Introdução
O ciclo gravídico puerperal é um período marcado por diversos eventos transformadores físicos, subjetivos e sociais. Além dos aspectos fisiológicos, características das condições de vida e contexto social podem afetar a saúde e favorecer vulnerabilidades nesta fase da vida na mulher (Rennó & Ribeiro, 2012). A Organização Mundial de Saúde (OMS, 2011), define as condições não médicas que impactam nos resultados da saúde de uma pessoa como Determinantes Sociais de Saúde (DSS). Os DSS compreendem aspectos sociais, econômicos, culturais, étnico/raciais, psicológicos e comportamentais que contribuem para o surgimento de enfermidades (Buss e Pellegrini, 2007). Essas condições estão presentes desde o nascimento e podem se intensificar durante o ciclo gravídico puerperal, sobretudo para as mulheres negras que vivenciam uma gestação de alto risco (Theophilo; Ratter & Pereira, 2018). Mulheres negras apresentam maior índice de mortalidade materna. Entre 2014 e 2019, a média da Razão de Mortalidade Materna dessa população foi de 61,6, e para mulheres brancas de 53,8. Neste período, constatou-se cerca de 8 mortes maternas a mais de negras, quando comparadas às mulheres brancas, para cada 100 mil nascidos vivos. A taxa de mortalidade materna é um importante indicador que reflete a qualidade da assistência em saúde. Os dados apontam a necessidade de um olhar sobre a maternidade dessas mulheres que se encontram em um lugar de desvantagens históricas (Coelho, R. Mrejen, M. Remédios, J & Campos, G., 2022). A pesquisa Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre o parto e o nascimento, realizada em 2012, identificou uma série de iniquidades em saúde que refletem desigualdades na atenção à saúde maternoinfantil das mulheres negras. Foram constatadas maior insatisfação na assistência entre mulheres pretas e pardas com menor escolaridade, pertencentes a classes econômicas mais baixas, multíparas, sem companheiro, sem trabalho remunerado, residentes nas regiões Norte e Nordeste (Fiocruz, 2014). O referido estudo também identificou práticas como menor aplicação de analgesia em negras (especialmente as que possuíam menor nível de escolaridade), menor número de consultas e exames no pré-natal; menor vinculação à maternidade onde ocorreu o parto e menos orientações, resultando em maior peregrinação no momento do parto. Sobre o direito ao acompanhante de livre escolha da gestante, garantido pela Lei nº 11.108, o inquérito apontou que um quarto das mulheres (24,5%) não dispôs de acompanhante em nenhum momento do parto, sendo este fato mais frequente nos serviços públicos, entre as mulheres com menor renda e escolaridade, pretas e pardas (Diniz, 2024; Fiocruz, 2014; Leal, M. C., Gama, G.N., Pereira, A.P.E.P., Carmo, R.V.S & Santos, R.V 2017). Restringir a presença de acompanhante durante o parto é considerada uma forma de violência obstétrica, fenômeno reconhecido como questão de saúde pública mundial e que pode abranger abusos verbais, violência física, uso de procedimentos não consentidos pela gestante, não administração de analgesia, entre outros. Este evento viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, ameaçando o direito à vida, à saúde, à integridade física, sobretudo em mulheres negras que historicamente são consideradas como as que suportam mais dor (OMS, 2014). É relevante abordarmos a violência obstétrica considerando raça e gênero, na ótica da interseccionalidade que atravessa a mulher negra em nosso país, incluindo um processo histórico de violação de direitos desde o período da escravidão, ainda presente na nossa cultura e em nosso sistema de saúde. Se faz necessário pensar nas desigualdades de raça na saúde para alcançar diferentes mulheres e as suas diferentes formas de acesso às políticas de saúde, educação e demais sistemas de garantias de direitos (Curi, P. L., Ribeiro, M.T.A., Marra, C.B., 2020). A interseccionalidade, conceito nomeado por Kimberlé Crenshaw (1989), revela que dentro de um sistema existem vários elementos discriminatórios interligados. Assim, as desigualdades que estruturam as posições de mulheres, raças, e classes são indissociáveis e se encontram num complexo cruzamento de processos (Ribeiro, 2017). Neste sentido, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN, 2017), dispositivo instituído através da Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009, visa promover a equidade, combater o racismo e à discriminação nas instituições e nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Entendese que para reduzir as desigualdades raciais nos indicadores de saúde das mulheres negras é fundamental fortalecer a PNSIPN no território, visando garantir uma assistência em saúde adequada para essa população (Coelho, R., Mrejen, M., Remédios, J. & Campos, G., 2022). Na mesma perspectiva, o Conselho Federal de Psicologia tem realizado diversas ações que visam o enfrentamento ao racismo em nosso país, entre elas: a resolução n.º 018/2002 que regulamenta a atuação dos psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial; o I Seminário de Nacional de Psicologia e Enfrentamento ao Racismo, realizado em maio de 2021; e o lançamento do livro Psicologia Brasileira na Luta Antirracista em 2022 (CFP, 2022). Diante do exposto, surge o seguinte questionamento: como mulheres negras avaliam a assistência em saúde recebida durante a gestação e parto? Pode-se evidenciar a relevância do presente estudo, tendo em vista que as mulheres negras são as que mais utilizam o SUS: 69,9% dos usuários de serviços públicos de saúde no país são mulheres, 60,9% desse público feminino declarando-se negras ou pardas (IBGE, 2019). Assim, se faz necessária a oferta de ações e serviços de qualidade de forma universal. Busca-se, através das narrativas de mulheres negras, colocá-las como protagonistas, bem como salientar a importância de políticas públicas voltadas para redução das desigualdades étnico-raciais na assistência à saúde. Ressalta-se a relevância do suporte psicológico na assistência pré-natal para essa população, fortalecendo o acolhimento e a integralidade do cuidado, valorizando a igualdade de direitos à assistência psicológica para mulheres brancas e negras.
