicas com temáticas sobre sentimentos e vivências de luto foi outro recurso bastante utilizado nos encontros reflexivos, e possibilitado pela ferramenta de compartilhamento de tela da plataforma Google Meet. Tratou-se de um movimento que veio tanto dos facilitadores quanto dos participantes em decorrência da articulação com a estética ser capaz de proporcionar um efeito de transformação ao alcançar um aspecto íntimo e subjetivo (Melani, Ribeiro, & Santos, 2020). Assim sendo, ouvir músicas, ler poesias ou assistir vídeos metafóricos pode desencadear um efeito de organização da experiência de modo a ressignificar a experiência traumática da perda (Melani et al., 2020). A atividade de ligação realizada quinzenalmente ou semanalmente, a depender dos combinados de cada grupo, foi outro recurso adaptado ao formato online. Esta atividade é desenvolvida na parte final dos encontros, quando os facilitadores orientam quanto à importância de se continuar ouvindo músicas, vendo filmes ou ainda identificar objetos de apego ou mensagens que lembrem a pessoa que morreu. Também é importante destacar que no intervalo dos encontros outra atividade de ligação é realizada, como entrevistas individuais com participantes que demonstravam outras demandas de apoio ao luto ou de saúde mental que extrapolavam os objetivos do grupo. Nessas entrevistas alguns participantes foram encaminhados para atendimentos psicoterápicos individuais ou familiares em clínicas sociais ou ainda para Serviço de Atenção Psicológica da UFSC ao qual se encontra vinculado o projeto de extensão citado. No momento final dos encontros realizava-se também uma síntese reflexiva, sendo este outro recurso adaptado nos grupos virtuais realizados. Os facilitadores devolvem para o grupo os temas que haviam circulado no encontro e também tecem reflexões sobre estes temas mais presentes por meio de um portfólio com a compilação de imagens, fotos, poemas terapêuticos (Paschoal, & Grandesso, 2014), frases e músicas que circularam no grupo. Já a avaliação final de cada grupo conduzido é realizada em três momentos distintos: o primeiro se dava no 10º encontro, no qual era sugerido que cada participante retomasse as suas vivências e reflexões sobre como se sentiram durante todo o processo de participar de um grupo de apoio ao luto e os facilitadores também devolvem ao grupo suas impressões sobre os encontros. O segundo momento da avaliação é uma sessão pós-grupo realizado somente entre os facilitadores a fim de discutir impressões, sentimentos e questões levadas nas supervisões semanais. Este momento era importante pois permitia manter a postura reflexiva, o autocuidado e o vínculo entre os facilitadores. Por último, foi enviado um formulário online por e-mail uma (1) semana após o término do grupo, sendo o preenchimento deste formulário opcional. Apenas com o Grupo 1 foi realizado um encontro de follow up após um mês do término do grupo e envolveu os facilitadores e os participantes. Conforme os recursos adaptados para o formato online, foi possível organizar e facilitar vários grupos ocorridos nos anos de 2020 a 2021. No tópico a seguir SÃO CARACTERIZADOS os grupos formados bem como é analisada a postura reflexiva e ética desenvolvida na condução dos encontros e os indicadores de suporte grupal ao luto ofertados durante os encontros.
Caracterização e análise da experiência dos grupos reflexivos e de apoio ao luto no formato online
Obteve-se 6 grupos distintos que se desenvolveram por meio de tecnologias da informação e da comunicação durante a pandemia. Conforme a Tabela 1, o montante total de participantes fixos e que participaram da maioria dos encontros reflexivos foi de 54 pessoas. Cada grupo teve início em um mês específico, e o total de participantes de cada grupo variou bem como o tipo de morte e o vínculo que cada um tinha com a pessoa que morreu.
Tabela 1 Características da composição dos grupos realizados.
