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Estilos da Clinica
Print version ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo 2001
ARTIGO
Depressão adolescente e tempo vivido: uma abordagem do tédio
Adolescence depression and lived time: an approach to borincness
Eric Bidaud
RESUMO
O tédio é um afeto "comum" pouco estudado no registro da psicopatologia. Parece-nos possível uma abordagem da questão em relação a duas categorias essenciais que estruturam a relação do sujeito com o seu desejo: o fazer (vivido no tédio como impossível) e o tempo (experimentado como longo nesse mesmo afeto). Nossa análise possibilita articular o sentimento de tédio no espaço do devaneio que imobiliza o sujeito em sua relação com o outro e instala uma relação de dominio. Se a adolescência é um período favorável à instalação do tédio, este deve ser ligado como modo de defesa a qualquer situação de passagem e de reorganização psíquica.
Tédio; devaneio; tempo; domínio; adolescência
ABSTRACT
The boringness is an "ordinary" emotion which has tew studies on the domain of psychopathology. It is possible to approach the question by the meanings of two categories which are essential in the subject 's relation to his desire: the act of making and the time. Our analysis allows us to relate the feeling of boringness to the space of daydream which immobilizes the subject in his relation to others and installs a master relationship. If adolescence is a lite period which can lead to the establishment of boringness, it must be linked as a defense mode to any passage situation and to all kinds of psychic reorganization.
Boringness; daydream; adolescence; master relationship
...Dans la ménagerie infâme de nos vices, II en est un plus laid, plus méchant, plus immonde! Quoiqu'il ne pousse ni grands gestes, ni grands ens, II ferait volontiers de la ter re un debris Et dans un bâillement avalerait le monde;
C'est l'Ennui!...1
Charles Baudelaire. "Au lecteur".
Les fleurs du mal
Se for verdade que a descrição e a análise do tédio prenderam-se numa vasta rede discursiva que percorre o espaço da religião, da literatura e da medicina, o tédio, enquanto afeto comum, permaneceu não essencial ou negligenciável no registro da psicopatologia. Admitimos que a pesquisa sobre a angústia domina a análise freudiana dos afetos, fazendo girar em torno desta toda abordagem da dor psíquica. Uma clínica do tédio, em Langweile, enquanto afeto doloroso do tempo longo, poderia olhar, na obra de Freud, em parte pelo lado da melancolia, e de outra parte pela neurose atual (observando-se que Freud, em seus primeiros estudos, soube reunir as três entidades clínicas: melancolia, anorexia, neuroses atuais). Freud, no Manuscrito G, inscreve sua pesquisa sobre a melancolia no quadro estabelecido a respeito da neurastenia e da neurose de angústia, isto é, as neuroses atuais. A etiologia ligada à vida sexual atual repousa sobre um mecanismo que relaciona tensão sexual somática e psíquica. Assim como a neurastenia provinha de um defeito de tensão sexual somática devido à excessiva masturbação, e a neurose de angústia, de uma acumulação de tensão sexual somática derivada de fora do psiquismo, principalmente pela prática do coito interrompido, a melancolia advém de uma anestesia sexual. Freud vai distinguir o afeto da melancolia, ou melhor, vai dar-lhe um modelo, o do afeto do luto, "isto é, o amargo pesar por algo perdido. Poder-se-ia tratar, portanto, na melancolia, de uma perda, perda no domínio da vida sexual... a melancolia é um luto provocado por uma perda de libido" (Freud, 1956, p. 93). A descrição da melancolia como afeto resultante de uma inibição psíquica acompanhada de um empobrecimento pulsional, "e portanto a dor de que assim seja", poderia aplicar-se a uma problemática do tédio.
Poderíamos igualmente dirigir nossa atenção para o fato de Freud recorrer à noção de nostalgia2, ou de langor - Sehnsucht -, que marca este estado de reencontro impossível com os objetos originais de satisfação. Em "Inibição, sintoma, angústia", Freud designa um modelo inicial de nostalgia a partir da situação do recém-nascido que, na incerteza do retorno da mãe, "pode então sentir alguma coisa como a nostalgia, sem que esta seja acompanhada de desespero", contanto que a mãe saiba desenvolver em seu bebê as primeiras capacidades de espera por meio de experiências asseguradoras. O valor de elaboração psíquica do estado de nostalgia3 é aqui evocado.
