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Estilos da Clinica
Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.22 no.3 São Paulo Dec. 2017
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i3p1-20
ARTIGO
O docente "em falta" como figura cristalizada
The "in lack" teacher as a crystallized figure
El docente "en falta" como figura cristalizada
Daniel RevahI
IProfessor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (LEPSI/SP), São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Uma das figuras docentes que os discursos pedagógicos produziram no Brasil, no âmbito da educação básica, e que nas últimas décadas tende a prevalecer, é a do docente que deve ser orientado em seu pensamento e ação educativa por especialistas de ordem diversa. Esse docente "em falta", incapaz de responder adequadamente ao que dele se espera pelos seus próprios meios, tornou-se, em muitos discursos, o principal obstáculo para alcançar a almejada qualidade do ensino. Este artigo destaca alguns aspectos do processo de construção dessa figura docente e discute sua possível transformação tendo em vista os dispositivos discursivos que a sustentam.
Descritores: professor; discursos pedagógicos; formação continuada.
ABSTRACT
One of the teaching figures that pedagogical discourses have produced in Brazil, in the scope of basic education, and that tends to prevail in the last decades, is that of the teacher who must be oriented in their thought and educative action by specialists of diverse order. This 'in lack' teacher, unable to respond adequately to what is expected of them by their own means, has become, in many discourses, the main obstacle to achieving the desired quality of teaching. This article highlights some aspects of the construction process of this teaching figure and discusses its possible transformation considering the discursive devices that sustain it.
Index terms: teacher; pedagogical discourses; continuing education.
RESUMEN
Una de las figuras docentes producidas por los discursos pedagógicos en Brasil, en el ámbito de la educación básica y que tiende a prevalecer en las últimas décadas, es la del docente que debe ser orientado en su pensamiento y acción educativa por especialistas de orden diversa. Ese docente "en falta", incapaz de responder adecuadamente por sus propios medios a lo que de él se espera, en muchos discursos se convirtió en el principal obstáculo para alcanzar la anhelada enseñanza de calidad. Este artículo destaca algunos aspectos del proceso de construcción de esa figura docente y discute su posible transformación teniendo en cuenta los dispositivos discursivos que la sostienen.
Palabras clave: profesor; discursos pedagógicos; formación continuada.
Introdução
Nos discursos pedagógicos referidos à educação básica, uma das figuras docentes criadas no âmbito desses discursos e que no Brasil das últimas décadas tende a predominar é a do professor que deve ser orientado em seu pensamento e ação educativa por especialistas diversos, com destaque para os discursos "psi", mas também do campo das metodologias do ensino e da didática, como tem ocorrido de forma crescente em consonância com transformações importantes no âmbito das didáticas especiais. Esse docente "em falta", incapaz de responder adequadamente ao que dele se espera pelos seus próprios meios e cuja fala é tomada pela rede discursiva dos especialistas, tornou-se em muitos discursos o principal obstáculo para alcançar a almejada qualidade do ensino, concebida em geral como referente neutro definido a partir dos resultados quantificáveis das avaliações feitas em larga escala. Entretanto, muitos desses mesmos discursos que buscam removê-lo dessa posição, são os que afinal e de forma paradoxal sustentam e (se) nutrem (d)essa mesma figura.
Este trabalho destaca alguns aspectos do processo de construção dessa figura docente e a dimensão do gozo que em torno dela se articula, de modo a manter as condições que impedem os giros discursivos necessários à remoção dessa figura e do que ela em parte sustenta e produz como sintoma social, vez por outra demarcado com significantes como crise da escola ou fracasso escolar. Enquanto cristalização imaginária, essa figura opera impedindo que os docentes "em falta" emerjam em sua dimensão simbólica, com suas vozes e ações singulares e diversas, e sem as mediações da rede discursiva que os silencia e fossiliza. Tal emergência supõe que essas vozes, na posição do que resta, alcancem a ressonância necessária para perfurar a figura cristalizada que a partir deles foi produzida e na qual efetiva e parcialmente se transformaram, com efeitos concretos nas práticas escolares, muito embora o que é da ordem do fracasso ou crise da escola em muito extrapole os docentes. "Isso" que os fossiliza e que também os ultrapassa é precisamente o que esses giros discursivos poderiam afinal alterar, com os docentes necessariamente implicados naquilo que é próprio do campo em que "isso" se configura: a política, pois, como sugere Lacan, o inconsciente é a política1. Essa questão, relativa ao que fazer com "isso", é um ponto sobre o qual este trabalho busca avançar destacando alguns elementos que possibilitam pensar a chamada formação continuada num registro diferente daquele em que costuma acontecer, que é o da infantilização continuada dos professores.
