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Estilos da Clinica
Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.10 no.19 São Paulo Dec. 2005
DOSSIÊ
Do amigo qualificado à política da amizade1
From qualified friend to the friendship policy
Fabio AraújoI
IBATIS Instituto Brasileiro de Acompanhamento Terapêutico e Intervenção Social
RESUMO
O texto coloca em análise o contexto e os motivos da mudança da denominação "amigo qualificado" para "acompanhante terapêutico". Nota-se que tal mudança envolve uma transformação na própria concepção dessa atividade e não uma simples mudança de nome. Tal transformação se dá na busca de um estatuto puramente clínico para o acompanhamento terapêutico, isso em detrimento de suas raízes políticas, que são relegadas a um segundo plano ou simplesmente excluídas numa oposição entre clínica e política. No decorrer do texto, discute-se o conceito de amizade e suas implicações políticas. O objetivo é então resgatar a face política do acompanhamento terapêutico.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Clínica, Política, Amizade.
ABSTRACT
The text analyses the context and the reasons for name changes from qualified friend to accompanying therapeutics. You can notice that this change is not only a name change but also a transformation on the conception of this activity. This transformation is there for the search of a pure clinic statute for the accompanying therapeutics, this in detriment of its political roots which are put on a second place or even excluded in a position between clinics and politics. During the text, on this way, begins a discussion about the concept of friendship and its politics implications. So, the point is to rescue the political face of the accompanying therapeutics.
Keywords: Therapeutic accompaniment, Clinics, Policy, Friendship.
A história de nosso pensamento quis conceber o observador separado de seu objeto, pois acreditava que só assim poderia conhecer verdadeiramente o que estudava. Esse ideal ganhou força epistemológica em tamanha proporção que praticamente toda ciência dos séculos XVIII, XIX, até meados do XX, terá tais bases como norteadoras de suas práticas. Vemos nascer daí um ideal de neutralidade que irá se expandir para outras áreas que não só o estrito conhecimento.
A clínica, como prática de intervenção, também herdará esse ideal de neutralidade. Obviamente tudo fica muito complicado quando se quer pensar uma intervenção que derive da neutralidade, ou uma intervenção que seja ela mesma neutra. Sabemos que muito já se discutiu sobre o assunto desde o nascimento da clínica, e não pretendemos reproduzir essa discussão neste trabalho. O que queremos pensar aqui é como a clínica se dá quando a neutralidade já não mais se coloca nas suas bases. Quando as intervenções não se propõem mais neutras.
No acompanhamento terapêutico, qualquer ideal de neutralidade é posto fora da cena. O que faz surgir a dinâmica de afetações das relações presentes em cada cena,incluindo, também, o acompanhante e toda a virtualidade que ele e a cena carregam consigo. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais essa prática, em seus primórdios, ganhou o sugestivo nome de "amigo qualificado", sugerindo uma certa aproximação entre as partes envolvidas na relação.
Para nós o que interessará é o que essa expressão guarda de amigo, já que cremos em uma amizade que não pode ter uma qualidade a priori, e sim em uma amizade que, a cada encontro, se qualifica pela diferença que engendra em relação a si mesma e ao outro. Ou seja, queremos pensar uma amizade que não seja qualificada e sim qualificante ou geradora de qualidades.
Porém, a questão da amizade não surge no campo do acompanhamento terapêutico sem tensões. E, se nos perguntarmos por que, no desenrolar de sua história, houve a mudança de nome, logo veremos que o que entra em jogo é justamente a idéia de amigo e não o adjetivo qualificado, isto é, o amigo se torna uma noção problemática por não ser suficientemente qualificado, ou por não marcar logo de início a função clínica ou terapêutica dessa prática. Nesse sentido que vai o ataque de Fulgêncio ao nome "amigo qualificado": "Estas primeiras experiências apontavam grandes contradições e dificuldades. Um paciente perguntava: `Você é mesmo o quê? Meu `amigo credenciado'"?
O termo utilizado para nomear o trabalho carregava uma mensagem ambígua e falsa: não se trata de amigo; e muito menos um "amigo qualificado"; como se fosse possível existir amigos qualificados e desqualificados!
Este termo ("amigo qualificado") provocava uma confusão de difícil esclarecimento: efetivamente uma mensagem falsa era constantemente enviada. Uma denominação mais precisa poderia encontrar um nome que indicasse a proximidade do vínculo, a função acolhedora do trabalho, mantendo explícita uma diferença de lugares (sem que isso implicasse uma diferença hierárquica) e, ainda, pudesse focar uma ação realizada não só ao nível do discurso." (Fulgêncio, 1991, p.233)
Essa passagem mostra claramente o embaraço do autor diante do nome que, em sua opinião, não marca a "diferença de lugares" entre as partes envolvidas na relação. Diante disso, acreditamos ser importante que possamos nos deter um pouco no momento da passagem entre um nome e outro.
A expressão "amigo qualificado" aparece na literatura no livro Acompanhamento terapêutico e pacientes psicóticos, escrito por Mauer e Resnizky (1985). Esse livro conta a experiência vivida no CETAMP _ uma comunidade terapêutica localizada na Argentina e dirigida pelo psiquiatra Eduardo Kalina. O livro é o primeiro registro escrito sobre acompanhamento terapêutico e marca o começo das tentativas de sistematizações teóricas em torno dessa prática. As autoras estabelecem uma crítica ao nome "amigo qualificado", apresentando a expressão acompanhamento terapêutico que, inclusive, vai dar nome ao livro. Ou seja, é no momento em que a passagem de um nome ao outro está sendo feita que surge o primeiro esboço teórico, agora não mais sobre o "amigo qualificado"e sim, sobre o acompanhamento terapêutico. Certamente isso já diz muito dessa passagem, porém antes de entrarmos propriamente nessa discussão voltaremos um pouco na história para situar o nascimento da função "amigo qualificado", para depois entendermos melhor a troca de nomes.
Oliveira (1995) situa _ sua dissertação de mestrado estabelece uma genealogia do acompanhamento terapêutico _ o nascimento do "amigo qualificado"no contexto dos movimentos da antipsiquiatria e da psiquiatria democrática, movimentos esses que tiveram profunda influência nos países da América do Sul, especialmente na Argentina e no Brasil. Tais abordagens enfatizam o caráter social, construído e relacional das doenças mentais, elaborando, assim, um tipo de conduta que não se baseava em um saber específico sobre a loucura nem em uma autoridade de intervenção de especialistas, abrindo o rol das intervenções ao conjunto do campo social. Tal perspectiva conduziria a uma transdisciplinarização no lidar com os pacientes, permitindo o surgimento de figuras híbridas como o "amigo qualificado".
