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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.3 São Paulo  1997

 

DOSSIÊ

 

Mens prozac in corpore xanax: as hesitações da responsabilidade subjetiva nos eua hoje1

 

 

Patricia Gherovici

Psicanalista
Tradução: Daniela Teperman

 

 

Tal como nos foi imposta, a vida se torna para nós demasiado pesada, e nos póe diante de sofrimentos excessivos, de decepções e de empresas impossíveis. Para suportá-la, não podemos passar sem lenitivos. ("Não se pode prescindir das muletas, disse Tbeodor Fonlane). Deles, há talvez três espécies: distrações poderosas que fazem nossa miséria parecer pequena; satisfações substitutivas que a reduzem; narcóticos que nos tornam insensíveis a ela. Qualquer um desses remédios nos é indispensável.

Freud, 1981 [1929/1930], p 3024.

 

Estava em plena preparação desta apresentação quando coincidente e convenientemente o jornal New York Times de domingo, dez de agosto, publicou em sua primeira página um artigo que merece ser comenta do2 Prozac, nos confirma o New York Times, é, sem dúvida, o antidepressivo mais popular nos EDA, mas a indústria da "psicofarmacologia cosmética", inaugurada pelo Prozac, está passando por uma depressão. O Prozac não toma Prozac. Com um mercado saturado, os laboratórios produtores de antidepressivos estão buscando um "marketing lift" (sic), uma "ampliação". Então, a resposta que começa a se delinear é que o futuro são as crianças. E, apesar de que o uso pediatria) de antidepressivos não tenha sido autorizado oficialmente, nos EDA mais de meio milhão de crianças está tomando o famoso medicamento. O New York Times observa que esta medicação é ministrada como uma alternativa às "custosas psicoterapias convencionais". No mesmo artigo se ressalta que as vendas de Prozac nos EUA atingiram um total de 1,73 bilhões de dólares. Qual é então o custo das "custosas terapias convencionais"? Está ali onde o "infantil" do porvir de Prozac repercute em sua qualidade de infans, ou seja, incapaz de falar, sem palavra. Por um lado, a escolha da medicação evidencia uma inevitável desvantagem das terapias de sugestão (especialmente para esta jovem população, talvez mais vulnerável à demanda do Outro) devido à solida fascinação da validade científica do fármaco e por outro, evidencia que existe uma renúncia maior à responsabilidade subjetiva. Farei algumas citações que exemplificam melhor esta questão. O mencionado artigo começa com a história de uma menina de 15 anos que toma Prozac desde os cinco: "Antes do Prozac, era um desastre,/ não podiam deixada sozinha, nem sequer por alguns minutos. Pessoas desconhecidas aterrorizaram-na, estaca obcecada por pensamentos de que seus pais morreriam ou de que havia ladrões na casa. A terapia convencional não deu resultado, diz a mãe, que falou com a condição de que sua filha não fosse identificada. Mas depois do Prozac, a menina se transformou. Hoje, é uma das melhores alunas da escola". A mãe desta menina, que é uma "trabalhadora social" - título que nos EUA autoriza a exercer a atividade de psicoterapeuta - acrescenta: "dar uma medicação a um filho dá muito medo, mas dar-lhe algo que não está aprovado assusta ainda mais. Como não haviam realizado nenhum estudo, eu era contra a medicação. Mas agora sou uma fiel defensora, olho para aqueles que têm problemas mentais e digo: 'por que você não toma esta droga?' " Nesta transcrição das declarações da mãe desta "menina-farmacón" optei por manter a palavra "droga" literalmente, porque aqui o que se destaca é o significado em grego de pharmakon: medicamento, remédio, antídoto, também veneno e droga, derivados da seiva de uma planta que se usava como medicamento, como veneno ou como pigmento ou pintura para o rosto, ou seja, um cosmético.

E há bastante ironia nesta questão. O psiquiatra que medica esta menina, Harold Koplewicz, promove entusiasmado o uso de antidepressivos em crianças, alegando que, ao tratar a depressão infantil com medicação, suas vidas são salvas. Diz que com essa droga, ele não promove o uso de drogas, porque ao prescrever antidepressivos evita que jovens se automediquem com drogas "para sentir-se bem", que são ilegais. Koplewicz, que é autor do best-seller "Não é culpa de ninguém" (It's nobody's fault, publicado em 1996, livro cujo título é revelador), deixa de lado o fato de que Prozac não foi aprovado para uso pediátrico, e também o que o psiquiatra Peter Kramer, em "Escutando ao Prozac", revela: aqueles que tomam Prozac não se sentem bem, mas "mais que bem". Acrescento a este panorama minha experiência com pacientes norte-americanos de classe média que tomam Prozac não para sentir-se bem, mas "para não sentir que não se sentem bem"; continuam deprimidos, mas não se importam. Prozac apaga para eles a existência do conflito e lhes permite produzir mais, de acordo com as expectativas sociais vigentes. Evitando o conflito, Prozac medica a condição humana, remeda, remedia e remenda o mal-estar na cultura.