Método
Trata-se de um estudo exploratório, descritivo e transversal, de abordagem qualitativa, realizado com puérperas autodeclaradas negras (pretas ou pardas), maiores de dezoito anos, internadas na maternidade de um hospital universitário em Recife, Pernambuco. O hospital local do estudo é referência em gestação de alto risco. A coleta de dados ocorreu no mês de março de 2023, sendo utilizado como instrumento um roteiro para entrevista semiestruturada abordando dados sociodemográficos, perfil familiar, passado obstétrico e assistência no pré-natal, acrescido das seguintes perguntas norteadoras:
Fale sobre sua gestação e parto;
Como você avalia a assistência recebida durante sua gestação e parto nos serviços de saúde?
Você se sentiu tratada de forma diferente devido sua cor/raça nos serviços de saúde durante sua gestação e parto?
Incluíram-se neste estudo puérperas de filhos nascidos vivos, maiores de 18 anos, autodeclaradas negras, internadas no alojamento conjunto do referido hospital durante o período de coleta de dados. Os critérios de exclusão foram: mães de recém-nascidos internados na Unidade Neonatal; puérperas que apresentassem sintomas de transtorno mental grave, como psicose puerperal, ou alguma condição de saúde que impossibilitava a saída do leito para a realização da entrevista. Não houve nenhuma recusa para participação nas entrevistas. O projeto de pesquisa foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (nº parecer 5.878.095). Foram respeitadas todas as recomendações estabelecidas nas Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. As participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram transcritas na íntegra e posteriormente analisadas de acordo com a Técnica de Análise de Conteúdo do tipo temática proposta por Bardin (2016). A amostra foi composta por 16 mulheres e seu tamanho foi delimitado através do critério de saturação de dados. Para preservar o sigilo das participantes, a identificação12 será representada pelo primeiro nome de mulheres negras que deixaram um legado na história, como uma forma de homenageá-las neste estudo. Entre elas temos: professoras, escritoras, filósofas, jornalistas, psicanalistas, psicólogas, antropólogas, compositora, poetisas, deputada estadual e líder quilombola.
Resultados e Discussão
Sobre as características sociodemográficas: a idade das participantes variou entre vinte e quarenta anos; seis mulheres tinham como escolaridade o ensino fundamental, nove o ensino médio completo e uma havia concluído o ensino superior, com pós graduação; quatorze eram casadas ou estavam em uma união estável e duas não tinham companheiro; a renda familiar foi de até um salário mínimo (incluindo nesta composição o benefício do “bolsa família”) para doze mulheres; duas participantes declararam dois salários mínimos e para duas participantes a renda familiar foi de três salários mínimos. Residiam na Região Metropolitana de Recife nove mulheres e sete eram provenientes de cidades do interior de Pernambuco. Todas as participantes declararam ter religião: onze eram católicas; quatro eram evangélicas e uma afirmou seguir religião de matriz africana. Quanto à ocupação, sete mulheres realizavam trabalho doméstico não remunerado, duas trabalhavam como autônomas, cinco estavam no mercado de trabalho formal, duas eram agricultoras e duas atuavam no mercado de trabalho informal. No tocante às características do histórico obstétrico: três mulheres eram primíparas e treze relataram gestações anteriores (com um máximo de quatro gestações), entre estas, quatro haviam vivenciado perdas gestacionais (uma morte neonatal e três abortamentos). Quanto à assistência no pré-natal, quatorze mulheres realizaram pelo menos seis consultas na Unidade Básica de Saúde (dez acompanhadas simultaneamente no pré-natal de alto risco), uma participante realizou cinco consultas e uma participante compareceu a apenas uma consulta (por decisão própria). Considerando que o Ministério da Saúde preconiza ao menos seis consultas de pré-natal, os achados do estudo mostram que as participantes atingiram essa meta e contaram com a assistência de alto risco. A prevalência de hipertensão arterial e diabetes mellitus no grupo assemelha-se aos dados apresentados na PNSIPN que caracteriza essas doenças como as mais comuns nesta população, necessitando assim de atenção específica para reduzir as iniquidades em saúde no país (PNSIPN, 2017). A partir da análise de conteúdo das entrevistas emergiram três categorias temáticas, assim intituladas: a gestação marcada por sintomas; assistência em saúde na avaliação de mulheres negras e o não reconhecimento do racismo.
Categoria 1: a gestação marcada pelos sintomas
A gestação de alto risco pode ser vivenciada de forma diferente devido a presença de sintomas e necessidade de cuidados especiais. Nas falas de nove mulheres observou-se a vivência da gravidez permeada por sintomas, incômodos e restrições, confundindo-se com adoecimento:
Depois que descobri que estava grávida fiquei muito doente, depois tive infecção urinária [...]. Eu fiquei muito fraca! Vomitava todos os dias, tive pressão alta. Eu acho assim, foi um pouco (…) tipo assim como se eu tivesse doente, como se estivesse mais doente do que grávida (Virgínia, 32 anos).