Oliveira, falando da proposta da psiquiatria democrática elaborada por Franco Basaglia, chega a afirmar que "às vezes ele (Basaglia) parece propor um novo modelo de atendimento em saúde mental no qual os técnicos _ médicos, analistas etc. _ fossem todos um pouco acompanhantes" (1995, p. 123), isto é, uma transversalidade entre os saberes em que a função acompanhante coincidiria com essa própria transversalidade. Essa intervenção proporcionada por pessoas, que a princípio não seriam especialistas da loucura, e sim que se colocariam em uma posição de interseção entre os saberes e o campo social vai ganhar o nome, na Argentina e logo em seguida no Brasil, de "amigo qualificado".
É interessante ver também o caráter de engajamento político no surgimento dessa figura do amigo qualificado. E aí, mais uma vez, são considerados paralelismos com a psiquiatria democrática, mais especificamente com a experiência que Basaglia vinha produzindo na Itália, na cidade de Trieste. Falando dessa experiência política nos dirá: " uma das sortes que tivemos em nosso trabalho foi que a nossa união não emanava da profissionalização mas da finalidade política. ( ) A nova equipe psiquiátrica e a nova equipe de saúde mental podem criar uma situação de dificuldade quando não há uma finalidade política comum " (1979, p. 23)
Tal "finalidade política comum" que não "emanava da profissionalização" permite surgir em Trieste a figura do "voluntário". Seguindo os comentários de Goldberg podemos ver as semelhanças que tal figura irá estabelecer com o que na América do Sul veio a ser o "amigo qualificado" e em seguida o acompanhante terapêutico. "A figura do voluntário desempenha papel importante no tratamento; é ele que acompanha os usuários ( ) com problemas de reinserção social, que busca aqueles que permanecem em casa, que os auxilia em suas tarefas domésticas." (1994, pp. 81-82).
Mais adiante nos diz o autor: "Ressaltaria como característica notável no sistema de Trieste o trabalho complexo e importante dos voluntários (há algumas semelhanças com o trabalho dos acompanhantes terapêuticos em nosso meio). ( ) é alguém que se interessa pelo projeto, está disponível para esse tipo de trabalho. ( ) São estudantes de enfermagem ou universitários em geral " (p. 86).
E Oliveira (1995) conclui, identificando a figura do "amigo qualificado" com a concepção e a atitude em relação à doença mental proposta pela psiquiatria democrática: "Parece-nos evidente terem sido concepções deste tipo, fundamentais para a emergência de uma figura passível de ser chamada de `amigo qualificado', no cenário das práticas de atendimento à doença mental. Ele, o `amigo qualificado', personifica essa atitude em relação ao `doente'". (1995, 123).
Depois de visto o contexto de nascimento da função "amigo qualificado", passemos ao momento de mudança do nome.Momento de questionamento que é inseparável de uma questão em relação ao saber e a formação do que agora passa a se chamar acompanhamento terapêutico. Oliveira enfatiza a necessidade que Mauer e Resnizky tinham em estabelecer o caráter clínico do que faziam os acompanhantes terapêuticos, o que já de início fez com que uma crítica à expressão "amigo qualificado" fosse elaborada. Podemos ler essa passagem logo no início do livro de Mauer e Resnizky (1985): "A história do papel do acompanhante terapêutico tem aproximadamente 15 anos. Numa primeira etapa, Eduardo Kalina optou por chamá-lo de `amigo qualificado'. A mudança de denominação não foi um fato trivial. Implicou uma mudança quanto à delimitação e ao alcance do papel. Fundamentalmente, a nova atribuição surgiu a partir da experiência clínica das pessoas que começaram a trabalhar nessa função. Quando se empregava a expressão `amigo qualificado', acentuava-se, como é evidente, o componente amistoso do vínculo; no entanto, ao substituir-se aquela pela atual denominação, acentuou-se o que de terapêutico havia nesse tipo de função assistencial." (1985, p. 39).
Oliveira também analisa a troca de nome em contextos brasileiros e diz: "Observe-se que ( ) sempre houve nesses movimentos pela troca de nome, uma reivindicação pelo reconhecimento do caráter clínico/terapêutico desta prática" (1995, p. 120).
A busca por uma sistematização teórica da função exercida pelo "amigo qualificado", que vai resultar no surgimento do nome acompanhamento terapêutico, se dará pelo encontro dessa prática não mais com a psiquiatria democrática e, sim, com a teoria psicanalítica. Diante dessa teoria e em nome de um certo estatuto puramente clínico tal prática tenderia a se afastar de sua dimensão política. É o que Oliveira aponta em sua dissertação: "Quanto à experiência do acompanhamento no CETAMP, a guiarmo-nos pelo texto de Mauer e Resnizky, reconheceríamos nela por um lado, a influência deste referencial `técnico-político' fornecido pela psiquiatria social e, por outro, o uso de uma conceituação retirada da teoria psicanalítica para caracterizar o que faz o acompanhante e o que acontece ao paciente, chamando a atenção ao mesmo tempo para o caráter eminentemente clínico/terapêutico de sua função. Vide o movimento no sentido de uma nova denominação. Quanto a esta, aliás, poderíamos apontar-lhe algum grau de ambigüidade, já que, para uma certa perspectiva, ser `amigo qualificado', é ser terapêutico, ou então, ser terapêutico é ter uma ação política; o que se poderia estar querendo apontar com essa mudança seria, então, que o acompanhamento é terapêutico, mas não por ser um amigo, ou pela dimensão política de sua atividade e sim por ser um terapeuta, um clínico." (1995, p. 126).
