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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Cozinhando o imprevisto e o improviso

 

Cooking the unpredictable and the impromptu

 

 

Renata De Luca

Psicanalista, aluna do curso de especialização "Tratamento e escolarização de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento", da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, Instituto de Psicologia, USP

 

 


RESUMO

Partindo da observação do trabalho na cozinha da École expérimentale de Bonneuil, pretendemos discutir os pressupostos teóricos que direcionam o trabalho psicanalítico nas instituições que se orientam por este eixo, como clareagem psicanalítica, imprevisto e improviso.

Bonneuil; clareagem psicanlítica; escola.


ABSTRACT

This article intends to discuss the theoretical statements that direct the work on the psychoanalysis-orientated institutions, like éclairage psychanalytique, unpredictable and impromptu. The starting of these reflections lies on the kitchen work at Bonneuil School.

Bonneuil; éclairage psychanalytique; school


 

 

Grandes verdades costumam surgir em torno das mesas de refeições. Lugar onde famílias e amigos provam o sabor de suas intimidades. A arte conta-nos desse "algo mais" que acompanha o tempero das comidas. Quantas histórias ditas ou caladas acompanham a confecção e o saborear de um prato. Amargos sabores, doces lembranças...

A cozinha da École expérimentale de Bonneuil-sur-Marne não poderia ser diferente, visto que se trata de um lugar para viver. E faz parte da vida digna um prato de comida que contenha história. Não a refeição fria das instituições assépticas, preparadas por funcionários que desconhecem o destino de seus produtos, mas comida com sabor de arte.

Robert Lefort nos fala, em uma entrevista concedida a Guy Seligmann por ocasião da produção do filme Para viver em Bonneuil, do risco de toda instituição em ocupar um lugar de todo-poderosa, impossibilitando o indivíduo de poder desligar-se dela sem o risco de ruptura: "uma instituição é como uma espécie de pessoa que se alimenta das pessoas que lhe são confiadas". Justamente, em Bonneuil a instituição, buscando não se alimentar de seus alunos, cozinha o dia-a-dia com arte e história.

Quando falo em arte, pressuponho um sujeito e sua forma particular de desejar. Desejo de quê? O que se deseja em Bonneuil?

Como disse Mannoni em uma entrevista: "não se visa nada de terapêutico, nada de analítico, nada da ordem da remoção dos sintomas. Nós estamos interessados em privilegiar os níveis da realidade e da imaginação" (Kupfer, 1992, p.3).

Assim sendo, podemos constatar que em Bonneuil não existem especialistas, devido ao princípio segundo o qual as crianças não estão lá para serem cuidadas ou estimuladas nas suas deficiências. Na medida em que não se administram cuidados ou técnicas, Bonneuil subverte a lógica imperativa atual das instituições que se ocupam de crianças em dificuldades. Cuidados, técnicas de estimulação, especialistas, comida asséptica... Este tem sido o cardápio oferecido pelas instituições às crianças que estão de certa forma segregadas.

Em Bonneuil, o que se visa é uma vida sem segregação, portanto sem cuidados ou especialistas. Lá existem adultos que buscam sustentar a criança em sua subjetivação. O que se deseja é um estilo de vida.

Como isto pode ser observado nas atividades da cozinha?

A equipe profissional de Bonneuil é a responsável pelo preparo do almoço, assim como algumas crianças e estagiários.

Ao serem divididas as atividades da manhã, nós os estagiários evitávamos a participação na cozinha, talvez porque imaginássemos que lá nada ocorria, talvez por achar pouco nobre para um psicanalista.

Mas, era inevitável. Todos os dias, dois estagiários eram eleitos, mas sempre por exclusão.1 Ou seja, quando não restavam vagas nas outras atividades, quem sobrava ia para a cozinha. Isto nos mostra que, a despeito da possibilidade de escolha que permanentemente está em jogo em Bonneuil, nesta escolha há também algo da ordem de um interdito que visa o prosseguimento do trabalho, ou seja, a criança não pode ficar sem fazer nada e também não pode fazer tudo, visto que é necessário fazer uma divisão para que todas as atividades aconteçam.