Eu na gestação dela não dormia, não comia direito, não fazia nada direito. Aí foi muito complicada essa que tive agora [...] foi diferente da primeira porque da primeira eu não sentia nada. Eu fazia tudo, não tinha complicação com nada: fazia serviço de casa, andava, brevemente e dessa agora não fazia nada disso. Nem lavar uma louça dentro de casa (Neusa, 28 anos).
Eu decidi engravidar novamente e aí vieram algumas complicações: diabetes gestacional, pressão alta, infecções urinárias repetitivas ao longo da gravidez toda (Djamila,31 anos).
A gestação de alto risco é aquela na qual a vida ou a saúde da mãe e/ou do feto e/ou recém-nascido têm maiores chances de serem atingidas com uma evolução desfavorável, comparando com a gestação de risco habitual (Brasil, 2010). A identificação de risco deverá ser iniciada na primeira consulta de pré-natal e deve ser analisada a cada consulta (Brasil, 2022). As gestantes que apresentam esta condição, podem ter a vivência da gestação afetada pelas patologias e alterações concretas num corpo marcado pela imposição das limitações físicas (Miyazaki, 2019). Estas transformações podem colocar essa mulher outrora independente, numa condição de vulnerabilidade e imprevisibilidade, como podemos observar nos relatos a seguir:
E teve um pouco de complicação, porque foi uma gravidez de alto risco, por causa do hipertireoidismo que eu tenho, mas graças a Deus deu tudo certo e minha bebê tá bem. (Aparecida, 24 anos).
Desde o começo, a gente teve algumas complicações. Teve um rompimento de bolsa, teve várias coisas. Aí, depois, a gente teve o início de prematura com 26 semanas (Maria, 20 anos).
Estudos mostram que a morbimortalidade materna da mulher negra tem elementos de predisposição biológica para doenças como hipertensão arterial e diabetes mellitus. Com as iniquidades em saúde, a vivência de uma gestação de alto risco por estas mulheres tende a ser agravada por diversos fatores, entre eles políticas públicas insuficientes, dificuldade de acesso ao sistema de saúde e discriminação (Pacheco, 2018; Brasil, 2012). As alterações hipertensivas na gestação são prevalentes nos países em desenvolvimento e estão associadas a complicações graves, fetais e maternas, e a um risco maior de mortalidade materno infantil. Gestantes negras apresentam risco aumentado de pré-eclâmpsia (BRASIL, 2012; Pacheco, 2018; PNSIPN, 2017). Os relatos seguintes evidenciam a necessidade de cuidados especiais:
Eu alerto quem tiver pressão alta, que muitas vezes pensa assim: não, é uma besteira. Não é não, minha gente! Não é uma besteira de jeito nenhum. Porque eu perdi, né, a gente perdeu um filho. Imagina! você perder um filho do nada. Você e eu, estávamos com tudo pronto, sair na sexta pra fazer a minha cesariana e saber que o meu filho tinha falecido (Bell, 28 anos). Eu tive que me cuidar mais por conta da minha saúde por conta da pressão, tive que mudar de medicação e estar sempre me acompanhando no pré-natal direitinho, tudo certinho (Grada, 40 anos).
O alto risco prevaleceu já no finalzinho, que foi a diabetes e pressão alta. Nunca tive antes, só é na gestação mesmo (Maya, 23 anos). Quando eu vim para o pré-natal, o médico falou que minha pressão estava dando alta e a tendência era aumentar. Aí ele me encaminhou para a triagem para induzir o parto (Virgínia, 32 anos).
Sentimentos como medo e ansiedade, comuns na gravidez, podem se intensificar em uma gestação de alto risco. Quando a hospitalização é necessária, pode constituir um estressor para a mulher e ser vivenciada com angústia, solidão, impotência, exigindo ajustamento ao ambiente e novos hábitos. O afastamento das atividades diárias, como a preparação de enxoval, pode comprometer a própria organização psíquica da maternidade. Esta condição pode afetar a qualidade da vivência da maternidade impactan do no vínculo mãe-bebê (Antoniazzi, et al., 2023). A gestação de alto risco implica em alterações no cotidiano da gestante, necessitando de uma atenção em saúde especializada, e podem surgir processos que acrescentam temores em relação ao desenvolvimento gravídico, como a prescrição de medicamentos, procedimentos cirúrgicos, repousos e internações. Esses aspectos estão expressos a seguir:
Foi assim mais complicado que as outras porque as outras eu não precisei vir pra cá porque eu tinha muito trauma de Recife, por conta que é muito longe. Eu moro muito longe e na maioria das pessoas que vinha pra cá sempre ficava internada (...). Eu mesmo estava com pressão alta e eu tinha medo de ficar (Antonieta, 34 anos). Teve que tirar antes o bebê. Teve que tirar com 37 semanas por causa da diabetes e pressão alta (Ângela, 38 anos).