As análises de Oliveira continuam e mostram que, na verdade, no momento em que a teoria psicanalítica vem dar um estatuto clínico, ao agora acompanhamento terapêutico, uma outra tensão se estabelece. A nova tensão é com as outras práticas que já eram reconhecidas como clínicas ou terapêuticas. O perigo para tais práticas era que o acompanhamento terapêutico, além de um novo concorrente, poderia, em certos casos, vir a subsumi-las. As primeiras teorizações sobre o acompanhamento terapêutico o colocarão então, em um lugar bastante incômodo, em uma espécie de engodo: por um lado há uma tentativa de separá-lo de sua função política em prol de uma clínica pura e, por outro, ao buscar nas teorias clínicas já estabelecidas seu estatuto, passa a ser visto como uma prática menor, já que não cumpre as predeterminações de uma clínica stricto sensu.
De nossa parte, sabemos que essas são más questões, pois estamos pensando a clínica em uma zona de indiscernibilidade em que clínica e política não mais se separam. E é em nome de seu estatuto político/clínico que resgataremos a noção de amizade.
De resto, fica a pergunta que Baremblitt (1997), após sistematizar os processos de cura nas relações de amizade e as doenças na ausência de tais relações, faz a respeito da mudança de nome do "amigo qualificado": "Não posso afirmá-lo, mas proponho tomar esse devir como uma parábola. Os protagônicos e órgãos `inventores de modos curativos da amizade' têm sido levados a se reduzir a cidadãos de segunda categoria `coadjuvantes de procedimentos de adaptação, ou até de hiper-normalização sofisticada' consagrados no mercado de `bens e serviços'? ou tiveram que dissimular a sua condição de simulacros criativos sob a forma de uma `boa cópia' para poder `ultrapassar' as barreiras das aristocracias disciplinares e corporativas?" (1997, p. 182).
Pode-se dizer que a mudança do nome de "amigo qualificado" para acompanhamento terapêutico passa por uma noção de amizade que está estreitamente vinculada à idéia de fraternidade. Essa noção irá pensar a amizade subsumida pela familiaridade, o que dificultaria qualquer instância clínica ou terapêutica, segundo a perspectiva psicanalítica. Talvez a amizade fraterna fosse a primeira imagem que surgia quando se falava em "amigo qualificado", o que forçou a troca de nomes, visto que foi em prol de uma certa neutralidade ou de um certo afastamento entre as partes envolvidas na relação que tal mudança se deu. Amigo sugeriria uma relação pessoal demais para que a função de "amigo qualificado"ganhasse algum estatuto de clínica. Seria uma prática puramente assistencial, sem grandes qualidades terapêuticas. Foi em um combate a favor de seu estatuto clínico que os "amigos qualificados", visando uma equiparação com a clínica psicanalista, partiram em busca de um nome que não sugerisse tanta proximidade quanto o amigo, e que garantisse um certo afastamento, uma certa neutralidade que desse a essa prática o seu estatuto de clínica.
Para entendermos melhor a noção de amizade, vamos ao senso comum. Por exemplo, é senso comum entender a amizade como uma espécie de irmandade, isto é, o amigo como um irmão. O "amigo de fé, irmão camarada" da música de Roberto e Erasmo Carlos. Muitas vezes tem-se na idéia de amizade um irmão que pode, de certa forma, ser escolhido. Isso faz da amizade uma figura muito mais conveniente. Tudo se passa como se a amizade fosse uma espécie de irmandade, só que preservando uma maior abertura à liberdade, pois o irmão de sangue não se escolhe, é determinado por questões hereditárias. Entretanto, tal compreensão da amizade também tem a sua história.
Onfray (1995) entende que a amizade vinculada ao ideal de fraternidade é apenas uma forma de captura da amizade pela república nascente a partir da Revolução Francesa, pois a amizade guardaria uma potência extremamente revolucionária indo de encontro com a organização da nova sociedade democrática. O autor nos conta alguns rituais concernentes a essa época que iriam codificar a noção de amizade em uma espécie de irmandade fraterna, livre e igualitária. Nos diz Onfray: "Por ser uma contradição flagrante ao princípio democrático e igualitário, ela (a amizade) desagradou bastante a Revolução Francesa que desejou codificá-la. A melhor maneira de aniquilar uma força temível em seus efeitos associais, é lhe reservar uma única existência social. ( ) Para começar, a república à moda de Saint-Just bane quem quer que declare não acreditar na amizade, como se diz. Em seguida, uma festa é reservada a essa virtude no primeiro dia de Ventoso (sexto mês do ano no calendário republicano francês). Todos se sacrificam à divindade. Nesta ocasião, anual portanto, cada um deve declarar, publicamente e com toda a solenidade devida, a identidade e o nome de seus amigos. Além disso, se for constatada uma ruptura entre dois amigos, é preciso, conforme o mesmo princípio, informar as autoridades e o público, para os quais as razões desse afastamento são explicadas. ( ) É preciso recear tal potência para impor-lhe assim as formas dentro das quais supõe-se que ela possa melhor se expandir!" (1995, pp. 174-75).
Onfray prossegue falando de outras formas sociais de codificação da amizade. Como, por exemplo, as punições sofridas por um dos amigos quando o outro cometia algum crime e sobre os rituais funerários entre amigos. O que nos interessa é entender que a imagem da amizade ligada à fraternidade não é a única possível, e que em verdade a amizade pode guardar ainda muito de sua potência revolucionária ou subversiva. Parece ter sido nesse sentido que Foucault caminhou no último momento de sua obra ao recriar a noção de amizade, de estética da existência, de modos de vida etc. Entretanto, sobre essas noções foucaultianas falaremos mais adiante, quando abordarmos a questão da política da amizade. Agora o que queremos fazer é desconstruir essa imagem igualitária, fraterna e irmã da amizade.
Tal imagem precisa ser ligeiramente modificada para que possamos entender que a clínica se dá justamente em um plano de amizade, porém uma amizade que já não diz respeito ao reconhecimento do mesmo. Essa amizade não é a que cria uma irmandade e, também, uma identidade, não é fraterna nem entre os iguais. Ela é, então, amizade à diferença, ao díspar, ao dessemelhante, ao outro. Ser amigo é possibilidade de acolhimento e hospitalidade ao que se apresenta como diferença radical.
