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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.3 São Paulo Dec. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i3p1-20 

ARTIGO

 

A dialética da amamentação e do desmame na constituição psíquica da criança autista

 

The dialectic of breastfeeding and weaning in the psychic constitution of the autistic child

 

La dialéctica de la lactancia y el destete en la constitución psíquica de los niños autistas

 

 

Ciomara SchneiderI; Maria Izabel TafuriII

IProfessora do Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
IIProfessora doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, discutem-se as incidências da amamentação e do desmame na constituição subjetiva do sujeito. Analisa-se também o aparecimento de uma compulsão de ingerir substâncias não alimentares em uma criança autista após o desmame. Utiliza-se a teoria de Klein e Lacan, compartilhando semelhanças e diferenças na constituição psíquica inicial. Conclui-se que compulsões podem aparecer como uma forma de expressar a angústia do bebê frente à perda dos objetos primordiais da organização psíquica em um tempo precoce, mas não apenas ligadas à amamentação. Entende-se que os recursos psíquicos da criança tendem a construir defesas de repetição diante da angústia de separação.

Descritores: psicanálise; amamentação; autismo; constituição psíquica.


ABSTRACT

The article discusses the effects of breastfeeding and weaning on the subjective constitution of the subject. We analyzed the emergence of a compulsion to ingest non-food substances in an autistic child after weaning. We use Klein's and Lacan's theory, sharing similarities and differences in the initial psychic constitution. We conclude that compulsions may appear as a way of expressing the anguish of the baby facing the loss of the primordial objects of psychic organization at an early age, but not only linked to breastfeeding. We understand that the child's psychic resources tend to build defenses of repetition against separation anxiety.

Index terms: psychoanalysis; breastfeeding; autism; psychic constitution.


RESUMEN

El artículo discute las incidencias de la lactancia y del destete en la constitución subjetiva del sujeto. Se analizó la aparición de una compulsión de ingerir sustancias no alimenticias en un niño autista, después del destete. Utilizamos la teoría de Klein y Lacan, compartiendo similitudes y diferencias en la constitución psíquica inicial. Concluimos que las compulsiones pueden aparecer como una forma de expresar la angustia del bebé frente a la pérdida de los objetos primordiales de la organización psíquica en un tiempo precoz. Entendemos que los recursos psíquicos del niño tienden a construir defensas de repetición frente a la angustia de la separación.

Palabras clave: psicoanálisis; amamantamiento; autismo; constitución psíquica.


 

 

Introdução

A clínica infantil contemporânea apresenta um número crescente de casos diagnosticados com transtorno do espectro autista (TEA), que sempre carregam em si uma complexidade e demandam uma análise cuidadosa. Entre as questões importantes e associadas ao TEA, encontram-se as compulsões, muitas relacionadas com alimentação ou ingestão de substâncias não alimentares. Por isso, há a necessidade de contribuir com essa área de atendimento à criança diagnosticada, justamente por apresentar aspectos peculiares que podem ajudar a compreender o que podem significar essas compulsões, não no sentido comportamental, mas na ligação com a constituição subjetiva do sujeito.

A psicanálise é o ponto de partida para a nossa reflexão. Podemos acrescentar que a questão alimentar também está ligada ao desenvolvimento afetivo desde a formação dos laços de amor entre a mãe e o bebê, que se iniciam desde a gestação e se atualizam no nascimento. São laços primordiais que vão se reestruturar a partir da amamentação e produzirão seus efeitos ao longo da vida do sujeito.

Bernardino (2006) mostra que o olhar da psicanálise sobre o autismo se amplia para as relações fundamentais entre a mãe e o bebê não como fatores de causa do espectro, mas como vivências privilegiadas que inauguram o campo simbólico da linguagem e da cultura para esse novo ser a se constituir. Essa relação inicia-se muito precocemente na vida do bebê e tem na amamentação um dos fatores importantes para o estabelecimento do vínculo com a mãe. Kupfer (1999) discute que a psicanálise parte do princípio de que o corpo do bebê só vai adquirir uma condição para além do organismo biológico se houver um Outro que o conduza para o mundo humano. Independentemente de ter uma alteração neurológica ou não, é preciso que o Outro o introduza na ordem simbólica.

De acordo com Bastos (2012), definir o autismo tem sido a tarefa de várias discussões diagnósticas, tanto da psicanálise como da área médica. Esta última busca encontrar uma causa orgânica, oferecendo um tratamento dos sintomas a partir de técnicas terapêuticas comportamentais e com uso de medicamento. No que se refere à clínica, podemos dizer que a definição de autismo está ainda em construção, tanto pela diversidade de concepções quanto pela complexidade de cada caso. Como foi dito, a psicanálise não desconsidera a hipótese biológica, mas não pauta sua discussão na divisão entre o somático e o psíquico. A diferença está no olhar sobre a constituição psíquica por trás das construções diagnósticas e, mesmo havendo divergências dentro da própria psicanálise, esse é um ponto comum entre os psicanalistas.

Neste artigo, visa-se discutir a influência da amamentação e do desmame na constituição psíquica subjetiva e sua possível relação com a compulsão de ingerir substâncias não comestíveis. A psicanálise desenvolveu seus principais conceitos sobre o tema a partir da relação primordial mãe-filho, inaugurada na amamentação. A ênfase na teoria de Klein e Lacan visa discutir alguns conceitos semelhantes, além de apontar diferenças.

