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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.43 no.105 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Nov 04, 2024

https://doi.org/10.5935/2176-3038.20230014 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

Autoestima e qualidade de vida de mulheres sem filhos - uma visão junguiana

Self-esteem and quality of life of women without children - a Jungian view

Autoestima y calidad de vida de mujeres sin hijos - una visión junguiana

HELENA CATHARINA LYRIO DE CARVALHO11 
http://orcid.org/0000-0002-0638-4063

DENISE GIMENEZ RAMOS12 
http://orcid.org/0000-0002-1639-5102

11Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo - Brasil. E-mail: hclcarvalho@uol.com.br

12Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo - Brasil. Membro da Academia Paulista de Psicologia, Cadeira 27. E-mail: deniseramos@uol.com.br


Resumo

Visando investigar e comparar a autoestima e a percepção sobre qualidade de vida de mulheres voluntariamente sem filhos e de mulheres inférteis foi realizado estudo misto sequencial. Os dados quantitativos foram obtidos por meio de questionário on-line que incluiu questões sociodemográficas, a Escala de Autoestima de Rosenberg (EAR) e o WHOQOL-Bref. Participaram da pesquisa 132 mulheres, residentes na Grande São Paulo, SP, com idade superior a 50 anos, que, independentemente do estado civil, não eram nem haviam sido mães. Desse grupo foram selecionadas sete mulheres para participar da etapa qualitativa, que abrangeu entrevista semiestruturada e uso do desenho como técnica expressiva. Os temas identificados foram analisados a partir do arcabouço teórico da psicologia analítica. Os resultados quantitativos globais indicam não haver diferença estatisticamente significativa entre mulheres que optaram por não ter filhos e mulheres inférteis, em termos de autoestima e percepção sobre qualidade de vida, ambas as variáveis se encontrando, em média, no extremo superior das escalas aplicadas. Os relatos e produções gráficas reforçaram os achados quantitativos na medida em que, independentemente do grupo a que pertenciam, a maioria das entrevistadas expressou satisfação consigo mesmas e com a própria trajetória de vida. A compreensão, na perspectiva junguiana, do conjunto dos resultados aponta para a não-maternidade, por opção ou infertilidade, como uma condição compatível com uma das muitas possibilidades de ser mulher.

Palavras chave: autoestima; qualidade de vida; infertilidade; mulheres sem filhos; psicologia analítica

Abstract

Aiming to investigate and compare self-esteem and perception of quality of life of voluntarily childless and infertile women, we carried out a sequential mixed study. Quantitative data came from an online questionnaire that included sociodemographic questions, the Rosenberg Self-Esteem Scale (EAR) and the WHOQOL-Bref. Participants were 132 women, residents of Greater São Paulo, SP, aged over 50 years, who, regardless of marital status, were not and had not been mothers. From this group, seven women participated in the qualitative stage, which included a semi-structured interview and the use of drawing as an expressive technique. The identified themes were analyzed by applying the theoretical framework of Analytical Psychology. Global quantitative results indicate that there is no statistically significant difference between women who chose not to have children and infertile women, in terms of self-esteem and perception of quality of life, both variables being, on average, at the upper end of the scales. Reports and graphic productions reinforced quantitative findings to the extent that, regardless of the group they belonged to, most interviewees expressed satisfaction with themselves and with their life trajectory. From a Jungian perspective, the set of results points to non-maternity, by choice or infertility, as a condition compatible with one of the many possibilities of being a woman.

Keywords: self-esteem; quality of life; infertility; childless women; Analytical Psychology

Resumen

Con el objetivo de investigar y comparar la autoestima y la percepción de la calidad de vida de mujeres voluntariamente sin hijos e infértiles, se realizó un estudio secuencial mixto. Los datos cuantitativos se obtuvieron de un cuestionario en línea que incluía preguntas sociodemográficas, la Escala de Autoestima de Rosenberg (EAR) y el WHOQOL-Bref. Participaron 132 mujeres, residentes en la Gran São Paulo, Estado de São Paulo, mayores de 50 años, que, independientemente del estado civil, no eran ni habían sido madres. De este grupo, siete mujeres participaron de la etapa cualitativa, que incluyó una entrevista semiestructurada y el uso del dibujo como técnica expresiva. Los temas identificados fueron analizados aplicando el referencial teórico de la Psicología Analítica. Los resultados cuantitativos globales indican que no existe una diferencia estadísticamente significativa entre las mujeres que optaron por no tener hijos y las mujeres infértiles, en términos de autoestima y percepción de la calidad de vida, estando ambas variables, en promedio, en el extremo superior de las escalas. Los informes y las producciones gráficas reforzaron los hallazgos cuantitativos en la medida en que, independientemente del grupo al que pertenecieran, la mayoría de las entrevistadas expresó satisfacción consigo mismas y con su trayectoria de vida. Desde una perspectiva junguiana, el conjunto de resultados apunta a la no maternidad, por elección o infertilidad, como una condición compatible con una de las tantas posibilidades de ser mujer.