Georges Bataille e Maurice Blanchot _ dois amigos em vida _ falaram da amizade como o que preserva um hiato entre um e outro, uma diferença intransponível, mas que por isso mesmo os unia, os atraía, os juntava, não como um laço social codificado e sim como um movimento de liberdade, uma amizade que não é submissão nem obrigação com o outro e, sim, uma amizade livre. Em uma coletânea de textos de Blanchot (1976) aparece essa epígrafe atribuída a Bataille: " amigo até esse estado de amizade profunda em que um homem abandonado, abandonado por todos os seus amigos, encontra na vida o que, ele mesmo sem vida, lhe acompanhará mais além da vida, capaz da amizade livre, desapegada de todo laço." (Blanchot, 1976, p. 7) E, no texto que consagra à amizade que tinha por Bataille, dirá: "A amizade, essa relação sem dependência, sem fato e onde, não obstante, cabe toda singeleza da vida, passa pelo reconhecimento da estranheza comum que não nos permite falar de nossos amigos, senão somente falar a eles, não fazer deles um tema de conversação (ou de artigos), senão o movimento de ajuste em que, nos falando, reserva, inclusive na maior familiaridade, a distância infinita, essa separação fundamental a partir da qual o que separa, se converte em relação." (p. 258).
Esse texto foi escrito por Blanchot por ocasião da morte de Bataille. Nele, Blanchot se recusa a falar do amigo enquanto um indivíduo ou um sujeito, situando essa amizade justamente na "estranheza comum" que não permite que ambos fiquem presos a identidades. Blanchot apresenta o amigo enquanto um acontecimento.
Nietzsche definia a amizade por meio de um pathos da distância, o que Onfray (1995) chama de "polidez", pois é polida a arte de achar a distância certa. Nietzsche entendia que uma boa amizade guarda certa distância que é uma justa distância. Justo aqui se refere à posição que permite aproximar-se do outro, porém, sem que haja uma confusão com ele, isto é, sem que questões identitárias venham fundir as partes envolvidas. A amizade exige uma boa distância à medida que a separação entre um e outro é uma fissura intransponível. Ela passa, então, pelo reconhecimento dessa fissura. Dessa forma, o que irá determinar a relação é justamente a diferença que insiste ou subsiste e que será sempre uma diferença radical, porém, para que seja e permaneça diferenciação necessita da proximidade justa com o outro. Situação paradoxal ou aporética que precisa achar a sua medida _ sempre medida justa _, em que o mais afastado é ao mesmo tempo o mais próximo, sem que com isso se crie algum tipo de amálgama de identidade ou de afastamento absoluto. Nietzsche (2000) escreve um aforismo sobre essa questão: "A BOA AMIZADE. A amizade nasce quando se tem o outro em grande estima, maior do que a que se tem por si, quando, ainda mais, ama-se o outro, mas menos que a si próprio, e quando enfim, para facilitar as relações se estabelece um disfarce, uma tingidura de intimidade, guardando-se sabiamente, ao mesmo tempo, da intimidade verdadeira e da confusão do eu e do tu." (p. 72).
Guardar-se "sabiamente" da confusão entre o eu e o tu. Como fazer isso senão renovando a cada instante o eu e o tu; senão recriando a relação constantemente; senão permitindo que forças vindas de fora venham combinar-se com o eu e o tu de acordo com a expressão necessária de cada um? E, "sabiamente", não pode ter outro sentido que não seja trazer para a relação o ele mento diferencial e o elemento diferenciante.
Sabedoria e amizade guardam uma profunda relação desde os primórdios do pensamento, e filósofo quer dizer isso: "amigo da sabedoria". Entretanto, como entender esse "amigo da sabedoria" por meio de uma filosofia que agora se quer filosofia da diferença. Novamente Nietzsche vem em nosso socorro pela leitura deleuziana: "Philosophos não quer dizer sábio, mas amigo da sabedoria. Ora, de que maneira estranha é preciso interpretar `amigo': o amigo, diz Zaratustra, é sempre um terceiro entre mim e eu, que me força a superar e a ser superado para viver. O amigo da sabedoria é aquele que reclama a sabedoria, mas como se reclama de uma máscara na qual não se sobreviveria; aquele que faz servir a sabedoria a novos fins, bizarros e perigosos, em verdade bem pouco sábios. Pretende que ela se supere e que seja superada." (Deleuze, sem data, p. 12).
Amigo, então, se encontra sob o signo da superação como o terceiro que vem fazer com que o "mim" venha superar o "eu" _ ou vice-versa, pouco importa. Terceiro que já é ele mesmo o que vem coincidir com a mudança em mim. E, quando falamos da mudança e da constituição de si mesmo já não estamos falando em clínica? Já não estamos falando de uma estética ou de uma estilística de si? O clínico seria, então, como o amigo, o terceiro que não permite que o outro se identifique a si mesmo em uma profundidade infinita. Nos diz Zaratustra sobre o perigo que corre o solitário e a necessidade praticamente clínica de um amigo: "Um só me assedia sempre excessivamente (assim pensa o solitário). Um sempre acaba por fazer dois.
Eu e Mim estão sempre em conversações incessantes. Como se poderia suportar isso se não houvesse um amigo?
Para o solitário o amigo é sempre o terceiro; o terceiro é a válvula que impede a conversão dos outros dois de se abismarem nas profundidades.
Ai! Existem demasiadas profundidades para todos os solitários. Por isso aspiram a uma amiga à sua altura.
A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos. O nosso desejo de um amigo é o nosso delator." (Nietzsche, 2003, p. 56).
Derrida, todavia, irá pensar a amizade como mais um tema das suas aporias incondicionais. Seguindo as indicações nietzschianas, identificará o amigo ao filósofo do futuro. Tal filósofo traz para dentro do seu campo a questão do talvez. Dirá Derrida (sem data) que esse filósofo, que talvez surja, será ele mesmo o próprio filósofo do talvez. E, como em toda aporia derridariana, a amizade também se colocará sob o signo do impossível, e aí se leia acontecimento. Para ele, o acontecimento possível não merece o nome de acontecimento. Só merece tal nome o acontecimento que se extrai do impossível, o acontecimento que se dá em condições de impossibilidade. Ortega (2000), seguindo a orientação derridariana, fala da amizade: "Essa nova amizade é um impossível, constitui a experiência mesma do impossível. Um impossível que não conduz à paralisia. Ele é movimento do desejo, da ação, da urgência, do talvez. A amizade como talvez pode ser definida segundo três elementos: inconstância, imprevisibilidade, instabilidade. Os amigos do talvez recusariam a dar uma substância, uma essência, a procurar um substrato, uma base direta dessa amizade. O talvez aponta também para imprevisibilidade. A amizade assim concebida estaria aberta para o acontecimento, para o novo, para a invenção e para experimentação. Seria uma amizade instável, dinâmica, com relação à definição dos valores." (p. 83).
