Introdução
A situação de crianças e adolescentes em risco social e pessoal constitui-se em grande desafio colocado à sociedade brasileira. De acordo com o relatório apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2020), em 2019, foram acolhidas 34.157 crianças e adolescentes em 3.259 serviços de acolhimento. Sendo que 32.791 estão em acolhimento institucional e 1.366 em acolhimento familiar. Nesse contexto, o acolhimento institucional é medida sociojurídica, cuja importância foi legitimada com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069, 1990), com o objetivo de acolher, assistir e destinar cuidados especiais a crianças e adolescentes em evidente condição de risco social e pessoal. Os dados do CNJ assinalaram também que, aproximadamente, 50,8% eram do sexo masculino e 49,2%, do sexo feminino. Diante do exposto, o tema do acolhimento institucional ganha maior visibilidade, sendo fundamental a execução de pesquisas atualizadas, como forma de subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas destinadas a essa parcela da população. A ideia é que estudos acadêmicos possam orientar as mudanças que emergem no cenário sociojurídico e sejam capazes de estabelecer novas diretrizes de atendimento, de modo a assegurar o direito fundamental à convivência familiar e comunitária, bem como promover a qualidade no acolhimento institucional. O interesse pelo assunto, assim, surgiu a partir de inquietações suscitadas pelos debates nacional e internacional acerca da violência contra crianças e adolescentes que, por sua condição de risco, demandam a aplicação de medidas protetivas, entre as quais o acolhimento institucional ainda revela-se como a principal. Sabe-se, no entanto, que a preocupação com a proteção integral de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional nem sempre esteve presente na trajetória histórica dos serviços de acolhimento. No Brasil, em particular, a cultura da institucionalização em seus primórdios, no século XVI, gerou isolamento social, exclusão e preconceito. Ao recolher crianças e adolescentes, considerados desvalidos e abandonados, as instituições asilares acabavam por segregá-los da sociedade, da família de origem e da comunidade local. A presença dessas crianças e adolescentes, considerados em situação irregular pelo Código de Menores (1927/2979), em suas duas versões, era considerada prejudicial para o convívio na esfera da vida social. De acordo com a literatura, em termos históricos, esse processo contribuiu para a construção de imagens sociais mais negativas do que positivas a respeito de crianças e adolescentes que passaram a viver, por motivos diversos, nesse tipo de instituição (Wendt, Dullius, & Dell’Aglio, 2017; Callheiros, Garrido, Lopes, & Patrício, 2015) . Essas imagens negativas relacionam-se também às famílias de crianças e adolescentes nessa condição específica (Zappe, Patias, Patrício, Calheiros, Garrido, Lopes, & Dell’Aglio, 2017; Patias, Siqueira, & Dell’Aglio, 2017; Patias, Garcia, & Dell’Aglio, 2016; Zappe, Yunes, & Dell’Aglio, 2016). Assistir à infância e juventude desvalidas passou a significar, desde então, apartar a criança e o adolescente, em situação irregular da sua família, bem como higienizar as cidades, uma vez que eram considerados “lixos sociais” (Rizzini & Rizzini, 2004). Somente no século XX, com a promulgação do ECA em 1990, a contestação da política de atendimento acima descrita foi consolidada, com perspectiva de avanços, ainda que tímidos, pois persistiam, e ainda persistem, múltiplas formas de violação de direitos estabelecidos em lei. O ECA (Lei nº 8.069, 1990) trouxe uma nova noção de garantia de direitos e ao preconizar a modificação na estrutura de confinamento/isolamento, lançou as bases para reconfigurar as imagens negativas historicamente constituídas acerca da população infantojuvenil, que se encontra sob a medida protetiva do acolhimento institucional. Nesse sentido, importa conhecer as imagens sociais da criança e do adolescente institucionalizados na atualidade e indagar o quanto estas afetam a garantia dos seus direitos fundamentais. Observa-se que a situação de acolhimento institucional ainda se mostra fortemente marcada por processo de estigmatização social. Ou seja, a condição de institucionalização, que atribui à crianças, adolescentes e suas famílias uma identidade social, marca-os como diferentes diante da sociedade, tornando-se alvos em potencial de preconceito, conforme a literatura tem mostrado (Wendt et al., 2017; Calheiros et al., 2015; Zappe et al., 2017; Patias et al., 2017; Patias et al., 2016; Zappe et al., 2016). Destaca-se que das pesquisas sobre imagens sociais e acolhimento institucional, poucas tem como o foco a perspectiva dos profissionais - técnicos e educadores (Calheiros et al.,2015; Ferreira & Moreira, 2017) ou ainda das crianças e adolescentes (Rodrigues, Gava, Sarriera, & Dell’Aglio, 2014; Faria, Salgueiro, Trigo, & Alberto, 2008). Nesse sentido, diante da necessidade de ampliação e diversificação das pesquisas desenvolvidas sobre o tema, este estudo teve como objetivo analisar as imagens sociais atribuídas ao adolescente em acolhimento institucional, a partir da perspectiva de educadores e adolescentes acolhidos.
