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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.11 no.20 São Paulo June 2006

 

ARTIGO

 

Sobre a escrita adolescente

 

On adolescent writing

 

Sobre la escitura adolescente

 

 

Maria Celina Peixoto Lima1

Universidade de Fortaleza - CE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Confrontado à desilusão das referências parentais, o sujeito adolescente encontra-se diante da tarefa da mudança de endereçamento, passagem da família ao laço social. A escrita adolescente expressa essa ambigüidade entre singular e coletivo, entre público e privado, entre o corpo próprio e o olhar do outro. A construção do texto revela uma originalidade gráfica pela utilização de uma multiplicidade de recursos, tais como colagens, dobraduras, desenhos. Trata-se assim de propor uma interpretação dos elementos que compõem o hibridismo da escrita, a partir do conceito lacaniano de letra, ressaltando o valor da imagem como estratégia de reconstituição dos contornos do corpo.

Palavras-chave: Adolescência, Escrita, Letra, Corpo.


ABSTRACT

Confronted by the disillusion of parental references, the adolescent subject finds himself before a task of changing address, moving from family ties to social ties. Adolescent writing expresses this ambiguity between singular and collective, between public and private, between one’s own body and the look of others. The building of the text reveals a graphic originality through the use of a multitude of resources, such as pasted items, folded papers, drawings. Although hybrid, the text is a result of a composition of writing and image. This article thus deals with an attempt at interpreting the elements which compose the hybrid essence of the writing, from the lacanian concept of letter, highlighting the value of the image as a strategy of reconstitution of the outlines of the body.

Keywords: Adolescence, Writing, Letters, Body.


RESUMEN

En conflicto con la desilusión de las referencias paternas, el sujeto adolescente enfrenta una tarea de reubicación, pasaje del ámbito familiar al social. La escritura adolescente expresa ambigüedad entre lo singular y lo colectivo, entre lo público y lo privado, entre el propio cuerpo y la mirada ajena. La construcción del texto revela originalidad gráfica por la utilización de múltiples recursos como aderezos, dobladuras y dibujos. Intentase, de esta manera, proponer una interpretación de los elementos que componen el carácter híbrido de la escritura, a partir del concepto lacaniano de letra, resaltando el valor de la imagen como estrategia de reconstrucción de los contornos del cuerpo.

Palabras clave: Adolescencia, Escritura, Letra y cuerpo.


 

 

A adolescência constitui hoje um campo de interesse fundamental para a Psicanálise. Reconhecida não apenas como etapa do desenvolvimento, mas como evento subjetivo, a adolescência tornou-se alvo de um importante esforço de teorização no domínio do pensamento psicanalítico de nossos dias. Se não encontramos em Freud uma elaboração clara em torno da problemática da adolescência, a não ser como processo pubertário, outros autores, mais recentemente, evidenciam a distinção entre puberdade e adolescência. Octave Mannoni (1996) sugere a necessidade de distinguir esses dois termos a fim de sublinhar o aspecto social vinculado à adolescência, já que a puberdade reenviaria à idéia de uma crise puramente individual. Segundo Mannoni, a adolescência começa após a puberdade, apresentando-se como herdeira das transformações pubertárias.

O trabalho de diferenciação entre a puberdade e a adolescência toma uma dimensão conceitual nos trabalhos de Philippe Gutton (1991). Ele apresenta os termos pubertário e adolescens, não como duas fases sucessivas, mas como dois conceitos distintos referentes a dois tempos estreitamente imbricados. O pubertário, segundo propõe o autor, já se diferencia da puberdade. Se a puberdade aponta para um processo corporal, o pubertário diz respeito à vida psíquica. Enquanto o pubertário é esse tempo explosivo, resultante da genitalização das representações incestuosas e provocador do esfacelamento da tópica, o tempo da adolescência viria como um momento de cura, apoiado pelas instâncias do supereu e do ideal do eu.

Inseridos nessa mesma perspectiva, ou seja, numa abordagem da adolescência como algo diferenciado da puberdade, encontramos os trabalhos de Jean-Jacques Rassial (1990, 1996). A partir de uma leitura lacaniana, Rassial desenvolve uma concepção da adolescência como operação psíquica essencial ao advento do sujeito, cujas vicissitudes são paradigmáticas da psicopatologia de nossos dias. A adolescência é tomada no sentido de um tempo lógico, momento fundador das identificações, e não somente como uma realização daquilo que foi fixado no momento da primeira infância. Dito de outra forma, o sujeito adolescente não se encontra confrontado unicamente à repetição das primeiras identificações, ele deve também efetuar remanejamentos totalmente originais e fundamentais à mudança de posição que permite a entrada do sujeito na vida adulta.