O psiquiatra Kramer observa, além disso, que Prozac tem um poder transformador sobre a "sensibilidade". Kramer explica que quando seus pacientes eram cuidadosos e inibidos, se sentiam mal, mas uma vez medicados, tornavam-se seguros e flexíveis. Kramer admite que este estilo de personalidade torna-se bem sucedido porque é aquele que sua cultura favorece. Como dar conta, em termos psicanalíticos. da modificação subjetiva produzida pela ação desta droga? Minha hipótese é que o Prozac adormece a dialética Eu - Ideal do eu, pois desaparecem as habituais tensões, hesitações e altos e baixos que caracterizam a relação entre o Pu e o sentimento de si (Selbstgefubls), o medicamento diminui a "sensibilidade" do sujeito, que se torna menos vulnerável às feridas narcísicas mas fica à mercê da voracidade do Superego. Voracidade de um Superego irresponsável que impõe um mandato imperativo no qual o sujeito não tem nenhum lugar, ficando excluído de seu próprio discurso. Prozac oferece uma promessa de Nirvana suplementando a falta fundamental que constitui o sujeito. Não nos surpreenderá então que o desejo vá diminuindo, já que a bula que acompanha Prozac nos alerta que este medicamento produz uma diminuição na libido, e é curioso o uso literal da palavra libido quando se questiona tanto o legado de Freud.

O uso de Prozac sugere que a castração não é experimentada em sua dupla função: como proibição e, ao mesmo tempo, como via de abertura ao desejo. A falta, longe de ser causa de desejo e criadora de uma ilusão de síntese, é evitada. A síntese não é ilusória, mas narcótica, fálica, já que narcótico deriva do grego narké, entorpecimento. Ao suprimir-se o espaço e o tempo da renúncia, fabrica-se um entorpecimento farmacologia) e cosmético. Vale ressaltar que cosmético deriva de cosmos, universo, ordem, estrutura e também adorno. Formula-se então uma ordem universal fannacológica onde a ilusão de completude se estrutura sobre o adorno de Prozac. E na impossibilidade de renúncia que encontramos uma possível resposta. De acordo com Joan Copjec, a sociedade de hoje intensifica a demanda de um retorno, a demanda de um lucro. Esta lógica recusa a idéia de que algo "se perde permanentemente, inevitavelmente irrecuperável para sempre". Esta fundamental idéia de perda, continua Copjec, torna a psicanálise um precário anátema do capitalismo.

Poderíamos alegar, por exemplo, que o sofrimento é produtivo, mas a produção psíquica pareceria ir em direção oposta à lógica de produção capitalista. O sofrimento não oferece um cálculo exato de reciprocidade. Se "Time is money" e não há tempo para o sofrimento, não há tempo a perder, não há perda. Na suspensão da medicação surge um deslocamento que sugere uma atemporalidade melancólica. Sofrimento pendente que remete ao objeto primordial que se perdeu, o falo materno. Sofrimento possibilitado! - da instauração de um desejo que muito possivelmente não contribua para a sobrevivência do sujeito, desejo que muito possivelmente cancele a necessidade, deixe de lado os melhores interesses, ou se entretenha em questões vagas, talvez muito distantes daquelas relacionadas com ganhar a vida.

O pró de Prozac faz referência a um medicamento privilegiado para os profissionais que têm que estar a todo momento, sem falta, produzindo suspendidos e alienados na atemporalidade interminável da linha de produção. Lacan chama o Superego de escravo do capitalismo. Podemos aqui estabelecer uma diferença entre o consumo de folhas de coca pelos trabalhadores indígenas, que recorrem à droga para prover o corpo com mais energia e continuar produzindo além de sua capacidade normal, e o uso de Prozac, que não tem efeito direto sobre o corpo mas sobre os recursos psíquicos que desencadeiam sintomas, sendo uma droga do capitalismo tardio, para aqueles que não requerem um desempenho físico muscular, apagando o conflito que possa atentar contra a produção dos trabalhadores "white collar" (de colarinho branco). E é precisamente nas margens da produção capitalista que Prozac não atua. A popularidade indiscutível de Prozac não atravessa as fronteiras lingüísticas do gueto hispânico. No "bairro" onde a pobreza se perpetua em pelo menos três gerações desempregadas, ninguém quer Prozac. Os pacientes demandam, no entanto, a "pílula chinesa", ou seja, a pílula cor de laranja de meio miligrama de Xanax. Xanax ou Alprazolam é um agente da classe dos benzodiazepínicos, indicado para o tratamento da ansiedade. Os hispânicos, na transliteração de angústia pelo inglês "anxiety", parecem estar bastante ansiosos. Todo mundo toma Xanax, e quando a receita não vem do médico, é fácil conseguir Xanax, já que há um tráfico ilegal nas esquinas do gueto. Os pacientes com os quais trabalhei no gueto hispânico estavam, em geral, predispostos a começar uma psicoterapia, mas eram inexoráveis em sua demanda por Xanax: queriam, sem postergação, uma rápida solução para sua ansiedade/ angústia.