Nada mais justo que, nesse caso, o verdadeiro tédio, o Langweile, permaneça um afeto discreto com baixa autoridade clínica e teórica. O trabalho relativamente recente de Michele Huguet (1987) sobre a questão, sem dúvida marca um progresso importante. M. Huguet define o tédio como um afeto que exprime a prova do tempo vivido como longo. O tédio, que não é nem depressão, nem angústia, manifesta uma ruptura da relação com o objeto. É um estado vivido como o "ali" onde nada acontece, nem em si, nem fora de si, e em que este nada poderia não acontecer; a dor do tempo vazio e desertado deixa o eu fora de alcance e fora de esperança, fixando uma relação de imobilidade do sujeito com o tempo atual. Como se para o sujeito não houvesse mais o sentimento de um tempo que se passa como uma coisa, e que não sustenta nenhum desejo. O tédio instala um puro presente que oprime.
O TEMPO E O FAZER
Neste artigo não vou insistir nas diferentes formas de nomeação do tédio e suas variedades descritivas e introspectivas. Vou orientar minha análise em relação a dois eixos conjuntos, o tempo e o fazer, pelos quais parece desenhar-se uma certa estrutura do tédio. Ver ou não ver o tempo passado traduz toda a relação do sujeito com o tédio que está por aparecer ou não, numa questão que se coloca precisamente com "fazer algo de seu tempo". O modelo de estado de tédio pode ser o da criança que passa horas diante de seus deveres sem se decidir a fazê-los e se entedia. Ela pode sonhar, pensar que em vez disso poderia brincar, mas, quando tem tempo para brincar, ela não sabe o que fazer, e se entedia igualmente. "Não tenho vontade de fazer nada", ela pode dizer então. E o que Sandor Ferenczi aponta numa passagem de seu diário clínico em 1932: "O que significa entediar-se? Ter de fazer o que detestamos e não sermos capazes de fazer o que gostaríamos. Em todos os casos uma situação de sofrimento" (Ferenczi, 1932, p. 64). A experiência do tempo longo articula-se a um "fazer" vivido como impossível ou destituído de sentido, e mais amplamente inatingível. Após o tédio, o eu se sente como que abandonado pelas "coisas" e por ele mesmo; ele está esquecido e não se sabe. O eu entediado é ignorado e conseqüentemente ignorante, ignorante daquilo que deseja, ignorante em relação ao desejo em si mesmo. O "eu não sei o que fazer" da criança que se entedia marca não somente o distanciamento de um eu abandonado a si mesmo, mas também o apelo a um outro de quem ele espera um saber, um saber relativo precisamente a seu desejo. Deste outro, diremos, ele espera uma distração. Aqui concordamos com Pierre Janet, que, em suas pesquisas clínicas sobre "os sentimentos do vazio" indica que "o tédio se caracteriza pelo exagero de uma conduta particular, a da procura da distração" (Janet, 1975, p. 104), por mais que esta procura seja uma expectativa indeterminada. O entediado espera que alguma coisa do exterior venha preencher seu vazio. Ele quer que a distração apareça no sentido de uma aparição feérica de uma alegria intensa, mas, tão logo sobrevém uma distração, o eu entediado vê apenas uma vã recreação, um objeto contrafeito que o desencanta. O objeto da distração não "sustenta" o sujeito, e, mais ainda, o sujeito não faz questão do objeto, não há nada a fazer com ele. O entediado espera do outro um objeto que o deixe sempre insatisfeito. É por isso que ele está no sofrimento de um infinito tempo de espera. Poderíamos formular que o tédio é aquilo que é sentido no instante em que o objeto que quero possuir não parece fazer de mim nada mais do que se eu não o possuísse. Crise súbita dos objetos através da qual se experimenta seu absurdo, sua não-utilidade. Os objetos não nos solicitam "fazer" alguma coisa com eles, não apenas no sentido de uma ação, mas de um engajamento psíquico, de um movimento interno pelo qual formamos conjuntos com os objetos. Os objetos nos imobilizam e nos fazem experimentar o tempo longo. Se situamos o desejo como precisamente o que opera um agenciamento do tempo e do fazer, o tédio vem como alteração desses dois registros. E aqui remetemonos especialmente à longa reflexão de Martin Heidegger (1983, Cap. II) sobre o tédio, em que ele estabelece "um componente de estrutura" a partir da "junção" de dois estados: "O estado de ser arrastado pelo curso do tempo que demora a passar e depois o estado de ser deixado vazio pelas coisas que se negam".