E podemos completar com uma citação do próprio Derrida: "Talvez seja impossível, justamente. Talvez o impossível seja a única chance possível de qualquer novidade, de qualquer nova filosofia da novidade. Talvez, talvez em verdade, o talvez nomeie ainda essa possibilidade. Talvez a amizade, se existe, deva levar em conta isso que parece aqui impossível." (1998, p. 54).
A amizade será, então, como o impossível que move em direção à criação de novas formas de se relacionar, visto que guarda os signos da inconstância, imprevisibilidade e instabilidade, como definiu muito bem Ortega.
Resgatamos então uma outra noção de amizade. Noção essa que já pode ser pensada pela clínica. Entretanto, se fizemos tal resgate é por que queríamos chegar também a uma nova idéia de política, ou melhor, queríamos flagrar no que diz respeito ao acompanhamento terapêutico, a função política em sua inseparabilidade da clínica. A idéia de amizade, quando se propõe a novas formas de se relacionar, parece se ajustar satisfatoriamente à zona comum entre clínica e política. Passemos, então, à "política da amizade" no que diz respeito ao acompanhamento terapêutico.
Precisamos situar a questão da amizade em relação à política no acompanhamento terapêutico. Já vimos que o pensamento da amizade se encontrava presente nessa prática desde o seu início e analisamos os motivos que levaram à repulsa desse nome. Mas por que então fazer nesse momento um novo elogio da amizade?
O que queremos com esse conceito de amizade é encontrar o ponto de contato ou de indiscernibilidade entre ética e política, entre "ética da hospitalidad"2 e "política da amizade". O encontro, o ponto de contato dirá respeito à clínica. E, já que clínica neste trabalho ganha o nome de acompanhamento terapêutico, podemos começar a nos perguntar o que essa prática convoca a pensar em relação à política? Onde a política toca mais diretamente o acompanhamento terapêutico? E essa política que concerne mais imediatamente ao acompanhamento terapêutico pode ser chamada de "política da amizade"?
De início, uma questão de escolha já se impõe, pois a política toca o acompanhamento terapêutico em múltiplos pontos. Porém, dentre muitas inflexões políticas possíveis, escolheremos abordar a que traça a história da hegemonização da razão em nossa sociedade pelo enclausuramento da loucura. Sobre isso já foi dito o bastante, porém, não podemos deixar de apontar um marco, ou melhor, um livro que parece abrir as condições para o questionamento dessa história: História da loucura na idade clássica, de Foucault, que se tornou referência para todo o movimento de luta contra as condições instituídas dos loucos.
Foucault (1972), parte de práticas discursivas e não-discursivas que incidiram sobre o corpo dos loucos e da loucura, abrindo, assim, um campo fecundo de questionamento das formas em que se encontra, na atualidade, esse corpo. Tanto as naturalizações realizadas pelos saberes médicos que fazem surgir a noção de doença mental, quanto as práticas hegemônicas que separam e excluem o corpo do louco do restante da sociedade, são colocadas em um questionamento profundo. A loucura, portanto, tem uma história e sua história, ao menos até os anos 60, se revela como um profundo movimento de afastamento do socius. Afastamento esse que herdamos e que, se por um lado diz da realidade de uma loucura alienada em farrapos institucionalizados, por outro, diz de uma sociedade que se quer sóbria, constante, regida por princípios morais incontestáveis, enfim, diz de uma sociedade entrelaçada pelos princípios de uma razão eficaz, prática e positiva. Princípios esses que nos afastaram do contato com o irrazoável, com o desmedido, com o irracional, com a desrazão e com a diferença3; princípios que querem obedecer ao bom-senso e ao senso comum, fazendo de qualquer situação paradoxal uma ambivalência a ser resolvida; princípios que constroem a ordem de um capital mundialmente integrado.
A partir dos anos 50 e 60, uma reação ao enclausuramento se estabelece em nossa sociedade e todo um movimento de contestação se instaura em praticamente todas as culturas. Em meio ao fervilhar da "contra-cultura",surgiram movimentos que tomavam a direção de uma tentativa de desinstitucionalizar o louco e a loucura. Por exemplo, na Inglaterra, as comunidades terapêuticas de Maxwell Jones e a antipsiquiatria de David Cooper, Ronald Laing e outros; na Itália, a psiquiatria democrática de Franco Basaglia e, na França, a psicoterapia institucional de Tosquelles e a análise institucional de Félix Guattari, Jean Oury, René Lourau, Georges Lapassade, entre outros4. Todos os movimentos que, apesar de se diferenciarem em propostas, lutam por um novo olhar e um novo discurso sobre a loucura. Se pudéssemos reunir algumas características comuns sem sermos injustos com algum deles _ já correndo o risco de sê-lo _ diríamos que são movimentos que enfatizam a constituição histórica da loucura enquanto doença mental; trazem à tona a necessidade de dar voz e expressão aos loucos; põem em foco os sintomas não de uma suposta doença mental endógena e, sim, os que são frutos da violência e da exclusão social; pensam a reinserção dos loucos na rede social pela mudança do próprio estatuto da loucura na sociedade; criam práticas que colocam o louco em relação direta com a sociedade e toda uma série de tentativas bem sucedidas ou não que trazem um certo caráter de luta contra a instituição asilar, bem como a forma que a psiquiatria entende e cuida da loucura.
Como vimos, para os autores (Berger, Morentin e Neto, 1991; Oliveira, 1995) que escreveram sobre o Acompanhamento Terapêutico essa prática nasce exatamente nesse contexto teórico e de luta. Podemos dizer que, no Brasil e na Argentina, tais propostas ainda enfrentam um Estado extremamente centralizado, repressor e torturador e sabemos o papel que os profissionais de saúde tiveram na luta pela democratização e pela descentralização da política em nosso país. Foi nas ditas comunidades terapêuticas que, por volta dos anos 60 e 70, essa prática se deu inicialmente. Começou-se a ver que o sistema de enclausuramento não era nem um pouco satisfatório e com isso novas soluções foram buscadas para um acompanhamento mais efetivo de seus pacientes. Foram designados não mais enfermeiros para essa função e sim estudantes tanto de psicologia quanto de medicina. Função essa que foi aos poucos saindo das comunidades terapêuticas e ganhando o espaço da cidade.
