Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo 2001
ARTIGO
Função fraterna e cena primária1
Fraternal function and primary scene
Maria Cristina Poli Felippi
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, professora da Faculdade de Psicologia da PUC-RS e doutoranda na Universidade de Paris 1 3
RESUMO
As formulações freudianas em torno das fantasias originárias constituem suportes clínicos fundamentais. Elas permitem elaborar os momentos lógicos da inscrição do sujeito. Esse texto propõe-se a abordar essa questão tomando por base o relato autobiográfico de um ex-interno da Febem. Desconhecendo suas origens familiares, ele constrói um suporte de filiação que tem como base a convivência com a fratria institucional.
Fantasias originárias; Função Fraterna; identificação
ABSTRACT
The Freudien formulation about primary fantasies is an important clinical support. This formulation is the support to the elaboration of logical moments of a subject inscription. This text approaches those propositions taking for base the autobiographic relate of a Febem ex-intern. He constructs a support of filiation unknowing his familiar origins. This construct takes for theme the fraternal institutional group.
Primary fantasies; Fraternal Function; iden tification
Formularemos, de início, uma questão bem freudiana e que, a nosso ver, comporta uma série de dificuldades clínicas: qual a relação entre Cena Primária e Complexo de Édipo? Sabemos que ambos são conceitos aos quais Freud não cessou, ao longo de toda a sua obra, de fazer referência e de destacar como centrais para o trabalho clínico. Eles constituem a base do que Freud denominou "Urphantasie", isto é, fantasias originárias e que ele diferencia das demais fantasias, conscientes ou inconscientes.
De acordo com Freud, as fantasias originárias são três: a cena primitiva, a fantasia de sedução e a fantasia de castração. Cada uma destas fantasias busca forjar uma resposta a questões fundamentais de todo indivíduo: a sua própria origem, a origem da sexualidade e a origem da diferença sexual. Elas irão constituir a base das teorias sexuais infantis.
Será no momento da passagem pelo Complexo de Edipo, porém, que estas fantasias farão função de normatização do sujeito. Isso supõe, para Freud, a assimilação de certos interditos sociais que deverão integrar o "texto" destas fantasias, recalcando e/ ou sublimando o desejo veiculado. O exemplo clássico dado por Freud é o da histérica que supõe ter sido vítima de um abuso sexual na infância. Esta fantasia de sedução, ao colocar o sujeito em posição passiva, comporta a marca do recalque que incide sobre o desejo sexual do próprio. É o carimbo da passagem pelo Complexo de Edipo que promove os efeitos traumáticos da sexualidade infantil, après-coup.
Se, para Freud, porém, o Complexo de Édipo é esse momento em que a moral social incide sobre a sexualidade humana definindo seus rumos, não se trata de um encontro inédito na história do indivíduo. Na verdade, os efeitos da cultura sobre o psiquismo ocuparam boa parte das preocupações de Freud e transcendem as suas elaborações sobre o Édipo. Quando se trata, por exemplo, de dar conta da proveniência das fantasias originárias, Freud apela para o darwinismo. Ele propõe que a universalidade dessas fantasias explica-se com base nas heranças filogenéticas comuns aos homens.
Contudo, essa explicação não poupa Freud da dificuldade concernente à "verdade histórica" das fantasias originárias de cada um de seus pacientes. Freud não recorre à cultura para fazer a economia do desejo de cada sujeito que se implica em uma narrativa. A dificuldade em que ele esbarra consiste em conciliar o caráter universal das fantasias e a lógica singular do desejo.
Freud vacila entre essas abordagens. Ele hesita ao longo de toda a sua obra entre a chamada "teoria do trauma", na qual a ênfase é posta no impacto da realidade externa sobre o psiquismo, e o prevalência etiológica do desejo sexual, interno ao indivíduo, na produção do trauma. Freud permanece sempre com esta indecisão, preocupado em não ceder no rigor que o trabalho clínico exige.
A partir dessas considerações preliminares, gostaríamos de perguntar a Freud o que ele iria pensar se escutasse a seguinte narrativa:
"Até por volta de 16 anos, quando alguém me perguntava sobre quem eram meus pais, invariavelmente eu respondia: o Governo. É óbvio que eu não tinha clareza suficiente para entender quem era esse meu pai nem o que ele fazia, mas isso ficou mais fácil quando tive de entender quem era então minha mãe: a Febem" (Silva, 1997, p. 12).