Palabras clave: autoestima; qalidad de vida; esterilidad; mujeres sin hijos; Psicología Analítica

Introdução

Compreender o que caracteriza o ser feminino mostra-se desafiador quando levamos em conta as diferentes possibilidades de expressão feminina, as variadas formas de existência da mulher e os diversos caminhos para a sua realização psicológica (Adams, 2003; Badinter, 1985; Douglas, 2012; Wolff, 1956). Quando consideramos o contexto social em que as identidades se configuram, o nível de complexidade aumenta exponencialmente, uma vez que, nas sociedades ocidentais, o mundo feminino passa por uma transformação. Até a primeira metade do século XX, papéis, funções e espaços de expressão da mulher eram, mais frequentemente, estabelecidos segundo uma ordem social baseada naquilo que se entendia como determinado pela natureza, e a natureza, nesse caso, determinava a maternidade como destino inexorável da mulher. Hoje, contudo, como assinala Lipovetsky, cada vez mais as mulheres se constituem como sujeito diante de um “mundo aberto e aleatório, estruturado por uma lógica de indeterminação social e de livre governo individual” (Lipovetsky, 2007, p. 12) e são instadas a realizar escolhas por meio das quais se reafirmam como protagonistas de sua própria vida. Nesse universo em transformação, a ascensão de valores individualistas, o controle da concepção, a legitimação do trabalho assalariado feminino e a valorização das mulheres que perseguem uma carreira relativizaram a importância social da maternidade e seu significado na construção da identidade feminina. Em tal cenário, ter filhos e criá-los constitui-se tão somente uma das alternativas possíveis. Corroborando essa ideia, Madelyn Cain (2001) chama a atenção para o fato de a maternidade ter passado a ser uma das opções possíveis, mas não a única. Já no início do novo milênio, essa autora identificou que, nos Estados Unidos em especial, os padrões estabelecidos por séculos em relação à maternidade estavam passando por transformações que levavam ao aumento do número de casais e mulheres sem filhos. Dez anos depois, na França, Badinter (2011) observava que, desde que às mulheres foi dada a possibilidade de controle da fecundidade, quatro fenômenos podem ser observados em todos os países desenvolvidos: o declínio da fertilidade; a elevação da idade média da maternidade; o aumento da participação feminina no mercado de trabalho; e a diversificação dos modos de vida femininos. Esse conjunto de fatores teria redundado no surgimento, em cada vez mais países, do modelo do casal, ou da mulher solteira, sem filhos. O aumento do número de mulheres que não são ou não serão mães - por infertilidade, por terem postergado a maternidade ou por terem feito essa escolha voluntariamente - tem sido apontado por vários autores, especialmente nos Estados Unidos (Craig et al. 2014; Hayford, 2013), na Austrália (Graham, 2011; Graham et al., 2015; Turnbull, Graham, & Taket, 2016) e nos países industrializados da Europa (Bień et al., 2017; Buhr & Huinink, 2017; Fiori, Rinesi, & Graham, 2017; Koert & Daniluk, 2017; O’brien & Wingfield, 2018; Reher & Requena, 2017; Szalma & Takács, 2015; Tanturri et al., 2015; Tocchioni, 2018). A tendência observada por esses estudos parece se refletir também no Brasil, segundo a análise desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, na qual são comparados os dados dos censos demográficos de 2000 e 2010. Não apenas foi verificada a queda da fecundidade, mas também a postergação da maternidade com o aumento percentual do número de mulheres sem filhos em cada grupo etário (IBGE, 2014). Entretanto, ainda que seja crescente número de mulheres sem filhos e seja perceptível uma mudança de valores em relação ao papel que a maternidade representa para o sentimento de realização feminina, estudos sugerem que ainda persiste uma visão tradicional e estereotipada das mulheres que não são mães (Gold, 2012; Mansur, 2003a, 2003b; Meyers, 2001; Patias & Buaes; 2012; Peterson, 2015; Trindade & Enumo, 2002; Turnbull, Graham, & Taket, 2016). Assim, a despeito das rápidas e profundas mudanças pelas quais a sociedade ocidental passou a partir da década de 1970, ainda permanecem resistências à aceitação da não-maternidade. O mandato da maternidade, denominação cunhada por Russo (1976, 1979), refere-se às forças sociais e culturais que se baseiam no princípio da centralidade da maternidade para a definição do ser mulher e que persistem na grande maioria das sociedades atuais, moldando atitudes negativas dirigidas àquelas que não têm filhos. Elas são, muitas vezes, vistas como pessoas a quem falta alguma coisa, destinadas a serem infelizes (quando inférteis) ou egoístas, fadadas ao arrependimento e a uma vida vazia de sentido (quando não ser mãe decorre de uma opção consciente). Para alguns autores, esses estereótipos tendem a afetar a autoestima e o bem-estar psicológico daquelas que não se tornam mães. (Tanturri, 2015; Gotlib, 2016). Até onde nos foi dado averiguar, são poucas as pesquisas que buscam entender, concomitantemente, o impacto da não-maternidade na autoestima e na qualidade de vida de mulheres que voluntária ou involuntariamente deixaram de ter filhos. Tendo em vista a tendência que se verifica de aumento do número de mulheres que não são ou não serão mães no mundo atual, esses são aspectos importantes para o entendimento da psique feminina na sociedade contemporânea. O presente artigo visa, assim, contribuir para diminuir as lacunas identificadas no amplo campo de estudo relacionado às mulheres sem filhos. Baseia-se, em especial, nos achados qualitativos de pesquisa que se propôs a examinar a autoestima e a qualidade de vida de mulheres sem filhos que, estando na segunda metade da vida, já passaram da idade fértil. Comparou dois grupos específicos, aquelas que afirmam ter conscientemente escolhido não ter filhos e aquelas que, por infertilidade, não conseguiram realizar o desejo de ser mãe. Inserindo-se no campo de estudos da psicologia analítica sobre as mulheres na contemporaneidade, este trabalho tem como pressuposto que os estudos, a orientação e o acompanhamento profissional devem considerar, para além de uma visão naturalista do feminino associado à maternidade, o sentido que a ausência de filhos tem para a constituição da identidade feminina e para o bem-estar psicológico daquelas que, voluntária ou involuntariamente, não passaram pela experiência de ser mãe. A pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, CAAE nº 20309319.6.0000.5482.