Queremos agora situar a função política do acompanhamento terapêutico na contemporaneidade. Hoje, a crítica à clausura física da loucura parece ganhar uma certa hegemonia e o desmonte das grandes instituições de seqüestro se torna quase que inevitável. É claro que ainda existem bolsões onde tal prática é defendida de uma forma talvez um pouco anacrônica e há ainda toda uma luta a se fazer nesse campo para o desmantelamento desses bolsões. Entretanto, se por um lado o desmonte das grandes formas de aprisionamento físico já é uma realidade, por outro, talvez isso apenas revele uma outra forma de clausura, agora mais sutil. O que queremos dizer é que apenas a desospitalização da loucura não garante a ela necessariamente um lugar novo dentro da sociedade. Diríamos que a desospitalização do louco não garante a hospitalidade da loucura. Deleuze (1992), Hardt (1996), Negri e Hardt (2001), Negri (2002), entre outros, nos apontam um movimento de sutilização do poder que já não age mais por visíveis instituições de disciplina e, sim, por um controle invisível das virtualidades. Um controle que agora pode se dar a céu aberto, que se ramifica por todos os cantos. Em verdade, um controle não mais transcendente e, portanto, na própria imanência.
Quando situamos esse controle das virtualidades no campo da loucura, não podemos deixar de analisar a questão cada vez mais presente e cada vez mais forte da utilização em larga escala dos psicofármacos. É com os primeiros momentos, ainda nos anos 50 e 60, de crítica às instituições psiquiátricas que surgiram os primeiros antipsicóticos. De lá para cá, só se fez aumentar e diversificar o rol de psicofármacos e as formas _ muitas vezes pouco terapêuticas _ de sua utilização. Isso quer dizer que todo o movimento de desospitalização do louco muitas vezes teve no seu reverso a questão do alargamento do uso dos psicofármacos.
Hoje, o que vemos como desospitalização, não é propriamente um movimento de acolhimento do louco e da loucura no campo social e, sim, uma microcaptura nas sutilezas das fendas sinápticas por substâncias psicotrópicas. O que queremos dizer é que o estatuto do louco e da loucura parece permanecer intacto. Ele continua sendo o irresponsável, o perigoso etc. Sua circulação nas ruas ainda não é garantida. Sua voz ainda não é escutada.
Aí entra a função do acompanhamento terapêutico como uma "política da amizade", pois se a loucura não se encontra mais entre muros de concreto _ apesar deles ainda existirem e lutaremos sempre para que caiam _ é a função do acompanhamento terapêutico que poderá levá-la ao contato direto com a sociedade, sempre visando um regime de variação constante em seu estatuto social, assim como da forma que a sociedade entende e lida com a loucura.
Obviamente outras questões se colocam, como, por exemplo, a questão de uma análise da contemporaneidade. Não nos alongaremos nisso, deixando apenas algumas indicações que consideramos importantes no que diz respeito ao nosso campo de atuação. A contemporaneidade parece _ e isso é apenas uma aparência _ estar aberta a todos os tipos de diferenças. Não há mais princípios claros que hegemonizem as formas de agir e de ser. Todos têm _ e isso passa a ser uma obrigação _ que ser diferentes, que marcar a sua individualidade. Tal fenômeno está em plena conformidade com uma ordem cada vez mais mundial e integrada. Porém, quando em nosso trabalho falamos de diferença, queremos pensar um princípio de diferenciação que irá criar novos modos singulares de existência e não um rol imenso de formas pré-dadas de ser e de agir, às quais aderimos ou não pela nossa capacidade de adquirir os produtos que compõem tal ou tal personagem.
Derrida estabelece uma distinção entre uma diferença em total conformidade com as formas de consumo/controle e outra enquanto processo de diferenciação. Para isso, usará uma pequena inflexão na própria palavra, falando em différance (com "a") em vez de différence (com "e"), que seria a forma ortograficamente correta em francês. Diz ele: "Em primeiro lugar, se me permite, algumas considerações abstratas sobre a différance (com "a") e as deferenças (com "e"). O que o motivo de différance tem de universalizável em vista das diferenças é que ele permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites: quer se trate de limites culturais, nacionais lingüísticos ou mesmo humanos. ( ) Depois a différance não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento, um "devir-espaço" do tempo, um "devir-tempo" do espaço, uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é primeiramente oposicional." (2004, pp. 33-34).
Diante disso, podemos começar a pensar uma política da amizade. Se política é o princípio de gestão da cidade, onde se determinarão as relações entre os que nela convivem, como pensar uma cidade em que as relações comportem o princípio diferencial _ a différance _ presente na amizade? Como uma política pode ser um programa de liberação do espaço ao hiato que, ao mesmo tempo, distancia e une os amigos? Como pensar uma política de acolhimento do louco e da marca diferencial que ele carrega tão visivelmente em seus apetrechos, suas formas de andar e de falar, em suas formas de se movimentar e de pensar, em suas formas de ver e de ouvir etc.?
Uma "política da amizade" só é política por guardar os princípios incondicionais da amizade, da hospitalidade, do acolhimento e da justiça5. Diz Derrida a respeito de Lévinas: "( ) não pode haver amizade, hospitalidade ou justiça senão aí onde, mesmo que seja incalculável, se tem em conta a alteridade do outro, como alteridade _ uma vez mais _ infinita, absoluta, irredutível. Lévinas recorda que a linguagem, quer dizer, a referência ao outro é em sua essência amizade e hospitalidade. E, por sua parte, estes não eram pensamentos fáceis: quando falava de amizade e hospitalidade, não cedia aos `bons sentimentos'". (1997, p.2).