Rassial (1990) propõe a adolescência como um après-coup do estádio do espelho, em que a Mãe Primordial seria interrogada novamente. Sabemos que Lacan (1949) apresenta o estádio do espelho como o momento de constituição do eu representado na imagem do corpo. A apropriação desse corpo tomado como uma totalidade seria concomitante ao reconhecimento da imagem do adulto que está ao lado, no caso a mãe, enquanto primeira encarnação do Outro. Com efeito, essa apreensão de si vai constituir as primeiras fundações daquilo que organizará o mundo dos objetos, definindo, a partir desse corpo limitado, um interior e um exterior.

Essa separação inaugural do corpo materno tem, de acordo com Rassial (1990), uma dupla limitação. Primeiro, a autonomia que a criança adquire dessa maneira não seria possível sem a função de testemunho da mãe. É necessário que a mãe reconheça a imagem no espelho como correspondente a um corpo separado do seu. A emergência de um corpo imaginário, concebido como uma totalidade, seria, portanto, ligada à presença da mãe, cujo olhar e a voz viriam confirmar a existência do corpo da criança.

A outra limitação, de que nos fala ainda esse autor, é justamente aquela que se refere ao fato de a criança receber da mãe o significante que lhe atribui uma posição. Isso quer dizer que, de início, é a mãe quem detém o atributo que designa o lugar da criança, esse atributo que, uma vez introduzido na estrutura edipiana, será dito fálico. O Nome-do-Pai constitui a versão mais consistente desse significante, sob a égide do qual o sujeito será nomeado no campo do Outro. A adolescência seria o momento em que essa montagem especular seria atingida, exigindo do sujeito uma reestruturação do valor e da função dos objetos voz e olhar, assim como do significante. Se, no momento do estádio do espelho, tanto os objetos quanto o significante são sustentados pela mãe, sabemos que o Édipo modifica essa situação, com a introdução da metáfora paterna. O

Nome-do-Pai, inspirando-se de início nessa metáfora, vem inscrever a função simbólica do pai, e a referência fálica vem dar uma nova significação às identificações do sujeito.

Uma das questões fundamentais da adolescência corresponde à validação da inscrição do Nome-do-Pai além da metáfora paterna. Confrontado à falência da consistência imaginária das figuras parentais, o sujeito adolescente encontra-se na urgência da invenção de novos suportes ao Nome-do-Pai, ou mesmo de novos nomes do pai, já que o modelo infantil, aquele sustentado pela crença no poder soberano do pai, desmorona.

Não se trata de “pane” do Outro no que concerne ao lugar simbólico, mas da sua consistência imaginária. Antes do encontro tardio do Outro sexo, que virá acompanhar a realização da operação adolescente, o sujeito vagueará na busca de figuras para ancorar suas identificações. O imaginário assume, então, um valor particularmente importante na adolescência, já que a vacuidade do lugar do Outro pode pôr em risco a validação do Nome-do-Pai, no seu registro simbólico, como aquilo que assegura a inscrição de um significante que designa o sujeito como Um.

O sujeito adolescente apresenta-se, portanto, como um paradigma do sujeito da modernidade, sujeito em crise de referências identificatórias, sujeito, como salienta Calligaris (1999), “saído de casa”. Paradigma igualmente do mal-estar da nossa civilização e de seus sintomas contemporâneos. Vivemos a época da errância, na qual se inscreve no horizonte a sentença de que tudo não passa de semblante – sentença anunciada por Lacan na inexistência do Outro.

A atualidade, mais do que nunca, põe em risco a possibilidade de encontrar respostas ao apelo fálico dirigido ao adolescente, e a clínica testemunha, regularmente, novos fracassos no exercício identificatório. O que antes era intermediado pela eficácia simbólica dos ritos de passagem, é hoje tarefa dos adolescentes; são eles que têm a incumbência de fabricar montagens de representação que lhes permitam uma marca no social.