Contribuições bibliográficas

Ao considerarmos o universo de mulheres que não têm filhos, as pesquisas que tratam dados populacionais estatisticamente indicam que esse é um grupo caracterizado pela heterogeneidade (Beaujouan, Sobotka, Brzozowska, & Zeman, 2017; Craig et al., 2014; Fujiwara, 2018; Hudde, 2018; Mynarska, Matysiak, Rybińska, & Tocchioni, 2015; Szalma & Takács, 2015; Tocchioni, 2018). Dentre os fatores de importância na determinação dessa condição encontram-se aspectos individuais - dedicação aos estudos e/ou à vida profissional, existência de uma relação conjugal estável, escolaridade, emprego, condição financeira, religião, condição física - e aspectos coletivos - estágio em que se encontram as relações de gênero, grau de valorização social da maternidade e qualidade das políticas públicas voltadas ao amparo da família. Deve-se ressaltar que tais estudos não se propõem a discriminar aquelas que não são mães porque assim escolheram, porque a sua trajetória de vida acabou por levá-las em outra direção, ou porque não conseguiram ter filhos em razão de infertilidade. A perspectiva adotada é basicamente descritiva, visando identificar aspectos sociodemográficos da população estudada. A diversidade das conclusões levantadas e a não utilização de métodos que busquem aprofundar o significado dos resultados obtidos contribuem para que se torne difícil estabelecer em que medida fatores individuais e coletivos, isoladamente ou em seu conjunto, contribuem para que se estabeleça uma vida sem filhos. Tendo em vista o foco do presente trabalho, esses estudos pouco informam sobre o sentido que a vivência da não-maternidade assume no decorrer da vida de mulheres que não são mães. O grupo de mulheres sem filhos que tem sido, com mais frequência, objeto de estudos qualitativos é o daquelas cuja não-maternidade é consequência de infertilidade. Nesse caso, a maioria das pesquisas e levantamentos bibliográficos tratam de mulheres que haviam passado ou estavam passando por tratamento de reprodução assistida (TRA) em razão da dificuldade em ter filhos (Winkelman, Katz, Smith, & Rowen, 2016; Wiweko, Anggrahenib, Elvira, & Lubi, 2017). Em alguns casos, as possíveis consequências da infertilidade foram analisadas tanto para homens quanto para mulheres, bem como para os casais que enfrentam essa condição. Em síntese, a condição infértil parece se caracterizar por um alto nível de estresse especialmente, ainda que não unicamente, no caso das mulheres, que têm de lidar com os desafios próprios dos tratamentos de reprodução assistida. Tal sofrimento pode ser acompanhado por culpa e vergonha, que serão tanto mais intensas quanto mais acentuado for o viés pró-natalista da cultura circundante. Como afirmam Tanturri et al. (2015), a infertilidade é frequentemente percebida como um ataque à autoestima, que pode desorganizar o senso de identidade e promover a sensação de perda de controle. Em consequência, a mulher delega o controle do próprio corpo à tecnologia médica e vive os sobressaltos das tentativas malsucedidas. Quando, por fim, veem que não será possível ter filhos, muitas vezes passam por episódios de depressão, isolamento e luto. Sob esse aspecto, a fala de uma das participantes do estudo de Ferland e Caron (2013) é paradigmática: “é como viver a morte de um filho que eu nunca tive” (p. 188). Entende-se, assim, que a vivência da infertilidade tem o valor de um trauma, promovido por fatores tanto internos quanto externos, cuja superação exige o emprego de múltiplas estratégias de enfrentamento, que nem sempre promovem a autoestima. Esses trabalhos aportam subsídios importantes para a compreensão dos impactos, especialmente sobre a autoestima feminina, da impossibilidade de ter filhos. Todavia, à exceção do estudo qualitativo de Ferland e Caron (2013), são escassas as pesquisas que visem identificar qual o significado que a não-maternidade adquire, com o passar do tempo, para aquelas que sofrem de infertilidade. Quando o tema é a escolha intencional por não ter filhos, a assim chamada condição childfree, grande parte das pesquisas mais recentes é de natureza qualitativa. São estudos que visam aprofundar a compreensão da decisão, das motivações e das implicações e consequências que cercam a escolha pela não-maternidade. Geralmente, os pesquisadores partem do entendimento de que esse é um fenômeno relativamente novo e concluem que tal decisão é compatível com uma ideia de ser humano que privilegia a individualidade e a autonomia (Gold, 2012; Patias & Buaes, 2012; Smeha & Calvano, 2009; Zulato-Barbosa & Rocha-Coutinho, 2012). Todavia, não deixam de apontar o quanto esse é ainda um período de transição, em que persistem estereótipos e preconceitos que atingem aquelas que, por decisão voluntária, escolhem não atender a um ideal que associa ser mulher à maternidade. As pressões decorrentes de uma cultura pró-natalista que caracteriza vários estratos da sociedade podem promover ou agravar, no decorrer do tempo, sentimentos de inadequação e de dúvidas em relação à decisão tomada (Caetano, Martins, & Motta, 2016; Çopur & Koropeckyj-Cox; 2010; Gradvohl, 2015; Peterson, 2015; Trindade & Enumo, 2002).