Grupo | Data de início do grupo | Nº de participantes efetivos | Tipos de morte | Vínculos |
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1 | Agosto de 2020 | 5 | Covid-19 | Irmão, irmã, mãe, pai, avó, filha, cônjuge e/ou múltiplas perdas |
2 | Março de 2021 | 7 | Covid-19 e infarto | Mãe, pai e avó |
3 | Março de 2021 | 11 | Covid-19, infarto, morte súbita, acidente automobilístico e câncer | Cônjuge e mãe |
4 | Março de 2021 | 7 | Covid-19, infarto, infecção hospitalar, assassinato, acidente automobilístico e doença cardíaca | Mãe, pai, irmã e/ou múltiplas perdas |
5 | Agosto de 2021 | 10 | Covid-19 | Cônjuge, mãe, pai, avó. |
6 | Agosto de 2021 | 14 | Câncer, doença cardíaca, doença respiratória, assassinato e infecção hospitalar | Pai, mãe, cônjuge, irmão, tio e/ou múltiplas perdas |
Nº total de participantes | 54 | - |
O grupo 1, com 5 pessoas, foi conduzido ainda em 2020, no período de agosto a dezembro do ano de 2020. Já o grupo 2 com 7 pessoas, o grupo 3 com 11 pessoas e o grupo 4 com 7 pessoas foram realizados concomitantemente durante o primeiro semestre de 2021, de março a junho. Por último, o grupo 5 com 10 pessoas e o grupo 6 com 14 pessoas foram facilitados no segundo semestre de 2021, de julho a setembro. Dentre esses, dois grupos (1 e 5) foram constituídos exclusivamente por pessoas enlutadas pela Covid-19, na medida em que foi necessário se atentar para as especificidades do processo de luto destas pessoas (Crepaldi et al., 2020; Dantas et al., 2020). Essas particularidades se evidenciaram pela presença de participantes com múltiplas perdas decorrentes da pandemia (desemprego, morte de mais de um familiar, isolamento social, etc.) e com perdas recentes, apresentando reações agudas de luto. Também foram realizados quatro grupos (2, 3, 4 e 6) com pessoas que tiveram perdas por tipos de morte diversos (incluindo ou não mortes por Covid-19). Estes grupos tiveram especial relevância, pois o agrupamento dos inscritos se deu por outras características afins (tempo de luto, tipo de vínculo, tipo de morte e idades dos participantes), considerando fatores potenciais na formação de vínculos e sociabilidade entre os integrantes do grupo. Tal escolha justifica-se pela necessidade de se contemplar os enlutados por mortes que não fossem apenas por Covid-19, considerando as implicações que a pandemia e, em especial, o isolamento social, causam no processo de enlutamento (Eisma, & Tamminga, 2020; van Ee, Lenferink, Eidhof, & Boelen, 2021; Crepaldi et al., 2020). No que se refere à idade dos 54 participantes, segundo as definições utilizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), houve o predomínio de adultos jovens (28 participantes entre 25-44 anos) e de meia idade (15 participantes entre 45-59 anos), totalizando 43 pessoas nessas categorias. Além desses, houve 4 participantes jovens (entre 18-24 anos) e 7 idosos (entre 60-90 anos). Ademais, vale destacar que a idade mínima aceita para a participação nos grupos era de 18 anos e que não houve inscritos idosos de longa vida (com idade superior a 90 anos). Observando o alto número de jovens e adultos jovens nos seis grupos, ressaltou-se a necessidade de se considerar as particularidades envolvidas nesses processos de enlutamento. De acordo com Carvalho et al. (2021), a saúde mental dos jovens foi bastante impactada com a pandemia e com as perdas de entes queridos, apresentaram reações agudas e graves, sendo mais propensos a relatar sintomas de luto disfuncional do que outros grupos etários. Neste viés, os autores salientam que a vivência de perdas e lutos na população jovem é incomum, e que a crise de saúde gerada pelo vírus os obrigou a lidar com os sentimentos advindos da morte de familiares e amigos de maneira, possivelmente, mais precoce. Ao se atentar ao gênero social, evidenciou-se que os participantes eram majoritariamente mulheres cis, totalizando 52 mulheres cis e 2 homens cis, não havendo pessoas trans ou não binárias. O baixo número de homens cis se mostra consonante com literatura do tema (Casellato, 2015), que constata que homens cis frequentemente expressam o luto de maneira predominantemente funcional, por