Método
Trata-se de um estudo com delineamento transversal, de natureza descritiva e com abordagem quanti-qualitativa dos dados.
Participantes
Participaram cinco adolescentes (quatro do sexo feminino e um do sexo masculino) em acolhimento institucional de dois serviços de acolhimento, na faixa etária de 12 a 16 anos. Três adolescentes estavam acolhidos no Serviço 1 e dois, no Serviço 2. Além disso, tomaram parte do estudo cinco educadores (quatro do sexo feminino e um do sexo masculino), na faixa etária de 54 a 60 anos, de três serviços de acolhimento, sendo uma educadora do Serviço 1, duas do Serviço 2 e dois do Serviço 3.
Contexto da Pesquisa
O contexto envolveu três serviços de acolhimento institucional, que faziam parte da rede de serviços socioassistenciais do município de Belém, na modalidade abrigo institucional de crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. O Serviço 1 acolhia crianças e adolescentes, de ambos os sexos, na faixa etária de zero a 12 anos incompletos; o Ser viço 2, acolhia adolescentes do sexo feminino, na faixa etária de 12 a 17 anos; e o Serviço 3 acolhia adolescentes do sexo masculino, na faixa etária de 12 a 18 anos incompletos.
Instrumento
Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado, elaborado pela primeira autora do estudo e aplicado aos adolescentes e educadores, com o objetivo de apreender as imagens sociais sobre os adolescentes em acolhimento institucional e as relações estabelecidas entre eles e o serviço de acolhimento com a vizinhança. O roteiro está dividido em duas partes: a primeira traz dados sociodemográfico dos participantes e a segunda é composta por seis perguntas, referentes aos temas: convivência comunitária, relação de vizinhança e imagens sociais.
Procedimentos
Coleta de dados
Os participantes foram informados sobre a pesquisa pela coordenação dos serviços e indicados por esta, que segundo a qual foram os que se disponibilizaram a participar do estudo. Os educadores e os adolescentes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Assentimento respectivamente. O roteiro foi aplicado pela primeira autora, de forma individual (com educadores e adolescentes), em uma sala cedida pelas instituições. As entrevistas foram áudio-gravadas, para posterior transcrição, e o tempo médio de duração foi de 20 a 50 minutos.
Análise dos dados
O conteúdo das entrevistas foi transcrito na íntegra e os relatos verbais dos entrevistados foram processados pelo software IRaMuTeQ (Interface de R pour lês Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Assim, a estruturação dos dados foi feita a partir de categorias semânticas, que emergiram do processamento dos dados pela Classificação Hierárquica Descendente (CHD), na qual um esquema hierárquico de classes de vocabulários é formado, sendo possível inferir o conteúdo do corpus - grupo de textos referente à determinada temática e compreender grupos de discursos/ideias; e por meio da Análise Fatorial de Correspondência (AFC), que possibilita a análise da produção textual em função das variáveis de caracterização e para variáveis com no mínimo três modalidades (Camargo & Justo, 2018). Em seguida, aplicou-se a técnica da análise de conteúdo, que permite o exame das comunicações transcritas, com o objetivo de inferir sistemática e descritivamente o conteúdo das mensagens (Bardin, 2011). Ressalta-se que as classes foram discutidas a partir da ordem dos subcorpus formados (A e B).