"Febem", como é de conhecimento geral, é a sigla que denomina a "Fundação do Bem-Estar do Menor", instituição do governo brasileiro, fundada em 1965, e que tem por objetivo abrigar crianças e adolescentes que, por vários e diferentes motivos, não têm outro lugar para morar. Na maioria dos casos, trata-se de filhos de famílias em precária situação financeira. Grande parte destas crianças entra na instituição numa idade muito precoce, e fica lá até a maioridade sem ter nenhum contato com seus pais e familiares.
Por vezes, elas não sabem nem mesmo quem são e como se chamam seus genitores. Muitas crescem na instituição sem saber a data de seu aniversário, onde nasceram ou qual é o seu sobrenome.
Esse foi o caso de Roberto da Silva, autor da frase citada acima. Ele escreveu um livro, uma dissertação de mestrado, sobre a história de toda uma geração de crianças que cresceram, como ele, dentro da Febem. Neste livro, que se chama Filhos do governo, Silva sustenta a tese da culpa do Estado em relação ao destino das crianças que foram criadas sob a sua responsabilidade. O seu argumento principal é que um terço das crianças da geração do autor, isto é, aquelas que viveram na instituição entre os anos de 1965 e 1983, teve um mesmo destino na idade adulta: a prisão.
O próprio autor nos conta que passou alguns anos de sua vida na prisão após ter cometido infrações contra a lei. Segundo ele, este fato prova a incapacidade do Estado de educar seus filhos. Ele os criou de uma forma que tornou impossível, a uma parcela significativa deles, adaptar-se ao mundo externo à instituição.
Um dos argumentos que Silva nos apresenta baseia-se no fato de o Estado ter negligenciado o contato com a história particular de cada uma das crianças e adolescentes que se encontravam sob sua tutela. O dado importante a considerar é que não se trata de falta de informação. Silva descobriu, durante a sua adolescência, que a instituição mantinha em arquivo esses registros, mas que o acesso a eles era proibido. Assim, sua primeira infração à lei foi olhar esses registros e descobrir os dados elementares de sua identidade.
Não é dispensável que se diga que os anos que Silva passou na Febem coincidem com a época em que o Brasil vivia sob o regime de ditadura militar. No seu livro, ele não faz economia desse tema, bem pelo contrário. Por vezes, ao longo da sua narrativa, tem-se a impressão de que é mesmo em função desse fato histórico que o autor toma a força necessária para escrever e de fazer, por meio da escrita, o que ele mesmo chama de "um ato de reparação histórica". Ao falar de sua história pessoal, Silva fala da história de toda uma geração; ele fala da história do Brasil.
O curioso é que foi durante o período que passou na prisão, onde ele reencontrou vários de seus antigos colegas/irmãos da Febem, que Silva se deu conta da sua situação. Ele relata que a cada vez que escutava a narrativa de vida de um deles - o que era bastante habitual, pois, dados seus dotes intelectuais, ele passou a servir como uma espécie de advogado para os companheiros - ele tomava consciência dos pontos em comum que havia entre essas histórias. Foi aí que ele percebeu que eles eram todos "filhos do governo", e começou a escrever sobre isso.
No livro, Silva toma a atitude de denunciar o fracasso do Estado brasileiro na assunção da função de parentalidade adotiva. De fato, não há nenhuma necessidade de ser psicanalista para perceber-se que as coisas não podem funcionar bem quando alguém é deliberadamente privado de sua história e da história de sua família. Há, nesse ponto, uma certa usurpação de significantes que não pode deixar de ser denunciada e que caracteriza bem, nos parece, os efeitos subjetivos de uma política totalitária.
Podemos pensar que o que Silva denuncia é a ultrapassagem de um limite ético por parte do Estado, ao tentar apagar os traços da história singular de cada um. Para Silva, ele nos diz em seu livro, escrever foi a sua forma de retomar esta história e de inscrever-se nela. Não é, assim, nada surpreendente que logo na primeira página encontremos a citação acima referida e que ela sirva de motor para a sua pesquisa. Ele é "filho do governo" e quer saber o que isso significa.
O que gostaríamos de interrogar, a partir da história de Silva, a fim de avançar na questão inicialmente formulada, é o seguinte: qual a relação entre a narrativa de uma cena primária, de uma fantasia originária, e a inscrição do sujeito em uma filiação?
