Introdução
A dissolução de barreiras físicas, sociais, econômicas e culturais promovida pela globalização e desenvolvimento tecnológico intensificou muito rapidamente o surgimento de questões relacionadas ao tipo e qualidade do cuidado ofertado em saúde (Silva et al., 2021). O intercâmbio permanente entre culturas distintas tem atuado como fator propulsor de mudanças tanto no conceito de saúde quanto em suas práticas (Arias-Murcia & Penna, 2021; Garneau & Pepin, 2015). Estudos acerca das condições de saúde, vulnerabilidade e limitações à acessibilidade aos serviços assistenciais de cuidado de populações culturalmente diversas têm demonstrado que a baixa capacitação profissional para o reconhecimento e manejo das peculiaridades destes grupos é responsável por sua incipiente resolutividade e desfechos terapêuticos não satisfatórios, demandando formação adequada do profissionais para lidar com essas diversidades (Oliveira et al., 2023). No que tange à saúde mental, a compreensão do background cultural dos pacientes é passaporte que confere acesso às suas experiências subjetivas e à linguagem particular do seu sofrimento, influenciando, inclusive, os percursos que estes indivíduos estabelecem em busca de ajuda (Lemos, 2019). Este tipo de constatação traz à tona discussões acerca do etnocentrismo em Psicologia ao questionar a suposta universalidade de suas teorias, sugerindo se tratar de um enviesamento etnocêntrico que faz subalternas outras formas de conhecimento, de subjetividade, conservando relações sociais de dominação, e que necessita ser ultrapassado por meio da inclusão de uma perspectiva descentrada, ou seja, que inclua outras visões de mundo (Dimenstein et al., 2021). Abriu-se, dessa maneira, amplo campo de pesquisas e desenvolvimento teórico-prático nesta interface psicologia e cultura, tornando-a diversa conceitualmente, metodologicamente e em termos de objeto de estudo. Conforme sugerido por Berry et al. (1997), pode-se compreender a área em três vertentes: a psicologia cultural, dedicada ao estudo aprofundado de uma cultura; a psicologia transcultural, que compara as diversas culturas; e a psicologia intercultural, que se ocupa de sociedades que convivem com a diversidade cultural internamente. No seio deste movimento, surge o conceito de competência cultural como resultado de uma preocupação em atender de modo eficiente as necessidades de saúde dos indivíduos levando em consideração seus contextos culturais de referência, bem como em diminuir as disparidades no acesso a um cuidado de qualidade ocasionados por segregações da mesma natureza (Damasceno & Silva, 2018). A competência cultural é, portanto, entendida como um conjunto de processos envolvendo o conhecimento, a conscientização, a sensibilidade e as habilidades que o profissional de saúde deve ser detentor para melhor atender seus pacientes (Salinas-Oñate et al., 2022). Apesar da existência de alguns modelos teóricos sobre as competências culturais, em saúde mental, o modelo tripartido, organizado em torno de três eixos fundamentais - Consciência Cultural, Conhecimento cultural e Habilidades culturais - tem especial relevância (Manenti et al., 2022). Diferenciando os três eixos fundamentais citados, temos que a consciência Cultural diz respeito à compreensão que o profissional de saúde deve ter acerca de sua própria origem cultural, valores, atitudes e preconceitos relativos às pessoas de outras culturas, que podem gerar vieses no diagnóstico e tratamento ofertados, além de influenciar processos psicológicos de seus pacientes. Já o conhecimento cultural refere-se à necessidade de o profissional buscar informações sobre experiências de vida, herança cultural e histórico de seus pacientes culturalmente diferentes, compreendendo como estes elementos podem afetar a formação da personalidade, escolhas, manifestação de distúrbios psicológicos, o tipo de ajuda que procuram e a adequação ou inadequação das abordagens de aconselhamento. E, por fim, as habilidades culturais que refletem a capacidade do profissional de colocar em prática sua consciência e conhecimento cultural no relacionamento com o paciente, sendo apto a comunicar-se de modo apropriado, bem como de demonstrar eficiência na integração dos elementos culturais no diagnóstico e proposta terapêutica (Sue et al., 1992). Dentre os aspectos que se configuram como parte da diversidade cultural, crenças e práticas religiosas/espirituais despontam significativamente, constituindo, em muitos casos, pilar estruturante da dinâmica psicológica das pessoas, ou seja, de seu modo de ser e estar no mundo (Vieten & Lukoff, 2021). Ademais, a religiosidade/espiritualidade (R/E) pode ser o referencial de muitos pacientes para dar sentido, interpretar e processar informações do mundo à sua volta, sobretudo em momentos críticos da vida, quando confrontados com situações complexas, a exemplo de adoecimentos, perdas, calamidades coletivas, eventos imprevisíveis e de difícil assimilação. Em função desse caráter elementar, quando a R/E é agregada à prática clínica pelo psicólogo, constata-se uma maior aderência do paciente ao tratamento, bem como melhores resultados nas intervenções realizadas (Rossato et al., 2021). O impacto do maior uso de crenças religiosas/espirituais é notoriamente constatado através de pesquisas em saúde mental, revelando, em pessoas pertencentes a este grupo populacional, menor prevalência de transtornos como depressão, ansiedade, abuso de substancias, delinquência e tentativas de suicídio. Estudos também indicam maiores taxas de remissão em doenças psiquiátricas e efeitos benéficos em medidas de bem-estar, como autoestima, esperança, felicidade e otimismo nestes sujeitos, além de evidenciarem a presença de maior cuidado com a saúde e adoção de comportamentos mais saudáveis (Domingues et al., 2020). O contraponto a este cenário de correlações positivas entre R/E e saúde também tem marcado presença em discussões do campo apontando possíveis vieses metodológicos nas pesquisas do mainstream, que poderiam transmitir uma imagem não totalmente fidedigna da realidade (Maraldi, 2020a). Apesar do panorama ainda conflituoso, Maraldi (2020b) propõe pensar a espiritualidade para além de seus possíveis benefícios ou prejuízos à saúde, numa perspectiva de entendimento mais aprofundada, que se aproxima mais do que tradições religiosas e algumas vertentes filosóficas se ocupam, isto é, como um processo potencialmente propulsor de mudanças no modo como o indivíduo percebe a si mesmo e ao mundo. Assim sendo, o autor sugere a adoção do construto Individuação ao invés de “bem-estar” ao pensarmos nos efeitos da espiritualidade. O termo, cunhado pelo notável psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 - 1961), diz respeito a um processo de auto realização do si mesmo ou um impulso direcionado à realização da personalidade em sua totalidade, o que, em outras palavras, significa o desenvolvimento de potenciais latentes do self. Levando em consideração a ampla gama de discussões apresentadas até aqui e a notória participação da R/E na vida de expressiva parcela da comunidade mundial, torna-se evidente a necessidade de que as práticas clínicas em saúde mental incorporem a temática. À vista disso, Fleury e Abdo (2019) sustentam ser imprescindível que os profissionais desenvolvam competência cultural com o intuito de compreenderem o sistema de referência cultural dos pacientes. Seguindo esta mesma linha, conforme ensinam Vieten e Lukoff (2021), o psicólogo deve ser dotado de Competências espirituais e religiosas, assim como outras formas de competências multiculturais, que contemplem características como a autoconsciência do próprio sistema de valores religioso/espiritual ou não-religioso/não-espiritual, a capacidade de abordar esse tema na clínica e em pesquisas, bem como estar disposto ao trabalho em parceria com líderes religiosos. Posto isto, a presente revisão integrativa de literatura pretende investigar o que as pesquisas apresentam sobre o papel da religiosidade/espiritualidade (R/E) enquanto competência cultural na prática clínica do psicólogo.