Mal sabíamos nós o palco privilegiado que existia naquele espaço. A primeira surpresa foi ver que adultos trabalham duramente, produzindo uma refeição para aproximadamente cinqüenta pessoas. Lá não se faz de conta para efeitos de ordem demagógica ou moral. Tudo é de verdade, inclusive as facas e as louças.

Algumas crianças também colaboram com este trabalho: picam legumes, lavam a salada, colocam a mesa, enxugam a louça, buscam o pão. Aí, por mais comprometida ou dispersa que seja a criança, não existe uma preocupação com uma perspectiva de rendimento, o que importa é que a criança sinta-se trabalhando. E os adultos estão ali para fazer com que isto prossiga: lembram-na das suas obrigações para com os outros, dividem as tarefas com as outras. Não existem elogios como "parabéns, você fez direitinho". Eles deixam claro que aquela é a obrigação da criança para com os outros.

Isto, em Bonneuil, pode ser chamado de cultura. Como diz de Lajonquière (1997), "o cotidiano em Bonneuil aponta à sustentação da possibilidade de as crianças virem a fazer laço social. Entre o adulto e a criança medeia um fragmento cultural. Em outras palavras, é como se se dissesse às crianças: 'você não faz porque eu quero, você faz assim porque é desta forma que todos devemos fazer se quisermos manter vivo esse pedaço de cultura'".

O trabalho de Olivia2 era lavar e cortar a salada. Ela percorria a cozinha com a saladeira nas mãos, aproximando-se de todos os adultos para dizer: "eu estou trabalhando". Talvez buscasse um reconhecimento, uma confirmação. O adulto responsável pelo almoço naquela manhã trouxe Olivia até a pia e lhe disse: "todos estamos trabalhando e é preciso que você lave e corte a salada aqui e não dê voltas pela cozinha".

Esta intervenção pode ser pensada como óbvia, podendo ser feita por qualquer familiar minimamente orientado. Mas é justamente disso que se trata, visto que, para essas crianças, é o lugar de sujeito a partir do qual ela poderia ser chamada e daí responder que se encontra apagada. É esse o lugar que Bonneuil busca resgatar, e por isso a preocupação não consiste em interpretar3 o que a criança diz e sim "pretende-se que a história singular e sintomática daquela criança seja superada em benefício de sua história social, comum a todos", como nos ensina Marie-José Richer-Lérès, psicanalista, em uma reunião para os estagiários na escola.

É inevitável não retomarmos a questão que se apresenta ao nos depararmos com estas intervenções: até que ponto a psicanálise anima estas inteivenções? O que se faz em Bonneuil é terapêutico? Ou, como indagou Kupfer (1992), quanto está presente a psicanálise na escola de Bonneuil?

Kupfer recorre à noção, apresentada por M. Mannoni, de clareagem psicanalítica, para responder a esta questão. "Algo que permeia e que ilumina a prática. E esta clareagem viria a partir de uma prática de psicanalistas que poderiam dispor desta clareagem, que orientaria o fazer desta pessoa, que é um psicanalista. Então, orientaria o trabalho frente àquilo que fosse imprevisto, e que permitiria então que respondêssemos com algo de improviso."

Estes eixos do imprevisto e do improviso são norteadores do trabalho em Bonneuil. Isto somente é possível devido à configuração desta instituição, que parece não buscar a miragem perversa dos seus membros. Ou seja, os adultos não se oferecem como espelhos para as crianças se projetarem, porque não ditam uma maneira correta de se fazer ou de aprender em nome de uma especialidade. A psicologização do cotidiano escolar4 é o que faz espelhos, produzindo, conseqüentemente, desvios. Os imprevistos passam a ser vistos como desvios.