Não se trata apenas de uma simples similitude de termos, mas a história de Silva nos fez pensar no sofisma dos três prisioneiros de que Lacan se vale para elaborar a questão do tempo lógico. Silva também foi prisioneiro, e foi na prisão que ele pôde reconstruir a sua história, analisar os efeitos decorrentes do fato de ter crescido dentro de uma instituição. O fator principal nessa sua experiência, o que permitiu que ele escrevesse a sua história - é ele quem nos diz -, foi a convivência com seus colegas/irmãos de Febem e de cela.
No sofisma proposto por Lacan, trata-se da história de três prisioneiros que são chamados pelo diretor da prisão para participar de um jogo. O diretor mostra aos prisioneiros cinco discos, três brancos e dois pretos. Ele fixa nas costas de cada um dos prisioneiros um destes discos sem que o próprio saiba qual foi a cor escolhida. O jogo, então, consiste em que o primeiro que adivinhar a cor de seu próprio disco e souber explicar logicamente a conclusão alcançada será liberto da prisão. Para tanto, os três prisioneiros são colocados em uma cela comum onde eles podem ver os outros dois companheiros e seus respectivos discos, mas não podem falar entre si.
Já na cela, cada um dos prisioneiros constata que os outros dois tiveram discos brancos fixados em suas costas. O seu próprio disco é branco também, mas ele não o sabe. Lacan nos conta que, após um certo tempo, os três prisioneiros saem juntos da cela, tendo deduzido ao mesmo tempo qual é a cor do seu próprio disco. O que se passou?
O raciocínio realizado por cada um consiste em colocar-se na posição do outro e tirar conclusões dos seus atos. Assim, dado prisioneiro "A" pode pensar que, se o seu próprio disco fosse preto, o prisioneiro "B" teria deduzido rapidamente qual era a cor do seu. Isso porque se o prisioneiro "C" visse dois discos pretos saberia, com certeza, que era branco e sairia. Se o prisioneiro "C" não sai é porque "B" não é preto. "B" então, por sua vez, teria certeza de ser branco e sairia. Mas não é o que acontece.
Assim, "A" é levado a pensar que se "B" não sai é porque ele próprio é branco também. Ao chegar a esta conclusão, "A" precipita-se a sair. Porém, como cada um deles realiza a mesma dedução, ao mesmo tempo, o fato de os outros dois dirigirem-se à saída coloca a sua certeza em dúvida.
O que Lacan demonstra, então, é que apenas após dois momentos de hesitação, de suspensão da certeza, os três prisioneiros poderão sair juntos e afirmar, cada um, ter um disco branco. A estes três tempos da dedução lógica, Lacan chama "instante de ver", "tempo de compreender" e "momento de concluir".
No seminário sobre a Identificação, Lacan faz uma breve alusão a esse sofisma ao aproximá-lo dos três tempos da constituição do traço unário. Também nesse caso, trata-se de três tempos necessários para que o sujeito encontre um suporte para a enunciação. Isto é, para que um significante possa representar um sujeito para outro significante é preciso que dois passos anteriores tenham sido dados. O primeiro, que consiste na inscrição da letra, o segundo, no seu apagamento - a marca do recalque - e o terceiro, que é, justamente, a inscrição do sujeito nesse mesmo lugar.
É nesse sentido que Lacan vai atribuir à negação a função fundamental de suporte ao sujeito da enunciação. Neste ponto, é no texto freudiano sobre "a negação" que encontramos a substância das articulações lacanianas. Ali, se acompanharmos Freud, trata-se da passagem da primeira Bejahung (afirmação) pela Verneinung (negação) para que se constitua, num terceiro momento, a verdadeira função de representação.
O que Lacan acrescenta a esse movimento lógico, por meio do sofisma dos prisioneiros, é a função do semelhante como suporte da constituição do sujeito. Na terminologia lacaniana, trata-se de ressaltar a importância do imaginário na intermediação deste processo de inscrição simbólica do real. O semelhante em questão é aquele que encarna para o sujeito, no momento da negação - tempo de compreender -, a função simbólica. É no suporte do olhar dos outros -no mínimo, dois - que o sujeito representa-se inicialmente. Depois, mas apenas num terceiro tempo, ele poderá dispensá-los.
Em relação ao traço unário, trata-se do mesmo movimento. O suporte do traço, o movimento necessário para a sua constituição, é a passagem pelo número imaginário. O traço é efeito da série imaginária; ele é a constante que fica, a posteriori, quando do apagamento da imagem.