Esses achados corroboram com estudos que apresentam a gestação de alto risco continuamente atravessada não somente com a própria saúde, mas também pela preocupação com o estado físico do bebê associado ao medo da morte (Miyazaki, et al. 2019). Neste sentido, um dos sentimentos que podem emergir é a culpa, com a própria responsabilização da gestação ter evoluído para alto risco, atribuindo a si mesma a causalidade do adoecimento (Lima & Garcia, 2018). No que tange ao não planejamento da gestação, cinco participantes relataram que a gravidez não foi planejada e com isso a vivência da gestação, sobretudo na fase inicial, foi marcada de forma negativa, conforme descrito abaixo:
Eu entrei em pânico, eu passei duas semanas chorando dentro de casa, sem saber o que fazer, quando eu já tinha um adolescente, e então não estava vendo minha vida com um novo membro da família reiniciando. Então, para mim, foi devastador de início, né? Até você começar a ver o lado bom da situação, que é um bebezinho. Mas, de início, eu entrei em choque! Foi um susto! Foi terrível! Terrível, terrível, um susto terrível que me lembro até hoje (Audre, 34 anos).
A minha gestação foi bem complicada no começo, porque eu não queria. [...] Eu chorei tanto, meu Deus do céu. Chorei tanto, porque eu queria outro filho, mas não agora, né? Eu tinha planos pra ter outro filho, mas não nesse momento. Mas, se Deus deu, ele sabe de tudo, né? Então, eu fui me conformando com isso, né? No começo, foi muito difícil de aceitar porque eu tava... tava sem trabalhar. Tô sem trabalhar, né? Foi muito difícil aceitar, porque eu não queria mesmo (Carolina, 25 anos).
Eu fiquei um pouco nervosa porque eu já tenho 2 filhos: tenho um rapaz de 17 e um bebê de 2 anos e 8 meses. Aí no começo eu fiquei um pouco pensativa né? Como é que vai ser agora com 3 filhos para tomar conta? (Grada, 40 anos).
Com a análise desses relatos é possível compreender alguns dos atravessamentos vivenciados pelas participantes diante de uma gestação e/ou parto de alto risco e suas especificidades. Observa-se que na gestação marcada pelos sintomas estão imbricados aspectos subjetivos, assim, uma escuta qualificada e suporte psicológico poderiam contribuir para um adequado cuidado em saúde dessas mulheres.
Pensar na saúde como direito é uma conquista histórica que passa pela avaliação dos usuários do SUS, fomentando assim possibilidades de mudança. A seguir apresentamos a avaliação dos serviços de saúde na perspectiva racial.
Categoria 2: assistência em saúde na avaliação de mulheres negras
A assistência recebida durante a gestação e parto nos serviços de saúde, foi avaliada positivamente por nove participantes. Três mulheres apresentaram ressalvas para a Atenção Básica e três para o serviço de alto risco. Duas participantes pontuaram dificuldade no acesso para o pré-natal de alto risco. As falas a seguir ilustram a satisfação com a assistência recebida nos serviços de saúde:
A gente foi muito bem atendido, assim, tirou todas as dúvidas e passou bastante segurança muito grande aqui no Hospital das Clínicas (Virgínia, 32 anos).
Assim, eu achei bom. Porque eu estava fazendo lá (referindo ao posto de saúde), aí eu não sabia, aí depois mandaram pra cá, mas eu achei bom. Porque também aqui ele explica direito, gostei muito dos médicos daqui, do posto também, que eles explicam tudo direitinho, atende você bem (Clélia, 22 anos).
Aqui eu tive a maior assistência do mundo. É tão provável que o meu médico que fez meus atendimentos foi o que estava lá, junto do parto. Me acompanhou todo dia, sempre me dando força, me apoiando (Bell, 28 anos).
Os achados do presente estudo indicam dados favoráveis sobre a assistência hospitalar, que se aproximam do que é preconizado em uma assistência integral e humanizada. Por ser o local do estudo um Hospital Universitário, referência em gestação de alto risco, que dispõe de uma estrutura adequada, equipe multiprofissional e tecnologias direcionadas ao binômio mãe-bebê, a qualidade da assistência foi avaliada como satisfatória conforme podemos ver a seguir:
Foi muito boa! Foi mais do que eu esperava porque eu não conhecia esse hospital, eu na verdade, tinha ido pra outro hospital que era o Agamenon e lá eu sabia mais ou menos como era, mas aqui eu não tinha referência nenhuma. Mas foi muito boa! Equipe muito boa, maravilhosa, de enfermeiro a médicos, a turma inteira foi muito boa! (Antonieta, 34 anos).
Não tenho o que falar! Foi excelente a recepção. Se alguém tinha me falado uma coisa de um jeito, foi totalmente diferente. É só agradecer mesmo porque foi tudo bem, não ficou nada a desejar (Djamila, 31 anos).
Vale salientar que além de médicos e enfermeiros, as participantes tiveram acesso a uma equipe multiprofissional que incluía assistente social, farmacêutica, fisioterapeuta, nutricionista, psicóloga e terapeuta ocupacional, ampliando e qualificando a assistência em saúde. Entende-se ainda que o serviço que conta com uma residência multiprofissional em saúde deve promover a integralidade das ações e o trabalho interdisciplinar, com a presença do profissional preceptor fomentando processos de mudança no SUS (Arnemann, 2018 & Silva, 2021).
A satisfação com a equipe multiprofissional fica evidente nas seguintes falas:
Nessa atual gestação eu daria nota 10 para o atendimento porque foi extremamente diferente da primeira. Em questão de tudo. Em questão de atenção, de chegarem pra explicar o que de fato está acontecendo, não deixaram passar nada, tipo, sempre chegavam pra falar [...] E aqui vocês me deram total apoio em questão de: amamentação, contraceptivo, tudo, apoio psicológico, tudo! (Maria, 20 anos).