Não ceder aos ditos "bons sentimentos", não fugir dos tensionamentos das relações, acolher mesmo o incômodo, permitir uma agonística de forças que lutam entre si; tudo isso também faz parte dos sentimentos da amizade. A amizade não é um princípio de tranqüilidade é uma agonística que busca sempre o bom distanciamento. É essa agonística que uma clínica como o acompanhamento terapêutico vai ajudar a traçar junto à loucura e aos loucos que acompanha, ao colocá-los no contato direto com as redes sociais. Ser amigo nesse caso é dar à loucura um estatuto público que lhe é de direito, é ir em busca de um espaço que não é mais o da intimidade e sim o da organização social. Ortega (2002), falando da amizade e sua função de constituição de novas relações sociais, afirma: "A amizade é um fenômeno público, precisa do mundo e da visibilidade dos assuntos humanos para florescer. Nosso apego exacerbado à interioridade, à `tirania da intimidade', não permite o cultivo de uma distância necessária para a amizade, já que o espaço da amizade é o espaço entre indivíduos, do mundo compartilhado _ espaço da liberdade e do risco _, das ruas, das praças, dos passeios, dos teatros, dos cafés, e não o espaço de nossos condomínios fechados e nossos shopping centers, meras próteses que prolongam a segurança do lar." (pp. 161-62).
Como não reconhecer nessa passagem os passeios do acompanhamento terapêutico pela cidade, por esse "espaço da liberdade e do risco"? Também como não reconhecer um certo tom pessimista do autor no "nosso apego exacerbado à interioridade"? Entretanto, Ortega, ao mesmo tempo em que fala de tempos sombrios no que diz respeito a outras lógicas de relação, invoca Foucault em sua discussão da amizade e dos novos direitos relacionais. "Foucault ( ) apelou por um novo `direito relacional' que permitisse a proliferação e multiplicação de relações" (Ortega, 2002, p. 159). Tal era a forma que Foucault passou a pensar a resistência política, por meio da amizade, da "construção estética de si", da criação de novos "modos de vida" e de um novo "direito relacional".
É em uma pequena entrevista que Foucault, pensando em uma política falou mais claramente dos conceitos de amizade e de modos de vida. Cabe entender que ele não sistematizou tais questões, pois sua obra foi interrompida pela sua morte. Seu legado ficou, então, para ser sistematizado e desenvolvido por discípulos e co mentadores. Ortega, foi quem, no Brasil, mais avançou as pesquisas sobre uma "política da amizade". Esse será um autor que a todo tempo nos auxiliará na análise dessa questão. Então, vamos nos deter, por um instante, na entrevista de Foucault que recebeu o título de Da amizade como modo de vida.
Essa foi uma entrevista concedida a um jornal dedicado à luta dos homossexuais. E isso não é à toa, pois Foucault (1981) via na homossexualidade uma região oportuna onde lançar uma resistência política que visava a introduzir na sociedade novas formas, ainda não asseguradas, de relação. Apesar da homossexualidade não ser nosso campo imediato de atuação, queremos pensar junto com Foucault, a invenção de novas formas sociais de relação que viabilizem o contato do louco com a rede social. Na entrevista, a questão de Foucault é: "Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas por um meio da homossexualidade? ( ) usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações. ( ) a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo desejável. Temos que nos esforçar em nos tornar homossexuais ao invés de nos obstinarmos em reconhecer que o somos. Isso para onde caminha os desenvolvimentos do problema da homossexualidade é o problema da amizade." (p. 163).
Foucault parte então para o que ele chama de uma multiplicidade de relações, é essa a paisagem que o move. Esse é o problema colocado por Foucault: "O que é isso de estar entre homens `a descoberta', fora das relações institucionais, de família, de coleguismo obrigatório?" (p. 163) No nosso caso, poderíamos variar essa pergunta para as questões que o acompanhamento terapêutico nos coloca. Diríamos: o que é isso de estar entre a loucura e a organização social `a descoberta', fora das relações institucionais, na busca de ajudar a criar novas formas de relação entre o louco e a sociedade? Esse estado de `a descoberta' a que Foucault se refere é a "relação ainda sem forma que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer" (p. 164), a soma de todas as coisas por meio das quais uma sociedade é tocada na direção do exercício de novos modos de vida.
Já a noção de modos de vida é cunhada por Foucault para pensar a forma da organização da sociedade. O autor se perguntará por que dividir a sociedade segundo critérios como classes sociais, profissões, níveis culturais etc. e não dividi-la por meio de um critério de modo de vida: "Esta noção de modo de vida me parece importante. Será que não seria preciso introduzir uma diversificação outra que não aquela devida às classes sociais, diferenças de profissão, de níveis culturais, uma diversificação que seria também uma forma de relação e que seria `o modo de vida'. Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividades sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se parecem a nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética." (p. 165).
Em seguida, Foucault explica a posição da homossexualidade em relação à sociedade, caracterizando-a como uma posição "enviesada", sendo que é justamente nessa posição "enviesada"que reside todo o seu caráter revolucionário. E nessa posição de "enviesado" não podemos deixar de reconhecer também a loucura e as suas formas tão peculiares de botar em questão as formas já organizadas da sociedade. Diz Foucault: "A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas, não tanto pelas qualidades intrínsecas do homossexual, mas pela posição de `enviesado', de qualquer forma, as linhas diagonais que se podem traçar no tecido social, as quais permitem fazer aparecer essas virtualidades." (p. 166).
Então, podemos pensar em um programa político que vise e lute por uma nova forma de se estabelecer as relações sociais, desde que entendamos essas novas formas sociais como "virtualidades relacionais e afetivas". Porém, Foucault alerta para o perigo de um programa que apenas venha substituir as relações existentes. Contra esse perigo o autor lança mão da idéia de um programa político vazio como um instrumento: "( ) possibilitar os instrumentos para relações polimorfas, variáveis, individualmente moduladas. Mas a idéia de um programa e de proposições é perigosa. Desde que um programa se apresenta, ele se faz lei, é uma proibição de inventar. Deveria haver uma inventividade própria de uma situação como a nossa e que estes desejos, que os americanos chamam de comming out, possam se manifestar. O programa deve ser vazio. É preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, por tal ou qual razão inteligível mas não necessária. É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo?" (p. 167).
Pelbart (2003), em um texto curto, pretende pensar esse "novo direito relacional", não mais por meio da homossexualidade e sim por questões que, em nossos tempos, a aids coloca. Podemos pegar esse texto como o exemplo de uma variação na aplicação dessa noção de um "novo direto relacional". O texto gira em torno de um encontro entre amigos que vão em socorro de quem Pelbart nomeia como sendo O Amigo (um portador do vírus da aids). O questionamento vai no sentido das múltiplas contaminações, enfatizando as contaminações positivas, que ele chama de redes de solidariedade. Pelbart aponta a aids, em sua potência de geração e contaminação de vida, como uma oportunidade de exercício de novas formas de relação: a amizade é como um campo propíio ao exercício do "direito relacional", um campo de "implicação vital". "E podemos perguntar se todo esse funcionamento em rede é apenas uma tática de sobrevivência para tempos sombrios, soluções precaríssimas de uma sociedade civil desorganizada ou, ao contrário, o esboço de estratégias subjetivas e coletivas de implicação vital." (p. 246).