Metodologia
Trata-se de uma Revisão Integrativa da Literatura, método que reúne, avalia criticamente e sintetiza os conhecimentos até então produzidos acerca de um problema. Seus resultados podem apontar fragilidades do campo, bem como subsidiar a proposição de intervenções e o desenvolvimento de novas investigações (Mendes et al., 2008). Neste caso, objetivou-se identificar o papel da religiosidade/espiritualidade enquanto competência cultural na prática clínica do psicólogo e, para tanto, foram seguidas as etapas metodológicas preconizadas para a Revisão Integrativa, elaborou-se a questão de pesquisa, foram definidos os critérios de inclusão e exclusão dos estudos, definição das categorias de análise do material a ser coletado, busca dos estudos em bases de dados virtuais, avaliação dos estudos incluídos, interpretação dos resultados obtidos e síntese do material (Mendes et al. 2008). Utilizou-se a estratégia PICo para pesquisas não-clínicas (acrônimo para Problema, Interesse e Contexto) visando a elaboração da questão de pesquisa, o que facilitou a identificação dos descritores e, consequentemente, a localização dos estudos nas bases de dados (Stern et al., 2014). Assim, a questão de pesquisa delimitada foi: Qual o papel da R/E enquanto competência cultural na prática clínica do Psicólogo? Nela, o primeiro elemento da estratégia (P) consiste no problema do papel da R/E; o segundo (I), se trata do fenômeno de interesse que são as competências culturais; e o terceiro e último elemento (Co) o contexto que se refere à prática clínica do psicólogo. Para a elaboração da estratégia de busca foram extraídos os principais termos do problema de pesquisa - religiosidade, espiritualidade, competências culturais e prática clínica do psicólogo -, em seguida foi feita a conversão destes em vocabulário controlado e, por fim, a busca nas bases de dados utilizando os operadores boleanos, conforme sistematizado por Araújo (2020). Os descritores controlados foram selecionados nos Descritores em Ciência da Saúde (DeCS) da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), MeSH Database e PsycINFO (Term Finder). O levantamento foi realizado por meio de várias buscas nas bases de dados bibliográficas BVS e PsycINFO nos meses de novembro e dezembro de 2021, optando-se pela não delimitação de marco temporal por se tratar de tema recente e de pouca produção literária. O algoritmo para a estratégia de busca incluiu o uso dos descritores associados por operadores boleanos conforme estratégias descritas a seguir.
Na PsycINFO foram realizadas duas buscas com estratégias distintas: primeiramente com os termos (spirituality AND psychotherapy) AND (“cultural competency” OR “culturally sensitive”) resultando em 44 publicações, das quais apenas 13 estavam disponíveis para acesso e apenas 4 atendiam aos critérios de inclusão; e em seguida (spirituality OR “Psychology and Religion”) AND (“cultural competency”) AND (“psychotherapy”) AND Index Term: spirituality AND Index Term: psychotherapy AND Index Term: culturally sensitive, que resultou em 22 publicações, das quais apenas 7 estavam disponíveis para acesso e 6 atendiam aos critérios de inclusão. Por fim, na BVS foi realizada a busca pelos termos (“spirituality”) OR “psychology and religion”) AND (“cultural competency”) AND (“psychotherapy”) AND (fulltext:(“1”)), resultando em 13 artigos completos: 12 da MEDLINE e 1 da IBECS. Destes, 6 atendiam aos critérios de inclusão, todos da MEDLINE.
Os critérios de inclusão definidos foram: a) artigo completo; b) disponibilizado em língua portuguesa, inglesa ou espanhola; c) ter a religiosidade/espiritualidade nas competências culturais como tema central ou parcial do estudo. Como critérios de exclusão têm-se: a) texto incompleto, duplicados, resumos e pré-prints; b) não apresentar a religiosidade/espiritualidade no contexto das competências culturais. Para evitar a duplicação dos dados, estes foram cruzados e, por fim, o levantamento dos temas tratados no material selecionado foi realizado em três etapas: pré-análise, exploração do material e sistematização dos núcleos temáticos, após as quais realizou-se a síntese do material.
Resultados
Após a aplicação dos critérios de seleção supracitados, foram incluídos um total de 16 artigos, todos em inglês, 10 da base de dados PsycINFO e 6 da Medline, dos quais 12 são originários dos Estados Unidos, 3 de Porto Rico e 1 das Filipinas. O período das produções variou de 2001 a 2019, em média um artigo por ano. Quanto aos tipos de estudo, 9 se tratavam de abordagens teóricas, 5 de estudos de caso e apenas dois de estudos experimentais de ensaio clínico.