Eu me achei bem assistida porque tudo que eu precisava eu conversava com o médico, eu perguntava a opinião dele e fui bem assistida e como é que eu posso dizer? Depois que eu tive a minha filha, fui mais assistida ainda, porque eu precisei de psicólogo (...) veio conversar comigo, precisei de... eu tava com dificuldade na alimentação, teve as enfermeiras pra me ajudar (Aparecida, 24 anos).
A avaliação em saúde pela perspectiva do usuário no SUS constitui uma importante fonte de informação, além de colocar o indivíduo no centro para dar voz, reafirmando assim, a saúde como direito. Trata-se de ter cuidado com as diferenças dos sujeitos, respeitando as relações de etnia, gênero e raça. Nesta abordagem, deve-se considerar que as pessoas possuem necessidades específicas e não são apenas portadoras de patologias (Pinheiro & Silva, 2009). A satisfação com os serviços disponíveis no hospital também foi destacada. A possibilidade de ir para casa com o registro de nascimento e o recebimento das primeiras vacinas do recém-nascido durante o período de internação foi sublinhada:
Nos hospitais da minha cidade você não sai de lá com a sua criança vacinada, porque lá também não tem esse serviço. E aqui, ela vai sair, ela já tá com a certidão de nascimento dela, ela já está com o cartão de vacina dela em dia. Então, assim, eu super que amei, né? Até porque a gente não vai ficar procurando depois onde vacinar, e isso a gente ganha tempo, né? (Lélia, 34 anos).
Observa-se que a oferta destes serviços representou um diferencial na avaliação desta participante. O registro de nascimento é o primeiro documento do bebê que lhe confere reconhecimento legal e social. É por meio desse documento que ele passa a ser reconhecido pelo Estado e com isso garante seu acesso à cidadania (Claro, 2020). Entre as participantes que registraram a não satisfação com o atendimento recebido, o sentimento de insatisfação por não ter sido escutada na escolha da via de parto foi uma das ressalvas:
Aí no final eles me botaram lá na cesária e graças a Deus agora eu estou com minha filha. Eu acho que o único momento de crise pra mim, foi esse aí!
Você poder dizer assim: “eu não quero mais eu não quero mais, eu quero a cesária”, vou perder meu filho e eles ficaram alí segurando, me segu raram por um bom tempinho, mas depois cedeu né? (Kimberlé, 36 anos).
Estudos evidenciam que a maioria das gestantes não possuem informações suficientes sobre as vias de parto, pouco se dialogando sobre esse assunto no pré-natal. Assim, uma grande parte das gestantes chega no parto sem as devidas orientações. Considerando que esse momento é um evento singular para a mulher, o acesso à informação precisa estar garantido e os processos decisórios devem ser compartilhados. Constata-se que na escolha do tipo de parto prevalece a decisão médica, ou seja, o protagonismo da mulher nessa fase ainda é precário (Silva, et al.,2021). Durante o período de internação, as participantes passaram por várias equipes nos plantões no hospital. Uma participante descreve uma distinção nos atendimentos na assistência ao parto:
A avaliação foi boa, eu gostei, mas, tem alguns médicos que... Eles eram muito ignorantes. E tinha médico que não era. Tinha médico que super lhe compreendia pelo fato de você estar querendo sentir a dor pra ter, e lhe compreendia, e tinha uns que... Nem estava nem aí pra você. Tipo, ah! tem que fazer isso mesmo. Isso é o processo. [...] Sei lá, não tinha compaixão pela pessoa. Estava ali porque tinha que estar ali mesmo, que tinha que sair de um jeito ou de outro (Carolina, 25 anos).
Observa-se que as narrativas de insatisfação estão ligadas à falta de acolhimento. O acolhimento em saúde é uma das diretrizes preconizadas na Política Nacional de Humanização (PNH) do SUS. Trata-se de uma postura ética que passa pela escuta do usuário e o reconhecimento do seu protagonismo (PNH/SUS, 2013). O acolhimento está inserido no campo das tecnologias leves do cuidado em saúde que envolvem as relações humanas e considera a subjetividade das pacientes (Marinho, P.M.L., Carvalho, T. A., Mattos, M.C.T., Rodrigues, E.O.L. & Campos, M.P.A., 2017). No tocante ao aspecto estrutural, uma participante apresentou insatisfação com a temperatura do alojamento conjunto conforme a seguinte narrativa:
E aqui, só não dá 100% porque falta alguma coisa, tipo um ventilador [...] porque é muito quente (Referindo-se ao Alojamento Conjunto). (Bell, 28 anos).
Tal insatisfação está em consonância com um estudo realizado sobre a avaliação da qualidade do atendimento ao parto na rede pública hospitalar em Recife/PE. Entre os resultados, foi constatado um alto índice de insatisfação com a temperatura nas enfermarias, causando um desconforto às puérperas que vai contra o previsto na ambiência como componente da humanização nos estabelecimentos de saúde (Silva et al. ,2017). Algumas participantes avaliaram o atendimento recebido na Atenção Básica, principal porta de acesso ao SUS, como insatisfatório. Entende-se que o pré-natal é um momento não só de acompanhamento, mas de rastreio de diversas condições que possam afetar a saúde da mãe e do feto e essas narrativas podem indicar entraves na assistência:
No posto de saúde? Assim, não foi bom assim porque lá só tem enfermeira, que muitas vezes ela não sabe assim, tipo assim, medicação que estava precisando que ela não tinha como me passar, tinha que esperar um médico de alto risco (Virgínia, 32 anos).