O que particulariza Bonneuil é a tentativa de rompimento com esta especularização institucional. A respeito disso, diz Mannoni: "creio que o importante é a maneira como procuramos privilegiar Bonneuil como lugar de passagem. Percorre-se lá um trajeto feito pelas crianças e pelos adultos, e esse lugar não é apresentado como modelo; simplesmente, a partir de um interrogatório sobre a chamada educação e a chamada terapêutica, chega-se ao desejo de suscitar situações novas. Damo-nos conta de que qualquer coisa se passa a partir do momento em que deixou de haver aí segregação de idade, a partir do momento em que se abandona a rotina administrativa e se procura promover um estilhaçamento da instituição. As crianças podem participar na vida real, participar no prazer gozado pelo adulto num dado trabalho. Elas voltam de alguma maneira consertadas pelos efeitos de um tipo de experiência que puderam viver num ir-e-vir de um lugar para o outro" (1978, p.46).

Esta instituição estilhaçada parece oferecer às crianças a possibilidade dos imprevistos que fazem parte da condição de estarmos vivos, não fazendo da diferença alienação ou aprisionamento. A exemplo disto, certa vez, após o café da manhã com as crianças, Mannoni deixava a escola quando seu carro, por algum problema, não dava partida. Os adolescentes começaram a empurrar o automóvel pela rua, até que ela se foi e eles retornaram à escola. Não sei se foi ela quem lhes pediu ajuda, ou se eles se ofereceram. Não importa. O interessante é que, frente a um imprevisto, seguiu-se o que ocorreria em qualquer lugar. Mas, para tanto, os portões precisam estar sempre abertos.5

Ao suportarem o gosto amargo da diferença, os adultos suportam correr riscos e, em Bonneuil, parecem que estão presentes como sustentadores de uma questão que possa emergir das crianças a qualquer momento. E reagem improvisando. Colocado assim, parece ser simples; poderíamos pensar que os adultos fazem o que lhes ocorre, quase que instintivamente. De maneira alguma. E levanto a hipótese de que eles contam com duas noções para não escorregarem no contra-senso: a de clareagem psicanalítica e a de montagem institucional.

A primeira lhes permite uma leitura analítica de determinadas situações. Não falo de uma preocupação com o sintoma, mas novamente de uma tentativa em privilegiar os níveis da realidade e da imaginação que façam o trabalho prosseguir. Ou, como descreve Mannoni, "a diferença está na clareagem psicanalítica que nos ajuda a inventar" (Kupfer, 1992, p.3). Poderíamos acrescentar, para ter um lugar no social que possibilite às crianças uma perspectiva futura de um possível desligamento da instituição (sabemos da importância do reconhecimento de um ponto que ressignifique). Isto é notado nas atividades culturais fora da escola, no programa de alfabetização via correspondência dos adolescentes (programa este corrente no ensino francês), ou no trabalho exterior.6

A montagem institucional parece incluir esta noção de clareagem. Ao mesmo tempo, gostaria de destacar dela a figura do diretor da escola. Ele transita muito pela cozinha, como que desatento, provando os pratos, vai e volta. Parece que isto tem a ver com o fato de que é ele a figura que, em certo sentido, contorna o lugar da criança quando esta, por haver impedido para os outros o prosseguimento de alguma atividade nas salas, são postas para fora pelos adultos e acabam indo parar na cozinha. Talvez porque ficam sem atividade ou porque sabem que foram mandadas embora das salas e terão de se haver com isso (ninguém lhes pergunta nada a respeito). Em geral, a cozinha vira o palco de manifestações sintomáticas: gritos, choros, agressão, enfim, tudo que lhes for possível para mostrarem que estão ali. Como nesses momentos eles estão se oferecendo como objetos de gozo, questão crucial nas psicoses, isto não é levado em conta pelos adultos, ou seja, desde que estas manifestações não atrapalhem o curso do trabalho, elas ficam por ali e ajudam a compor o cenário da cozinha. Parece tratar-se de uma não-valorização do sintoma, visto que estas crianças costumam ser olhadas por este anteparo que é o sintoma na psicose. Como diz Jerusalinsky (1996, p.154, p.162), "a manifestação corporal ocorre quando o aparelho psíquico entra em pane, ou seja, quando a função não é orientada pela palavra. (...) É fundamental, para quem pretende trabalhar com psicóticos, familiarizar-se com estas manifestações clínicas e sua leitura. Já que, sendo esses alguns dos fenômenos clínicos mais freqüentes nas psicoses, eles marcam a posição em que somos implicados na transferência. (...) O que eqüivale a dizer qual é o semblante que precisamos suportar, e em que significância - no duplo sentido de quanto de incidente, de significativa, e qual a significação - será tomada nossa intervenção".