No Quadro 1 a seguir, pode ser observada a síntese e distribuição dos artigos levantados, analisados a partir das categorias: ano de produção, autores, base de dados de onde foi extraído, revista na qual foi publicado, país de origem, tipo de estudo, objetivo do artigo e os resultados que apresentam sobre o papel da R/E enquanto competência cultural na prática clínica do psicólogo.
Quadro 1 Principais resultados da pesquisa que atenderam aos critérios de inclusão
PRIMEIRA BUSCA NA BASE DE DADOS PSYCINFO | |||
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Autores/Ano/Base/Fonte/País | Tipo de Estudo | Objetivo | Resultados sobre a R/E na prática clínica |
Sperry, L./2014/PsycINFO/Spirituality in Clinical Practice/E.U.A. | Ensaio teórico | Descrever a sensibilidade cultural e suas implicações para uma prática clínica, de ensino, supervisão e pesquisa éticas. | A sensibilidade cultural é a capacidade para responder de maneira respeitosa, empática e acolhedora a alguém de uma cultura diferente. Sua ausência pode gerar faltas éticas e levar à negligência. A sensibilidade em questões religiosas e espirituais pode ser bastante sutil e é um fenômeno relativamente novo para muitos acadêmicos, profissionais e pesquisadores. |
Bartoli, E./2007/PsycINFO/Psychotherapy: Theory, Research, Practice, Training/E.U.A. | Ensaio teórico | Investigar a resistência dos psicoterapeutas em abordar questões religiosas e espirituais em seus programas acadêmicos e práticas clínicas, propor formas aprimorar suas competências religiosas e espirituais. | O conforto do cliente em expressar seus valores e identidade está em parte relacionado a reações contratransferenciais do terapeuta à sua história e visão de mundo, por isso, treinamentos para a inclusão da R/E na prática clínica devem contemplar o desenvolvimento da autoconsciência do profissional sobre o assunto. A consciência refere-se a tornar-se consciente de seus próprios pontos de vista, preconceitos e perspectivas sobre R/E, sem o quê ensinar conhecimentos e habilidades pode ser ineficaz. |
Abernethy, et al./2006/ PsycINFO/Cultural Diversity and Ethnic Minority Psychology/E.U.A. | Discussão de Caso | Discutir a aplicação do modelo diferencial de competência cultural de Sue. | A aplicação do modelo diferencial de competência cultural de Sue foi utilizado para demonstrar como considerar fatores culturais na psicoterapia de modo competente. Alguns elementos-chave como limites de papel do psicoterapeuta, setting terapêutico religioso ou secular, questões relacionadas a orientação espiritual do terapeuta e seu trabalho com o sistema de crenças do paciente precisam ser observados em uma prática culturalmente competente. Inicialmente o psicoterapeuta testa sua hipótese acerca da importância da espiritualidade para o paciente, em seguida ajusta essa informação para o contexto singular do caso e, por fim, reconhece seu próprio viés adaptando sua intervenção culturalmente e linguisticamente de modo congruente. |
Castro-Blanco, D. R./2005/PsycINFO/Psychotherapy: Theory, Research, Practice, Training/Porto Rico | Estudo de Caso | Discutir as intervenções em um caso atendido por Martínez-Taboas envolvendo as crenças religiosas/espirituais de uma paciente. | Castro-Blanco destaca a importância da sensibilidade cultural às crenças do paciente para a prática clínica, todavia levanta importantes questões acerca da postura do psicoterapeuta em legitimar ostensivamente o sistema de crenças do cliente. Segundo ele, distorções no processamento e interpretação de eventos do caso são oportunidades para intervenções cognitivas conscientes, acessando suas crenças fundamentais. Embora reconhecer a crença deva ser validado pelo terapeuta, concordar com a mesma e agir de acordo com ela, reforçando-a, ao invés de desafiar sua funcionalidade é algo a ser questionado. |
Martínez-Taboas, A./2005a/PsycINFO/Psychotherapy: Theory, Research, Practice, Training/Porto Rico | Estudo de Caso | Ilustrar como práticas culturais e crenças podem transformar desordens dissociativas e somatoformes. | O autor defende ser imprescindível compreender o sistema de crenças espirituais do paciente a fim de poder trabalhar efetivamente com o mesmo. Os profissionais de saúde mental devem desenvolver aproximações sensíveis e em sintonia com a compreensão dos pacientes acerca da natureza de sua doença. Para tanto é necessário que o psicoterapeuta adquira familiaridade com a temática. Uma psicoterapia culturalmente sensível deve abarcar adequadas seleções de técnicas que coincidam com o estilo e crenças culturais do paciente e, por fim, estabelecer um relacionamento terapêutico aberto e responsivo aos seus medos, necessidades e conflitos espirituais. |
Baez, A. & Hernandez, D./2001/PsycINFO/American Journal of Orthopsychiatry/E.U.A. | Análise Documental | Auxiliar profissionais de saúde mental não latinos a alcançarem maior responsividade cultural com seus pacientes. | Ofertar serviços de saúde mental culturalmente sensíveis e inclusivos depende em grande parte do nível de congruência nas visões sobre adoecimento mental e seu tratamento entre cliente e psicoterapeuta, por isso o profissional deve adquirir suficiente compreensão do impacto das crenças espirituais no conceito de adoecimento mental do cliente. Uma postura respeitosa do terapeuta com relação às crenças de seus pacientes deve incluir: disposição para explorar menções às crenças espirituais alternativas, manifestação de interesse no resultado de qualquer consulta ou intervenção complementar do paciente, tratar de modo digno o praticante espiritual consultado pelo cliente e acolher as contribuições terapêuticas de fontes espirituais. A literatura descreve três escolas de pensamento acerca da congruência entre a prática clínica e a cultura: 1- abordagens terapêuticas devem ser modificadas tanto quanto possível para ter uma semelhança isomórfica ao sistema de crenças do cliente, 2- abordagens terapêuticas devem ser não-isomórficas às crenças dos clientes, devendo os últimos se ajustarem à abordagem e 3- abordagens contemporâneas sugerem um ajuste moderado da psicoterapia, dando espaço para a inclusão de conceitos e valores culturais. Os autores também sugerem que psicoterapeutas cientes de suas próprias espiritualidades e dos fundamentos espirituais de seus estilos terapêuticos são mais capazes de identificar pontos de convergência e dissonância espiritual entre eles próprios e seus clientes, reduzindo assim a possibilidade que tais fundamentos prejudiquem o tratamento. |
SEGUNDA BUSCA NA BASE DE DADOS PSYCINFO | |||