Do postinho onde eu moro, assim, eu não gostei muito. Não tem assistência, não tem nada. Como eles sabiam que eu fazia o pré-natal aqui, mais avançado, tinha mais experiência, assim, os médicos daqui, né? Eu chegava lá, o que eles faziam? Olhava a pressão, tá boa? Tá! Sua volta para Recife é quando? Eu dizia: tal dia! Escutava o coração do bebê e liberava (Bell, 28 anos).
Aquela questão assim do dia a dia dele, do tipo: ah, não pode comparecer, ah, houve um imprevisto, ah, vai ter que ser remarcado. Aí tem aquela burocracia de ter que faltar trabalho pra quem trabalha como no meu caso, pra poder pegar ficha (Lélia, 34 anos).
Esses dados assemelham-se aos de outros estudos e apontam fragilidades na atenção básica na perspectiva de gestantes no que tange à infraestrutura, falta de profissionais, dificuldades para realização de exames, precariedade de recursos, como materiais para realização da consulta e medicamentos essenciais, tempo prolongado de espera para início do atendimento, entre outros serviços indispensáveis para a atenção às necessidades no pré-natal (Silva, 2019; Miranda & Andrade, 2021). Neste contexto, a falta de informação e orientação correta na Atenção Básica pode gerar transtornos para as usuárias conforme o seguinte relato:
A assistência em si foi boa, mas quando eu che guei na maternidade, eu descobri que ficaram informações vagas, porque eu tinha a vontade de fazer a laqueadura e a profissional que me atendeu, ela me disse que eu podia ter solicitado há muito tempo no posto, preenchido todo um formulário e não me foi passado isso no postinho (Audre, 34 anos).
A atenção à saúde sexual e reprodutiva está no escopo da atenção básica que tem um papel fundamental na orientação e encaminhamento para os serviços especializados. O depoimento de Audre evidencia que a falta de orientação correta comprometeu o acesso a um procedimento garantido em lei à gestante. Vale ressaltar que está em vigor no Brasil a lei nº 14.443, que amplia as condições para esterilização definitiva da mulher, prevendo, inclusive, a realização da cirurgia sem o consentimento do cônjuge. Esse marco jurídico representa uma vitória na luta das mulheres, bem como um avanço na legislação no âmbito do planejamento familiar (Brasil, 2022). Sobre o acompanhamento das gestantes de alto risco em serviço especializado, o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento do Ministério da Saúde (Brasil, 2002), prevê que este público seja encaminhado à unidade de referência para atendimento ambulatorial e/ou hospitalar. Na contramão desta recomendação, algumas participantes relataram a dificuldade no acesso ao pré-natal de alto risco, conforme se observa:
Quando eu comecei no posto perto de minha casa (...) ela me deu até um encaminhamento pra dar entrada no sistema que é um médico de alto risco, só que a menina nasceu e não saiu nenhuma consulta (Virgínia, 32 anos).
Eu queria ter mais vaga, né, pra... Como é que se diz? Para os partos de alto risco, tipo assim, um... Um pré-natal de alto risco, que às vezes não tem, porque eu chego nessa conclusão: eu pari antes de conseguir fazer um prénatal de alto risco. Então, isso é muito importante, porque a gente fazendo um pré-natal de alto risco, a gente sabe como os nossos bebês estão, como a gente está (Maya, 23 anos).
Os relatos denunciam a demora para que as gestantes de alto risco sejam atendidas na atenção especializada, o que está em sintonia com estudo que apontou desigualdades relacionadas à raça/cor no acesso ao pré-natal, segundo os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde (Lessa et al. ,2022). O acesso ao cuidado pré-natal de alto risco contribui para a vivência de uma gestação saudável, diminui os riscos de morte materna e fetal, consistindo num importante indicador de prognóstico ao nascer. Neste sentido, o atendimento especializado à gestante de alto risco deve ser considerado uma prioridade nos serviços de saúde, sendo necessária a identificação e superação das barreiras que dificultam essa assistência (Medeiros, 2019). Os achados desta categoria revelaram que apesar de avaliações em sua maioria satisfatória sobre a assistência recebida, há a necessidade de olhar para as lacunas apresentadas que comprometem tanto a consolidação da PNSIPN como o programa de Humanização no Pré-natal e nascimento. É importante ponderar que as participantes estavam com seus recém-nascidos no Alojamento Conjunto no momento em que se deu a coleta de dados. O desfecho favorável, representado pelo nascimento do bebê, pode indicar um número muito maior de avaliações positivas sem considerar elementos negligenciados durante o período do ciclo gravídico-puerperal nos serviços de saúde. Observar-se que as ressalvas quanto ao atendimento no alto risco, estão relacionadas ao acolhimento que pode indicar um tratamento diferente pelo tom de pele, sobretudo, quando se analisa pela ótica do racismo velado. As narrativas evidenciam uma distinção de atendimentos com boas e más práticas obstétricas, imprimindo uma experiência que pode ser traumática tanto para a mãe como para o bebê. Entende-se a importância de compreender a assistência em saúde a partir da ótica das mulheres negras, fomentando assim que suas narrativas sejam legitimadas e os resultados do estudo contribuam para um melhor enfrentamento das desigualdades raciais no SUS. Nesse sentido, Grada Kilomba (2019) aborda a potência da fala das mulheres negras enquanto ato político; questiona quem pode falar ao narrar a história da máscara usada pela escrava Anastácia, como um símbolo de tortura e silenciamento destas mulheres no período colonial (Kilomba, 2019). A seguir discutiremos a terceira categoria com aspectos da interseccionalidade cor/raça/classe e a repercussão na maternidade dessas mulheres.