Resultados
No que concerne à CHD, o corpus geral foi constituído por oito textos separados em 23 segmentos de texto (ST), com aproveitamento 23 STs (100%), valor de máxima retenção do corpus para análise. Destaca-se que os manuais indicam que a retenção de STs aproveitados deve ser de no mínimo 70%. O conteúdo analisado foi categorizado em três classes: Classe 1, com 10 ST (43,5%); Classe 2, com 6 ST (26,1%) e Classe 3, com 7 ST (30,4%). Ressalta-se que as três classes foram divididas em duas ramificações (A e B) do corpus total em análise. O subcorpus A é composto pela Classe 3 (Família como Contexto de Risco) e o subcorpus B, contém os textos correspondentes às Classes 1 (Contexto Institucional) e 2 (Aspecto Privativo do Contexto). Observa-se que do subcorpus A, o conteúdo se ramifica na Classe 3 e do subcorpus B, outro que se ramifica nas Classes 1 e 2. Estas, apesar de serem divergentes entre si, têm um conteúdo comum e, por isso, apresentam-se em ramificação separada da Classe 3. Para melhor visualização das classes, o dendrograma (Figura 1) apresenta a lista de palavras componentes de cada classe, com respectiva frequência (f) e a indicação da associação do qui-quadrado (X2 > 3,80) das palavras em maior afinidade com a classe e nível de significância dessa associação pelo pvalor.

Figura 1 Dendrograma Representativo das Repartições em Classes, Frequência, Associação e Nível de Significância das Palavras com a Classe para Perspectivas de Educadores e Adolescentes.
Nota: *p < 0,0001; **p < 0,01; ***p < 0,05.
A Classe 3 - Família como Contexto de Risco, que foi responsável por 30,4% dos STs, diz respeito a responsabilização da família pelo acolhimento institucional. Nesta classe, as imagens sociais se sustentaram na ideia da família como contexto de risco. Dessa forma, as palavras representativas dos relatos (família, já, vir, mesmo, chegar, abrigo), apontaram para um conteúdo discursivo que sugeriu a família como responsável pelo acolhimento institucional do adolescente, emergindo imagens como desprotegidos (‘precisam de proteção’), vulneráveis, abandonados, vítimas, criminosos. Os trechos que seguem são representativos do conteúdo da classe.
São os adolescentes que precisam de proteção, já que dentro da família, no meio da família deles não existe isso, eles são vulneráveis a riscos altíssimos. Eles são vulneráveis, eles estão correndo riscos de serem agredidos, abandono mesmo... (Educadora; Serviço 2).
São vítimas do governo, porque, geralmente, quem vem para o abrigo, com raras exceções, tem alguém na família que se formou, tem alguém na família que está bom. Geralmente, vem de um vínculo, mesmo, de vulnerabilidade social total, aquela herança, infelizmente, que vai passando de um para o outro. Quando ele chega a vir para o abrigo, ninguém daquela família inteira, nem o pai, uma tia, um irmão, um primo, um parente, uma avó teve condição de ficar. Então, você já vê toda aquela árvore genealógica daquela família (Educadora 1; Serviço 1).
Olha, aqui para nós, os que chegam, hoje em dia, infelizmente, já são todos envolvidos com o crime. Ele já vem criminalizado pela família, por tudo. É só isso que estamos recebendo... No outro abrigo, você vê que lá a maioria é conflito familiar, é abandono, violência e aqui, não, a nossa demanda é uma demanda que a gente se preocupa muito, bem específica mesmo (Educador 1; Serviço 3).
A Classe 1 - Contexto Institucional, que foi responsável por 43,5% dos STs, trata das imagens sociais que emergiram a partir de como o contexto institucional é compreendido, em que as palavras representativas foram: eu, acolhimento, espaço, ser. Daí tem-se a imagem de vítimas de pai, mãe e sociedade. Por outro lado, tem-se o relato dos adolescentes participantes, das quais as imagens evocadas foram: dedicados, respeitosos (‘a gente se dá respeito’) inteligente, triste, fofa, legal, baseadas em como se sentiam e não na violência sofrida. Os trechos que seguem ilustram o conteúdo da classe.
Nosso espaço não é de ato infracional, é de crianças vítimas de violência física, abuso sexual. São adolescentes vítimas de pai e mãe e que, muitas vezes, esse pai e essa mãe são vítimas da sociedade (Educadora 1; Serviço 1).
Eu digo que eles são vítimas da sociedade, por que o governo, na verdade, não tem essa preocupação com políticas públicas. Aí, o que você vê, está tudo muito solto, está tudo muito largado (Educadora 2; Serviço 3).