O debate sobre o autismo tem sido constante na atualidade, o que permitiu que um conjunto de características relacionadas às desordens alimentares ficassem visíveis, intensificando os estudos de caso dessa natureza, visando investigar o problema não apenas pelo viés do desenvolvimento físico, mas também psíquico (Viana, 2011).

Neste relato de experiência, procuramos investigar a ligação entre autismo e problemas alimentares, sem relacioná-la a uma possível causa do TEA, mas sob o ponto de vista de uma influência afetiva, principalmente no modo de alimentação compulsiva, quando há ingestão de substâncias inadequadas ou fora do padrão alimentar esperado.

Alimentação, constituição psíquica e quadros de autismo aparecem associados de forma recorrente. Segundo Gusmão (2002), "a alimentação ocupa um lugar central no desenvolvimento infantil, já que é em torno dela que se organizam, desde o nascimento, os primeiros contatos entre a mãe e o bebê, assim como também se delineiam e se expressam os conflitos da díade mãe/bebê" (p. 50). A criança autista tem uma forma peculiar de se relacionar com o mundo à sua volta, e a alimentação está incluída nessa relação. Muitas vezes, aquilo que consideramos uma desordem alimentar, assim como um comportamento compulsivo, pode ser uma forma pela qual a criança se organizou em seu meio familiar e social.

De acordo com Cullere-Crespin (2004), a relação primordial entre mãe e bebê deixa o que a autora chama de "cicatriz indelével, sob a forma que chamamos de amor" (p. 18), do qual dependeremos por toda a vida, mesmo quando possamos viver de forma independente, ou seja, sempre dependeremos dessa relação de amor com a mãe, uma das grandes marcas da nossa existência.

 

Os caminhos da amamentação e do desmame na constituição psíquica subjetiva

Pelo olhar de Melanie Klein, o caminho inicial da relação mãe-bebê-alimento começa com a chamada posição esquizoparanoide, que é um modo de funcionamento do psiquismo do bebê em sua primeira organização (Klein, Heimann, Isaacs, & Riviere, 1982). Com base no conceito de pulsão de morte, o temor ao aniquilamento vem como causa primária da ansiedade persecutória, que começa com o nascimento e segue depois com a experiência da amamentação. Nesse período, passam a funcionar mais duas formas de defesa, a introjeção por onde o bebê absorve o mundo através da fantasia, jogando para dentro de si tudo o que percebe no mundo externo, seja bom ou mau; e a projeção pela qual o bebê atribui ao seio um "ódio ativo", dirigido para si mesmo de forma ambivalente, isto é, que vem do seio para ele e que vai dele para o seio, são sentimentos percebidos ora como internos, ora como externos, assim como ocorre com o amor. Os dois mecanismos estão vinculados à fantasia inconsciente do bebê.

Mãe e bebê iniciam uma relação objetal movida por dois impulsos: orais libidinais e orais destrutivos (pulsão de vida e pulsão de morte), dirigidos ao seio materno. O bebê sente-se satisfeito no período entre as mamadas, quando não está com fome e, muitas vezes, é afetado por outro desconforto qualquer, reforçando a frustração e a agressividade – sendo que alguns bebês sentem dificuldade em tolerar a privação desse estado de equilíbrio – até reencontrar a gratificação, a satisfação novamente. Isso faz com que o bebê tenha contato com a ambivalência que funda o ser humano, ou seja, as relações de amor e ódio – o seio bom e o seio mau, sentimentos que, nesse período inicial da vida, não se encontram completamente distintos um do outro (Klein et al., 1982).

A posição depressiva marca o início de uma organização psíquica mais integrada, em que o bebê, a partir dos seis meses de vida, passa a ter uma relação diferenciada em relação ao mundo externo, conseguindo expressar melhor as suas emoções. Nesse trajeto, progride também uma organização sexual, com as tendências uretral, anal e genital, fazendo surgir novas formas de ansiedade e de fantasia, agora mais elaboradas. É a chance de o bebê reparar a mãe destruída e entrar em equilíbrio com o seu Ego (Klein et al., 1982).

Klein (1996) mostra que o primeiro objeto do desejo do bebê é o seio da mãe, introjetado tanto no aspecto bom quanto mau. A partir do momento em que o bebê percebe a mãe como "pessoa total", essa percepção se estende para o mundo externo, como fruto de uma adaptação gradativa aos estímulos externos e internos, tanto físicos quanto mentais, não sendo necessário estimular o bebê o tempo todo, mesmo que de forma prazerosa, pois ele precisa adaptar-se ao meio gradativamente.

Nessa relação ambivalente, com o seio bom e o seio mau ocupando o mesmo espaço no psiquismo do bebê pequeno, a criança acaba por situar-se entre "dois círculos, um benévolo e um vicioso, ambos calcados na interação de fatores ambientais ou externos e fatores psíquicos internos" (Klein, 1996, p. 333). Quando o bebê está sob a influência do "círculo benévolo", tem condições de amenizar as fantasias angustiantes, adaptando-se, de forma mais eficaz, à realidade. Portanto, o desmame é importante justamente porque coloca a criança em contato com sua frustração, interpretada como privação. Isso faz com que, toda vez que passa a hora da mamada, o sentimento do bebê seja semelhante ao do desmame, ou seja, o bebê sente como se estivesse sofrendo uma perda. Um dia isso ocorrerá de fato, mas, então, a vivência poderá não ser tão dolorosa para ele.