Enfim, se no tédio o "fazer alguma coisa de seu tempo" é experimentado como impossível, isto se dá enquanto este "fazer" está destituído de sentido. O outro, com quem eu teria alguma coisa a fazer, me parece inapto tanto para receber quanto para dar. Ele me volta as costas. Ao contrário, o que seria não se entediar? Dar sentido, isto é, tirar de si um simbólico para o outro, que, recebendo-o, acolhendo-o, dá sentido a nosso sentido. Numa certa medida, não se entediar é estar preenchido pelo outro, e, melhor, satisfazer-se com o outro. Assim, o tédio é a marca em si da falta do outro, no sentido da falta no outro. Queremos dizer que no tédio o outro me faz experimentar sua impotência em me completar. Ao mesmo tempo que o tédio significa para mim meu próprio vazio que me separa do outro, o outro se significa em seu próprio vazio.
O TEMPO E O OLHAR
Em sua abordagem da questão do tempo ("O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada", 1945), Lacan traz a seguinte história: o diretor de uma prisão reúne três prisioneiros e promete a liberdade àquele que sabe a cor do círculo que ele lhe cola às costas, escolhido entre três brancos e dois pretos. Os prisioneiros não podem se falar, nem alcançar pela vista (um espelho) o círculo que a cada um foi atribuído e colado nas costas. Depois de se olharem um certo tempo, eles compreendem e concluem três tempos que vetorizam uma solução: o tempo do olhar, o tempo de compreender, o tempo de concluir. O que nos interessa aqui é a importância do olhar em sua relação com o tempo. O tempo entra nesse processo de troca dos olhares naquilo que escapa a cada sujeito. O tempo para agir se define em relação ao olhar levado ao outro, por um lado invisível ao outro e no outro. O sujeito regula sua relação com o tempo neste encontro do outro e a compreensão de um saber sobre este, saber que permite a ele construir seu próprio saber e o ato que dele depende. Se eu sei algo sobre o outro que este ignora, o outro sabe algo sobre mim que eu ignoro. E por isso que "nos mantemos sob o olhar", que esperamos seu ato com alguma incerteza. Os olhares se sustentam.
Eis aqui o que está significado com o termo dialética operando na relação com o outro. A dialética intersubjetiva é isto, o fato de que eu encontre no outro a via do meu ser, que ele mesmo se funda em mim. Toda estrutura temporal repousa sobre este cruzamento.
A ACEDIA
A noção de acedia, designando na teologia cristã aquilo que experimenta o sujeito "entediado" em sua impotência em encontrar Deus, permite alimentar nossa reflexão sobre o tédio profano como sofrimento do outro e mais ainda como doença da idealidade (Huguet, 1987, p. 92). Aplicando-se principalmente à vida dos monges, a acedia é um dos estados dos "oito maus pensamentos", designados igualmente com o nome de "oito espíritos de malícia", ou ainda "oito vícios capitais". Segundo a lista de Evagre le Pontique, estes vícios são: a gula, a fornicação, a avareza, a tristeza, a cólera, a acedia, a glória vã e o orgulho. "Não se trata tanto de pecados", indica F. Thierry-Marie Harmonic, "quanto das principais tentações às quais o monge é confrontado. No final da Idade Média, após muitas peripécias, os oito maus pensamentos tornaram-se os sete pecados capitais, ou seja, o orgulho, a inveja, a cólera, a preguiça, a avareza, a gula, a luxúria. A tristeza desapareceu, a glória vã integrou o orgulho e a inveja ocupou o lugar restante para obter o sétimo. Quanto à acedia, esta cedeu lugar à preguiça. Estas modificações são explicadas, em grande parte, por aquilo que poderíamos chamar de uma secularização dos vícios capitais: estes pararam de designar as tentações próprias ao estado monástico para tornarem-se a lista dos principais pecados aos quais estão expostos todos os cristãos, leigos ou clérigos" (Harmonic, 1988, p. 90). Na língua dos escritores espirituais a acedia é sobretudo o tédio e o desencorajamento que se amparam do monge incapaz de se fixar e de realizar as tarefas às quais deveria se entregar. Dois tipos de efeito acedíaco devem ser lembrados: o que precipita o sujeito no sono, e o que o leva a desertar sua célula. Assim a acedia é a distração que leva ao sonho ou ao devaneio diurno, bem como a um "fazer outra coisa". Indicamos aqui que a tradição monástica representa a acedia com os traços do mais temível dos demônios, "o demonio do meio-dia", aquele que, em nossa consciência profana, traduz a "vagabundagem" do desejo sexual e a tentação da infidelidade. Este demônio nos leva à dimensão do tempo e do desejo culpado. Na acedia, o monge é levado a uma dinâmica transgressiva. Ele não está onde deveria estar, no recinto de sua contemplação. Ele está desviado de Deus para um "algures" de sonho, do qual ele nada pode dizer. A acedia, em sua essência, vem da tendência ao prazer, ao "concupiscível".
