ue se possa perceber de forma um pouco mais organizada e a partir daí, abrir-se para novos modos de ser” (p. 170). No final do primeiro ano, Mirian já não precisava dramatizar literalmente os acontecimentos relatados. Em uma sessão, ela diz, com humor, que se dera conta de que gesticulava muito ao falar e, rindo, acrescenta que parecia com os italianos. Um novo brincar estava presente na análise. No decorrer dos dois primeiros anos da análise, a paciente foi, aos poucos, conseguindo identificar nas situações vivenciadas em seu cotidiano muitas lembranças de sua infância. A mais significativa foi a de um vizinho que tentou molestar uma criança de seu prédio. Mirian ficou muito indignada e ajudou a mãe da criança em todos os aspectos, desde o boletim de ocorrência na delegacia, da indicação de uma psicóloga para a criança e de ajudá-la nos cuidados da casa. A paciente associou o acontecido às tentativas de abuso que sofrera de seu pai, entre seus nove a doze anos de idade. Mirian chorou pelo abuso sofrido e, sobretudo, ao lembrar-se de que sua mãe a culpabilizara pelo acontecido. No manejo, íamos sustentando os acontecimentos do seu cotidiano e, pouco a pouco, íamos construindo vínculos psíquicos e afetivos com as vivências de sua história de vida. No final do terceiro ano da análise, Miriam chega à sessão e relata um sonho que tivera na noite anterior. Sonho: ela estava no hospital e olhava para uma criança acamada que parecia estar em coma. Nesse instante, acordou muito angustiada, pois achava que a criança no sonho era ela mesma. Em suas associações, dizia que, no sonho, o medo que sentira de poder entrar em coma e morrer era ainda mais angustiante do que o medo de pessoas mortas. Esse sonho regressivo foi material clínico de várias sessões, nas quais relatou muitas lembranças e dados de conversas com sua mãe e sua tia mostravam que, desde a tenra infância, sua história de vida foi permeada por situações de intrusão e abuso. A mãe da paciente era dependente química e fazia uso abusivo de bebidas alcoólicas por dias seguidos, intercalados por períodos de sobriedade, o que a fazia ser relapsa nos cuidados com a bebê. Aos oito meses, a paciente teve uma complicação respiratória e precisou de uma internação hospitalar por quase vinte dias. No retorno do hospital, sua mãe voltara a beber compulsivamente e uma tia levou Mirian para morar com ela por três ou quatro meses. Seus pais se separaram quando a paciente tinha dois anos. Naquele momento, a mãe disse-lhe que seu pai havia falecido e não voltaria mais. Todavia, por volta de seus oito anos, a caminho da escola, viu seu pai vindo em sua direção. Miriam assustou-se; o pai, que acreditava falecido, estava ali a sua frente. Em sua onipotência infantil, o que via era um defunto. O susto desorganizou-a; teve uma complicação respiratória aguda que a levou a ficar internada no Hospital das Clínicas por aproximadamente seis meses sem que os médicos chegassem a um diagnóstico clínico. De sua meninice, Mirian traz recordações traumáticas de tentativas de abuso sexual de seu pai contra si e das constantes agressões físicas à sua mãe. O pai saíra e reaparecera em sua vida de forma inesperada e abusiva. Aos treze anos de idade, seu pai veio a falecer, sua mãe foi internada em clínica de reabilitação e Mirian foi morar na casa de uma patroa de sua mãe. Como diz Winnicott, a falha persistente da assistência ambiental pode levar à interrupção do continuar a ser do bebê, levando-o a um estado confusional próprio da desintegração do ego e arranjos defensivos se organizam frente ao medo do retorno da agonia impensável. Pondé, D.Z.F. (2015a) ao estudar o medo na obra winnicottiana, assinala:
Entre os vários desdobramentos ocasionados por eventos traumáticos na etapa em que o bebê se encontra ainda a caminho da constituição de sua própria identidade, estão aqueles circunscritos à fenomenologia do medo. Elencam-se o medo da loucura (o medo do colapso), da morte, do vazio, da desintegração e a manifestação sindrômica do pânico, que assinalam os limites impostos na qualidade de viver sob ameaça no indivíduo (apudPONDÉ, 2018 p. 63).