É importante destacar como a escrita pode se apresentar no momento da adolescência como um operador de subjetivação. O adolescente, esse sujeito em busca de um lugar para existir, descobrirá na escrita um ponto de ancoragem de uma referência significante, já que escrever exige a suposição de um endereço que fixa um referente, simultaneamente, ao sujeito e ao Outro. Assim, a prática da escrita parece surgir na adolescência como uma forma diferente de experimentar a língua, de inaugurar uma nova versão do Outro.

 

Adolescência e a constituição de um novo endereço

O desejo e, às vezes mesmo, a necessidade de escrever têm sempre acompanhado a adolescência. Mas constata-se igualmente um freqüente abandono dessa atividade, uma vez passado esse momento. O caráter efêmero da escrita, para a maioria dos adolescentes, leva a supor uma eventual função que o exercício escriturário vem ocupar nos processos psíquicos que definem a adolescência.

No artigo Le createur littéraire et la fantasie (1908), Freud destaca o fato de uma estrutura psíquica ser capaz de encontrar uma diversidade de manifestações, quer seja através do jogo das crianças, da criação do poeta ou da fantasia dos adultos. Freud opõe claramente o jogo e a realidade, mas sugere uma outra distinção, menos evidente, aquela entre o jogo e a fantasia. Tal diferença repousaria sobre a introdução, no jogo, do apoio do objeto sobre coisas palpáveis e visíveis do mundo real. É preciso ressaltar que o objeto não faz parte da realidade, mas que ele ali se apóia.

O espaço do jogo é, portanto, aquele de entre-dois, entre o mundo dos objetos, que constitui o mundo interno, imaginário, e a realidade, como lugar onde a criança vai encontrar coisas para apoiar seus objetos. O que Winnicott (1975) chamará de objeto transicional seria o que faz laço entre esses dois mundos. O conceito winnicottiano de transicional designa a existência de uma área da experiência intermediária entre o subjetivo e o objetivo, área de jogo, de brincadeira, que permite à criança reconhecer o objeto como não-eu, construído na manipulação como suporte dos signos do corpo.

Quase quinze anos após seu ensaio sobre a criação literária, em Au délà du príncipe du plaisir (1920), Freud retoma a brincadeira de criança no centro de uma discussão metapsicológica. Ele se servirá de uma atividade lúdica, o tornado célebre jogo do fort-da, na elaboração de um conceito chave para a psicanálise, o de repetição. Trata-se agora de explicar, até mesmo do ponto de vista econômico, a função psíquica sustentada pelo brincar. De certo uso de um carretel, Freud construirá uma interpretação original do processo psíquico da representação, que depois será retomada por Lacan na sua teoria do significante. Dessa brincadeira, tanto um quanto o outro, vão tirar as conseqüências para a compreensão da economia do aparelho psíquico. O carretel é suporte de representação, mas igualmente de um ritmo, de uma alternância; presença-ausência da experiência transformada pela repetição, jogo do significante.

A adolescência, que parece surgir como o momento em que cessam as brincadeiras de criança, consiste, na verdade, segundo Freud, em um momento no qual o apoio sobre os objetos reais é substituído pela atividade da fantasia diurna. Parece, no entanto, que a questão da transicionalidade impõe-se igualmente na adolescência, existindo apenas um deslocamento do apoio. Se a criança serve-se de coisas manipuláveis, tais como bichos de pelúcia ou pedaços de tecidos, o adolescente “brinca” com a língua. O registro do transicional, constituindo-se da passagem do endereço privado a uma montagem com o terceiro, reatualiza-se, no momento da adolescência, nos jogos da língua, em particular no uso das gírias ou na aprendizagem de uma língua estrangeira.

Retomando a questão da escrita, pode-se pensar que ela viria ocupar essa função de uma cena onde o adolescente poderia brincar. Dito de outra forma, ao escrever, o sujeito faz o Outro em um jogo de encarnação do ausente. A escrita do diário, tão marcante na adolescência, mostra-se como um cenário privilegiado à retomada desse jogo de aparência solitária, mas que, na verdade, resulta da pluralidade estrutural própria ao psiquismo. O trabalho de construção de um texto inscreve necessariamente o outro destinatário como ausência que faz parte de tecido textual.

O segredo que envolve essa escrita revela um esforço de constituição de um lugar para a palavra; uma questão que é fundamental no adolescente. O que funda a escrita do diário é a confidencialidade compartilhada com aquele a quem se endereça, ficando encarnado no “meu querido diário” um novo abrigo ao Outro. Escrevendo seu diário, o adolescente pode jogar com um Outro a meio caminho entre a presença plena de um leitor e a instância puramente simbólica.