É o que é espancado pela família, por isso que não tem outra pessoa que possa ficar com ele, outra pessoa da família. Eu acho que acolhimento é o último, dos últimos casos. Eu fico muito frustrada quando tú trazes uma criança que não precisa estar ali naquele espaço. Porque queira ou não queira, é um acolhimento, é uma casa diferente, é uma instituição (...) (Educadora 2; Serviço 1).
Eu acho que os adolescentes não são o que eles pensam, porque a gente não está aqui, porque nós somos bandidos, nós estamos aqui porque precisarmos, até porque ninguém tem vontade de ficar no espaço de acolhimento. A gente convive bem, tem algumas brigas, mas só que os adolescentes que estão aqui são super dedicadas. Agente faz reunião, a gente se dá respeito. Nós não somos o que eles pensam. Eu acho que o que a gente passou, a gente não merece (Adolescente; Serviço 2).
Tem uns que são inteligentes, tem alguns que ficam tristes com algumas coisas que acontecem na família deles, são fofos, legais, porque têm alguns que me ensinam a fazer meu dever, conversam (Adolescente; Serviço 1).
A Classe 2 - Aspecto Privativo do Contexto, que foi responsável por 26,1% dos STs, abrangeu os relatos em que a imagem social não está explícita, mas sugerida na ideia de como o acolhimento institucional tem implicações no afastamento da família e da comunidade de origem. Nesse sentido, pode-se inferir, a partir do relato dos participantes, que o adolescente em situação de acolhimento é, de certa forma, privado tanto dos cuidados imediatos da família, quanto da convivência espontânea com a comunidade. Assim, as palavras representativas da classe (ir, querer) remetem para a ideia de movimento e vontade, podendo ser contextualizadas nos trechos que seguem.
Tú ficas privado de certas coisas, que na tua casa, por fora, tú tens. Por mais que não tenhas tudo, mas tú tens, principalmente, a tua liberdade de ir e vir. A gente teve uma situação aqui, a menina estava namorando e ela achava que tinha que ir para o shopping, ela queria ir, mas não pôde, porque ela está em uma instituição. Aqui eu briguei muito, a gente chamou em reunião para a menina que está com 14 anos ir e vir sozinha da escola (Educadora 2; Serviço 1). Na verdade, eles não queriam que nós estivéssemos cuidando deles, queriam que estivesse a mãe cuidando ou o pai. Têm umas mães que se preocupam, mas têm outras que não, não vou dizer que todas as mães são assim (Educadora; Serviço 2).
Análise Fatorial de Correspondência (AFC)
As Tabelas 1 e 2 apresentam todas as palavras que emergiram no corpus total de análise mais de 10 vezes (ponto de corte sugerido pelo Software) e a força delas (apresentada pelo índice e os sinais + e -) em cada variável, no caso, Educadores e Adolescentes, Serviço 1, Serviço 2 e Serviço 3, de modo a comparar as diferentes evocações emergidas. Assim, a palavra ‘família’ se destaca no relato dos Educadores, apresentandose como vocábulo de importante força semântica no conteúdo verbal. Já a palavra ‘gente’ apareceu com força semântica no relato dos Adolescentes. E ao comparar os índices por Serviço, a palavra ‘família’ teve maior força no Serviço 1 e ‘gente’, no Serviço 2. Quanto ao Serviço 3, as palavras ‘ser’ e ‘não’ tiveram maior força.
Tabela 1 Índices de Força Comparativos entre Variáveis (Educadores e Adolescentes).
Variáveis | ||||
---|---|---|---|---|
Educadores | Adolescentes | |||
índice | f | índice | f | |
Formas | ||||
de | 1.2074 | 33 | -1.2074 | 4 |
para | 1.186 | 11 | -1.186 | 0 |
por | 0.5667 | 10 | -0.5667 | 1 |
com | 0.5667 | 10 | -0.5667 | 1 |
o | 0.4202 | 16 | -0.4202 | 3 |
ser | 0.3699 | 30 | -0.3699 | 7 |
família | 0.3574 | 11 | -0.3574 | 2 |
ele | 0.3574 | 11 | -0.3574 | 2 |
em | 0.3206 | 14 | -0.3206 | 3 |
estar | -0.2422 | 14 | 0.2422 | 4 |
não | -0.2693 | 17 | 0.2693 | 5 |
ter | -0.3086 | 16 | 0.3086 | 5 |
que | -0.4265 | 34 | 0.4265 | 11 |
a | -1.0709 | 20 | 1.0709 | 10 |
gente | -1.8081 | 5 | 1.8081 | 6 |
porque | -2.2737 | 5 | 2.2737 | 7 |
Tabela 2 Índices de Força Comparativos entre as Variáveis (Serviço 1, Serviço2, Serviço 3).