O tempo todo existe algo de caótico neste ambiente, mas exatamente isso faz dele um lugar interessante. Eu diria que lá se potencializam as razões de Bonneuil: as questões das crianças e a intervenção dos profissionais. Quando isso se exacerba, o diretor entra em cena. Leva a criança para sua sala, conversa com ela ali mesmo, enfim, ocupa-se da cena daquela criança, fazendo valer o seu lugar transferenciai de diretor, buscando cessar o gozo. Poderíamos pensar que ele representa aquilo que Freud nos lembrou como a lei da proibição do incesto, a ordem mínima para se viver.

Enquanto isso, o trabalho na cozinha prossegue.

Os outros momentos de intervenção desse personagem são quando alguma criança agride outra. Isto é sempre levado em conta em Bonneuil, e o diretor ou o adulto mais próximo reage imediatamente. Pois essa é uma regra inviolável na escola. "O homem não pode ser o lobo do homem." Trata-se da proibição de fazer do outro um objeto de gozo. Ou, em última instância, como diz de Lajonquière, "aquilo que caracteriza Bonneuil é a decisão de manter em todo tipo de circunstância a operatividade de uma proibição, isto é, a proibição da miragem perversa".

O interessante é que, como um lugar para viver, haja o que houver, quando todos chegam para almoçar diariamente, o almoço está sempre pronto e a mesa, posta.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JERUSALINSKY, A. (1996). Para uma clínica psicanalítica das psicoses. Estilos da clínica, n. 1, p. 146-163.         [ Links ]

KUPFER, M. C. M. (1992). Psicose na infância: compreensão psicanalítica e intervenção. Palestra proferida no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.         [ Links ]

_____. (1996). A presença da psicanálise na escola de Bonneuil. Psicopatologia: revista da Associação Brasileira de Psicologia, v. 15, n. 38, p. 42-47.         [ Links ]

de LAJONQUIÈRE, L. (1996). A criança, sua (in)disciplina e a psicanálise. In: AQUINO, J. (org.). A indisciplina na escola. São Paulo: Summus, p. 25-37.         [ Links ]

_____. (1997). A escolarização de crianças "com DGD". Estilos da clínica, n. 3, p. 116-129.         [ Links ]

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. (1988). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

MANNONI, M. (1977). Educação impossível. Rio de Janeiro: Francisco Alves. [1973]         [ Links ]

_____. (1978). Um lugar para viver. Lisboa: Moraes. [1976]         [ Links ]

 

NOTAS

1 As atividades do dia são colocadas num quadro-negro na sala de refeições e as crianças e estagiários se inscrevem naquela que gostariam de participar. Existe um número limitado de vagas e as pessoas que sobram precisam se encaixar em outras atividades.
2 Adolescente, de 14 anos, de Bonneuil.
3 Refiro-me à interpretação psicanalítica no sentido descrito por Laplanche e Pontalis, como uma "investigação do sentido latente existente nas palavras e nos comportamentos de um indivíduo" (1988, p.318).
4 Sobre este assunto, cf. de Lajonquière (1996).
5 Esclareço que os portões que dão para a rua, nos dois sobrados que compõem Bonneuil, estão sempre destrancados.
6 Alguns adolescentes de Bonneuil trabalham nos lugares mais variados possíveis, adequando-se às correspondentes normas empregatícias. Tive a oportunidade de presenciar, em uma reunião com os adolescentes da escola, um jovem contando para Mannoni que estava feliz pois seria registrado como balconista em uma padaria onde já trabalhava.