Sperry, L./2015/PsycINFO/Spirituality in Clinical Practice/E.U.A. | Ensaio Teórico | Descrever como as competências clínicas, ética e cultural estão inter-relacionadas em uma prática psicoterápica espiritualmente orientada efetiva. | Quando os profissionais de saúde mental oferecem tratamento altamente eficaz (competência clínica) e respeitam seus clientes (competência cultural), demonstram competência ética. Mais especificamente, aqueles que praticam psicoterapia altamente eficaz sensível a questões espirituais rotineiramente - intencionalmente ou intuitivamente - reconhecem e respondem a considerações clínicas, éticas e culturais relevantes. Isso significa que a prática de psicoterapia espiritualmente orientada eficaz não é possível sem todas as três sensibilidades e competências. |
Goldston, et al./2008/PsycINFO/American Psychologist/E.U.A. | Discussão Teórica | Examinar as diferenças étnicas e explorar as implicações da cultura para o desenvolvimento da prevenção e tratamento do suicídio. | Pessoas de diferentes culturas, podem não buscar ajuda ou respeitar os esforços de intervenção se não perceberem que sua fé ou crenças serão respeitadas. Muitos indivíduos ou famílias, mesmo quando procuram serviços formais de saúde mental, também buscam atendimento de curandeiros ou de suas comunidades de fé. Intervenções eficazes em diferentes contextos culturais, devem ser flexíveis o suficiente para respeitar a fé de uma cultura, suas tradições e sistemas de crenças. Por tanto, parcerias com comunidades religiosas podem fornecer muitas oportunidades para a prevenção do suicídio através de atividades dentro de um contexto culturalmente aceitável. |
Martínez-Taboas, A./2005b/PsycINFO/Psychotherapy: Theory, Research, Practice, Training/E.U.A. | Discussão de Caso | Discutir a crítica de Castro-Blanco (2005) ao seu manejo clínico em um caso envolvendo crenças espirituais. | O autor defende que para uma boa aliança terapêutica se estabelecer, três aspectos são importantes: acordo sobre tarefas, acordo sobre objetivos e sintonia, por isso uma compreensão empática das crenças do paciente é fundamental, integrando-as com práticas psicoterapêuticas empiricamente baseadas, visando promover mudanças terapêuticas dentro do contexto cognitivo e de convicções preexistentes. |
Parks, F. M./2003/PsycINFO/Clinical Psychology: Science and Practice/E.U.A. | Ensaio Teórico | Examinar as crenças populares e as práticas de cura na cultura afro-americana a partir de perspectivas teóricas, clínicas e práticas. | A cosmovisão cultural é uma variável interveniente importante no aconselhamento e na psicoterapia. As crenças populares e as práticas de cura fornecem estratégias de enfrentamento que são particularmente importantes para a sobrevivência psicológica. Imagens e metáforas são intervenções poderosas usadas para trazer à consciência sentimentos conflitantes dentro de um sistema conceitual cultural específico. Em uma pesquisa sobre abordagens transculturais, quatro fatores comuns de cura foram identificados: o relacionamento terapêutico, uma visão de mundo compartilhada, as expectativas do cliente para a mudança e um ritual ou intervenção para aliviar a angústia do cliente. Os clínicos, a partir de uma abordagem narrativa, devem considerar a espiritualidade, os rituais, o poder das palavras e sonhos como fatores representantes do sistema de crença do cliente. A colaboração terapeuta-cliente deve capacitar os clientes com uma experiência que aumente seus sentimentos de poder pessoal. Os clínicos devem considerar as potenciais implicações no tratamento quando sua falta de conhecimento de visões de mundo forma barreiras para estabelecer confiança e compreensão em um relacionamento terapêutico, também devem considerar a implicação da escolha da intervenção clínica, que pode desconsiderar, interpretar erroneamente ou deixar de incorporar realidades culturais e recursos pessoais que capacitem os clientes. Os terapeutas devem estar cientes da apreensão, ansiedade, medo e desconfiança dos clientes quando surgem questões culturais como resultado da possibilidade de serem mal compreendidos ou rejeitados, devem ouvir as histórias dos clientes identificando temas baseados em suposições culturais, e não em deficiências pessoais, também devem ser cautelosos para não simplificar demais os problemas dos clientes, atribuindo apenas suposições culturais como explicação e devem adquirir competência cultural participando de seminários, treinamento, leitura ou consultando sobre visões de mundo, crenças e costumes culturais desconhecidos. |
Busca única na Biblioteca Virtual em Saúde | |||
Maximo, S. I./2019/MEDLINE/J Pastoral Care Counsel/Filipinas | Revisão de Escopo | Mapear conceitos-chave sobre considerações éticas que conselheiros e psicoterapeutas devem estar atentos ao integrarem conceitos espirituais ou religiosos em sua prática. | Conselheiros e Psicoterapeutas devem buscar desenvolvimento profissional (educação continuada, supervisão, consultoria) para aumentar sua competência na abordagem da religião e da espiritualidade de seus clientes, bem como para melhor compreender o significado pessoal sobre o tema e estabelecer um relacionamento terapêutico adequado. |
Direito à autonomia e autodeterminação: O engajamento nesses temas dependerá altamente das necessidades dos clientes, respeitando suas preferências, necessidades e valores. Um aspecto ético importante é considerar que imposições de valores do conselheiro não minem a liberdade de escolha do cliente. | |||
Sensibilidade Cultural: Sensibilidade cultural e religiosa entre os conselheiros requer sensatez nos seguintes exemplos: revelação espiritual, ao familiarizar-se com as virtudes e tradições espirituais entre religiões, ao tratar da aculturação e ao integrar crenças religiosas/espirituais para ajudar os clientes a lidar com problemas de saúde mental. Há desafios encontrados nesta área de sensibilidade cultural ou religiosa, por exemplo: conselheiros podem se sentir desconfortáveis quando suas crenças, valores, e moral conflitam com seus clientes, e quando eles observam que as questões religiosas e espirituais são usadas como desculpa para comportamentos passivos em seus clientes. Eles também podem experimentar dilemas como pontos de vista contrastantes, como quando há incongruência entre religião e orientação e práticas sexuais de seus clientes. | |||
Questões de Competência do Praticante: Os clínicos encontram-se menos familiarizados com os fenômenos espirituais e se percebem menos competentes espiritualmente do que culturalmente competentes. | |||