Para continuar nossa discussão sobre uma pretensa particularidade da escrita adolescente, achamos fundamental retomar alguns pontos do pensamento psicanalítico – em especial no ensino de Lacan – que dizem respeito àquilo que poderíamos tomar como a conceituação da escrita inconsciente.

 

Imagem, traço e letra

A questão da escrita interroga insistentemente tanto Freud quanto Lacan, seja pelo viés da literatura ou enquanto inscrição do sujeito. O uso insistente que Freud faz da escrita para explicar a estrutura do aparelho psíquico já serve como argumento para a defesa de uma hipótese sobre a afinidade de tal prática com o campo da Psicanálise. Em Esquisse d’une psychologie scientifique, escrito em 1895, Freud propõe seu primeiro aparelho psíquico sob a analogia de um sistema neuronal. Não se trata de uma compreensão do psiquismo como uma estrutura neurológica. Na verdade, Freud se serve de sua construção como um sistema de signos, como uma machine d’écriture, segundo a expressão de Derrida (1967, p. 297).

Para ilustrar sua concepção de psiquismo como engrenagem, ao mesmo tempo aberta à experiência perceptiva e capaz de estocar lembranças, Freud propõe a noção de traço mnêmico como uma espécie de unidade básica do psiquismo. Mas será a partir de 1900, quando publica L’interprétation des rêves, que ele irá radicalizar a afinidade entre escrita e inconsciente, comparando assim as imagens do sonho com hieróglifos, numa evidente alusão ao caráter de escrita, próprio ao material inconsciente.

Será no rastro deixado por Freud que Lacan (1957) irá iniciar a sistematização da noção de letra como formação inconsciente. Nesse período de sua reflexão, Lacan, assim como Freud, defende a possibilidade de decifrar os sonhos e os sintomas em elementos de linguagem. Trata-se na ocasião de reforçar a posição freudiana do sonho como escrita; como rébus. Da sua leitura de L’interprétation des rêves, Lacan insistirá na dimensão do sonho como trabalho de escrita, construído à revelia do sonhador, ordenado segundo as leis da linguagem, das quais também se serve o trabalho de censura. A letra é aquilo que constitui o conteúdo manifesto do sonho. Ela veicula o significante, mas, da mesma forma, ela é

 

o efeito de censura sobre o inconsciente

Esse período do pensamento lacaniano apresenta a noção de letra em relação direta com o significante. Essa ligação letra-significante já é sugerida no Séminaire sur la lettre volée de 1955. Esse texto, baseado em um conto de Edgar Allan Poe, é uma demonstração do poder do significante do qual a letra assume o papel. O que Lacan deseja destacar são as tramas simbólicas ocasionadas pela circulação da carta e a importância primordial que elas assumem na constituição do sujeito; tese que marcará seus trabalhos nesse momento.

A abordagem lacaniana da letra, identificada de início como instância do inconsciente, aos poucos vai se dirigindo no sentido de uma interrogação de sua função como escrita, em particular como escrita literária. No entanto, enquanto Freud era atraído pelo enigma do ato de criação, Lacan, munido dos ensinamentos da lingüística, propõe uma análise da questão da escrita no seu aspecto de estrutura e dos problemas da literalidade. Na verdade, Lacan vai interessar-se pelo uso que fazem da letra os escritores, com o intuito de apreender aquilo que escaparia à ordem da palavra. Esse é o momento em que Lacan escreve Lituraterre (1971), e em que significante e letra passam a ser claramente distintos um do outro. As idéias esboçadas nesse artigo são inspiradas, em parte, pela caligrafia chinesa, encontro da pintura com a letra. Os caligramas chineses e a escrita egípcia são testemunhos da origem pictográfica dos sistemas de escrita. Nesses dois casos, o ponto de apoio sobre a imagem persiste apesar da descoberta do foneticismo.