Categoria 3: o não reconhecimento do racismo
Neste estudo, três mulheres descrevem situações que sugerem um tratamento diferente pelo tom da pele. Na fala de uma participante, observa-se identi ficação de tratamento desigual e sua reivindicação de tratamento igualitário. Vale salientar que esta participante foi a única com nível de escolaridade superior e com pós-graduação.
Às vezes, a gente percebe, porque fica muito nítido, né? Porque é uma questão que a gente fica assim [...] O preconceito, ele sempre existiu e infelizmente é uma coisa que sempre vai estar entre nós, infelizmente. E, uma vez ou outra, a gente sempre se pega: poxa! Por que fui atendida dessa forma? [...] Por que com a pessoa que estava à minha frente já foi diferente? A gente sempre se faz essa pergunta, mas é aquela coisa, né? Às vezes a gente quer discutir, quer chamar um pouco de atenção pra gente, mas não é pelo fato de querer ser melhor do que o outro, mas sim, por que não ser atendida da mesma forma que o outro foi? Se ele é um ser humano igual a mim, né? (Lélia, 34 anos).
A literatura aponta que as mulheres negras têm o pior atendimento à saúde como também possuem os piores índices de escolaridade e renda. Quando se relaciona nível de escolaridade e percepção do racismo, pessoas com mais anos de estudo tendem mais facilmente reconhecer situações de preconceito. Considera-se que a educação formal está associada à capacidade das mulheres compreenderem as orientações recebidas, questionarem, reivindicarem seus direitos em saúde, e participarem das decisões em relação ao seu acompanhamento no sistema de saúde (Oliveira & Kubiak, 2019). Os conceitos de racismo e racismo institucional estão intimamente ligados. O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para um indivíduo (Almeida, 2019). O racismo institucional, também conhecido como racismo sistêmico, está presente nas instituições e se manifesta limitando oportunidades e acesso aos serviços a determinados grupos étnicos (Oliveira & Kubiak, 2019). A maioria das participantes não identificou a vivência do racismo nos serviços de saúde. Entende-se que constatar em si mesmo a ocorrência do preconceito de cor/raça pode trazer sofrimento. O não reconhecimento do racismo pode estar associado à sua própria definição que implica em ofensa, segregação e sua negação pode ter função de um mecanismo de defesa, evitando assim o indivíduo entrar em contato com o evento gerador de angústia (Fredrich et al., 2022). Uma participante narra com clareza a vivência de racismo em uma gestação anterior. Na abordagem de identificação de alguma situação diferente durante a gestação, ela expressa o seguinte:
Nessa gestação não! Só na primeira. Tanto de pele quanto por idade, porque na época eu tinha acabado de fazer 19 anos. Então eles me trataram como se eu tivesse engravidado sem querer ou por não saber de quem era ou algo do tipo, entendeu? Então eles trataram de forma assim, só por ser negra e ser nova [...] Depois de muitas horas lá, esperando, foi quando minha mãe abriu a boca e começou a falar um monte de coisas. Aí eles ligaram para duas doutoras que estavam dormindo. Elas desceram muito arretadas e me atenderam com a maior ignorância. Botaram o espectro (espéculo) em mim sem nem avisar, nem nada. Abriram a minha perna com a maior ignorância e tacaram o espectro. Doeu absurdamente, muito! Fora as coisas que elas falavam: é realmente, você teve um aborto e tal. Agradeça a Deus por você já ter perdido, já foi um problema a menos na sua vida. Como se eu não quisesse ter tido, né? (Maria, 20 anos).
Neste relato fica evidente a violência obstétrica e psicológica sofrida por Maria, assemelhando-se a um estudo que apresentou a identificação do racismo pela ótica de mulheres negras, sendo percebida a diferença de tempo e qualidade dos atendimentos quando comparados com as mulheres brancas. A percepção do racismo vivenciado pelas mulheres negras representa uma conquista na luta contra a discriminação, desmistificando o mito da democracia racial (Oliveira et al. ,2019). Os estudos que investigam a interface do racismo na saúde indicam que a saúde da mulher negra permanece sendo negligenciada. O racismo institucional está presente no campo da saúde pois tem como base o racismo estrutural na nossa sociedade, com vestígios do período escravocrata. Pode se revelar, ora de forma sutil, ora de forma explícita, colocando em evidência as desigualdades raciais em nosso país (Fredrich et al., 2022). São essas desigualdades que dificultam e negam o acesso destas mulheres aos seus direitos reprodutivos e sexuais. No contexto do trabalho de parto as mulheres ficam suscetíveis a situações discriminatórias. Em alguns depoimentos percebe-se um tratamento que sugere uma violência obstétrica. As participantes não atribuíram a diferença no tratamento pela cor da pele, contudo, expressam o descontentamento com o atendimento recebido:
Sobre a minha cor da pele, não. Mas, pela médica que fez o meu parto, ela foi muito ignorante comigo, em questão de eu não querer ter induzido mais o meu parto, ter botado um soro, e por ter feito uma cesariana. Ela foi muito ignorante, pelo fato de eu querer uma cesariana e não ter botado um soro pra mim, sentir dor pra ter normal. Eu não gostei do jeito que ela me tratou (Carolina, 25 anos).