Apresentamos um relato de experiência para ilustrar essa questão. Trata-se de uma criança diagnosticada dentro do espectro autista, que apresenta problemas com a alimentação, como intolerância à caseína (proteína do leite) e ao glúten e ingestão de substâncias não comestíveis (tinta, giz de cera, sementes, folhas de árvore e migalhas de comida encontradas no chão etc.). Em sua história de vida, Levi (nome fictício de origem hebraica que significa ligado, vinculado) foi um bebê muito desejado pelos pais, pela família toda, sendo o primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho. Logo, ao nascer, a mãe investiu muito em sua amamentação. O garoto, porém, teve dificuldades para pegar no seio, e só pela insistência da mãe conseguiu mamar.

Assim foi durante seu primeiro ano de vida, até que a mãe descobriu uma segunda gravidez e precisou desmamá-lo, deixando-o mais tempo sob os cuidados do pai e de uma babá. A amamentação durou cerca de um ano, primeiro com a luta da mãe para amamentá-lo e, depois, com um desmame abrupto, em que ele vivencia uma fantasia de privação e desamparo (Klein et al., 1982). A vida de fantasia das crianças sempre chamou a atenção de Klein, despertando a percepção da ansiedade vinda da ambivalência das figuras de afeto que cercam a criança (Segal, 1996). Segundo Klein (1996), a relação entre a mãe e o bebê é uma conquista que vai se dando desde o momento do nascimento, envolvendo o cuidado físico, alimentar e afetivo. Com isso, aparece uma ideia, muito polêmica atualmente, de que nem sempre optar pelo esforço da amamentação é a melhor saída para o bebê, mas esse assunto deve ser tratado caso a caso. Vivemos em um tempo de grande incentivo à amamentação natural, por sua conhecida importância. Porém, como se trata de uma questão emocional ligada à constituição psíquica, não há garantias de que a amamentação, por si só, seja eficaz para o desenvolvimento afetivo.

Com pouco mais de um ano de idade, Levi precisa viver mais uma separação, dessa vez da babá, pois a licença da segunda gestação da mãe termina, ela volta a trabalhar e ele é "deixado" pela babá, que passa a cuidar de sua irmã. Esse é o momento em que ele vai para a escola e demora quase todo o primeiro semestre para se adaptar, chora muito, mas, depois, forma um vínculo afetivo com sua professora. Nesse período, seu desenvolvimento é semelhante ao de outras crianças: fala as letras do alfabeto, reconhece cores e acompanha músicas, segundo relato dos pais e da equipe da escola. Todavia, começa a aparecer a tendência ao isolamento e, apesar de se alimentar muito bem, Levi começa a chupar, mastigar e ingerir tudo o que vê pela frente. Na concepção de Klein (1996), podemos pensar essas vivências como fantasias de aniquilamento com as quais a criança não consegue lidar. Em Lacan (2005), elas são consideradas como objetos perdidos do circuito pulsional. Em ambos os casos, o bebê passa a viver a angústia de separação.

Lacan (1984/2008) considera que, na relação de objeto entre o bebê e o Outro primordial, destaca-se o seio materno como parte do complexo nutricional. Não há uma distinção entre o corpo da mãe (representado pelo seio) e o do bebê nesse momento em que o desejo é duplo, da mãe e do bebê, dando início ao circuito pulsional no qual o sujeito se aliena ao desejo do Outro, ou seja, passa a desejar o desejo da mãe (Lacan, 2005).

O amamentar constitui um processo complexo para o início da organização da vida psíquica do bebê. Winnicott (1957/1982), por sua vez, afirma que a amamentação fornece ao bebê "a concepção infantil da mãe como um ser total" (p. 57), e que a experiência de satisfação faz com que o bebê também satisfaça a mãe, convertendo-se, aos poucos, em um ser total para ela. Todavia, esse autor alerta para o perigo da insistência na amamentação diante de uma possível dificuldade de adaptação da mãe às necessidades do bebê.

Quando Levi chegou à análise, além da queixa pela ausência da linguagem falada e a tendência ao isolamento, havia a queixa da ingestão de substâncias não comestíveis, como tinta guache, massa de modelar, lápis de cor, giz de cera, sementes, folhas de árvores e migalhas de comida encontradas no chão. A mãe relatou que ele ingeriu as próprias fezes por duas vezes, apenas na presença dela. Também foi relatado que Levi apresentava quadros recorrentes de desarranjo intestinal por comer resíduos do chão. Próximo a completar três anos de idade, deu-se início à sua análise. Por escolha, optamos em nos posicionar à margem de um diagnóstico fechado de autismo, uma vez que a psicanálise busca entender a singularidade da criança.

Frances Tustin (1975) apresenta duas formas de manifestação autística. A primeira é chamada de "autismo da infância primitiva", ou seja, um "estado de autismo primário normal" (p. 9), quando o bebê ainda não tem uma percepção clara do mundo externo e o vivencia por meio do corpo, até criar uma representação interna da realidade e tomar consciência de si e dos outros. A segunda forma é relativa aos estados mais graves, como o autismo secundário regressivo, em que o bebê passa por situações de estresse e/ou perdas afetivas importantes. Tustin (1975) associa a tendência ao isolamento a uma "hipersensibilidade dos órgãos dos sentidos" (p. 90), que pode ocorrer com alguns bebês que passam por alguma pressão externa, como desmame precoce ou amamentação forçada, começando a apresentar algumas características autísticas, como não olhar e não fazer trocas afetivas ao vivenciarem precocemente a separação corporal com a mãe.