Gerard Pommier (1993), na sua análise da gênese da escrita construída com base em uma analogia entre esse processo como aprendizagem individual e como evolução histórica, propõe o advento do recalcamento como marca do aparecimento da escrita. Tal recalcamento que, ao nível do sujeito, vem inaugurar um universo simbólico, o acesso à metáfora paterna, seria localizado na história da humanidade na invenção do monoteísmo. Assim, a “lei do pai” aparece como a condição de uma passagem à escrita, a qual assinala o apagamento da imagem enquanto marca de uma identificação ao objeto do gozo materno. Trata-se de desvencilhar-se dos efeitos sedutores da imagem, de não se deixar surpreender pela forma dos signos, para poder aceder à literalidade. A escrita fonética representa o sucesso de tal operação, ou seja, para ler e escrever é preciso desligar-se daquilo que a forma das letras do alfabeto poderia apontar como imagem, e considerá-las por suas sonoridades. É preciso, no entanto, lembrar que essa sonoridade da letra só pode ser lida se ligada ao som de outras letras, isto é, nas palavras. A letra isolada não teria o mesmo efeito de sentido, resultado do recalcamento, mas retomaria seu valor originário de imagem cuja presença denunciaria um retorno do recalcado.

Lacan, no seu seminário sobre a Identification (1961-1962), desenvolve uma teoria do nascimento da escrita. Ele sustenta a idéia da origem comum da letra da escrita e da instância da letra no inconsciente. Retomando a noção freudiana de identificação a um traço, Lacan construirá sua conceituação de traço unário enquanto significante elementar, suporte da identificação simbólica do sujeito.

Se, para Freud, o traço de identificação é a marca do objeto perdido, para Lacan, esse traço é possível graças ao próprio apagamento do objeto, ruptura, portanto, com o imaginário e fundação do sujeito no registro simbólico. O Um do traço não aponta para uma unidade – já que ela é imaginária –, mas para a possibilidade de contar-se um entre os semelhantes, assim como de marcar sua diferença pelo seu traço, que é um, e, conseqüentemente, singular. Produto do apagamento de um modo de figuração, o traço unário funda a escrita em um núcleo essencial da letra e da imagem. O que está em causa, e que Lacan ressalta, é a possibilidade simultânea, na escrita ideográfica, de um emprego dito ideográfico e do uso fonético do material. Conclui, dessa forma, que o foneticismo não pode ser confundido com a escrita mesma, mas que ele aparece, em certo momento, como aquilo que permitirá a passagem a uma escrita funcional. A escrita, diz Lacan, esperava ser fonetizada.

A partir do papel fundamental que desempenham os nomes próprios na operação de deciframento de uma escrita desconhecida, como foi o caso da escrita hieroglífica, Lacan defende o laço fundamental entre nome próprio, traço unário e o sujeito. O advento da escrita inscreve-se, portanto, nesse encontro de alguma coisa que já é escrita, no sentido do isolamento do traço significante no nome e, em particular, no nome próprio, com o foneticismo como suporte necessário a sua sonorização.

A partir da idéia de um tipo de escrita preexistente à escrita propriamente dita, Jean Allouch (1994) propõe, por meio de seu conceito de transliteração, uma reflexão original sobre as relações entre psicanálise e escrita. Esse autor distingue três modos de abordar o escrito, a saber, pelo sentido, pelo som ou, ainda, pela letra. A transliteração concerne à terceira operação, a primeira define a tradução e a segunda consiste naquilo que é conhecido como transcrição. Allouch defende que no caso do trabalho de leitura que corresponde à Psicanálise, somos confrontados à operação de transliteração, cuja prevalência encontra-se no textual. O trabalho de análise dos sonhos, tal como Freud nos apresenta, constitui a ilustração por excelência de uma abordagem do escrito pela transliteração, ainda que seja dito um trabalho de interpretação. O sonho, segundo a posição freudiana, é uma escrita em imagens, comparável a um rébus. Sabe-se que a figuração é um dos mecanismos operantes na formação do sonho, o que significa a transformação dos pensamentos, portanto, de elementos literais, em imagens. Trata-se então de ler o sonho pelo deciframento de cada um dos seus elementos, segundo nos ensina Freud, para assim apreender a operação no sentido inverso, ou seja, o “ciframento” pelo qual o sonho é construído.

Allouch desenvolve a idéia da origem da escrita como a retomada de um material previamente existente, partindo do que ele chama de a conjetura de Lacan e fazendo uso da metáfora de um balé para ilustrar os movimentos dos três pólos em jogo na escrita: a linguagem, os objetos e os signos.