Esse desvio através da acedia possibilita o avanço na análise do tédio como aquilo que opera um desvio, um distanciamento de um pólo suposto de perfeição. Alguma outra coisa da ordem do sexual atrai, tenta. Este estado de distanciamento entre um pólo ideal e um pólo sexual produz o encerramento em que se experimentam as múltiplas variações do sentimento de vazio interior.
O FAR-NIENTE
A análise do tédio acedíaco possibilita levantar uma ligação paradoxal: se o nada interno experimentado no tédio marca um desgosto em fazer o que deve ser feito, ao mesmo tempo exerce uma atração sobre o sujeito, um desvio para o lado do sonho. A dor do tédio não se refere unicamente a um desejo de não fazer nada em relação ao que se espera de mim, mas ao mesmo tempo a um desejo indefinível de fazer outra coisa. A linguagem faz com que apareça a ambigüidade deste afeto. Se o habitual "não tenho vontade de fazer nada" exprime o tédio, a mesma frase pode traduzir um bem-estar, o "precioso far-niente" de que fala Jean-Jacques Rousseau precisamente em seus sonhos solitários. "O precioso far-niente foi o primeiro e o principal desses gozos que eu quis saborear em toda sua doçura, e tudo o que fiz durante minha estada foi apenas a ocupação deliciosa e necessária de um homem que se dedicou ao ócio" (Rousseau, 1782, p. 87).
O far-niente associado ao sonho em Rousseau vem da reação (compensação ou indenização, diz ele) a uma humanidade que se recusa a ele e até mesmo conspira por sua infelicidade. E, se o far-niente pode ser "gozo" no sonho, a qualquer instante pode também mostrar sua face de dor e levar a uma repetição de queixas e gemidos por onde o outro é sempre fonte de sofrimento. Assim, de um lado o "fazer nada" como gozo no sonho, e de outro "o fazer nada" como sofrimento do outro, sofrimento em relação ao outro (para Rousseau, sofrimento persecutório) que leva ao tédio. Neste último caso o tédio é um far-niente cortado de seu sonho. Atrás do nada se esconde o sonho morto (como pode-se dizer de uma língua que está morta não porque não existe mais, mas porque não serve mais). O tédio se constituiria então pelo "refluxo" do sonho, pelo lugar deixado vazio pelo sonho.
O QUE É O NÃO QUERER NADA?
Que isso nos autorize a dizer algumas palavras sobre o estatuto simbólico do nada. Entediar-se não é pensar, mas não pensar em nada, não é não querer, é não querer nada. É este nada que tem a função de alguma coisa no plano simbólico. A respeito da anorexia mental, Lacan fez este tipo de reflexão: "Isto pode explicar a verdadeira função de um sintoma como o da anorexia mental. Eu já lhes disse que a anorexia mental não é um não comer, mas é um não comer nada. Eu insisto - isto significa não comer nada. Nada, é algo que existe no plano simbólico. Não é um nicht essen, é um nichts essen. Este ponto é indispensável para a compreensão do fenômeno da anorexia mental. No detalhe, o que se passa é que a criança come nada, o que é uma coisa diferente de uma negação da atividade. Desta ausência saboreada como tal, ela usa em relação àquilo que ela tem diante de si, ou seja, a mãe, de quem ela depende. Graças a este nada, ela faz com que a mãe dependa dela" (Lacan, 1994, pp. 185 e 185).