Metodologia

Objetivo

Este trabalho visou contribuir para reduzir as lacunas identificadas no amplo campo de estudo que diz respeito a mulheres sem filhos. Adotando uma perspectiva baseada na psicologia analítica, buscou compreender, em especial, o significado de não ter filhos e sua vinculação com o senso de autoestima e a qualidade de vida daquelas que, voluntariamente ou por infertilidade, deixaram de ser mães. Utilizando metodologia mista, propôs-se a aumentar as possibilidades de ampliação das conclusões obtidas. Por fim, analisando dois grupos específicos - aquelas que declaram ter conscientemente optado por não ter filhos e aquelas que não puderam, por razões biológicas, realizar o desejo de ser mãe -, este estudo pretendeu verificar, em um momento em que a maternidade não é mais possível em razão da idade, se há diferenças na visão que tais pessoas têm de si como mulher.

Método

A pesquisa realizada constituiu um estudo misto sequencial, em que os dados quantitativos auxiliaram a identificação das participantes da etapa qualitativa. De um lado, o emprego do método quantitativo ofereceu a possibilidade de verificar a existência de padrões (Sampieri, 2006) no que diz respeito à autoestima e à qualidade de vida de mulheres que não têm filhos, por escolha ou infertilidade.

Amostra

O recrutamento de participantes se deu por meio do método “bola de neve” (snowball sampling), através da rede contatos da pesquisadora, acessada por meio eletrônico - e-mail, redes sociais e aplicativos de mensageria - utilizando mensagem de convite à participação em que se apresentaram os objetivos da pesquisa e o link para o questionário on-line, que incluiu questionário sociodemográfico, a Escala de Autoestima de Rosenberg (Dini, Quaresma, & Ferreira, 2004; Hutz & Zanon, 2011) e as questões do WHOQOL-BREF (Fleck et al., 2000). O nível socioeconômico também foi levantado por meio das questões e da metodologia de classificação propostas por Graciano e Lehfeld (2010). Candidataram-se a participar da pesquisa 334 mulheres. O fluxograma a seguir descreve o processo de identificação das participantes cujos resultados são discutidos no presente artigo. Na etapa A, foram excluídas aquelas que não atendiam ao critério “idade”; na etapa B, excluídas aquelas que não moravam na Grande São Paulo; na etapa C, excluídas aquelas cujo questionário estava incompleto e, na última etapa, D, excluídas aquelas que apresentaram razões para não ter filho diferentes de “por opção” ou “por infertilidade”.