Diretrizes Recomendadas para Prática Ética: Quando os conselheiros adaptam o uso de técnicas religiosas, abrem um diálogo criativo por meio do atendimento às diferenças espirituais e religiosas, sendo sensíveis às preocupações e expectativas dos clientes, assim as alianças de trabalho são fortalecidas e os resultados melhoram. Recomenda-se que os conselheiros usem uma abordagem crítica de pensamento enquanto tentam pesar seus valores profissionais e religiosos. Alguns modelos foram sugeridos para fornecer uma estrutura de orientação aos psicoterapeutas na aliança entre espiritualidade e prática clínica como: o biopsicossocial - modelo espiritual, abordagem centrada na pessoa, e terapia narrativa. A TCC espiritualmente modificada usa protocolos com as cosmovisões dos clientes. Ao tratar de questões espirituais e religiosas, os códigos e princípios estipulados em organizações profissionais poderiam diminuir a probabilidade de que violações éticas aconteçam na prática. Procedimentos para lidar com o consentimento informado, múltiplo/duplo relacionamentos, consultas, colaborações e documentações podem ser entendidas à luz destes códigos de ética profissional, por iss é importante que conselheiros e psicoterapeutas estejam cientes e os consultem regularmente. | |||
Magaldi, D. & Trub, L./2018/MEDLINE/Psychother Res/E.U.A. | Estudo de Teoria Fundamentada em Dados | Discutir o impacto da auto revelação da identidade espiritual/religiosa/não religiosa no processo de psicoterapia. | Apesar de não ser imprescindível, a formação religiosa/espiritual compartilhada entre cliente e terapeuta pode estabelecer um lugar comum com maior abertura para a construção de uma relação de confiança. |
Davis, et al./2014/MEDLINE/Journal of obesity/E.U.A. | Estudo Experimental tipo Ensaio Clínico | Descrever as características de uma amostra de comunidade urbana atraída por uma intervenção para perda de peso baseada em estratégias espiritualmente orientadas, usadas para recrutar a amostra. | A incorporação de dimensões espirituais no tratamento da obesidade pode aumentar a adesão em coortes que são tradicionalmente difíceis de envolver, serve de gancho para a ênfase na saúde mental, assim como também possui maiores chances de resultar em mudanças significativas no peso e reduções nos sintomas de distúrbios alimentares. |
Allmon, A. L./2013/MEDLINE/Journal of religion and health/E.U.A. | Análise Documental | Investigar a evolução da inclusão da religião no DSM e suas implicações para diagnósticos incorretos devido à falta de consciência da religião/espiritualidade como um componente cultural. | Os psicólogos que avaliam e incorporam adequadamente como fator cultural as crenças religiosas/espirituais dos clientes possuem informações adicionais e compreendem melhor seus problemas atuais. |
Duarté-Vélez et al./2010/MEDLINE/J Clin Psychol/Porto Rico | Estudo de Caso/Ensaio Clínico Randomizado | Ilustrar como uma Terapia Cognitivo Comportamental culturalmente adaptada pode manter a fidelidade ao protocolo, permitindo uma flexibilidade considerável na abordagem dos valores, preferências e contextos do paciente. | A inclusão de aspectos culturais em psicoterapia, dos quais faz parte a R/E, traz consigo implicações significativas à prática clínica. A psicoterapia deve ser flexível o suficiente para incluir os valores do paciente, suas preferências e contexto, sem desrespeitar seus protocolos. A questão central é uma abordagem clínica ética, na qual o terapeuta tenha consciência e respeito pela cultura, diferenças individuais, incluindo aspectos relacionados à identidade de gênero, etnia, religião e orientação sexual. Neste caso, o conflito entre religiosidade e gênero precisou ser abordado em um ambiente confiável, de modo que o paciente pudesse se expressar e construir um referencial próprio sobre a situação. |
Cervantes, J. M./2010/MEDLINE/Psychotherapy: Theory, Research, Practice, Training/E.U.A. | Estudo de Caso | Demonstrar uma nova abordagem conceitual e psicoterapêutica com clientes Latinos/as, especificamente os mexicanos de origem americana e mexicana, argumentado que um sistema de crença psicoespiritual está na base dessas populações, e que uma estrutura culturalmente consistente de um sistema deve abordar apropriadamente teoria, habilidades e prática. | A R/E é um elemento cultural que desafia a prática clínica do psicólogo, especialmente pela necessidade de validação empírica dos métodos de tratamento. As implicações para a prática envolvem um modelo de tratamento que abrigue histórias de vida, verdades percebidas a partir de verdades pessoais/familiares, orações, rituais e cerimônias. A espiritualidade é um elemento crítico deste trabalho. O terapeuta é desafiado a explorar sua própria história e crenças sobre a diversidade cultural. Há uma aproximação entre a postura do terapeuta e do curandeiro num paradigma de cura multidimensional que integra mente, corpo, emoções, alma e espírito. O psicoterapeuta precisa estar aberto a aprender com o cliente, pois esse aprendizado mútuo forma uma base de igualdade e respeito pelas posições de vida de cada um. O conceito de curandeiro ferido, encontrado tanto na literatura xamânica quanto na junguiana, é consistente com a própria consciência do terapeuta da ferida emocional e espiritual que surge do desenvolvimento do espaço sagrado/cura dentro do relacionamento terapêutico. A abordagem propõe o desenvolvimento psicoespiritual do terapeuta como condição ao ambiente curativo do cliente. É importante reconhecer as semelhanças entre a maioria das formas de terapia e as tradições de cura. |
Nota-se que as produções atendem a objetivos diversos, como apresentar mapeamentos conceituais importantes, orientar a prática clínica do psicólogo, destacar elementos do terapeuta que interferem em seu manejo da R/E, caracterizar a R/E de populações culturalmente específicas, dando sugestões de intervenções psicoterapêuticas direcionadas às mesmas, conscientizar psicólogos acerca dos aspectos éticos, práticos e teóricos da integração ou não das competências religiosas/espirituais na clínica, sugerir a possibilidade de flexibilização de abordagens teóricas mantendo seus alicerces para incluir o manejo clínico da R/E, propor novas abordagens conceituais em psicoterapia para tratar da R/E de grupos específicos, abordar as resistências à inclusão das competências espirituais/religiosas na formação e prática do psicólogo, propor modelos de treinamento em competências espirituais/religiosas, discutir a aplicabilidade de modelos psicoterapêuticos, discutir intervenções, competências, bem como as diferenças culturais e suas repercussões à prática clínica.