Por meio do nada do seu tédio, o sujeito entediado dirige ao outro o significante de sua inaptidão para responder à expectativa. O outro fica imobilizado em relação a este nada, ele mesmo tomado pelo tédio. O tédio circula na relação até estabelecer, às vezes, uma ação pela qual se elaboram a neutralização e a despossessão do desejo do outro (Dorey, 1981, pp. 117-39). Destacamos aqui a dimensão ativa do tédio em sua relação com o outro. Seríamos até mesmo levados a pensar que o tédio dirigido ao outro está no centro de toda relação de dominação, principalmente na problemática obsessiva em que esta tem maior participação, como nervo essencial. O tédio aparece assim como uma modalidade defensiva contra importantes moções destrutivas, enquanto modo de desinvestir o mundo, de destruí-lo para dele se proteger, à custa do próprio empobrecimento. Ferenczi, num artigo já citado, indicava: "Atrás do vazio do tédio esconde-se a experiência ou a série de experiências que levaram a esta incapacidade: irritação dolorosa, tendências coléricas e defensivas, sentimento de abandono, ou medo da possibilidade de explosões de raiva e de agressões irreparáveis" (Ferenczi, 1932, p. 66).
O ÓDIO DA ESPERA
Entediar-se: desolar-se portanto por estar no desejo de não fazer nada, mas, uma vez que algo parece apto a nos distrair e afasta o tédio, o engana, este não deixa de recair como uma tampa no momento em que precisamente se estabelece a necessidade do "fazer". O tédio só desapareceu durante o tempo da representação da distração, do sonho. Ele volta quando se impõe o tempo de elaboração de um fazer a partir do sonho. É o tempo da elaboração que se experimenta como longo e vai até obscurecer não apenas a tela do sonho, mas o conjunto da realidade invadida de vazio.
A ancoragem do tédio num fundo de sonho estabelece, pela impregnação dos processos primários, um desvio do tempo com o risco de impor-se como ódio do tempo. O sonhador flutua acima do tempo, ele faz o que ele quer, dispõe dele na antecipação da realização de seus desejos. Assim o tédio em sua relação com o tempo resultaria do afastamento entre a antecipação de um prazer que os processos primários representam no sonho como imediato e este ponto longínquo da realização vivida como impossível. É nesta distância que se vem estagnar um tempo imutável, sem direção, um tempo sem espera que parece massificar-se num presente que produz apenas a si mesmo. Um tempo que "funciona" além do tédio é um tempo que autoriza a espera, um tempo que sustenta o desejo à procura de seus objetos. O tempo longo do tédio não é o tempo da espera, mas, ao contrário, o tempo da impossibilidade da espera. O escoamento temporal da representação até este ponto sempre incerto da realização é sentido como uma espera insuportável. Poder esperar é levar em conta o tempo do outro, isto é, o tempo de seu desejo.
No tédio o sujeito não consegue mais investir a realidade, nem mesmo a de seu sonho. Ele permanece num entremeio, num entretempo, como se ele estivesse parado entre o todo de seu sonho e o nada da realidade. Aqui o sujeito não rejeita o tempo, mas quer combatê-lo, matá-lo enquanto este é testemunha do desejo do outro sobre o qual ele não tem domínio. Investir o tédio, como mostramos anteriormente, é uma maneira de manter a dominação sobre o desejo do outro, e esta dominação passa por um ataque do tempo.
TÉDIO E DEPRESSÃO
Se é possível dizer que ninguém escapa ou escapou ao tédio no curso de sua existência, este pode constituir uma modalidade privilegiada do humor. A questão coloca-se assim de outra forma quando o tédio organiza ou regula a relação de alguns sujeitos com o mundo. O tédio pode dominar o conjunto das condutas e do funcionamento psíquico desses sujeitos, situando uma posição depressiva mais do que um verdadeiro estado depressivo. Pierre Mâle descreveu, sob a noção original de morosidade, o curso lancinante do tédio em alguns adolescentes: "Não encontramos nenhuma palavra para definir este estado particular em certos adolescentes, que não é a depressão, com seu caráter de angústia, de inibição formal, de culpabilidade expressa, que não é a psicose, pois a perda da realidade não está presente e nenhum sintoma dissociativo pode ser percebido, que está mais perto talvez do tédio infantil: 'Eu não sei o que fazer, com o que brincar, etc' Deve-se ver aí um estado realmente tímico? Acreditamos que não. É um estado que manifesta mais uma recusa em investir o mundo, os objetos, os seres. As coisas não têm interesse, escapam... Os projetos para o futuro, as próprias motivações da vida são com freqüência recusadas: 'Nada serve para nada, o mundo é vazio'. Estas formulações poderiam parecer depressivas, mas elas não estão integradas num quadro tímico. Elas são compatíveis com uma energia aparentemente conservada" (Mâle, p. 211). Isto é, compatíveis com um possível que poderíamos qualificar como fechado.