O desenho, dentro dessa lógica, seria da ordem do signo, aquilo que representa uma coisa, mas que já não é essa coisa. O desenho é sempre necessariamente infiel, figurativamente, ao objeto. A diferença dos registros aos quais pertence cada um desses dois pólos é o que permitirá o estabelecimento da relação, tal como uma leitura do signo. Trata-se efetivamente de certo “ler” que precede o escrito, ainda que essa leitura ainda não seja deciframento, letra lida. É na passagem entre esses dois níveis de leitura que Lacan situa a questão da origem da escrita. Essa passagem à escrita não é dada por si mesma, mas deriva de um ato do sujeito. Se o estatuto primordial do signo é o de representante de coisa, ele só adquirirá seu estatuto de letra ao abandonar sua relação ao objeto. Haveria, portanto, um segundo tempo que se segue à leitura de signo, sem o qual o escrito não pode se constituir. Esse tempo corresponde à reversão da relação estabelecida pela leitura do signo efetuada pela colagem do signo ao nome que designa o objeto, de forma que ele perde sua função primordial para tornar-se suporte de letra. O signo, ao suportar a letra, escreverá assim o nome, independentemente do objeto.

Ora, a operação de transliteração vai permitir, de uma forma efetiva, a constituição de uma relação entre os dois tipos de leitura, a do signo e a das letras. O rébus vem testemunhar essa operação, já que a ligação do signo ao objeto é mantida nessa forma de escrita, mesmo que sua presença só seja explicada pela evocação do nome, homófono, de um outro objeto. A entrada no registro da letra, a alfabetização, supõe um corte do vínculo com o objeto, sem o qual se permanece no domínio do signo. Esse trabalho de literação do signo produziria uma clivagem do registro simbólico e do imaginário, o que é ratificado pela afirmação de Lacan quando diz que a letra encontra-se desarrimada da imagem.

A idéia de uma continuidade entre desenho e escrita encontra-se também problematizada por Jean Bergès (1998). O desenho, diz ele, não tem nada a ver com a escrita. Enquanto o desenho está relacionado com o corpo imagético, no caso, o corpo da mãe, a escrita, propriamente dita, é um ato intencional. Ela está destinada à leitura e inscreve-se, portanto, no registro simbólico. Ressaltando essa separação entre desenho e escrita, Bergès sustenta, no entanto, que o trabalho da escrita, inicia-se impregnado do imaginário da letra. Esse imaginário que, segundo ele, liga a letra a uma imagem, é o próprio corpo da letra. As crianças, antes de saberem escrever, elas desenham letras. O futuro da letra depende desse gesto inicial, de seu traçado figurativo, de sua inscrição como imagem. A imaginarização da letra traria, assim, a ilusão de ser o objeto do desejo do outro, do desejo materno. A escrita figurativa seria a marca dessa imagem reenviada pelo espelho, daquilo que o olhar da mãe assegura como lugar para a criança, o de um falo imaginário.

A distinção entre desenho e letra não é tão evidente, uma vez considerado o caráter figurativo das escritas ideográficas. Já observamos como Lacan desenvolve sua conjetura sobre a origem da escrita a partir do reconhecimento de uma etapa anterior à letra propriamente dita. Tratar-se-ia de uma leitura do signo como representante do objeto, e que, somente à posteriori, implicaria a ordem da letra.

Os sistemas de escritas ideográficas, assim como os sonhos, guardam a marca de uma cenografia que resiste à depuração do alfabeto. Sonho e ideograma, ou, como nos sugere Eliane Formentelli, sonhar o ideograma: “Sonha-se o ideograma, ele faz sonhar porque existe sonho nele” (1982, p. 211). Formentelli ressalta o fato de que a evocação figurativa apresentada no ideograma das escritas arcaicas não guarda a memória da coisa, mas, sim, o próprio signo como coisa. Signos sagrados, ícones da representação do mundo, capazes de reinventar a origem. O antropomorfismo, característico às primeiras representações gráficas infantis como, por exemplo, o desenho de uma casa cujas janelas representam olhos poderia ser interpretado como resultado da fascinação produzida pela imagem, primeira ancoragem do sujeito e de seu universo, encarnada no Outro materno.

 

A agenda adolescente ou o corpo engajado na escrita

Essa passagem pelo conceito de letra em psicanálise, em particular pelo ensino de Lacan e pelas leituras que suscitou, leva-nos a seguir certa via na tentativa de compreender as agendas adolescentes. Desviadas de sua função original de registro de atividades diárias, elas aparecem como a versão contemporânea do diário íntimo. A construção desses escritos se faz ao longo dos dias, revelando uma originalidade gráfica que chama a atenção pela multiplicidade dos recursos utilizados, tais como colagens, desenhos, dobraduras. Escrita figurativa, cênica, ornamental, mescla de textos e de imagens, essas agendas vêm assim denunciar o que guardam de infantil, as marcas de um gozo perdido, revelando uma renitência do sujeito em abrir mão de uma grafia marcada pela insistência da imagem. Escritos que revelariam a inconsistência da relação do sujeito ao mundo, pelo uso particular da linguagem como campo de subjetivação.