Variáveis | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Servi ço 1 | Servi ço 2 | Servi ço 3 | ||||
Formas | índice | f | índice | f | índice | f |
de | 0.5663 | 17 | -0.4519 | 9 | -0.315 | 11 |
para | 0.3389 | 5 | -1.6284 | 0 | -1.033 | 6 |
por | -0.2749 | 4 | -0.8828 | 1 | 1.033 | 6 |
com | -0.2749 | 4 | -1.6284 | 0 | 1.5818 | 7 |
0 | -0.3148 | 7 | -0.2728 | 5 | 0.4125 | 7 |
ser | -0.2882 | 14 | -0.2601 | 11 | 0.3294 | 12 |
familia | 1.0269 | 8 | -0.6324 | 2 | -0.4302 | 3 |
ele | -1.2688 | 2 | 0.8848 | 6 | 0.4087 | 5 |
em | 0.4456 | 8 | -0.6262 | 3 | 0.34 | 6 |
estar | -0.25 | 7 | 0.3913 | 6 | -0.3219 | 5 |
Não | -0.5522 | 7 | 0.576 | 8 | 0.2435 | 7 |
ter | 1.1033 | 12 | -0.3779 | 5 | -0.8189 | 4 |
que | -0.2484 | 18 | 0.7754 | 16 | -0.7488 | 11 |
a | -1.0836 | 8 | 1.3063 | 13 | -0.2868 | 9 |
gente | -0.9431 | 2 | 1.2318 | 6 | -0.2799 | 3 |
porque | 1.264 | 8 | -0.2673 | 3 | -1.1804 | 1 |
É possível, ainda, visualizar de que maneira as palavras evocadas pelos participantes de cada serviço se distribuem em um Plano Fatorial (Figura 2). Dessa forma, no plano cartesiano, as aproximações e distanciamentos entre as evocações podem ser compreendidas de acordo com a disposição nos quadrantes (Ramos & Amaral-Rosa, 2018).
Observa-se que as palavras tendem a se distribuir perifericamente no Plano Cartesiano. Os vocábulos representativos das evocações que se expandem para o eixo horizontal explicam 60,22% - Fator 1 de variância total das Unidades de Contextos Elementares (UCE) e as palavras que se expandem para o eixo vertical explicam 39,78% - Fator 2 de variância das UCE. Finalmente, no campo semântico do Serviço 1 destacou-se, novamente, a palavra ‘família’ e no Serviço 2, a palavra ‘gente’.
Discussão
No que tange as imagens sociais acerca do adolescente em acolhimento institucional na perspectiva de Adolescentes Acolhidos e Educadores, a Classe 3 - Família como Contexto de Risco, apresentou imagens evocadas (desprotegidos - ‘precisam de proteção’, vulneráveis, abandonados, vítimas, criminosos), a partir de relatos sustentados na ideia da família como contexto de risco, responsabilizada pela institucionalização dos filhos. Ou seja, os conteúdos verbais sugeriram o contexto familiar como prejudicial para os adolescentes. As imagens sociais acerca do adolescente em acolhimento, ao serem associadas à família, aludem a discursos e práticas disseminadas pela doutrina da situação irregular e que estão sujeitas a encontrar brechas nos discursos de profissionais que se ocupam da educação/cuidados de crianças e adolescentes institucionalizados. Os resultados deste estudo, assim, corroboram os apresentados por Zappe et al. (2017), onde as imagens sociais associadas às famílias com filhos acolhidos foram negativas (desestruturada e problemática, por exemplo). Tais imagens podem favorecer o desinvestimento de profissionais em ações de resgate ou fortalecimento de vínculos, importantes para reintegração familiar (Constantino, Assis, & Mesquita, 2013). Os resultados da pesquisa de Ferreira e Moreira (2017) também são semelhantes, quando a família das crianças e adolescentes é despotencializada, pelos profissionais, e considerada incapaz de cuidar dos filhos. Dessa forma, ao trazer a imagem de que os adolescentes acolhidos são ‘vulneráveis a riscos altíssimos’, a fala da Educadora do Serviço 2 chama atenção para a necessidade de se refletir sobre a utilização das categorias risco e vulnerabilidade, pois quando utilizadas de maneira não reflexiva podem atuar a serviço do que chamam de duplo confinamento: “dos corpos, que ficam restritos a um espaço que lhes é determinado - o abrigo, e da subjetividade, que com a insígnia do risco e da vulnerabilidade é capturada e impedida de exercer sua potência” (Crestani & Rocha, 2018, p. 1). Destaca-se também que ao se referir ao adolescente envolvido com o crime, demanda atendida pelo Serviço 3, o Educador 1 o diferenciou de crianças e adolescentes atendidos em outro serviço de acolhimento, no qual a demanda, segundo ele, era devido ao conflito familiar, abandono e violência. O resultado da AFC quanto ao índice de maior força para as palavras ‘ser’ e ‘não’ no Serviço 3, encontra correspondência no relato do referido Educador, o qual indica que o perfil de adolescente atendido pelo Serviço 3 não é o preconizado