Resultados

Resultados quantitativos

Participaram da primeira fase do estudo 132 mulheres, residentes na Grande São Paulo, SP, com idade superior a 50 anos, que, independentemente do estado civil, não eram nem tinham sido mães, quer de filhos próprios quer de adotados ou de enteados advindos de matrimônio. A participação de mulheres que optaram por não ter filhos foi cerca de seis vezes superior à de mulheres que não os tiveram por infertilidade (GOp=114; GIn=18). Duas explicações complementares, fundamentadas em diálogos entre a pesquisadora e integrantes de sua rede de apoio, parecem dar conta desse fenômeno: os contatos da pesquisadora encaminharam o link de acesso à pesquisa principalmente para mulheres que sabiam haver feito a opção de não ter filhos e/ou evitaram divulgar a pesquisa entre mulheres inférteis, por receio de tocar em pontos sensíveis. No que diz respeito àquelas que não tiveram filhos por outras razões, os resultados indicam a multiplicidade de caminhos para a não-maternidade, o que está de acordo com vários autores que têm estudado o tema, dentre eles, Cain (2001), Hakim (2003) e Tanturri et al. (2015). Os dois grupos, GIn e GOp, possuem dimensões diferentes, mas, ainda assim, as participantes de ambos têm perfis sociodemográficos bastante semelhantes. Em sua grande maioria, já entraram na menopausa, o que era esperado em razão da faixa etária exigida (Lui Filho et al., 2015). Além disso, os resultados mostram que, em geral, são mulheres com escolaridade superior, que têm um trabalho remunerado e fazem parte da classe média. As diferenças estatisticamente significativas indicam que aquelas que compõem o GOp são, na média, relativamente mais jovens e têm maior probabilidade de estarem solteiras do que as participantes do GIn. Em particular, a variável estado civil mostrou-se relevante, apontando que o fato de ser solteira tende a indicar que a situação sem filhos decorre de opção, o que corrobora, parcialmente, os resultados encontrados por Craig et al. (2014), Szalma e Takács (2015), Tocchioni (2018) e Fujiwara (2018). Quando se analisam os resultados globais das escalas aplicadas, o motivo da não-maternidade (infertilidade ou opção) parece não estar associado nem à autoestima nem à percepção sobre a qualidade de vida das participantes da amostra estudada. Em média, ambos os indicadores revelam resultados positivos, independentemente do grupo considerado. O detalhamento dos resultados quantitativos será tratado em artigo submetido à avaliação para futura divulgação.

Fonte: Dados da pesquisa, 2021. GIn - Grupo de mulheres sem filhos por infertilidade; GOp - Grupo de mulheres sem filhos por opção.

Quadro 1 Fluxograma de identificação das participantes. 

Resultados qualitativos

Para essa etapa, utilizaram-se os gráficos de dispersão construídos a partir dos resultados quantitativos, intentando-se localizar aquelas mulheres que mais bem representassem cada grupo: GIn - Grupo de mulheres sem filhos por infertilidade; GOp - Grupo de mulheres sem filhos por opção. Assim, considerou-se, para cada grupo, os seguintes clusters (quadrantes): (a) alta autoestima/baixa qualidade de vida; (b) alta autoestima/alta qualidade de vida; (c) baixa autoestima/baixa qualidade de vida; e (d) baixa autoestima/alta qualidade de vida. Note-se que essa classificação se refere à posição relativa de cada participante no próprio grupo. Isto é, é possível, por exemplo, estar classificada como possuindo “baixa autoestima” em relação ao grupo e, ainda assim, ter obtido um resultado na EAR que revela um nível adequado de autoestima. Buscou-se, dessa maneira, identificar, em cada quadrante, prioritariamente, uma participante que, tendo se colocado disponível para dar continuidade à sua participação, tivesse obtido resultados que mais se aproximavam dos valores extremos do cluster. Note-se que nenhuma das duas participantes do GIn que pertencem ao quadrante “baixa autoestima/alta qualidade de vida” demonstrou, por meio do questionário on-line, interesse em dar prosseguimento à sua participação. As participantes assim recrutadas estão identificadas com nomes fictícios nos Gráficos 1 e 2, a seguir.

Gráfico 1 Posição das entrevistadas - EAR versus WHOQOL - GIn 

Gráfico 2 Posição das entrevistadas - EAR versus WHOQOL - GOp 

Relatos

Com a clareza de que a análise apresentada é uma das várias possibilidades de interpretação dos relatos colhidos e dos desenhos realizados, foram identificados os seguintes eixos temáticos: experiência da não-maternidade, realização profissional, visão sobre a maternidade, vínculos, visão de si.

Experiência da não-maternidade

O tema da não-maternidade se desdobrou nos seguintes subtemas: circunstâncias, consequências e expectativas sociais. No que diz respeito às circunstâncias, como era de se esperar os dois grupos diferem em termos dos motivos que levaram à não-maternidade. Entre as participantes que indicaram ter optado por não ter filhos, foi possível identificar duas posições: a explícita vontade de não ter filhos desde muito cedo e o não interesse pela maternidade, com a decisão de não ser mãe se constituindo ao longo do tempo. Entre as que se declararam inférteis, prevalece a procura por superar as limitações fisiológicas por meio de tentativas que incluíram abortos e métodos de reprodução assistida. Diante do fracasso dos esforços, houve um momento de desistência, seguido pela experiência de perda e dobrada dedicação à vida profissional. Os dois grupos se assemelham ao destacarem, como consequência de não ser mãe, uma vida em que podem usufruir da liberdade para tomar decisões que levem em conta as suas próprias vontades e estar disponíveis para compor a rede de apoio da família e de amigos. O sentimento de vazio, que surge por vezes, foi mais mencionado pelas participantes do GIn. Em ambos os grupos, há relatos de situações em que as participantes se sentiram diante de expectativas sociais, mais ou menos explícitas, mais ou menos críticas. Contrapõem-se a tais expectativas fatores que parecem atuar como proteção à autoestima, dentre os quais a atitude de aceitação da família e/ou o bem-suceder em uma atividade profissional.