Vimos que a entrada na escrita exige uma efetivação do recalcamento, sem o qual o sujeito permanece cativo da imagem e incapaz de privilegiar o valor sonoro do signo. O descolamento da imagem só se dá se o sujeito abdica de um corpo pleno, tornando-se, então, traço, marca de uma separação do corpo da mãe. O corpo do adolescente parece encontrar-se ameaçado no seu valor de traço, dado que seus antigos contornos modificam-se, ocasionando o sentimento de estranheza experimentado freqüentemente pelo sujeito adolescente. Haveria, então, uma espécie de retorno da atração da imagem como um paliativo à perda da imagem do corpo em conseqüência das transformações da puberdade.

A escrita adolescente denuncia essa insistência do figurativo que invade as páginas, no esforço de preencher os espaços vazios, de refazer as margens pelos arabescos, de engrossar as folhas de papel pelo intermédio de colagens. A análise das agendas indica-nos, assim, o apelo insistente à imagem como uma forma de recurso a um simbólico em sofrimento.

Elas apresentam uma verdadeira mise en scène de uma montagem alegórica como suporte de um escrito cujos ornamentos vão além do simbolismo, tendo uma função de animação. Revelam uma tensão entre a palavra e a ação, requerendo, assim, uma escrita cênica, excessivamente teatralizada. Verdadeira estética barroca em que o olhar é o operador da construção do corpo.

Walter Benjamin, em Origine du drame baroque allemand (1916), no esforço de uma reabilitação da alegoria, adverte-nos do erro de considerá-la uma simples forma de designar as coisas. Com suas palavras: “A alegoria (...) não é uma técnica lúdica de figuração imagética, mas uma expressão, como a língua, ou talvez, como a escrita” (p.175). O caráter fundamental da representação alegórica está, no entanto, naquilo que a diferencia da representação simbólica; ou seja, na reabilitação da temporalidade e da historicidade, contrariamente à pretensa eternidade do símbolo.

Seja na arquitetura ou na literatura barroca, a sobrecarga dos ornamentos visa a multiplicar os significantes, liberando-os de qualquer significado, de qualquer codificação rigorosa apoiada num referente único. Existe aí uma espécie de fragmentação da língua através da emancipação dos elementos escriturários. Benjamin aponta os hieróglifos como a expressão da intenção alegórica daquilo que se produz no barroco, “onde o escrito tende a se impor como imagem” (p.188).

Seria errôneo pensar que a alegoria negaria as convenções, visto que, como ressalta Gagnebin (1994, p. 71), ela é a própria expressão da convenção. A alegoria, assim como a escrita hieróglifica, apresenta-se como os restos de um texto sagrado, como os escombros de uma ruína que, paradoxalmente, apontam para o desmoronamento da tradição, do sentido da totalidade, de uma verdade iluminada por uma lucidez divina.

Citemos a autora: “(...) o pensador alegórico não se limita a evocar uma perda; ele constitui, nesse movimento, outras formas de sentido. Que ele reconheça ou não, o trabalho do alegorista revela que o sentido não nasce de uma positividade primeira do objeto (perdido), mas da ausência desse objeto, ausência dita e rendida assim presente na nossa linguagem”.

A alegoria benjaminiana parece sustentar uma das formas de expressão que caracterizam o sujeito adolescente. Surgido dessa dispersão dos referentes, do declínio vertiginoso da metáfora paterna, o adolescente, pela escrita, apela à construção de imagens para o trabalho de modelagem de contornos que lhe possibilitem existir.

 

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Winnicott, D.W. (1975). Jeu et réalité. Paris: Gallimard.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Maria Celina Peixoto Lima
R. Carlos Vasconcelos, 590, ap. 201 - 60115-170 Fortaleza, CE
tel: 085-3224.0662.
celina.lima@terra.com.br

Recebido em fevereiro/2006
Aceito em abril/2006

 

 

1 Psicanalista, doutora em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade Paris 13, membro correspondente da APPOA, professora da
UNIFOR - CE.

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