pelo ECA (Lei nº 8.069, 1990), para o acolhimento institucional. Trata-se de adolescentes em conflito com a a lei, para os quais a medida deveria ser a socioeducativa, prevista no Art. 112, VI do ECA (Lei nº 8.069, 1990). A fala do Educador 1 do Serviço 3 ainda traz a noção de conflito familiar, que remete ao de vulnerabilidade, que busca expressar a suscetibilidade individual e grupal a determinadas condições contextuais. Assim, precisa-se atentar para o uso imperativo entre os conceitos vulnerabilidade e risco, pois, segundo Crestani e Rocha (2018), ao acessarem documentos e legislações, observaram que tais conceitos aparecem associados, o que promove uma confluência entre seus significados. A consequência disso é risco e vulnerabilidade serem utilizados no cotidiano dos serviços como termos equivalentes. E um dos efeitos dessa equivalência também, para as autoras, é o acolhimento institucio nal indevido. O relato da Educadora 2 do Serviço 1, é complementar, quando fala da excepcionalidade da medida do acolhimento. É importante problematizar o conflito familiar, o qual só poderá configurar motivo de acolhimento se desse conflito, a criança ou adolescente forem colocados em situação de risco, que se estabelece em relações probabilísticas entre um evento presente e uma consequência futura (Crestani & Rocha, 2018). Nessa perspectiva, o conflito familiar não deve ser analisado de forma isolada, mas a partir de um conjunto de fatores. É fundamental que aos profissionais sejam oferecidos cursos de capacitação e formação continuada, que oportunizem a reflexão crítica dos aspectos históricos, sociais e culturais que envolveram a política de atendimento à crianças e adolescentes em situação de pobreza e suas famílias e contribuir para conscientização sobre a importância de atitudes e práticas voltadas para as potencialidades das crianças, adolescentes e suas famílias (Zappe et al., 2017). Em convergência, Patias et al., (2017), apontam para a necessidade de sensibilizar os educadores dos serviços de acolhimento para as crenças negativas que historicamente foram associadas aos jovens em acolhimento institucional, uma vez que esses profissionais desempenham uma função significativa durante o afastamento do contexto familiar e as imagens sociais negativas associadas às famílias, crianças e adolescentes influenciam o seu fazer profissional, de forma a dificultar o processo de reintegração familiar, pois os profissionais podem não acreditar no potencial e nas capacidades dessas famílias para reaver o cuidado dos seus filhos. Na Classe 1 - em Contexto Institucional, as imagens sociais emergiram de acordo como o contexto institucional era compreendido pelos participantes. Nesse sentido, a imagem que emergiu foi a de vítima (vítimas de pai e mãe, vítimas da sociedade). Mais uma vez, a família apareceu como responsável pela vitimização dos filhos. No entanto, essa responsabilidade vem acompanhada de um olhar mais amplo, que é o de trazer à tona o discurso de que tanto o adolescente, quanto à família são vítimas da sociedade/governo. Essa perspectiva aponta para uma maneira problematizadora de pensar a situação contextual do adolescente, em que diverge de atribuições que foram conferidas às suas famílias, tidas como as responsáveis pelas condições de vida dos filhos. Trata-se de um discurso que vai de encontro, nos dizeres de Rodrigues, Hennigen e Cruz (2013), à racionalidade neoliberal, para a qual a família deve gerenciar a si mesma e encontrar soluções de enfrentamento dos seus problemas, sem que se questione a produção social implicada. A situação de violência ou de violação de direitos que vitimou o adolescente e deflagrou na medida de acolhimento institucional, situa-se em uma questão social complexa e o processo de acompanhamento dessas famílias requer a criação de intervenções pautadas em uma visão mais ampla, e problematizadora como as das Educadoras, da proteção dos direitos de cada membro da família (Fonseca & Koller, 2018). Contudo, do relato dos Adolescentes, emergiram imagens que, mesmo aludindo à violação de direito por qual passaram, se deslocaram para a perspectiva do que pensam a respeito de si (dedicados, inteligentes, fofos, legais). Além disso, os relatos apontam para uma convivência harmoniosa entre os adolescentes acolhidos. A