Realização profissional

Apesar da diversidade das experiências profissionais das entrevistadas, e independentemente da razão da não-maternidade, pode-se afirmar que a atividade profissional ocupou e, em alguns casos, ainda ocupa uma posição central na vida dessas mulheres, constituindo parte importante de seu sentido de realização pessoal, na medida em que, por meio do seu trabalho, conseguiram alcançar independência financeira e/ou reconhecimento social. Todavia, mais do que isso, foi possível identificar o prazer derivado do exercício de competências pessoais e/ou da participação em causas sociais compatíveis com valores pessoais.

Visão sobre a maternidade

Em ambos os grupos, a maternidade foi, muitas vezes, vista de maneira que pode ser considerada idealizada, com ênfase na dedicação integral, no amor incondicional e no alto grau de responsabilidade e compromisso que caberia àquelas que são mães. Tal visão parece inspirar o medo de não ser capaz de atender a tão altas expectativas.

Vínculos

As fontes de afeto relacionadas pelas participantes são variadas, não sendo possível identificar um padrão que caracterize cada um dos grupos. Assim, para a quase totalidade das entrevistadas, é possível afirmar que, quando o círculo social é mais restrito, o vínculo com o companheiro parece suprir as necessidades afetivas. De outro lado, as amizades mantidas ao longo do tempo proporcionam grande satisfação bem como os laços afetivos com a família ampliada e a função maternal que exercem como elementos importantes da rede de apoio familiar.

Visão sobre si mesma

Independentemente do grupo a que pertenciam ou da posição relativa em termos de autoestima e qualidade de vida, todas as participantes, com uma única exceção, expressaram satisfação consigo mesmas e com a própria trajetória de vida. Nesse momento do percurso de cada uma, as questões relacionadas à não-maternidade nem sempre ganham destaque. Antes, a autoimagem positiva declarada pela maioria das entrevistadas parece basear-se na capacidade de estabelecer relações afetivas, enfrentar adversidades e constituir-se como um ser autônomo.