No que diz respeito às contribuições das publicações acerca do papel da R/E enquanto competência cultural na prática clínica do psicólogo foram identificados quatro eixos temáticos que serão discutidos a seguir: 1-Modelos de abordagens psicoterapêuticas que incluam competências religiosas/espirituais, 2-Características dos psicólogo competente religiosa/espiritualmente, 3-Aspectos éticos da inclusão da Religiosidade/espiritualidade na prática clínica do psicólogo e 4-Propostas de modelos formativos em competências R/E para o psicólogo.
Discussão
1-Modelos de abordagens psicoterapêuticas que incluam competências religiosas/espirituais
A literatura selecionada fornece importante retrato do atual cenário de discussões científicas acerca dos rearranjos em psicoterapia e aconselhamento psicológico suscitados pela constatação da necessidade de abordar a R/E na prática clínica. Em síntese, pode-se dizer que há três grandes grupos de posicionamentos teóricos sobre como integrar as crenças e sistemas de valores do paciente, onde se inclui a religiosidade/espiritualidade. O primeiro deles é formado por aqueles que defendem que as abordagens terapêuticas devem ser modificadas de modo isomórfico às crenças dos pacientes, o segundo grupo propõe que os pacientes se ajustem ao modelo psicoterápico e o terceiro que haja uma maior flexibilidade das abordagens ao tratar dessas questões (Baez & Hernandez, 2001). Dos grupos acima citados, o primeiro e o último são mais representativos nos estudos selecionados, que, de modo geral, costumam destacar a importância da congruência entre pacientes e terapeutas como característica fundamental para uma psicoterapia culturalmente sensível. Neste caso, a seleção de técnicas a serem aplicadas pelo psicólogo deve ser feita levando em consideração, primeiramente, sua convergência com o sistema de crenças do paciente (Martínez-Taboas, 2005b) ou então deve-se manter os protocolos da psicoterapia, todavia de modo mais flexível, sendo possível considerar as preferências e contexto cultural do cliente (Duarté-Vélez et al., 2010).
Propostas de modelos psicoterapêuticos que trabalhem a interface religiosidade/espiritualidade e prática clínica também foram identificados, sendo eles: a terapia cognitivo comportamental (TCC) espiritualmente modificada, cujos protocolos já incluem a cosmovisão do paciente, a abordagem centrada na pessoa e terapia narrativa, que incluem facilmente o sistema de crenças do cliente, o modelo espiritual, que se estrutura a partir de um paradigma multidimensional, integrando corpo, mente e espírito e o modelo biopsicossocial, bastante inclusivo a aspectos culturais (Maximo, 2019). O componente relacional entre terapeuta e paciente é comum a todos os estudos levantados, denotando especial preocupação dos autores com este aspecto crucial da psicoterapia, especialmente quando se trata de uma abordagem culturalmente sensível. O pensamento hegemônico é de que a abertura do relacionamento para tratar de necessidades e dilemas religiosos/espirituais de modo responsivo fortalece o vínculo terapêutico, a adesão ao tratamento e expande as possibilidades de explorar um conteúdo valioso para o paciente (Martínez-Taboas, 2005b). Para o estabelecimento de um bom vínculo terapêutico no contexto de competências religiosas/espirituais, a literatura destaca a necessidade de um comportamento empático do psicólogo para com o cliente, que sejam estabelecidos entre ambos acordos acerca dos objetivos a serem alcançados com a psicoterapia e os meios para atingí-los (Martínez-Taboas, 2005a). O relacionamento terapêutico também aparece associado a outros elementos considerados fatores de cura dentro de uma psicoterapia culturalmente sensível como: o compartilhamento de crenças semelhantes entre psicólogo e cliente, as expectativas deste último para o processo de mudança, bem como a inclusão de rituais atinentes às suas crenças com vistas à diminuição de angústias. Abordagens narrativas são consideradas interessantes para este tipo de cliente, pois facilmente incluem seus sistemas de crenças, logo a religiosidade/espiritualidade e seus rituais. Além disso, devem sempre estimular seu senso de autonomia e poder pessoal (Parks, 2003). Os estudos identificados revelam que para uma prática de psicoterapia sensível religiosa/espiritualmente ser eficaz é imprescindível que competências clínicas, éticas e culturais estejam presentes no terapeuta (Sperry, 2015). Fazem parte destas competências o reconhecimento dos limites do seu papel, de modo que não se confunda ao de um líder religioso, a consciência de sua própria orientação espiritual, para que vieses não interfiram negativamente no atendimento e a consciência do seu trabalho com o sistema de crenças do paciente. O modelo de competência cultural de Sue é citado na literatura por sua capacidade de demonstrar de que maneira as competências culturais podem ser utilizadas de modo adequado (Abernethy et al., 2006; Sue et al., 1992). Neste modelo são sugeridos alguns passos que o psicoterapeuta competente culturalmente deve considerar: a princípio, avaliar a importância da religiosidade/espiritualidade na vida do paciente, em confirmando-a, deve-se buscar verificar de que maneira essa informação pode ser utilizada no caso, ter claro seus próprios vieses potencialmente prejudiciais ao atendimento e, por fim, fazer adaptações culturalmente compatíveis às circunstâncias em suas intervenções e modo de falar (Abernethy et al., 2006). A validação empírica das modalidades de psicoterapia que consideram a religiosidade/espiritualidade ainda é um desafio à prática clínica do psicólogo e, portanto, a integração de crenças, orações, rituais e cerimônias nestes contextos visando promover mudanças terapêuticas ainda não é um ponto pacífico na comunidade científica. Ainda assim, foi identificada uma comparação entre as diversas formas de terapia e as tradições populares de cura, nesse contexto, não se pode deixar de destacar o papel do desenvolvimento psicoespiritual do terapeuta, considerando a relevância de tratar em si mesmo aquilo que pretende cuidar no paciente (Cervantes, 2010).