O paradoxo da valorização docente
Entre as representações da docência que se destacam nos debates educacionais e nas lutas empreendidas pelos docentes desde a década 1970, cobrando intensidade com a volta do regime democrático, há duas cuja confluência nota-se duas décadas mais tarde, nos anos 1990, de acordo com um percurso que também corresponde a certa valorização do professor da educação básica. Silke Weber (2015) refere-se a esse processo ao destacar nessas lutas o valor que adquire, de um lado, a formação docente e, de outro, as questões relacionadas com as condições de trabalho do professor e sua remuneração. O professor concebido então enquanto profissional, ao qual deveria ser garantida uma boa formação, tanto inicial quanto em serviço; mas também o professor como trabalhador, a quem deveriam ser proporcionadas condições de trabalho e remuneração condizentes com o que dele se exige. Essas duas vertentes das lutas docentes, que colocam num primeiro plano o professor como profissional e trabalhador, correspondem ao surgimento de duas entidades que reúnem educadores: a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), criada em 1991 e cujos fundamentos remetem ao Movimento em Prol da Formação do Educador, surgido no final da década de 1970; e a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), oriunda da Confederação dos Professores do Brasil (CPB) e que "desde o final de 1980 e início de 1990, formulava a concepção de docente como trabalhador em educação, concentrando as suas reivindicações em torno de condições de trabalho adequadas e de salário condigno" (Weber, 2015, p. 503).
Essas lutas docentes, empreendidas também por outras entidades, nutrem um percurso cujo sentido é o da valorização dos docentes, consubstanciada inclusive na legislação, conforme avaliam pesquisadores como Weber, que assim refere-se a essa trajetória:
Se desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 o princípio da valorização docente é reconhecido e utilizado como referência para o estabelecimento de políticas educacionais voltadas para o professorado, o sentido que o abarca, na atualidade, aprofunda a articulação de demandas históricas de condições de trabalho e de formação inicial e continuada (Weber, 2015, p. 507).
Planos de cargos e carreira, piso salarial nacional, jornada de trabalho em tempo integral numa única escola e parte da carga horária dos professores dedicada a atividades relacionadas à docência são outras reivindicações implicadas naquelas lutas e, em parte, contempladas na legislação, assim como efetivadas pelos sistemas de ensino, concorrendo desse modo para ampliar o sentido da valorização docente. Entretanto, de forma concomitante a essa valorização, mas também a antecedendo, a figura do professor sofre a desvalorização que é própria das representações que o responsabilizam pelo fracasso escolar e pela baixa qualidade do ensino, em especial quando está em pauta a escola pública.
Fracasso escolar é um significante que reverbera e norteia os debates educacionais sobre a escola pública desde o final dos anos 1970, perpassando a década seguinte, mas tende a ser deslocado pelo tema da qualidade do ensino, que fica num primeiro plano nos anos 1990. A própria Constituição Federal de 1988 alavanca essa emergência, pois estabelece que a "garantia de padrão de qualidade" é um dos princípios sobre os quais deve se basear o ensino. A responsabilidade pela qualidade recai então, em primeiro lugar, sobre o professor, tendo por padrão o que nesse momento é apresentado sob a forma de Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Um padrão que, ainda como maior força, é estabelecido e conferido por meio das avaliações que se consolidam em escala nacional na segunda metade da década de 1990, com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), cuja configuração inicial ocorre em fins da década anterior (Freitas, 2004, p. 664). O padrão, então almejado, reflete-se também nos livros didáticos chancelados e avaliados pelo Governo Federal, e norteia igualmente os programas voltados para a formação continuada de professores, que nesse período se intensificam.