Tafuri (2003) mostra que a criança autista não tem um total afastamento da realidade, pois, mesmo no isolamento, na alienação, ela conserva o contato com o mundo externo, mostrando que as características que tomamos como sinais do autismo são formas de estar no mundo. Desde o início da análise, Levi não demonstra resistência ao espaço do consultório, ao contrário, interessa-se pelos objetos da sala e explora o ambiente. Não responde ao contato afetivo espontâneo, mas o faz atendendo ao comando dos pais, como, por exemplo, abraçar a analista. Sempre balbucia, às vezes sorri aleatoriamente, com a tendência constante de se isolar.

Durante toda a análise, fizemos observações na escola, na sala de aula e nos espaços abertos e recreativos. Observamos que Levi atendia a alguns comandos para atividades pedagógicas e lúdicas, mas sempre de forma mecânica, a partir da insistência da professora, do mesmo modo que respondia aos pais, sem interação. Aceitava a presença das outras crianças, sem interagir ou buscar a atenção delas. Nas sessões de psicanálise, além de isolar-se para brincar, demonstrava sempre apego a um único objeto durante toda a sessão. Nas primeiras sessões, levava-o consigo e devolvia na seguinte, sem resistência.

A respeito da criança e dos seus objetos autísticos, pode-se dizer que Levi trazia um deles junto de si, como o definido por Tustin (1975), que substitui o Eu. De acordo com a autora, no decorrer do desenvolvimento, a criança vai, aos poucos, deixando para trás esses objetos, quando já tem outros recursos de simbolização. A criança autista os utiliza fora de suas funções, para se proteger da angústia, podendo tornar-se um substituto permanente da mãe (Maleval, 2009; Tustin, 1975). Por isso mesmo, tais objetos jamais devem ser suprimidos sem que se entenda o que representam para a criança, pois essa pode ser uma das poucas formas de defesa diante do mal-estar gerado pelas demandas externas.

A cada sessão, Levi trazia um brinquedo ou parte dele, sempre alguma "coisa" de sua irmãzinha. Ao comentar com a mãe, ela observou que havia uma escolha antes de sair de casa. Minutos depois de iniciar a sessão, o próprio Levi substituía o brinquedo por outro qualquer, sem expressar angústia. Entretanto, se fosse pedido a ele tanto o objeto trazido de casa como algum do consultório pelo qual tivesse se interessado, Levi, embora emitisse sons de reclamação, soltava-o da mão e em seguida pegava outro.

A criança autista se dá a conhecer por meio de minúcias, de pequenos detalhes sobre si. De início, o pedaço do brinquedo da irmã trazido para a sessão parecia um objeto autístico sem representação. No entanto, ao observar com mais atenção, havia uma repetição simbólica, não pelo gesto em si, mas pela origem. Ele o escolhia antes de sair de casa, entre os pertences da irmã. Não era um objeto qualquer, havia nele uma representação, um significante representando uma outra coisa, carregando uma marca aparentemente sem conexão de um significante que ainda não fazia cadeia, porque não havia um intervalo que os alinhasse, embora o objeto trouxesse um indício de alteridade (Vorcaro, 2002).

Levi não interage, aceita a presença de outros, mas procura se isolar e colocar-se em um canto da sala que dificulta o contato, por exemplo, um espaço entre um sofá e a parede, onde não cabe outra pessoa. Ao insistir na interação e na proximidade, responde rapidamente em um primeiro momento, mas logo volta a ficar sozinho. Ao insistir mais ainda, interferindo na brincadeira dele diretamente, reage com reclamação sonora e, depois, empurra o responsável pela interrupção para longe de si, o que pode ser visto como o funcionamento de um modo de defesa, que ajuda o sujeito a manter o objeto afastado, na ideia ambivalente tanto de perceber o outro como ameaçador quanto de ameaçá-lo com sua voracidade. Isso pode indicar uma tentativa de manter o objeto intacto, embora suprimido do conhecimento do outro, assim como a si mesmo (Klein, 1996, 1932/1997; Klein et al., 1982).

Durante um período de férias, quando a mãe passa todo o tempo com Levi e sua irmã, surge a dificuldade de dormir. Também não foi possível adaptá-lo em atividades lúdicas dentro de espaços como brinquedotecas e outras áreas de diversão para crianças. Ele chorava muito, ficava muito angustiado e assustado, fazendo com que seus pais desistissem de levá-lo a esses lugares coletivos de crianças. Foi nesse período que as chamadas estereotipias se intensificaram. É comum que, após o início dos atendimentos, a criança apresente uma melhora aos olhos dos pais, mas que depois passe por uma fase de maior intensidade dos comportamentos que não são compreendidos pelo meio que a cerca.

Nesse tempo, os pais mostraram-se mais abatidos com o diagnóstico, enquanto a análise prosseguiu com foco em Levi, e não no autismo, o que sempre foi deixado claro quando marcávamos sessões. Entre as discussões sobre a etiologia do autismo, a hipótese psicogênica, que responsabilizava os pais, principalmente a mãe, gerou um grande sofrimento, mas hoje está descartada. Isso não diminui a angústia que os pais sentem nem a sensação de desamparo frente a essa descoberta, porque não existe um caminho certo a ser seguido. Na perspectiva psicanalítica, o autismo deve ser estudado em consonância com a constituição psíquica, para além da genética, trazendo a discussão para o desenvolvimento afetivo (Tafuri, 2003). Por isso mesmo, o foco hoje não é lutar por uma instituição que ofereça tratamento, que cerque a criança e sua família, mas, ao contrário, é preciso buscar uma forma aberta que lhes restitua o laço social, que reconheça o amor heroico dos pais na luta por seu filho dentro do contexto social (Laurent, 2014).