Por fim, a literatura destaca que muitos pacientes costumam buscar auxílios religiosos/espirituais paralelamente à psicoterapia, por isso, uma prática clínica culturalmente competente deve ser flexível à atuações em conjunto com líderes e comunidades religiosas, sem desqualificar orientações vindas destes locais e, ao mesmo tempo, sabendo quando recorrer aos mesmos para colaborarem no tratamento de seus pacientes (Goldston et al., 2008).
2-Características dos psicólogos competentes religiosa/espiritualmente
A necessidade de desenvolver competências religiosas/espirituais em psicólogos é um fenômeno relativamente recente, por isso, conforme nos apresenta a literatura explorada, existem alguns elementos fundamentais que parecem ser pontos pacíficos em se tratando de características esperadas de um profissional qualificado neste contexto. Algumas destas, como pôde ser notado, de modo geral, não fogem às habitualmente desenvolvidas nos treinamentos dos psicólogos como empatia, respeito e acolhimento, todavia, por se apresentarem em contextos, muitas vezes, culturalmente diversos em relação ao profissional, para que sejam desenvolvidas, há o imperativo de que o mesmo compreenda o sistema de crenças do paciente, bem como o impacto que este lhe causa, se lhe gera resistências, aciona preconceitos, entendimentos equivocados ou até mesmo excessiva tolerância, levando-o a não estranhar comportamentos que, eventualmente, possam estar na base do sofrimento. Ao identificar o tipo de relação que o cliente possui com a religiosidade/espiritualidade, seja ela de alto significado ou não, um psicoterapeuta prudente precisa considerar que nem sempre é fácil para o paciente tratar dessa temática por receio de serem mal compreendidos. Portanto, ao escutá-lo, é importante estar atento para considerar que o fenômeno expresso pode ter uma base cultural e assim, não incorrer no equívoco de interpretá-lo como algo psicopatológico, ou até mesmo o contrário, simplificando demais o quadro com suposições exclusivamente culturais (Parks, 2003). A literatura tradicional da psicologia reconhece que o sentimento de confiança do paciente para expor-se ao terapeuta está, em parte, relacionado à sua percepção de que aquele se encontra aberto, receptivo e sem julgamentos ao escutar. O que se encontra em questão são as reações contratransferenciais do psicólogo ou conselheiro, baseadas em suas histórias de vida. Este elemento é tão crucial que, no treinamento em competências culturais para abordar a religiosidade/espiritualidade é imprescindível que o profissional desenvolva uma característica denominada autoconsciência. Ou seja, o psicoterapeuta necessita tornar-se consciente de suas próprias crenças sobre religiosidade/espiritualidade e seus preconceitos (Bartoli, 2007). Seguindo esta mesma linha, os estudos esclarecem que terapeutas autoconscientes reduzem as chances de que seus pressupostos religiosos/espirituais intervenham negativamente no tratamento, já que se encontram mais capacitados para identificar pontos de convergência e dissonância entre si e seus pacientes (Baez & Hernandez, 2001). Outra característica unanimemente referenciada entre os autores e que é tida como indispensável ao psicólogo é o estudo do sistema de crenças do paciente. A junção da informação com a autoconsciência do psicólogo facilitará o desenvolvimento de maior sensibilidade e compreensão empática ao abordar a temática com seus pacientes, além disso favorecerá uma maior conexão com a interpretação que o paciente faz acerca de seus problemas (Martínez-Taboas, 2005b). Nos estudos selecionados também foi encontrada uma caracterização bastante distinta das demais acerca do terapeuta, sendo o mesmo associado à imagem do curandeiro ferido, descrita nas tradições xamânicas e literatura Junguiana, segundo a qual o mesmo só se torna capaz de auxiliar o processo de cura do paciente porque já se tornou consciente de sua própria ferida emocional e espiritual. Esta concepção busca integrar mente, corpo, emoções, alma e espírito, colocando ambos, terapeuta e paciente em posição de igualdade e respeito (Cervantes, 2010). Uma atitude respeitosa do terapeuta acerca da religiosidade/espiritualidade de seus pacientes não significa concordar, validar ou até mesmo conduzir o tratamento em sua conformidade (Castro-blanco, 2005), algumas vezes pode ser necessário confrontá-la, desafiá-la, sem, todavia, perder as oportunidades para conhecê-la melhor, estando aberto para escutar, explorar e acolher orientações recebidas pelo paciente em ambientes espirituais/religiosos,além de buscar estabelecer, sempre que necessário, uma interação de respeito com o praticante espiritual consultado pelo cliente (Baez & Hernandez, 2001).