diferença de perspectiva entre Educadores e Adolescentes é confirmada pelos resultados da AFC, onde a palavra ‘família’ se destaca no relato dos Educadores e a palavra ‘gente’, no relato dos Adolescentes. Esses resultados são semelhantes aos encontrados na pesquisa de Assis, Avanci, Silva, Malaquias, Santos e Oliveira (2003), na qual os adolescentes de diferentes contextos apresentaram uma percepção positiva de si. Segundo as autoras, essa visão positiva de si “precisa ser reconhecida e transformada em estratégias de promoção da saúde, prevenção e atenção dos agravos à saúde” (p. 669). Finalmente, na Classe 2 - Aspecto Privativo do Contexto, a imagem do adolescente que despontou foi a de privado de liberdade e dos cuidados da família. A fala da Educadora do Serviço 1 sugeriu certo controle na saída de um adolescente, que queria ir ao Shopping e a sua solicitação, para que outra pudesse ir e voltar sozinha da escola. Esse resultado corrobora o estudo de Faria et al. (2008), no qual os adolescentes participantes apontaram com insatisfação a falta de liberdade. Observa-se que, atualmente, o ECA (Lei nº 8.069, 1990) preconiza o direito à convivência familiar e comunitária como um direito fundamental. Assim, o relato da Educadora traz à tona situações que envolvem a construção de um Projeto Político Pedagógico que prevê o planejamento de ações voltadas a promoção de atividades tanto dentro, quanto fora da instituição, tendo os adolescentes como protagonistas, em que “a liberdade deve ser vista como parceira da responsabilidade, considerando que uma não pode ser adquirida sem a outra” (Resolução nº 1, 2009, p. 29). Para tanto, além das reuniões entre equipe técnica e educadores, as Orien tações Técnicas (Resolução nº 1, 2009) consideram que às crianças e aos adolescentes sejam dadas oportunidades de participar da programação das atividades de lazer (culturais e sociais), por meio da realização de assembleias, nas quais possam se manifestar e ter suas opiniões consideradas. O mesmo é válido para a relação que se estabelece entre os serviços de acolhimento e a família dos adolescentes. Se há o entendimento que as famílias apontadas como as violadoras dos direitos de seus filhos, também são violadas em seus direitos, conforme discutido nas Classes 3 e 1, é necessário que os profissionais se empenhem no fortalecimento desse mesossistema, que diz respeito às inter-relações entre dois ou mais contextos, de forma a promover as interconexões: Participação Multiambiente, Ligação Indireta e Comunicação e Conhecimento Inter ambiente (Bronfenbrenner, 1996). A relação estabelecida entre a família e os profissionais dos serviços de acolhimento deve ser orientada para fortalecer os vínculos rompidos. Portanto, a percepção, o sentimento e expectativas que família e profissionais tem um do outro, refletem diretamente na relação, sendo necessário uma atuação próxima, empática e respeitosa entre os envolvidos (Fonseca & Koller, 2018; Biasoli-Alves, 2005). E mais, quando houver possibilidades efetivas de reintegração familiar, o processo deve envolver a crescente participação da família na vida da criança e do adolescente, inclusive, no cumprimento das responsabilidades parentais, por meio da inserção da família em atividades que envolvam os filhos - reuniões escolares, consultas de saúde, comemoração do aniversário, atividades na comunidade, entre outras (Brasil, 2009). Diante disso, o ECA (Lei nº 8.069, 1990), preconiza o fim da segregação e do isolamento social, uma vez que a convivência comunitária é um direito fundamental e, como tal, deve ser garantido a crianças/adolescentes em situação de acolhimento, por meio do acesso aos serviços oferecidos e oportunidades de relação na comunidade e vizinhança (Cruz, Cardoso, & Matos, 2018). Segundo Patias et al., (2016) e Wendt et al. (2017), interagir com a comunidade pode contribuir com a minimização/atenuação da imagem social negativa, pejorativa e depreciativa que se desenvolveu em crianças/adolescentes, vistas por longo período como prejudiciais ao convívio na sociedade/comunidade. Isso aponta para um sistema de imagens subjacentes ao nível da cultura ou subcultura, cujas raízes se assentam em estruturas institucionais e ideologias relacionadas - Macrossistema (Bronfenbrenner, 1996; Cruz et al., 2018).