meio de comportamentos que priorizam a organização de rotina, pendências funerárias, questões financeiras e legais, etc. em relação à expressão emocional (a partir da exposição de sentimentos e compartilhamento de vivências de luto). Além disso, também se ressalta que enlutados LGBTQIA+ geralmente se beneficiam de grupos de apoio ao luto voltados para essa população, visto que esta possui necessidades próprias na legitimação de seus lutos, relacionados à discriminação vividas, ao estresse social minoritário e à negação de seus direitos (Luna, & Silva, 2021). Em relação aos tipos de vínculos, a totalidade dos participantes tiveram perda de entes significativos da família nuclear e ampliada. No entanto, tais mortes tiveram diferentes circunstâncias, envolvendo tempos de luto diversos (de 2 meses a 11 anos) e diferentes tipos de morte (morte repentina, morte após longo período de doença e morte violenta). Portanto, apesar das semelhanças, cada grupo teve diferentes características, considerando aspectos individuais das circunstâncias de luto de cada participante que compôs os grupos. A ética relacional esteve presente na condução dos encontros do grupo compreendeu manter uma prática responsiva mediante a escuta das descrições de todos os falantes enlutados e os facilitadores (Gergen, 2016). Destaca-se a sua importância no momento de dialogar sobre o termo do acordo de convivência, reconhecendo necessidades específicas de horários e faltas. Ao definir os disparadores de conversa e conduzir a síntese reflexiva, ao final de cada encontro como também durante a avaliação final de cada grupo, a escuta e responsividade se fez presente visando compreender as demandas de apoio ao luto que estavam sendo direcionadas para o grupo por meio dos disparadores de conversa. Nos encontros iniciais, os disparadores de conversas foram orientações gerais trazidas pelos facilitadores para que os participantes apresentassem suas motivações para estarem naquele grupo e o que gostariam que as demais pessoas conhecessem sobre sua história de vida. Esse momento de apresentações gerou trocas entre os participantes à medida em que iam fazendo ligações entre as suas histórias de perda e expectativas quanto ao apoio grupal, como o reconhecimento das vivências singulares de luto, e que estas, muitas vezes, não são possíveis de serem expressas em outros contextos grupais. Sendo assim, o tema do luto não reconhecido surgiu durante os primeiros encontros na medida em que não sentiam permissão social para expressarem e compartilharem suas vivências com outras pessoas. A maioria dos participantes compartilhou revolta em relação aos estigmas e vergonha pelas perdas vividas durante a pandemia; desagrado diante de comentários de familiares, colegas e profissionais de saúde acerca de como deveriam vivenciar seus lutos, indicando a não validação do processo de luto vivenciado e a deslegitimação das experiências da pessoa enlutada nas esferas familiar e social. O não franqueamento do luto pode se apresentar como um efeito decorrente de normas sociais, muitas vezes implícitas, que estabelecem quem pode estar de luto, como e por quanto tempo, o que negligencia e silencia o sofrimento de pessoas cujo direito ao luto é negado. Além disso, a não permissividade ao luto também revela um fracasso da empatia, na medida em que despreza ou banaliza experiências pessoais e esforços dos enlutados (Casellato, 2015). É nesse contexto que os disparadores de conversa trazidos pelos facilitadores dos grupos envolveram legitimar a reivindicação do direito ao luto público pelos participantes por meio de conversas sobre a desconstrução de regras e crenças que legitimam apenas as vivências de luto de algumas pessoas ou situações de perda e outras não. Outrossim, salienta-se que os indicadores de suporte grupal ofertados no grupo foram o fortalecimento da identidade de enlutado e as narrativas que aludem ao direito ao luto público (Butler, 2018). No decorrer dos encontros dos 6 grupos facilitados (de modo específico pelas duplas ou trios de facilitadores que se formaram) diferentes contextos de vida dos participantes foram se destacando por meio do