Assim, também, o sujeito da enunciação precisa do suporte do enunciado, isto é, do uso imaginário da língua. Porém, na escuta analítica, trata-se de demarcar o significante enquanto lugar de enunciação do sujeito, de fazer-se escutar o traço que o suporta, mas que ele mesmo desconhece. Para tanto, é preciso o aporte da relação transferenciai, a presença do analista, que, na sua função de suposto, permite ao sujeito a apreensão de seu lugar de enunciação.
O curioso é que esse movimento de passagem do enunciado à enunciação comporta uma subjetivação dos significantes evocados, mas que só é possível ser realizado pela via negativa, isto é, pelo apagamento do sentido. Assim, trata-se de um processo de subjetivação significante que é concomitante à desconstrução imaginária. Em termos freudianos, "Wo es war, soll ich werden", sendo o "ich" em questão sujeito do inconsciente.
Assim, se o momento de saída de análise, de dispensa da transferência, pode ser formulado nesses termos, é porque ele comporta a inscrição singular do sujeito, sustentada pelo universal do código da língua e da cultura. O que é dispensado é a referência especular a um dado semelhante, a base imaginária do amor de transferência.
É nesse ponto que nos encontramos novamente com a história de Roberto da Silva. Seu livro não é o relato de uma análise, mas pode nos servir de alegoria para pensar como a função do semelhante permite a apropriação dos significantes de uma dada história, a construção de uma ficção, a identificação de um traço.
Se ele pode formular ser "filho do governo", é porque no capítulo seguinte ele conduz seu relato à história de sua família, o que ele descobriu após a saída da prisão e ao longo da escrita do livro. Ou seja, o que ele realiza é um reencontro com os significantes que lhe haviam sido usurpados. Podemos nos perguntar por que ele precisa ficar nesta posição de denúncia contra o pai "governo". Neste particular, parece-nos evidente que, se compararmos esse processo de escrita com o trabalho analítico, ainda haveria um bom pedaço de caminho a ser trilhado.
A respeito da questão inicialmente evocada, sobre a relação entre Cena Primária e Complexo de Édipo, o que podemos concluir é que também a passagem pelo Édipo pode ser traduzida como este tempo terceiro de enunciação de um singular concomitante à inscrição do sujeito nos universais da cultura. Os outros dois tempos anteriores - no sentido lógico - sendo a infância, momento de inscrição da letra, "instante de ver", e o "período de latência", momento de apagamento do particular do desejo, "tempo de compreender", em que o semelhante ocupa um lugar fundamental na identificação dos traços significantes que suportam o sujeito em sua enunciação. Fundamentalmente, sua posição em relação à filiação e à sexuação.
No terceiro tempo, trata-se da formulação de um enunciado em que a fantasia originária se reduza ao suporte do traço. Isto é, a essa mínima diferença significante que, em nossa cultura, se traduz como diferença sexual e diferença generacional. Porém, para que isso seja possível, é preciso o tempo da construção da ficção, do compartilhamento com o semelhante do enredo que suporta o traço. É esse tempo de suspensão da certeza - e que, como dizia o poeta a respeito do amor, "que seja eterno enquanto dure" - que gostaríamos aqui de propor como aquele do exercício da função do semelhante, o que podemos, talvez, formular como a função da fratria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Costa, A. (2001). Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará [ Links ].
Freud, S. (s.d.). Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. [ Links ]
Kehl, M. R. (org.). (2000). Função fraterna. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará [ Links ].
Lacan, J. (1966). Le temps logique et Passertion de certitude anticipée. In Écrits. Paris: Seuil, pp. 197-213. [ Links ]
_____. Le séminaire, Livre IX, L'identification (inédito). [ Links ]
Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1985). Fantasme originaire, fantasmes des origines, origines du fantasme. Paris: Hachette. [ Links ]
Silva, R. da (1997). Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. São Paulo, SP: Ática. [ Links ]
Recebido em novembro/2001
NOTA
1 Trabalho apresentado no Colloque Franco-Brésilien sur le Fraternel (Paris, outubro de 2001). Parte integrante da pesquisa Alienation, séparation, exclusion: psychopatologie de l'adolescence et clinique du lien social, desenvolvida pela autora na Universidade de Paris 13, sob a orientação de J. J. Rassial e com o financiamento da Capes (Brasil).