Esta diferença nas preferências farmacológicas entre a população anglo-saxona de classe média e a população hispânica do gueto me parece reveladora. Por isso vou ler o fenômeno Prozac/Xanax como uma metáfora com implicações sociais extensas.

Os laboratórios vêm produzindo antidepressivos há anos, mas nenhum havia atingido até agora a celebridade de Prozac: um medicamento que é estrela de televisão, ocupa capas de revistas e é tema de conversas em âmbitos científicos e em reuniões sociais. A exaltação de Prozac vai além da crença cega de que Prozac e seus substitutos são a única resposta para a depressão - concebida como "desequilíbrio químico" - e sua implicação direta de que a biologia é o destino; sugerindo uma operação de consumo onde a ilegalidade ou legalidade da droga não faz diferença (pharmakon/medicamento/ veneno). Prozac parece oferecer uma promessa de Nirvana onde a depressão parece exigir uma privação e uma renúncia. Mas o que dizer do Xanax?

Como ressalta Pablo Kovalosky em seu trabalho apresentado na Reunião Lacanoamericana de 1995, "Depressão", Prozac produz o efeito de "sentir-se outro", manufatura um sujeito auto-suficiente que se submete às regras do marketing social/sexual/econômico, mas que é um sujeito sem história. A mensagem contida na cápsula do Prozac funciona, mens Prozac implica uma lógica de suplementação da falta, medicando uma falha constitutiva que é inaceitável para a lógica de produção capitalista, onde nada se perde. Com Prozac "se sentem outros", liberados da armadilha da imagem especular. Desse modo, mens Prozac medica a imagem infantil, sem palavras, para converter o sujeito neste trabalhador escravo, sem conflito, do capitalismo tardio. O hispânico é o outro ou semelhante do norte-americano anglo-saxão? Aqui os hispânicos voltam a recordar com ansiedade em seus ataques de histeria (história) (3) que mantêm viva a memória do pai. A angústia obturada pelo tampão de Xanax nos fala dos hispânicos como a gota d´água que revela a estrutura. Os hispânicos são freqüentemente questionados a partir do discurso do Outro, ou seja, o discurso oficial, em sua condição de sujeitos. As conseqüências diretas, são, por exemplo, a constante exclusão do uso da psicanálise como alternativa para os hispânicos, os quais se supõem sem inconsciente. Não é de se estranhar que se angustiem. No nível social, se podemos dar-nos o luxo de tal análise, os hispânicos surgem como evidência do que não se quer ver. Sua angústia, sintoma de sua transação com o Outro, marca os efeitos da ausência da palavra. Lacan diz que a angústia não é sem objeto e surge quando a falta falta. Os hispânicos, à margem da lógica de produção capitalista, mas funcionando como falta e excesso, são negados em sua função de outro. Se angustiam porque não há falta, e os efeitos da ausência de palavra se evidenciam na dor do corpo que pede para ser sanado/xanado quando se ataca com ataques histéricos, um corpo angustiado frente ao Che roi? do Outro; como podemos observar na Síndrome Porto-riquenha, sobre a qual elaborei outro trabalho. Xanax medica a preocupação dos desocupados, que em vez de produzir bens, produzem sintomas sociais. Lacan diz em A Terceira que a angústia surge do medo produzido quando nos reduzimos ao próprio corpo e dos traços do real que garantem que as coisas andem. O gozo do Outro anula os hispânicos como sujeitos e os reduz a corpos a numerar, sem voz nem voto, que somente aparecem como cifras estatísticas que prognosticam uma penosa situação para uma minoria que até o ano 2000 será "a primeira", ou seja, a mais numerosa e a mais pobre nos EUA. Angústia frente ao enigma do Outro em uma situação onde para os hispânicos o espelho identificatório está opaco já que não são considerados semelhantes. E como no cenário desencadeante de uma fobia, o Outro não castrado não dá lugar à própria demanda.