Levi volta para a análise no fim das férias e, nesse período, observa-se que, por um lado, ele está mais isolado nas brincadeiras, porém, por outro lado, fica na sala durante toda a sessão (cerca de 50 minutos). No início, entra sem dar atenção, mas mostra interesse pelos objetos, demonstrando lembrar que já havia brincado com eles, inclusive procurando-os no armário onde sempre estão guardados. Costuma aceitar um carrinho oferecido, atende ao chamado para brincar, mas a atenção que dá às brincadeiras é muito breve, menos de cinco minutos. Demonstra compreender várias atividades, como montar quebra-cabeça, encaixar cubos, desenhar um círculo. É preciso reconhecer no gesto da criança o seu desejo, só assim poderá haver a possibilidade não de sair do autismo, mas de sair da sua zona de conforto imutável, abrindo um acesso ao mundo social (Furtado, 2013).

A transferência com a criança autista é um dos elementos de maior dificuldade para a clínica. Quem ocupa o lugar de analista, em algum momento experimentou a sensação de disjunção, que ocorre quase sempre ao autista. Mannoni (1967/2003) alerta que a dificuldade para discutir a transferência na análise de crianças, mais ainda no caso da criança autista, é a concepção a que os autores recorrem, colocando como pontos de referência "a afetividade, o comportamento e a adaptação" (p. 67). É importante lembrar que sempre aparecerão elementos simbólicos em qualquer relação transferencial.

Segundo Tafuri (2003), com o analisando autista, há uma complexidade maior em se perceber os fenômenos transferenciais que podem ocorrer de formas inesperadas, por meio de um jogo de projeções, do contato físico ou, simplesmente, de um traço percebido entre os dois sujeitos. Com Levi, aconteceram episódios de transferência inesperados, assim como em outros momentos o mecanismo esteve ausente.

Souza (2008) mostra que a posição do analista na transferência – na concepção atual dos psicanalistas kleinianos – é a de quem suporta as emoções e os sentimentos que a criança mostrou ter vivido em suas relações objetais primordiais. O analista sai de uma posição de neutralidade, sente e pensa, colocando-se como "continente das dores arcaicas" (p. 198) da criança.

Na condução da análise, em geral procuramos trabalhar de forma livre, dispondo-se a imitar a criança, deixando-nos conduzir por seu gesto. Porém, a dinâmica das sessões muda, principalmente quando a tendência ao isolamento e as estereotipias se intensificam. Uma vez, foi feita uma alteração dos objetos disponíveis na sala, retirando os que Levi costumava pegar e trazendo outros não conhecidos (bonecos de personagens de desenhos animados e de animais). De início, Levi pareceu claramente frustrado por não encontrar os objetos com os quais já estava acostumado, foi procurá-los onde ficavam sempre e não os encontrou. Tentou então achá-los em outros compartimentos do armário e não estavam lá também. Não chorou nem fez gesto de pedir por eles, começou a passar os dedos na parede e no chão, da mesma forma que fazia com seus objetos eleitos, como se estivesse contornando a superfície. Então, passei a imitar seu gesto e, com isso, Levi me dirigiu olhares enviesados e rápidos, mas espontâneos. Em seguida, começou a movimentar-se como se estivesse brincando com as partes do próprio corpo, pés e mãos, com a analista imitando seus gestos.

Nessa atividade, Levi mostrou-se mais solto e riu espontaneamente. A permissão do acesso ao corpo remete à ideia de uma possível reparação do objeto perdido, pois a criança reduz suas defesas, talvez pelo fato de não se sentir ameaçado, o que leva a pensar numa forma de modificação da ansiedade ou numa adaptação à realidade, em uma possível relação transferencial com a analista (Klein, 1996; Klein et al., 1982).

Crespin (2016) leva-nos a refletir sobre o conceito de "forçagem simbólica" (p. 328), partindo da ideia de que não podemos simplesmente deixar a criança entregue ao funcionamento autístico. É preciso, em algum momento, adentrar nesse circuito fechado, resgatando o encontro primordial, possibilitando a entrada do sujeito no mundo das trocas sociais. A autora sugere que podemos considerar que "as produções da criança – deambulações, manipulações, interesses limitados e repetitivos – não devem ser consideradas como já simbolizadas, mas a simbolizar" (p. 330).

Durante o período de quase um ano, em todas as sessões, Levi vinha de outra atividade terapêutica (a equoterapia), por isso trazia sempre um lanche para comer durante a sessão de psicanálise. A ideia do lanche foi acolhida para observar melhor a relação dele com a comida. O lanche trazido era sempre preparado com esmero, nunca se viu um alimento qualquer que não fosse saudável e natural (esclarecendo: sob o ponto de vista da mãe). O menino comia com muito gosto, até as migalhas que caíam no tapete. A ação de comer não se encerrava com o lanche, continuava com as tintas, as massas de modelar, em geral coisas que mantinham certa consistência semelhante à de algum alimento. Ali, aparecia uma lacuna preenchida com o ato de ingerir sem interrupção, esse parecia ser o seu domínio sobre os vínculos anteriormente interrompidos.