Em outras palavras, Pondé (2018) assinala ainda que o medo da morte decorre do sentido de aniquilamento pertencente à morte psíquica pelo padrão intrusivo do ambiente. Já nos arranjos defensivos frente ao pânico estão expressos os impactos causados pelos acontecimentos imprevisíveis no continuar a ser do bebê, relacionados ao pior tipo de maternagem, a tantalizante41. Os modos da mãe se alternam, sem atribuir qualquer sentido, resultando em desorientações das experiências entre o que é vivido e o que pode ser esperado pelo bebê. O medo da loucura, ou medo do colapso, subjaz à ameaça de repetição da loucura anteriormente vivenciada diante da insuficiência dos cuidados maternos. Winnicott afirma o colapso como um fracasso de uma organização de defesa e assinala que, nos psicóticos, é um colapso do estabelecimento do si-mesma unitário. Mais ainda, diz o autor, “[...] o medo clínico do colapso é o medo de um colapso que já foi experienciado. Ele é um medo da agonia original que provocou a organização de defesa que o paciente apresenta como síndrome da doença” (1963/11994, p. 72). No caso de Mirian, podemos assinalar, tal como denominado por ela mesma, a predominância do medo da morte sob as ameaças de aniquilamento. Todavia, em um olhar mais detalhado sobre o tipo de falha persistente de seu ambiente, percebe-se que é um também característico do fracasso provocado por uma mãe tantalizante, em função da alternância de estados de sobriedade e alcoolismo de sua mãe. Ao longo de sua tenra infância e meninice, Mirian foi submetida a vários tipos de falhas ambientais, que foram exigindo novos arranjos defensivos. Motivo este que nos faz entender que, no caso dessa paciente, seria mais correto dizer que a falha original corresponde ao medo da morte, mas que novos arranjos defensivos foram organizados frente aos modos tantalizantes de sua mãe, bem como diante das intrusões abusivas de seu pai. Assim, como ocorre no colapso, parafraseando Winnicott, os arranjos defensivos tratam de um acontecimento que o indivíduo carrega consigo, escondido no inconsciente (1963/1994). Aqui, o inconsciente quer dizer, tão somente, que a integração do ego não é capaz de abranger esse algo. Em termos da clínica, o autor explicita esse algo dizendo que “A experiência original da agonia primitiva não pode cair no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente de agora (presumindo a função de apoio do ego auxiliar da mãe, ou analista)” (1963/1994, p. 73). Ou seja, abrangê-la na sua experiência atual, ressignificando-a, ao mesmo tempo, como uma experiência passada. Em direção à saúde, Mirian foi colecionando doses de cuidados, tais como nas internações hospitalares, ao longo de sua infância e meninice, que funcionaram como um espaço para afastá-la de “[...] um ambiente atormentador, que é talvez a pior coisa que pode acontecer a um bebê humano” (Winnicott 1963/1994, p. 72). No hospital, recebia cuidados físicos, em uma rotina organizada, que foram de suma importância para sua sobrevivência e sanidade mental. Assim como pôde usufruir dos cuidados recebidos, ainda bebê, ao morar em casa de sua tia, bem como na casa da patroa de sua mãe, quando já contava com treze anos de idade. Nas crises desorganizadoras em que ficava acamada durante dois ou três dias, embora muito angustiantes, vivenciava os cuidados recebidos de seus filhos. Em termos da função do sonho regressivo na integração da personalidade, o sonho de Mirian aponta para o trabalho de elaboração imaginativa na integração da situação traumatizante original. Com ele e nele, a paciente aproximou-se da agonia impensável, agora identificada e localizada no estado de coma, quase morte. Mas foi o estado de relaxamento alcançado pela confiabilidade na ambiência analítica que favoreceu a possibilidade de que a paciente viesse a sonhá-lo. Somado a isto, esse sonho procedeu das experiências vivenciadas no espaço da regressão à dependência, no contexto do setting analítico, a partir do acolhimento, de sustentação e da vinculação psíquica e afetiva das vivências do seu cotidiano e do contexto analítico às lembranças de sua história de vida. Por fim, o manejo de seu brincar, quase sensório-motor inicial em sua dramatização, ajudou no estabelecimento da confiabilidade no contexto analítico, ponto fundamental para que a análise viesse a se realizar. Em termos do manejo clínico da regressão à dependência, podemos dizer que a analista, tal como a mãe para o bebê, tinha um lugar já determinado na psique da paciente. Na saúde, é o lugar de quem lhe favorece a integração. Na crise, é o lugar de quem acolhe, cuida e sustenta.
Conclusão
O manejo clínico do estado de repouso, no alcance do brincar criativo, exige uma sequência de especificidades: o estado de relaxamento do paciente em condições de confiança, baseada na experiência, a atividade criativa, física e mental, manifestada na brincadeira, e a somação dessas experiências formando a base do sentimento do eu (Winnicott (1971r/1975). Na clínica, o uso analítico dos sonhos e o manejo do brincar relativos às fases iniciais do desenvolvimento, requerem do analista uma compreensão das especificidades das tarefas do amadurecimento e da condução do manejo clínico da regressão à dependência. O ponto alto do contexto analítico, segundo Winnicott, está em propiciar oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios, que constituem a matéria-prima do brincar e do sonhar.