Arrastando o falasser, evitando a falta, o sujeito hesita em sua subjetividade. O apagamento do inconsciente não é um fenômeno somente do gueto, mas surge, por exemplo, na generalizada hesitação da responsabilidade subjetiva. Como ressalta a partir do título de seu livro, o promotor de antidepressivos para crianças, Koplewicz, autor de "Não é culpa de ninguém", constrói uma situação na qual ao não haver falta, não há, tampouco, responsabilidade, não há sujeito, somente existem órgãos sobredeterminados geneticamente, e é por isso que Koplewicz fala do que ele chama "desordens cerebrais sem culpa" explicados como um cotps ex machina. Fobias, timidez, obsessões, ansiedade, enurese, depressão, melancolia - e a lista continua - são simplesmente desordens na química do cérebro que não são culpa de ninguém e que a medicação há de corrigir. Esta tendência à infantilização de tantas almas belas habitando uma coleção de órgãos sem inconsciente evita a responsabilidade subjetiva e produz um vazio que retorna nas aberrações das caças de bruxas dos anos 90, as epidemias histéricas da cultura moderna (Showalter, 1997). Síndromes deste fim de século: contos de seqüestros por OVNIS, histórias de síndromes de fadiga crônica, escândalos enraizados no ressurgimento de recordações reprimidas, multiplicações de abusos sexuais, de rituais satânicos. Epidemias que têm em comum uma narrativa onde todo mundo é vítima e sobrevivente de algum abuso individual ou parte de uma conspiração da CIA, dos OVNIS ou do demônio, onde cada um é sempre inocente a menos que o outro o acuse em uma armadilha de onipotência fálica e narcisista, no absurdo da exagerada quantidade de litígios ilegais nos quais, se algo vai mal, sempre é culpa ou responsabilidade do outro. Qual outro? O sósia de quem?

No plano sócio-cultural, observamos que a função potencialmente sintomática dos hispânicos ressalta a impossibilidade deste estado de coisas, onde a realidade do inconsciente retorna dizendo que não há relação social. Do mesmo modo que para a sexualidade, a anomia social deste grupo heterogêneo e às vezes invisível, força, em seus sintomas, os norte-americanos a rever suas noções sobre o inconsciente em relação ao impossível. Obriga-os a formular uma pergunta que permita transformar a impotência frente ao sintoma em saber. Forcluídos em sentido social, por um Outro que os supõe sem palavra, infantilizados, mas impondo aceleradamente o crescente domínio do spanglisb na fala e na escrita. É precisamente esta população hispânica: fruto de uma falha lingüística, no desfiladeiro subversivo do spanglisb, língua fabricada por transliterações, próxima à a língua, e que em sua qualidade de língua atravessada pelo desejo, o inconsciente e a impossibilidade da relação sexual, a qual ressalta a inevitável falta do Outro como inconsciência assim constituída como tal. Sobre o fio da angústia se sustenta a possibilidade de uma análise, e a partir desta é possível que este impasse Mens Prozac in Corpore Xanax encontre sua saída.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BREGGIN, P. e BREGGIN, G.R. (199Í). Talking back to Prozac. NY. St. Martin's Press.         [ Links ]

COPJEC, J. (1994). Supposing the subject. NY: Verso.         [ Links ]

FREUD, S. (1981). El Malestar en la cultura. In: Obras Completas de Sigmuud Freud. Ensayo CXLV, Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva. 1929 (1930).         [ Links ]

GHEROVICI, P. (1996). The Puerto Rican Syndrome. In: Journal for the psychoanalysis of culture and society. Volume 1, número 2.         [ Links ]

KOPLEWICZ, H. (1996). It's nobody's fault. NY.         [ Links ] KOVALOSKY, P. (1995). Depression. In Reunion Lacanoamericana de Buenos Aires.         [ Links ] KRAMER, P. (1993). Listening to Prozac. NY. Viking.         [ Links ]

LACAN, J. (1988). Seminário La Angustia 1962-63. Versão inédita. In: hitewencionesy textos 2. Buenos Aires. Manantial.         [ Links ] SHOWALTER, E. (1997). Hystories: Hysterical epidemics and modern culture. New York. Columbia University Press.         [ Links ]

 

 

(1) Trabalho apresentado na Reunião Lacanoamericana de Psicanálise da Bahia, realizada de 27 a 30 de agosto de 1997.
(2) Use of antidepression Medicine for youngsters has soared. The New York Times, 10/09/97.
(3) Alfredo Carrasquillo desenvolve este deslocamento histeria/história em sua apresentação do colóquio anual da APCS na Universidade de George Washington, novembro de 1997.