Considerações Finais
O presente estudo teve como objetivo analisar as imagens sociais atribuídas ao adolescente em acolhimento institucional, a partir da perspectiva de Educadores e Adolescentes acolhidos. Nesse sentido, quanto aos Educadores, as imagens sociais emergiram a partir da culpabilização da família, vista como contexto de risco. Na contramão, as imagens sociais que emergiram do relato dos Adolescentes foram mais positivas (dedicadas, respeitosas, inteligentes, fofos, legais). Foi possível apreender também imagens a partir da ideia das implicações que o acolhimento institucional tem no afastamento dos adolescentes da família e da comunidade de origem. Assim, o adolescente foi descrito pelos Educadores como privado dos cuidados imediatos da família e da convivência espontânea com a comunidade. Pode-se dizer que as imagens sociais do adolescente institucionalizado, ao emergirem das imagens acerca de suas famílias, estão vinculadas ao processo de exclusão e desigualdade sociais das famílias em situação de pobreza. Percebe-se que o modelo da deficiência tem sido a base de muitas políticas públicas, onde a família para receber apoio tem de provar seu esmorecimento/desvanecimento, porém, essa inadequação resulta, muitas vezes, das próprias ações públicas (Brofenbrenner, 2011). Os resultados deste estudo evidenciam a importância da qualificação dos profissionais, especialmente dos educadores, pois estes são fundamentais no processo de reintegração familiar dos acolhidos. Os serviços de acolhimento devem atuar como dispositivos de mudança e reconfiguração de imagens sociais consolidadas historicamente. Conforme as Orientações Técnicas (Resolução nº 1, 2009), o processo de recrutamento e seleção profissional deve ser baseado em um perfil, com critérios específicos para cada cargo. O emprego de pessoas sem a devida qualificação reforça os estigmas e as imagens negativas acerca da população acolhida e de suas famílias. Chama-se a atenção para a regulamentação da ocupação de Educador Social, com parâmetros básicos de formação para o exercício do cargo, conforme o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (Brasil, 2006), bem como o desenvolvimento de programas de capacitação para todos os profissionais que exercem seu trabalho em serviços de acolhimento. No tocante às limitações, não foi possível envolver outros profissionais na coleta de dados, como os coordenadores e a equipe técnica dos serviços, em virtude da disponibilidade de tempo para a coleta. Assim, na direção de pesquisas futuras, sugere-se que os estudos abranjam um corpo maior de profissionais, bem como de adolescentes, e até mesmo crianças, como forma de valorização da voz e do protagonismo desses sujeitos. Diante dessas considerações, acredita-se que a pesquisa aqui apresentada possa trazer elementos teórico-práticos capazes de tratar a dinâmica e os limites das relações estabelecidas no serviço de acolhimento. Pretende-se, portanto, contribuir com as discussões sociais, políticas, históricas e culturais sobre os direitos de crianças e adolescentes institucionalizados. Os saberes produzidos, a partir da apreensão das imagens sociais de adolescentes em situação de acolhimento institucional, podem apontar para a elaboração de formas efetivas de ação, capazes de favorecer a relação entre os educadores e adolescentes acolhidos, e suas famílias, com uma configuração mais próxima e real ao que preconiza o ECA (Lei nº 8.069, 1990), baseada no respeito e no direito à convivência familiar e comunitária.