Discussão

Quando se analisam os resultados globais das escalas aplicadas, o motivo da não-maternidade (infertilidade ou opção) parece não estar associado nem à autoestima nem à percepção sobre a qualidade de vida das participantes da amostra estudada. Em média, ambos os indicadores revelam resultados positivos, independentemente do grupo considerado. Além disso, tendo em vista a faixa etária das mulheres que compõem a amostra total, os resultados positivos obtidos contradizem as conclusões de Bień et al. (2017), autoras que alertam que mulheres sem filhos, quando mais velhas, teriam maior probabilidade do que mulheres com filhos de enfrentar deterioração física e psicológica, com impactos sobre a vitalidade e o relacionamento social. As circunstâncias da não-maternidade constituem o tema que, por definição, diferencia os grupos. Verificou-se que a opção por não ser mãe ora pode ser fruto de uma clareza que se manifesta precocemente, ora se apresenta como intuição ou insight diante de situações em que a mulher se defronta com a necessidade de fazer escolhas relacionadas à maternidade. Quanto à infertilidade, duas das participantes haviam sofrido mais de um aborto e/ou enfrentado vários tratamentos de reprodução assistida, o que sugere que, para essas mulheres, a maternidade possuía um valor que justificou o alto investimento emocional na tentativa de superar os limites fisiológicos. Diante do fracasso dos esforços empreendidos, houve como um momento de desistência, ao qual se seguiu a experiência de perda e a redobrada dedicação à vida profissional. Os demais temas identificados relacionam-se a aspectos que não parecem diferenciar um grupo do outro, uma vez que foi comum uma mesma temática estar associada a representantes dos dois grupos. Assim, dentre as consequências percebidas da não-maternidade, a liberdade foi mencionada de modo relativamente recorrente e associada, de um lado, à independência na tomada de decisões e, de outro, à disponibilidade para as demais pessoas, em especial, no sentido de constituir uma rede de apoio para família ampliada. Esses achados tendem a confirmar algumas das conclusões de Gold (2012), Patias e Buaes (2012), Peterson (2015) e Caetano, Martins e Mota (2016). Todavia, ao passo que esses autores focalizaram seus estudos em mulheres que haviam optado por não ter filhos, a presente pesquisa encontrou a valorização da liberdade presente nos dois grupos estudados, GOp e GIn. Mesmo quando foi possível inferir, seja por meio da posição relativa da participante na escala de autoestima, seja por meio de uma perspectiva clínica, a existência de sentimentos de inadequação em algumas das entrevistadas, esses não parecem se referir à condição sem filhos. Nesses casos, a liberdade conquistada como resultado da busca pela independência parece associar-se a um sentimento de solidão, que não estaria relacionado à ausência de filhos. Os relatos obtidos dão conta de que essas mulheres teriam construído a própria vida sem poder confiar no apoio de outras pessoas, quer porque esse apoio não estava disponível quer porque precisavam, de alguma maneira, provar a si mesmas que eram suficientemente capazes. Destaca-se, nos dois grupos, a centralidade do trabalho, como ação no mundo exterior. Sugerimos, assim, que, para as entrevistadas, esse teria se tornado um meio par excellence de vivência daquilo que Knox definiu como self-agency, ou seja, “a experiência de que podemos influenciar nosso ambiente físico e relacional, de que nossas ações e intenções têm um efeito ou produzem uma resposta daqueles que estão à nossa volta” (Knox, 2011, p. 7, nossa tradução), e que Nahar e Geest (2014) denominam simplesmente agency, a habilidade de realizar escolhas e agir de modo a ser capaz de guiar, em certa medida, a própria vida. A adoção não foi uma alternativa escolhida pela totalidade das participantes, mesmo que algumas chegassem a considerá-la em algumas ocasiões. Esse dado pode estar associado ao desejo por liberdade, valor que, como foi visto, assume especial relevância para as entrevistadas. Em conjunto com a visão sobre a maternidade que surge dos relatos, também apontaria para a existência de um ideal relativo à figura materna que implicaria uma dedicação quase exclusiva, uma imensa responsabilidade e inúmeras possibilidades de insucesso. Se, de uma parte, parece haver uma adesão a um ideal materno que permeia nossa época e sociedade, de outra, as entrevistadas declararam se opor à noção da maternidade como função precípua da mulher, que apontam ainda ser prevalente. O enfrentamento das pressões sociais baseadas em tais princípios tende a ser facilitado quando essas expectativas não existem na família de origem ou quando o ambiente profissional é mais aberto à diversidade das formas de ser mulher. Os relatos sugerem que a suposição de que as mães são as maiores (e quase que únicas) responsáveis pela felicidade de seus filhos pode inspirar receios em algumas mulheres, que não se veem à altura dessas expectativas. Todavia, não nos parece válido atribuir unicamente a esse temor a opção pela não-maternidade. Também não seria o caso, de acordo com os testemunhos colhidos, de considerar a dedicação à profissão como substituto ou principal empecilho para a maternidade. A esse respeito, mais uma vez concordamos com Smeha e Calvano (2009), quando essas autoras ressaltam a importância simbólica do trabalho na constituição da identidade feminina. Apenas acrescentaríamos que, ao menos nos casos estudados em mais detalhes, a profissão pôde proporcionar o exercício de competências e o prazer e a sensação de potência que daí decorrem. No que diz respeito à visão que têm de si mesmas, praticamente todas as participantes da etapa qualitativa declaradamente expressaram satisfação consigo e com as conquistas realizadas ao longo da vida. Todavia, quando levada em conta a posição relativa ao grupo, resultados mais elevados na EAR foram obtidos pelas participantes cujos desenhos trouxeram elementos interpretados como símbolos de potência, participação e conciliação, ao passo que, para aquelas que obtiveram resultados de autoestima comparativamente menores, a composição gráfica sugere, de um lado, a valorização da liberdade e, de outro, o sentimento de solidão. Os achados indicam que, na amostra estudada na fase qualitativa, o enfrentamento da condição da infertilidade em parte se deu por meio de uma estratégia ativa, como apontaram Sormunen et al. (2018), com a dedicação ao trabalho. Entretanto, parece-nos que essa atitude não foi só movida pela necessidade de se distrair, conforme esses autores indicam. Entendemos que as entrevistadas se voltaram para a exploração de seus pontos fortes, que estavam vinculados ao trabalho, como uma forma de compensação, mas, de todo modo, utilizando os recursos e condições de que dispunham para ir além da mera resignação a uma situação de fato. Propomos, assim, a possibilidade de um quarto estágio na vivência da infertilidade, além daqueles sugeridos por Ferland e Caron (2013) - descobrindo, aprendendo a conviver com o fato e conciliando-se com a realidade. Sugerimos que, após a conciliação com a realidade, possa se dar início ou continuidade do desempenho de atividades que não se constituam somente distração, mas, de fato, coloquem em prática diferentes potenciais de realização pessoal, incluindo outros modos de expressão do que, na psicologia analítica, é conceituado como o arquétipo da Grande Mãe. Nesse sentido, há exemplos, na amostra estudada, que não se limitam àquelas que compõem o GIn e nos quais salta à vista o fato de que o campo profissional, muitas vezes, contemplou e contempla o cuidado à saúde, o ensino e o apoio ao desenvolvimento, especialmente em se tratando dos mais jovens, de forma individual ou coletiva. Sob a ótica da psicologia analítica, é possível supor, assim, que esse estágio venha a envolver as capacidades de (a) experimentar a expressão do arquétipo da Grande Mãe de maneira não corporificada, mas nem por isso menos enriquecedora da personalidade como um todo e (b) a exploração de outros potenciais, associados àquilo que Wolff (1956) chamou de formas estruturais da psique feminina. Em ambos os casos, adentrar esse estágio parece-nos fazer parte de um processo de desenvolvimento da personalidade como um todo e contribuir para a constituição de uma positiva autoestima. Entendemos que o modelo proposto por Wolff (1956) pode ser ampliado também para a compreensão daquelas que optaram por não ser mães. Nesse caso, a possibilidade de acessar aspectos associados a diferentes formas estruturais contribuiria para o enfrentamento das expectativas sociais que tendem a minar a autoestima. As entrevistadas que escolheram a não-maternidade aparentam ter características típicas da Amazona, em particular, o fato de partilhar ideais da cultura, como a valorização da independência e a determinação na busca de realização profissional. Todavia, como adverte Ulanov (1971), a personalidade de cada uma não se restringe a esses traços. Em ambos os grupos, vimos que fortes vínculos com crianças e jovens foram relatados por Joana (GOp) e Margarida (GIn), ao passo que Florence (GIn) tem dedicado sua vida a uma profissão que envolve o cuidado à saúde psíquica, e Nicolle (GIn) alcançou uma maior satisfação profissional em atividade semelhante. Serena e Vitória, embora na juventude se mostrassem reticentes em relação à conjugalidade, encontraram, na maturidade, um companheiro amoroso, com quem puderam partilhar seus interesses. Marcella, por sua vez, vem experimentando, já há algum tempo, dedicar-se a uma atividade criativa. À guisa de ilustração, utilizaremos o diagrama proposto por Wolff (1956), para apontar aquilo que entendemos ser a posição atual das entrevistadas, tendo claro que, em nome da síntese, corremos o risco de simplificar em demasia personalidades naturalmente complexas.