Uma política tal, que se dá em verdade de forma micropolítica, que não pode se dar na esfera da lei, do contrato ou da instituição. Uma política assim não pode ser regida ou criada por qualquer espécie de programa voluntarista6, é involuntária na medida que exige um programa vazio, é de acolhimento das diferenças sem reduzi-las ao mesmo. Uma política do talvez, da incompletude, que está sempre por vir no sentido de que não se totaliza em algo já construído, é uma política do eterno devir como caracteriza Deleuze ou do por vir como entende Derrida.
Para exemplificar a capacidade política de criação de novas formas de relação por meio do acompanhamento terapêutico, gostaríamos de narrar um fragmento clínico.
Éramos uma equipe de cinco acompanhantes que atendíamos, há mais de quatro anos, um rapaz diagnosticado como autista. Seu comportamento era totalmente referenciado ao outro, de forma que não fazia nada _ a não ser "roubar" comida _ sem a permissão ou alguém que o conduzisse. Em um determinado dia, enquanto ele passeava com uma acompanhante e uma outra paciente, ele se perdeu. A acompanhante, ao tentar subir em um ônibus, caiu e o ônibus partiu com o rapaz, que já havia embarcado.
O que sucedeu a partir daí não sabemos ao certo, pois o rapaz não possuía fala. O que sabemos é que fomos encontrá-lo, três dias depois, em um município que fica a 150 km do Rio de Janeiro, local onde ele se perdeu. Após encontrá-lo e ao prosseguirmos o trabalho de acompanhamento terapêutico, percebemos que ele ganhara mais autonomia, começando a tomar atitudes sem que precisasse da autorização dos outros. Já podia, por exemplo, estabelecer formas de conseguir o que queria em lanchonetes por meio de pequenos sons que se assemelhavam ao nome das coisas. Alguns meses depois, começamos notar a sua autonomia na hora de entrar nos ônibus; ele fazia sinal, espontaneamente, para chamar o ônibus, pegava o dinheiro em seu bolso sem ser solicitado, entre outras coisas.
Elaboramos um projeto para que, ao voltar para sua casa, pegássemos sempre a mesma linha de ônibus. Estabelecemos contato, por meio de pequenos papos com os cobradores e os motoristas, de forma que ficássemos visivelmente conhecidos. Em um segundo momento, arriscamos fazê-lo entrar no ônibus para que fosse sozinho para casa, o que passou a acontecer cada vez com mais freqüência.
Tudo isso foi parte de um grande projeto e de uma construção em equipe, que envolveu também todo um trabalho com sua família, que variava entre o desespero e a alegria de vê-lo pela primeira vez fazendo algo sozinho em um ambiente desprotegido. O que acontecia em suas viagens, não sabíamos, porém percebíamos que, pela primeira vez em sua vida, ele se implicava em algo por si próprio.
O "acidente", a autonomia súbita do paciente, o projeto, a repetição da linha de ônibus, suas viagens sem tutela, todo isso foi a construção de um espaço na sociedade que entendemos como uma política de acolhimento ao outro, como uma política da amizade. É fundamental ressaltar a importância que tiveram nessa construção os cobradores e motoristas dos ônibus. Eles, por meio de uma manobra mais ou menos calculada da equipe, passaram a enxergar aquele paciente de uma forma diferente e passaram a lhe oferecer a acolhida necessária para a sua circulação pela cidade.
Esse fragmento de caso, nos faz pensar no que Bauman (2000) em certo momento de suas análises chama de ágora, resgatando um princípio da política grega: "( ) esse espaço nem público nem privado, porém mais precisamente público e privado ao mesmo tempo. Espaço onde os problemas particulares se encontram de modo significativo _ isto é, não apenas para extrair prazeres narcísicos ou buscar alguma terapia por meio da exibição pública, mas para procurar coletivamente alavancas controladas e poderosas o bastante para tirar os indivíduos da miséria sofrida em particular; espaço em que as idéias podem nascer e tomar forma como `bem público', `sociedade justa' ou `valores partilhados'" (p. 11).
Isso é o que propomos como uma "política da amizade" na clínica desde do acompanhamento terapêutico. Uma forma de colocar a loucura em contato direto com o socius, invocando um novo direito relacional e visando à integração de seus modos de vida. A criação de uma sociedade hospitaleira ao elemento diferencial, à différance.
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Recebido em julho/2005
Aceito em setembro/2005
Notas
1 Esse artigo é um fragmento ligeiramente modificado da dissertação Um Passeio Esquizo pelo Acompanhamento Terapêutico: dos especialismos à política da amizade, defendida em agosto de 2005, na Universidade Federal Fluminense.
2 A ética da hospitalidade foi um assunto abordado anteriormente, em outros itens da dissertação.
3 Entendemos que não é somente o louco que encarna a diferença, a desmedida etc, mas parece que as outras figuras sociais que também assumem ou assumiram essa posição frente à sociedade tiveram destinos próximos aos loucos.
4 Quanto a uma história mais detalhada do surgimento dos movimentos de contestação em psiquiatria, ver o texto elaborado pelo GODIP (Grupo Organizador de Debates sobre as Instituições Psiquiátricas) intitulado A loucura em questão. (Basaglia, F. e Cooper, D. (Org.), 1977, pp. 110-23)
5 A justiça também entra no conjunto de temas aporísticos de Derrida. A justiça é apresentada como o incondicional do direito, esse sim infinito e limitador da justiça. Não entraremos aqui na questão da justiça proposta por Derrida. Diremos apenas que ela participa dos temas incondicionais que são tão caros ao autor. A justiça, segundo Derrida, se coloca em aporia juntamente com o direito. A justiça é então o incondicional do direito e o direito o que condiciona a justiça. Justiça infinita que sempre extrapola o direito em sua finitude atual.
6 Sobre uma política involuntária em Deleuze ver Zourabichvili, 2000.