Como é regra geral nas reformas educativas, incentiva-se os professores a participar com um discurso que os valoriza como partícipes indispensáveis da mudança em curso. Nos discursos oficiais é praxe dizer que o sucesso depende fundamentalmente deles. O professor é valorizado e mesmo idealizado, mas ao mesmo tempo é visto com desconfiança, pois considera-se que a sua formação é deficiente, que tem um perfil tradicional ou pouco afinado com as transformações ocorridas no campo da pedagogia e da didática, que é resistente à inovação, que desconhece determinadas teorias educacionais ou psicológicas consideradas fundamentais, que é autoritário com os alunos, não os conhecendo nem considerando suas características e diferenças, que não possui capacidade de reflexão sobre sua própria prática, que é incapaz de pesquisar, planejar e organizar seu trabalho em sala de aula. E o que, sobretudo, circula em determinados discursos nos anos 1990 é a ideia de que os professores não têm uma formação acorde com o padrão de qualidade então definido pelos PCN. Diante disso, à capacitação, atualização ou formação continuada de professores é atribuído um papel crucial, o de moldar o professor capaz de dar conta desse padrão, atrelado nesse momento ao significante-mestre construtivismo.
Esse padrão de qualidade, cuja referência são os PCN, mas que também tem por base um multifacetado conjunto de discursos e experiências escolares que constituem o estofo próprio daquele significante, é o que nos docentes tende a definir o que é da ordem de uma falta, de uma deficiência que se busca superar investindo na sua formação. Nesse momento, são os especialistas do MEC os que estabelecem o que deve ser priorizado nessa formação no âmbito das iniciativas oficiais do Governo Federal e, o que assim é definido, procede de representações sobre a educação escolar que vinham se configurando desde a década anterior, em discursos pedagógicos sustentados por determinada produção acadêmica nacional e internacional que reverbera em algumas experiências escolares, com forte presença de um setor da rede particular de ensino da cidade de São Paulo (Revah, 2004). Com uma trajetória profissional ligada a essas experiências, há todo um conjunto de novos especialistas com saberes que sustentam o mercado didático que nesse período se constitui sob novos parâmetros, como pode ser observado nos periódicos educacionais dirigidos aos docentes (Revah, 2004). Esse saber especialista nutre-se, em boa medida, das problemáticas escolares próprias do universo definido pela rede particular de ensino e, com esse viés, parece transferir-se para a rede pública de ensino, de modo a recortar as supostas necessidades das escolas e dos docentes da mesma forma, como se fossem semelhantes. Enfatiza-se então determinada dimensão pedagógica e curricular, e pouco são levadas em conta questões cujo equacionamento é vital para muitas redes de ensino públicas. São questões que não correspondem a essa dimensão, embora nela incidam de forma decisiva, como: a alta rotatividade de docentes e diretores entre as escolas no final de cada ano; as bibliotecas insuficientemente equipadas, que não atendem apropriadamente alunos e professores ou que sequer existem; os períodos de aula de poucas horas, porque a escola funciona em três turnos; o excesso de alunos em sala de aula; o pouco ou inexistente apoio no cotidiano escolar para o trabalho pedagógico dos professores; a escassez ou mesmo ausência de discussões coletivas e sistemáticas sobre problemas e dúvidas que professores têm na sua relação com alunos, pais de alunos e nas suas práticas educativas; as tarefas burocráticas envolvendo relatórios, preenchimento de formulários e diários com pouca ou nenhuma discussão com os docentes que possibilite o questionamento sobre sua necessidade e sentido, bem como a alteração ou extinção dessas rotinas estabelecidas pela hierarquia do sistema de ensino.