Eu não vou dizer que foi um tratamento diferente. Que foi estratégia deles que era pra ver se eu conseguia ir até o fim. Eu relato assim: tinha meninas lá, vamos dizer, de cores brancas e outras mais [...]. “Você vai pra cesária agora (referindo às outras mulheres)!” Mas, não estava sentindo dor, não estava sentindo nada. Enquanto eu já estava com dor há vários tempos pedindo a cesária e eles não quiseram deixar (Kimberlé, 36 anos).
Na fala de Kimberlé fica nítida a sensação de não ter sido escutada em sua dor. O reconhecimento do racismo é complexo e atravessado pelo racismo velado, naturalizado num país marcado por mais de 300 anos de escravidão. Os dados sobre a ocorrência de racismo na saúde são escassos, subestimados e revelam que novos estudos são fundamentais para ampliação da discussão visando a consolidação da PNSIPN (Jardim, et al., 2022). O debate sobre violência obstétrica demarca práticas e negligências perpetuadas no ciclo gravídico puerperal nos sistemas de saúde e nesse contexto é imprescindível a discussão pela perspectiva racial. No relato a seguir, a participante declara:
E eu tava sofrendo muito, sentindo muita dor, não dilatava. Entendeu? Eu acho que a equipe médica deveria tomar uma atitude, perguntar a minha opinião (Aparecida, 24 anos).
A literatura revela que foram constatadas inúmeras violências sofridas por mulheres negras no processo de parto, entre elas, a invalidação das experiências de dor e incômodos expressados neste momento. Essas práticas podem funcionar como uma estratégia de silenciamento que reforça o estereótipo de que a mulher negra é a que suporta mais a dor (Lima, Pimentel & Lyra, 2021). A vivência traumática de uma gestação anterior pode trazer repercussões emocionais na gestação seguinte. Na fala a seguir, fica evidente um momento traumático não apenas pela indução do parto em si, mas, também pela forma como a equipe a atendeu:
E eu optei pela cesárea, porque minha experiência da minha primeira filha com o normal na indução, para mim, foi traumatizante. Eu creio que nem foi por ter sido induzido, mas por quem resolveu induzir. A equipe que estava comigo, que não fui acolhida naquela época. Então, para mim, o parto normal estava fora de cogitação, porque eu não sabia na mão de quem eu ia estar sendo assistida (Audre, 34 anos).
Essas narrativas também evidenciam que a relação médico-paciente é demarcada por uma interação assimétrica que sobressai o conhecimento científico ressaltando assim uma hierarquização de saberes. A interseccionalidade com os marcadores sociais cor/ raça/classe eleva tal assimetria reforçando o lugar de opressão que se encontram as mulheres negras. Importante destacar que quanto mais escuro o tom de pele, maiores são as disparidades na assistência (Lima, et al., 2021). A maternidade no contexto das mulheres negras é um elemento histórico de (re)existir. Reconhecer a incidência das opressões de maneira interseccional, considerando os fatores de gênero, raça e classe rompe com a lógica naturalizada de violência e silenciamento do processo colonial (Lôbo e Souza, 2019). Pensar na maternidade implica um componente constituinte das desigualdades de gênero, uma vez que a responsabilidade de ter filhos/as recai sobre a mulher, desde a concepção aos cuidados de criação, são elas que exercem majoritariamente esse trabalho (Scavone, 2004).
Observa-se que há uma invisibilidade da temática desde a formação dos profissionais de saúde, bem como, a negação do racismo como problema social (Lima, Oliveira, 2023). Nos achados do presente estudo é possível identificar, nas entrelinhas dos relatos, situações que sugerem racismo e não foram percebidas pela maioria das participantes. Esse fenô meno pode indicar um modo de funcionamento de um sistema social marcado pelo racismo estrutural com entraves para reconhecer em si mesmo a vivência de situação discriminatória (Jardim, et al., 2022). Conforme uma análise qualitativa e subjetiva das falas aqui apresentadas, pode-se sugerir posicionamentos tendenciosos que remetem ao preconceito e racismo. Entretanto, é importante considerar que a gestação é um período de grande hipersensibilidade, podendo interferir no aumento do estresse advindo do modo como se interpreta as situações, sejam elas agradáveis ou desconfortáveis.
Considerações finais
As entrevistas fomentaram um espaço de fala, onde as participantes puderam expressar sentimentos ligados ao ciclo gravídico puerperal. Possibilitou-se avaliar os serviços de saúde e analisar a ocorrência de eventos de cunho discriminatórios. Entende-se a relevância de compreender a assistência em saúde a partir da ótica das mulheres negras, pois favorece que suas narrativas sejam legitimadas e se espera que os resultados deste estudo possam contribuir para um melhor enfrentamento das desigualdades raciais no SUS.
A coleta de dados foi circunscrita a um hospital de ensino, referência em gestação de alto risco de Pernambuco, que conta com equipes que possuem expertise no binômio mãebebê, estrutura adequada com Unidade Neonatal e Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher. Entende-se que essas características podem ter contribuído para uma avaliação satisfatória para a maioria das participantes. Constata-se que há uma escassez de estudos sobre a percepção da saúde da mulher negra no ciclo gravídico puerperal no SUS, sobretudo numa gestação de alto risco. Sugere-se a realização de novas pesquisas para a mitigação das disparidades raciais na saúde da mulher de forma que possa alcançar outras instituições em todas as regiões do país.