disparador de conversa “árvore da vida”. Por meio desta atividade, várias conversas surgiram em torno do pertencimento do ente querido na história de vida de cada enlutado e como esses vivenciavam a dor de perdê-lo. Já o disparador de conversa “pote de lembrança” favoreceu a consolidação de memórias da pessoa falecida, minimizou os receios e medos dos enlutados de esquecerem do ente que partiu, suas vivências, características e peculiaridades da relação (Neimeyer, 2012). Os participantes ficaram emocionados ao realizar esta atividade, expressaram o desejo de continuar após o encontro, completando o seu pote conforme tivessem novas memórias que gostariam de guardar. Boa parte das músicas expostas nos encontros foram indicadas pelos próprios participantes, em alguns casos elas carregavam uma história em si que atrelava a música à memórias com o ente falecido e em outros casos as músicas eram sugeridas pois elucidavam alguma reflexão ou traziam alguma mensagem. Alguns exemplos de músicas indicadas e compartilhadas durante os encontros foram: “Eu sei que vou te amar”, de Ana Carolina; “Gostava tanto de você”, de Tim Maia; “Epitáfio”, de Titãs; “Tocando em frente”, de Almir Sater, dentre outras. Tratam-se de canções religiosas e/ou que falam de amor, luto e temas afins. Para Valgas (2013) “o sujeito ouve música e pode responder de maneira silenciosa, verbalmente ou por meio de qualquer outra forma” (p. 52). Para esta autora, a experiência de ouvir música, além de trazer lembranças, pode evocar experiências afetivas e explorar ideias e pensamentos que, a depender do grau de adaptação do indivíduo à perda, poderão ajudar o enlutado a dar sentido à perda e elaborá-la. A partir dos disparadores de conversa citados, que foram singulares para cada grupo, visto que não havia uma ordem pré-estabelecida para cada grupo trazer os disparadores, pôde-se observar a formação de vínculo entre os participantes dos grupos e o tema da identidade ecoou durante os grupos na medida em que surgiram discussões sobre a influência de fatores como idade e gênero dos enlutados nas formas de expressão do luto. Dessa maneira, há uma diferença na forma como homens e mulheres são autorizados a vivenciar seus lutos socialmente, como por exemplo, a concepção de que homens não são permitidos a chorar. A não autorização ao luto também pode ser percebida nas vivências de idosos que perderam seus cônjuges, na medida em que aqueles, muitas vezes, têm seus lutos banalizados ou silenciados haja vista a maior idade. É nesse sentido que os grupos propiciam momentos de reflexão e narrativas compassivas a fim de legitimar o direito ao luto dos participantes, independente do seu gênero, bem como abolir as normas de expressão de luto, como sendo diferentes para todos. Isso era proporcionado a partir de palavras de conforto e apoio mútuo que eram escritas no chat e pelo desejo de ouvir determinadas músicas ou citar frases faladas no final de cada encontro. Outro aspecto que contribuiu para esta legitimação do luto foi o uso dos poemas terapêuticos na síntese reflexiva ao final de cada encontro e que serviu como metáforas para dar visibilidade às experiências compartilhadas no contexto online, sobretudo, a questão dos rituais de luto possíveis e que evidenciam os fatores protetivos no luto de cada participante que se via isolado durante a pandemia e com poucos acessos aos rituais fúnebres tradicionais. A literatura mostra que os rituais fúnebres são importantes para a elaboração do luto e para a organização emocional do enlutado (Scavacini, Cornejo, & Cescon, 2019; Silva, 2015; Robles-Lessa et al., 2020; Giamattey et al., 2021), na medida em que o ajudam a concretizar a morte da pessoa que partiu e que são uma forma de homenageá-la. No caso das mortes por Covid-19, muitos rituais fúnebres tiveram que ser reduzidos a caixões lacrados e cerimônias apressadas com poucos participantes, o que pode dificultar a concretização da perda e consequente elaboração emocional do luto (Knowles et al., 2017). Nesse caso, as cartilhas de orientações para os rituais de luto também foram recomendadas aos participantes, na síntese reflexiva ao final dos encontros, pois