A profissionalização dos docentes demandada por determinadas entidades de profissionais da educação inscreve-se nesse período no registro do saber especialista então hegemônico. A boa formação do professor envolve primeiramente saberes que trazem consigo a marca da ciência e concernem basicamente ao trabalho pedagógio desenvolvido pelos professores na sala de aula, como é o caso da psicogenética piagetiana e seus desdobramentos no ensino, mas sem que a escola como instituição entre em consideração (Carvalho, 2000a). São saberes psicológicos e didáticos, parte deles alicerçada em experiências pedagógicos que vinham se desenrolando desde a década anterior, no Brasil, mas também em outros países, como Argentina e Espanha. Com base nesses saberes, alheios em grande medida aos contextos escolares cujos principais protagonistas são alunos e professores das redes públicas de ensino, com suas falas e problemáticas específicas, recorta-se o que à escola pública e a seus docentes "falta" para torná-los capazes de dar conta do padrão em pauta. Nesse momento, renova-se sob uma outra orientação o viés tecnicista presente nas políticas oficiais dos anos 1970 (Revah, 2004).
Em sintonia com os questionamentos que se avolumam na década de 1990, dirigidos às políticas oficiais e às concepções sobre a formação continuada que ignoram as experiências dos docentes e as peculiaridades dos contextos escolares, nota-se no novo século uma valorização dessas dimensões. Propõe-se então, por exemplo, que os programas de formação continuada contemplem as especificidades dos contextos escolares, centrando a formação na escola; que considerem a experiência dos professores, suas inquietações e questões; que resgatem aspectos das suas trajetórias escolares e de vida em razão de seus efeitos formativos e sobre as suas práticas pedagógicas, envolvendo assim um trabalho sobre a memória. Mas essas e outras propostas não parecem ter produzido mudanças significativas no âmbito das iniciativas oficiais voltadas para a formação continuada dos professores, pois continuam com força os programas definidos nas altas esferas da administração pública sem que os docentes da escola pública sejam propriamente escutados, com seus anseios, preocupações e saberes levados em conta. Os docentes continuam então silenciados.
Do silenciamento docente
Para avançar na compreensão do que aí está em jogo, vale a pena tomar como operadores de leitura as estruturas discursivas concebidas por Lacan em sua teoria dos discursos (1998), em especial o que ele chama de Discurso Universitário, pois esse silenciamento pode ser pensado como um efeito que resulta da preponderância desse dispositivo discursivo, cujo funcionamento corresponde ao modus operandi que prevalece na formação continuada de professores.
Em sua teoria dos discursos, formulada no final dos anos 1960, Lacan apresenta quatro estruturas que correspondem a quatro maneiras do laço social se estruturar: Discurso do Mestre, Discurso da Histérica, Discurso do Analista e Discurso Universitário (1998). Alguns anos mais tarde, em 1972, acrescenta um quinto o Discurso do Capitalista, que não é propriamente um discurso, dado que não faz laço social. A forma como Lacan concebe o discurso ultrapassa a dimensão dos enunciados efetivamente proferidos, pois consiste numa estrutura que sem as palavras "pode muito bem subsistir . . . em certas relações fundamentais" (Lacan, 1998, p. 11). Entendido como estatuto do enunciado, o discurso é concebido como um aparelho "cuja presença . . . domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem a palavra, que vem em seguida alojar-se neles" (Lacan, 1998, p. 158-159), o que não significa que essas formas de laço social tenham surgido sem a palavra nem que dela prescindam para se manter.
Nesse aparelho, Lacan discrimina quatro elementos ou funções presentes em todo discurso: o significante-mestre (S1), o Saber (S2), o Sujeito (S barrado) e o gozo (ou, para ser mais preciso, mais-gozar, em torno do chamado objeto a). Reduzido a essas quatro funções, o discurso comporta ainda quatro lugares para cada uma dessas funções: o lugar do agente do discurso, o lugar do outro a quem o discurso é dirigido, o lugar da produção como resultado do trabalho do outro e o lugar da verdade do agente, verdade que permenece oculta, à semelhança do que ocorre com a produção (Lacan, 1998, p. 161). A combinação das quatro funções nos lugares correspondentes, que são fixos, tal como Lacan os apresenta em seus matemas (Lacan, 1998, p. 65), resulta em quatro dispositivos discursivos, quatro formas possíveis de laço social, com os sujeitos em distintas posições e funções. Ademais, essas estruturas giram, de maneira que um discurso dá lugar a outro, sem que necessariamente obedeçam a qualquer ordem preestabelecida para fazer esses giros. Nas Figuras 1 e 2 apresentam-se os matemas dos quatro discursos, com as discriminações das funções e dos lugares correspondentes.