Fonte: Adaptado de Wolff (1956).

Figura 1 Posição das participantes da etapa qualitativa no diagrama das Formas Estruturais da Psique Feminina. 

Note-se que o campo existente entre a Amazona e a Mãe é ocupado, principalmente, por aquelas que compõem o GIn e por Joana do GOp. Com base na análise das entrevistas e dos desenhos, propomos que esse seja chamado de “o espaço das tias, das madrinhas e das cuidadoras” e destacamos a importância dessas atribuições, em contraposição a um ideal materno que incumbe a mulher que tem filhos de incorporar, sozinha, tudo aquilo que o arquétipo, em seu polo positivo, implica: geração, nutrição, estímulo ao desenvolvimento, amparo, cuidados e aconchego afetuosos. Tal ideal parece sobrecarregar a mulher como indivíduo e deixa de considerar que, como diz o provérbio nigeriano, “é preciso uma vila inteira para criar uma criança”. A rede de apoio criada em torno de crianças e adolescentes é fundamental não só para que eles venham a se desenvolver como seres humanos plenos, mas também para liberar as mulheres que são mães da carga de ser tudo para seus filhos. A nosso ver, aquelas que, não tendo filhos por opção ou infertilidade, estão dispostas a participar ativamente de uma rede desse tipo mereceriam ser reconhecidas pelo valioso papel social que desempenham. Nesse sentido, o testemunho da escritora irlandesa Bernadette Fallon, parece-nos exemplar:

Não me julgue por eu não ser mãe. Posso não ter filhos, mas fui a mais velha de quatro irmãos e, assim, troquei fraldas, assoei narizes sujos e ofereci conselhos que não foram solicitados. Posso não ter filhos, mas tenho três sobrinhos e quatro afilhados, oriento colegas mais jovens no trabalho e sou voluntária em serviço telefônico de apoio a adolescentes. Sou a pessoa a quem seus filhos recorrem quando estão assustados demais, confusos demais ou envergonhados demais para falar com você. (FALLON, 2019, não paginado, nossa tradução)13

Conclusão

Em síntese, a compreensão dos achados de pesquisa por meio da psicologia analítica permite compreender a não-maternidade, por opção ou infertilidade, não como algo pouco natural, em nível psicológico, uma vez que é uma condição compatível com uma das muitas possibilidades de ser mulher, nem como um fator determinante do nível de autoestima ou de qualidade de vida, principalmente em um momento posterior da vida de cada mulher. Entretanto, não nos parece que essa seja uma condição a ser idealizada. Quer seja decorrência da fisiologia ou de escolha voluntária, não ser mãe implica, como toda a condição humana, desafios, não sendo o menor deles a construção de uma autoestima positiva diante da influência de valores culturais ainda predominantemente pró-natalistas, que incluem a visão da maternidade como a epítome da abnegação de si, do amor incondicional e do compromisso eterno.

13Fallon, B. (2019) I’m not a mother. Please don’t judge me. The Irish Times. Dec, 15, 2019. On-line. Disponível em: https://www.irishtimes.com/life-and-style/health-family/i-m-not-a-mother-please-don-t-judge-me-1.4104446.

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Recebido: 23 de Maio de 2023; Revisado: 03 de Julho de 2023; Aceito: 20 de Agosto de 2023

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