ampliam o acesso às informações, à educação e possibilitam formas de ritualização do luto (Cogo, et al, 2020). Quanto aos vínculos de apoio para o enfrentamento de situações e perdas traumáticas, destaca-se o estímulo à elevação do bem estar devido ao contato online entre os participantes que passaram por experiências parecidas, como também, pelo estabelecimento de relações de confiança, sendo este aspecto reforçado pela literatura que indica que o contato com outras pessoas que tiveram lutos individuais e coletivos proporciona um senso de comunidade e pertencimento no contexto da pandemia e são os aspectos protetivos no luto. Ademais, para muitos participantes enlutados, estar nos grupos de apoio foi o primeiro contato com um espaço de cuidado a seus lutos. Constatou-se que a cada encontro os vínculos se tornaram cada vez mais coesos em direção a mais uma rede de apoio para cada integrante daquele espaço. Em alguns casos, os participantes continuaram em contato entre si após o término do grupo ou criaram espaços grupais de conversa em aplicativos de mensagem. Esse cenário se relaciona com os princípios terapêuticos grupais descritos por Luna (2020), já que através do suporte mútuo entre os participantes há o desenvolvimento de relações de confiança. Sendo assim, em vários encontros o foco dos facilitadores foi manter a coesão grupal, as relações de confiança em torno das informações expostas e a privacidade dos participantes. Considerando, também, que as relações grupais foram intermediadas pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação e ferramentas de plataformas digitais para executá-los, pode-se também observar várias dificuldades. Não houve a possibilidade de contato presencial entre os participantes quando circulavam suas narrativas e conversas sobre a perda, algo que apresenta um potencial grande nos grupos presenciais por ocorrer diversas trocas características das interações humanas como expressões faciais e reflexões pessoais (Beiras et al., 2020). Ligar e desligar o microfone para falar pode ter também prejudicado a espontaneidade das falas, bem como o fato de em alguns momentos os participantes desligaram sua câmera ao falar ou quando ouviam a história da outra pessoa do grupo (Marmarosh et al., 2020). Todos estes aspectos sinalizam aos facilitadores os cuidados necessários e padrões éticos e profissionais que se aplicam no processo grupal online (Siegmund, Janzen, Gomes, & Gauer, 2015).
Considerações finais
Neste artigo foram apresentados os princípios teóricos e metodológicos do Gral no contexto da pandemia pela covid-19 os recursos para organização e composição dos grupos e as adaptações necessárias para o contexto online, além de apontar as características dos grupos formados e os indicadores de suporte grupal ofertados nos seis grupos facilitados. Compreende-se que os seis grupos reflexivos e de apoio ao luto realizados durante a pandemia pela Covid-19 sustentam possibilidades e desafios quanto ao fortalecimento de identidades, reflexividades, narrativas compassivas e vínculos de apoio em decorrência da criação de um ambiente seguro e que foi mediado pelas tecnologias da informação e da comunicação. Foi possível utilizar nos encontros os recursos das TICs de forma nova e criativa, podendo executar as atividades grupais pautadas no cuidado para que todas as vozes sejam ouvidas durante o processo grupal e garantir que não haja violência conversacional, evitando, portanto, a imposição ou mal interpretação dos sentidos que cada participante expõe em relação às crenças, valores e aspectos culturais de cada um ao expressar seu luto (Trindade, & Rasera, 2013). Os grupos realizados parecem auxiliar os participantes a compartilhar os sentidos e singularidades da perda vivenciada, honrar quem se foi e quem fica em termos dos significados das suas vidas e da relação com a pessoa que faleceu. A partir da experiência dos facilitadores dos grupos sugerem-se novos estudos sobre grupos de apoio ao luto, especialmente, visando discutir os indicadores de suporte grupal importantes para os enlutados que participam dos grupos de apoio luto durante a pandemia da Covid-19.