3-Aspectos éticos da inclusão da Religiosidade/espiritualidade na prática clínica do psicólogo
O valor atribuído à espiritualidade ou religião difere de pessoa a pessoa, uns podem atribuir grande importância enquanto outros, nenhum valor, cabendo ao psicólogo, numa abordagem ética e sensível às necessidades de cada paciente, explorar adequadamente esse aspecto na prática clínica de modo a não constranger o cliente, assim como também para não deixar de processar conteúdos relevantes aos indivíduos altamente espirituais ou religiosos (Maximo, 2019). A ética na abordagem clínica se traduz, entre outras coisas, no respeito do terapeuta às características individuais do paciente, sejam acerca de seus aspectos culturais, religiosos, étnicos, bem como gênero e orientação sexual (Duarté-Vélez et al., 2010). O respeito a espiritualidade/religiosidade pode ser efetivado de diferentes maneiras pelo psicólogo, como possibilitar a oração durante o atendimento, interpretar a Bíblia de forma mais ou menos literal, ou ainda aconselhar considerando os valores individuais e não com base em estereótipos da comunidade em que este está inserido (Maximo, 2019). Importante lembrar que o modo de enfrentamento a certas situações pode ser determinado pela R/E do indivíduo e que a terapia pode ser totalmente ineficaz caso este acredite que sua fé e/ou crenças não serão respeitadas (Goldston et al., 2008). Nesse sentido, a competência ética do psicólogo é resultado de sua competência clínica, por meio da oferta de um serviço eficaz, junto a sua competência cultural, respeitando crenças e valores dos pacientes. Geralmente, profissionais que abordam de modo eficaz questões espirituais reconhecem e respondem a considerações clínicas, éticas e culturais relevantes (Sperry, 2015). Outra questão ética fundamental que deve ser levada em conta pelo profissional é o impacto negativo ocasionado por sua falta de conhecimento acerca da diversidade religiosa/espiritual, bem como do sistema simbólico de seus pacientes. Essa lacuna compromete a qualidade do tratamento ofertado a partir do momento em que dificulta a compreensão mútua de terapeuta e cliente, cria resistências no paciente em confiar no profissional e, além de tudo, pode promover equívocos na seleção das intervenções que serão feitas e nas interpretações do conteúdo expresso (Parks, 2003). Outro aspecto sutil que demanda atenção de conselheiros e psicólogos é o cuidado para que suas crenças pessoais não induzam o paciente, interferindo em sua liberdade de escolha, autonomia e autodeterminação (Maximo, 2019). Diante do exposto, a literatura sugere que uma prática eticamente adequada precisa contar com psicólogos dispostos a seguirem as normativas do código de ética profissional e das instituições das quais fazem parte. Temas cruciais da clínica, caros à abordagem da religiosidade/espiritualidade, que tendem a gerar conflitos de natureza ética, costumam estar dispostos nestes códigos e em suas resoluções como: consentimento informado, produção de documentos técnicos, trabalho em conjunto com profissionais de outras áreas, dentre outros (Maximo, 2019).
4-Propostas de modelos formativos em competências R/E para o psicólogo
Conforme verificado nos estudos selecionados, a preocupação com a inclusão da religiosidade/espiritualidade na prática clínica é fenômeno recente, aparecendo mais claramente na década de 1990 (Maximo, 2019). A sensibilidade a este tipo de questão, competência fundamental ao seu manejo com o paciente, é para muitos acadêmicos, profissionais e pesquisadores algo novo (Sperry, 2014). Tal cenário se encontra refletido na parca inclusão de treinamentos voltados para a construção de competências na área durante a formação do psicólogo, o que torna compreensível o fato destes revelarem não se sentirem familiarizados com os fenômenos espirituais e, por isso, pouco competentes para o seu manejo clínico (Maximo, 2019). Nesse sentido, os artigos também revelam ser fundamental pensar em treinamentos para o desenvolvimento de competências religiosas/espirituais nestes profissionais ao destacarem que os clínicos devem adquiri-las por meio de ambientes acadêmicos formais como seminários, treinamentos, leituras técnicas, mas também explorando crenças e costumes culturais distintos ao seu (Parks, 2003). O processo de construção desses treinamentos deve levar em consideração que ensinar conhecimentos, transmitir informações e até mesmo treinar habilidades pode não resultar no desenvolvimento, de fato, de um profissional religiosa/espiritualmente competente se durante o processo não for trabalhado o desenvolvimento da autoconsciência do profissional sobre o assunto, ou seja, se o mesmo não se tornar consciente de seus próprios pontos de vista, preconceitos e perspectivas sobre R/E (Bartoli, 2007).
Conclusão
A literatura levantada a partir da presente revisão integrativa acerca do papel da religiosidade/espiritualidade enquanto competência cultural na prática clínica do psicólogo demonstrou que a R/E é um fenômeno que faz parte da diversidade cultural. Sua importância para o funcionamento psicológico das pessoas tem chamado a atenção de pesquisadores nas últimas décadas por constituir sistemas interpretativos da realidade, influenciando seus modos de viver, sentir, sofrer e se relacionar. Tais constatações, conforme percebido na literatura, têm impacto direto na prática clínica do psicólogo, tendo em vista que amplia o escopo temático a ser abordado, exigindo ampliação de conhecimentos específicos desta área e, sobretudo, o desenvolvimento de competências religiosas/espirituais nestes profissionais. Inevitavelmente, sua inclusão na clínica deflagra importantes questões relacionadas ao “como fazê-lo”, impulsionando discussões sobre possibilidades de adaptações nos modelos teóricos já existentes e, até mesmo, a criação de novos. Todavia, conforme destacado pelas pesquisas, lacunas importantes quanto a produção de estudos empíricos neste campo ainda o tornam limitado e cheio de incertezas. Dilemas éticos, próprios da interface religiosidade/espiritualidade e prática clínica, desafiam aspectos deontológicos da psicologia, suscitando reflexões acerca da autonomia e autodeterminação dos pacientes, limites às intervenções e imposição de valores do profissional, dentre outros. Por fim, o reconhecimento da necessidade de manejo clínico da religiosidade/espiritualidade enquanto competência cultural na prática clínica do psicólogo revela um gap significativo na formação deste profissional, demonstrando a negligência acadêmica à temática e os efeitos negativos no subaproveitamento de conteúdos importantes para os pacientes, o que pode caracterizar falta ética por parte dos psicólogos. Apesar dos achados relevantes que contemplam o objetivo do trabalho em demonstrar o cenário teórico das pesquisas neste campo, restou limitada uma análise acerca da qualidade metodológica e dos níveis de evidências científicas de cada artigo selecionado, sendo esta uma importante contribuição para trabalhos futuros.