A estratégia com Levi foi sempre criar um "clima" lúdico no lanche, que se dava sempre na metade da sessão, momento eleito por ele mesmo, e nunca pela analista. Sempre havia uma toalha na lancheira, por isso resolvemos estendê-la, como se fosse um piquenique no meio da sala, sempre na tentativa de acrescentar um vínculo nesse "ritual" de lanche. Procurava-se delimitar o espaço para comer, dizendo "Vamos comer aqui, vamos fazer um piquenique de sala!" e apontando o lugar onde estava arrumada a toalha. Levi aceitava a ideia, mas sempre acabava se esquivando para algum canto da sala. A analista não colocava nenhuma condição para este fato, mas, aos poucos, ele foi atendendo a esse pedido, lanchando onde foi proposto. Para a vasilha que não conseguia abrir sozinho, buscava ajuda colocando a mão da analista sobre o objeto, situando-a na posição de objeto (Furtado, 2013; Laurent, 2014; Tafuri, 2003).

De início, era preciso deixar fora do seu alcance os materiais de desenho, pintura e modelagem, porque ele fazia de tudo para comê-los. Sempre era dito a ele: "Isso não é comida, é para desenhar e brincar, seu lanche, sim, é para comer!". O material foi sendo aos poucos deixado presente no setting e ao alcance de suas mãos. Não foram expressas interpretações, além das mencionadas, sobre o seu ato de ingerir coisas não comestíveis, apenas acompanhamos ao longo de um ano esse ritual de lanchar sempre de forma muito próxima, mas deixando-o livre para sua escolha.

Durante as sessões em torno do piquenique, trabalhamos o compartilhamento da comida, propondo que ele repartisse o que trazia de lanche. No início, não havia possibilidade de fazer isso com sua concordância. Levi resistiu muito quando foi pedido para que se comesse junto a ele, ficou angustiado, reclamou e simulou chorar, mesmo quando era trazido outro lanche para ser acrescentado ao seu. No momento em que a analista colocava algum alimento na boca, ele tentava tirá-lo e comer. Nesse instante, a analista afirmava: "Tudo bem, se não quiser, não vou comer junto com você". Mas voltava a pedir novamente para participar do lanche, o que passou a ser tolerado. A ideia era mesmo possibilitar uma troca, uma vez que Levi tem um mundo lá fora com o qual conviver.

Posteriormente, apesar de nunca oferecer parte do seu lanche, Levi não reclamava mais quando a analista insistia em comer junto a ele. Aos poucos, isso se tornou um ato a dois (mesmo separados), com o detalhe de se ter a liberdade para continuar ou interromper o lanche no momento em que se quisesse. Essa comensalidade não era forçada, mas, de alguma forma, compartilhada. Assim, Levi passou a comer apenas o seu lanche, raramente dando alguma atenção para as tintas e massa de modelar que passaram a ficar ao seu alcance. O ato de comer tudo foi cessando, o que fez reduzir muito os problemas gástricos e possibilitou trocas afetivas, pois, após o lanche, Levi passou a se aproximar da analista, numa relação transferencial peculiar, mas muito clara. Com a família, a alimentação também se tornou um momento prazeroso de convivência.

Houve uma queixa da escola de que ele estaria pegando o lanche dos colegas na hora do recreio, mas, em observação, o que se viu foram as crianças tentando interagir com ele. Acabamos por descobrir que o interesse de Levi não era pelo lanche nem pelos colegas, mas pelos canudinhos das caixas de suco que eles traziam (o suco dele não tinha canudinho). Todas as crianças faziam questão de entregar o objeto para ele, que ficava girando-o com as mãos. Na verdade, apenas a professora interpretou isso como "pegar o lanche dos colegas". Não foi observada nenhuma reação negativa no contato com as outras crianças, fato verificado pelas observações regulares feitas na escola em diversos momentos: no recreio, nas atividades de sala de aula e no parque externo.

A partir disso, é possível pensar que o "comer", nesse caso, talvez seja uma forma de se comunicar por uma representação, no sentido freudiano da Vorstellung, frente à impossibilidade de representação pela palavra. Tais representações podem estar ligadas a uma primeira organização significante, num registro de traços mnêmicos (Laznik-Penot, 2004). Afinal, não foi assim que Levi começou sua relação afetiva com a mãe, na insistência para ser alimentado?

Mannoni (1991/1995), ao resgatar uma colocação de Freud em seu Estudo autobiográfico (1925), lembra-nos que "o reino da imaginação fantasiosa pode ser considerado como uma reserva feita durante a passagem, sentida como dolorosa, do princípio do prazer ao princípio da realidade, a fim de fornecer um substituto para as satisfações pulsionais a que se teve de renunciar na vida real" (Freud, 1925, citado por Mannoni, 1991/1995, p. 9, grifo nosso). Levi não tinha um transtorno alimentar, mas sim uma boca a ser saciada a qualquer custo. Primeiro, foi esse o grande investimento libidinal da mãe, que desejou nutri-lo da forma mais saudável possível. Posteriormente, na ação do menino em continuar a introjeção e incorporação do desejo materno, ele o fez da forma que pôde, com seus recursos emocionais.