O tédio, e é aqui que ele se distingue da depressão, não leva ao desespero. É a sua não relação com o desespero, bem como com a esperança, que leva o eu mais à letargia do que a um verdadeiro desejo de desaparecer. O entediado é um desesperado faltante. (Bernanos fez esta bela formulação: "O tédio é uma forma abortada do desespero".)
Se o outro é mantido e reconhecido em sua existência pelo menos pela explicitação de sua inquietude nele suscitada pela morosidade que ele deve suportar, é entretanto a relação que é fixada por esta mesma morosidade, entendida agora como sendo esta continuidade de dominação de que falamos anteriormente.
Além do caso particular da adolescência, o tédio pode estar ligado, em seu processo de aparecimento e em sua economia de "crise mole", a situações de passagem: luto, ruptura existencial... tempos de remanejamento psíquico e de enfraquecimento da economia do sujeito. Uma história do reagrupamento clínico das categorias de afetos ligados a esses tempos: tédio, morosidade, tristeza, cansaço. E sua conceituação deve ser percorrida num primeiro tempo. A hipótese a sustentar seria a de um deslizamento atual dessas categorias sob a denominação clínica de estado depressivo que não deixa de provocar confusão na perspectiva de uma pesquisa estrutural.
O enigma do tédio, pelo fato de sua evanescência como afeto comum e flutuante, ligando e desligando o sujeito de sua relação com o mundo, retoma o discurso clínico, bem como o debate a ele ligado, sobre a questão do normal e do patológico, para uma psicopatologia dos afetos cotidianos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dorey, R. (1981). La relation d'emprise. Nouvelle Revue de Psychanalyse, nº 24. [ Links ]
Ferenczi, S. (1932). Do tédio. In Journal clinique (jan.-out. de 1932). Paris: Payot, 1985. [ Links ]
Freud, S. (1956). O nascimento da psicanálise (A. Berman, trad, para o francês). Col. Bibliothèque de Psychanalyse. Paris: PUF. [ Links ]
Harmonic, F. T. M. (1988). A acedia e o tédio espiritual segundo São Tomás. In "O tédio", Autrement (revista), Col. Mutations. [ Links ]
Heidegger, M. (1983). Os conceitos fundamentais da metafísica (D. Panis, trad, para o francês). Paris: Gallimard. [ Links ]
Huguet, M. (1987). O tédio ou a dor do tempo. Paris: Masson. [ Links ]
Janet, P. (1975). Da angústia ao êxtase. Paris: Ed. Société Pierre Janet. [ Links ]
Lacan, J. (1994). O seminário, Livro IV, A relação de objeto. Paris: Seuil. [ Links ]
Mâle, P. La crise juvénile. Paris: Payot. [ Links ]
Rousseau, J.-J. (1782). Les rêveries du promeneur solitaire Paris: Flammarion, 1964. [ Links ]
Recebido em fevereiro/2001
NOTAS
Tradução: Inesita Machado
1"No lodaçal de nossos vícios imortais, Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo! Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito, Da Terra, por prazer, taria um só detrito E num bocejo imenso engoliria o mundo; É o Tédio! ..."
Charles Baudelaire, "Ao Leitor".
As flores do mal.
Tradução de Ivan Junqueira
2 Deve-se observar que, particularmente na língua alemã, ter um tempo longo (o tédio) pode se dizer ter nostalgia (cf. Heidegger, 1983, p. 127).
3 Para o aprofundamento desta noção, remetemo-nos ao artigo de M.C. Lambotte, "Nostalgia", na Enciclopxdia universalis (última edição).