Melanie Klein (1932/1997), que procura desvendar o funcionamento inconsciente, mostra as tentativas da criança (nem sempre bem-sucedidas) de controlar as angústias ou ansiedades, referindo-se àquelas mais arcaicas, que ocorrem antes da integração do Ego. Como o Ego ainda é frágil, a criança se vê submetida às exigências do Id pela satisfação pulsional, mas é confrontada com o Superego, que surge a partir da incorporação dos objetos (neste caso, o alimento) com os quais ela poderia reparar o objeto "destruído" na fase anterior. O desmame abrupto teria dificultado a simbolização e a reparação. É interessante observar que, na concepção lacaniana, podemos associar esse fato ao gozo, que, nesse caso, é o gozo materno que demanda o "comer bem", que parece ter sido entendido pela criança como "comer tudo", até as migalhas. Segundo Lacan (1985), o gozo é sempre um imperativo do Superego.

Ao usar das brincadeiras para superar as vivências de angústia, a criança consegue reduzir a ansiedade, ficando mais preparada para as adversidades de seu meio. No caso de Levi, ele tem poucos recursos psíquicos para superar as perdas recorrentes, por isso não consegue deslocar essas ameaças pulsionais para o meio externo, ficando exposto a uma desorganização em que a compulsão pela repetição está envolvida com a ingestão de substâncias comestíveis e não comestíveis.

Após o trabalho de análise de um ano, ao ser superada a ingestão de substâncias inadequadas, surgiram as mordidas nos colegas, na irmã, na professora e em outros familiares. Novamente um mal-estar recaiu sobre os pais. Do ponto de vista kleiniano, poderíamos pensar que esse ainda era o mesmo mecanismo de incorporação, funcionando agora através das mordidas. Consideramos a possibilidade de ser novamente uma forma de organização psíquica, agora demarcando a relação com o outro, aprendendo a lidar com essa convivência com os outros, na família e na escola. A identificação projetiva pode ser pensada como uma forma de comunicação das angústias. Mais do que uma interpretação intelectual do porquê da ação da criança, o analista precisa criar um espaço mental para a vivência e a exploração do mundo interno para que a criança possa vivenciar suas fantasias e o analista seja capaz de acolhê-las (Souza, 2008).

Segundo Tafuri (2003), o analista deve oferecer funções que permitam que o analisando dê continuidade ao desenvolvimento de si mesmo, pois essas funções são os fundamentos do Eu, oferecidos para que o sujeito continue a existir. Como ainda estava sendo observada qual seria a função das mordidas para Levi, surgiu um momento em que esse comportamento apareceu e pode ser trabalhado. Em uma atividade lúdica, Levi observava de canto de olho enquanto a analista tentava construir uma torre com cubos plásticos. Geralmente, ele desmanchava a torre antes de pronta, então, foi feito um pedido para que esperasse terminar a torre, depois poderia fazer o que quisesse. Ao terminar, foi dito: "Agora sim, pode fazer o que quiser". Levi derrubou a torre com a participação da analista, acabaram os dois caindo por cima dos cubos espalhados pelo chão e ele começou a morder, foram várias mordidas fortes, mas não a ponto de machucar, as mordidas foram toleradas, a analista disse a ele que as mordidas não a estavam destruindo, Levi soltou sonoras gargalhadas e olhou várias vezes para a analista. A risada era de alegria, mas não sádica. Levi parecia estar se certificando de que o objeto permanecia vivo e presente, mesmo com seu ataque.

A sessão ainda estava na metade. Logo Levi parou, colocou seu sapato e foi em direção à porta. Primeiro acreditamos que queria ir ao banheiro, mas ele se dirigiu à porta de saída do consultório. Foi dito a ele que o horário ainda não tinha acabado e o pai ainda não estava lá para levá-lo para casa. Levi então conduziu a analista pela mão em direção a um parque de crianças que fica próximo do consultório. Ao sair, quis correr em direção ao parque, para o balanço, chegou antes e ficou esperando para ser balançado. Depois disso, foi convidado para ir a outros brinquedos. Levi resistiu um pouco, mas aceitou e ficou muito sorridente o tempo todo.

Na sessão seguinte, não houve mordidas, mas, na metade do tempo, Levi quis ir de novo ao parque. Enquanto a analista o balançava, ele olhava várias vezes para trás, sorrindo. Quando voltamos para o consultório, seu pai o esperava e, ao saber que fomos de novo ao parquinho, perguntou (meio que afirmando): "E aí, quis ficar só no balanço?", ao que Levi respondeu: "Não". Um não assertivo.

O que se pode concluir disso? Melanie Klein, em seus estudos sobre a constituição psíquica arcaica do sujeito, fornece elementos para pensar essa questão sob outro olhar, não fechado para o diagnóstico – mesmo pensando que não podemos nos remeter à ideia de causa e efeito, podemos pensar como abrir possibilidades de reparação. Diz Klein (1932/1997) que, "por meio da análise do brincar, ganhamos acesso às fixações e experiências mais profundamente reprimidas da criança e tornamo-nos assim capazes de exercer uma influência radical sobre seu desenvolvimento" (p. 35).

Introduzimos, no início, o conceito lacaniano do circuito pulsional, que se refere também às fases iniciais da constituição psíquica. A importância desse conceito refere-se à ideia de fazer com que esse circuito se movimente a partir de uma dinâmica desejante. Crespin (2016) diz que a criança começa a fazer trocas quando deseja o desejo do Outro (Lacan, 2005), assim abre-se a possibilidade de saída da repetição que impede o sujeito de avançar em sua constituição subjetiva para um movimento que o coloque no processo de desenvolvimento.

O questionamento que propusemos, relacionando a amamentação e o desmame com a ingestão de substâncias não comestíveis, mostrou que esse fato operou como um processo primário, interferindo na forma de Levi reagir ao meio. Podemos dizer também que, embora tenham entrado como um significante primordial, a amamentação e o desmame não foram considerados determinantes nem o único fator para o autismo de Levi. A observação desse significante ajudou a pensar em outras possibilidades, desconstruindo a ideia de um transtorno alimentar associado ao espectro autista, como é comum encontrarmos na visão médica.

Com este estudo, aprendemos a reconhecer o sujeito sem que precise ser decodificado ou interpretado, como mostra Tafuri (2003). Foram dois anos de análise, com pelo menos dois ganhos visíveis para Levi e sua família: a capacidade adaptativa e o abandono da ingestão compulsiva de substâncias não comestíveis. Uma aprendizagem importante para o psicanalista é que a psicanálise, como um todo, tem uma estrutura teórica e prática que fundamenta o atendimento da criança autista, independentemente do olhar médico que atribui um diagnóstico. O foco aqui é trabalhar com a constituição psíquica da criança e compreender o seu modo singular de se apresentar ao mundo.

 

Considerações finais

Quanto aos aspectos clínicos, podemos dizer que, pelo menos, um passo importante foi dado, a ponto de deixar Levi mais estabilizado em seus laços afetivos e sociais, manifestando um desejo que pode ser "escutado". Há um ponto do manejo da clínica em que menos importam resultados concretos do que relacionais, para que a criança possa viver sentindo-se acolhida e amada nas suas condições, e seu modo de ser no mundo não seja uma resposta ao medo e a uma vivência de desamparo.

O espaço terapêutico, quando se torna um lugar de confiança e referência, permite que "algo deste sofrimento inicial, arcaico, possa ser dito – se não em palavras, pelo menos em atos" (Bernardino, 2006, p. 11). Esse interlocutor que pode se comunicar, com ou sem palavras, pode fazer surgir o desejo e, com isso, tornar as defesas desnecessárias. Acreditamos que foi isso que aconteceu com Levi. Compreender sua forma de se expressar ensinou muitas coisas para todos que trabalharam com ele.

Por mais que, nesse caso, o caminho para obter ganhos desejados ainda mostre-se longo, já temos uma ideia de que a criança, seja ela autista ou não, vai utilizar de seus recursos próprios de defesa e de reparação para tentar encontrar seu lugar no mundo. Ela vai nos dar elementos muito sutis, portanto, a observação, a atenção, a escuta e o estudo precisam estar muito bem articulados.

Mamar ou não mamar, destruir e reconstruir, fazer girar o circuito pulsional são as pistas que encontramos para prosseguir com o trabalho com a criança autista, oferecendo não uma recusa ao seu ser, mas trazendo-a para uma forma de entrar nesse mundo e ajudá-la a se organizar. No caso de Levi, havia um desejo de preenchimento e de reparação de um objeto suprimido, que entendemos como desejo de compreensão nessa boca vazia de palavras, mas preenchida com outros sentimentos.

A nós, analistas, resta-nos desvendar esse enigma, isso com qualquer criança, mas, no caso do autismo, em que os recursos de comunicação ficam ainda mais restritos, em que paira um sofrimento da criança mesma e de seus familiares, é preciso ter redobrada a disponibilidade, a atenção, a ética e a capacidade de enxergar para além do espectro.

De acordo com Kupfer (1999), o autista revela as falhas da sociedade moderna, da família, dos pais, por meio da forma como todos têm tratado os problemas relativos à infância. Algumas crianças são tratadas dentro de um projeto ideal, não menos adoecedor; outras, como as que ficaram de fora do espelho narcísico, estão alojadas em uma significação social carregando a exclusão da linguagem, como no caso dos autistas. A psicanálise pode intervir em caráter preventivo, supondo um sujeito constituído na e pela linguagem, que pode tornar-se desejante e ter o poder dizer de si mesmo, ou seja, é preciso fazer circular a palavra, dando condições para a subjetividade (Kupfer, Bernardino, & Mariotto, 2013).

Hanna Segal (1996) diz que, da mesma forma que Freud descobriu uma criança ativa no adulto, Klein percebe o bebê na criança e no adulto, concluindo que este vivencia relações de objeto muito intensas, na realidade e na fantasia. Se pensarmos no trabalho que tem sido feito na clínica precoce com bebês, a contribuição de Klein tem repercutido até hoje no trabalho dos psicanalistas contemporâneos. Os conceitos indicam que o campo psicanalítico abrange experiências que vão além de desvendar o inconsciente (Souza, 2008), buscando entender a subjetividade dos processos psíquicos da criança e daqueles que fazem parte de seu contexto familiar e social, com a implicação do próprio analista que, ao assumir esse trabalho, vai precisar sair inúmeras vezes da sua zona de conforto e de seus saberes prontos.

 

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Endereço para correspondência
SQN 211 – Bloco H/ 612 – Asa Norte
70863-080 – Brasília – DF – Brasil.
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SHIN QL 08 – Conjunto 09/18 – Lago Norte
71535-295 – Brasília – DF – Brasil.
izabeltafuri@gmail.com

Recebido em abril/2017.
Aceito em outubro/2017.

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