Para Lacan, todo discurso é um aparelho de gozo, o qual significa que por meio dele, do laço estabelecido entre o agente e o outro, efetiva-se em alguma medida o que é da ordem do desejo. Isso supõe, a meu ver, que ambos, agente e outro, respondem em alguma medida às funções próprias a determinada estrutura. Se há gozo, ele resulta de um laço efetivamente estabelecido, mediado, porém, pelo Outro, pois não existem propriamente relações intersubjetivas.
O Outro, em Lacan, corresponde ao universo simbólico, é o tesouro do significante, como ele diz, quando compreendido em termos amplos; mas sempre encontra-se referido, na verdade, a determinado sujeito. O Outro é singular, muito embora seja inclusive social, porque conformado também por significantes que perpassam e ressoam em diferentes sujeitos, numa produção discursiva que é singular, mas também social, que concerne ao inconsciente, mas também ao registro da consciência. Enquanto referência simbólica presente em todo discurso, o Outro resulta do jogo entre determinada bateria significante (S2) e um significante-mestre que dela procede (S1), que dela se destaca e sobre a qual produz o corte cujo efeito retroativo faz surgir o que é da ordem da significação e do posicionamento de determinado sujeito no laço social. Graças à amarração que assim ocorre, entre o S1 e o S2, (re)configura-se a referência simbólica que orienta os sujeitos no laço social, o Outro cujas diferentes versões obedecem aos deslocamentos metonímicos e metafóricos que o movimento dos significantes produz2.
Em cada discurso, esse jogo entre o S1 e o S2 institui-se de forma diferente, de modo que o Outro deveria ser situado de forma distinta em cada estrutura. No caso do Discurso Universitário (DU) e do Discurso da Histérica (DH), o Outro (re)configura-se nos lugares que correspondem a um dos lados do matema apresentado por Lacan: do lado do agente/verdade (DU) ou então do lado do outro/produção (DH). À diferença do que poderíamos pensar em relação ao Discurso do Mestre (DM) e ao Discurso do Analista (DA), nos quais o Outro (re)configura-se pondo em jogo os dois implicados em todo discurso (agente e outro), com essa (re)configuração ocorrendo no âmbito do laço entre eles estabelecido, de forma explícita no caso do primeiro (DM) e de forma oculta no segundo (DA).
Em relação ao gozo, na estrutura ele remete primeiramente à função definida pela letra a, em alusão ao chamado objeto a. Na definição clássica de Lacan, esse objeto é causa do desejo, é um objeto na verdade perdido, inexistente, pertencente ao registro do real e, portanto, impossível de simbolizar. Se há produção de um gozo referido ao lugar que corresponde a esse objeto, heterogêneo à ordem simbólica, ele se dá em torno de objetos que o substituem imaginariamente. E esse gozo, ademais, é sempre parcial, portanto o desejo nunca é plenamente satisfeito, há sempre uma inevitável perda de gozo. De modo que a própria estrutura significante que funciona como um aparelho de gozo cria um limite, uma interdição ao gozo pleno. Esse limite imposto à satisfação das pulsões encontra-se no próprio significante, este é "a causa do gozo" e, simultaneamente, "aquilo que faz alto ao gozo" (Lacan, 1996, p. 36), quer dizer, o significante coloca em operação a castração ao mesmo tempo em que define o nosso ponto de gozo.
Quanto ao gozo em torno desses objetos que vêm se alocar no lugar do objeto a, cabe também lembrar que corresponde ao que Lacan chama de mais-gozar, relativo ao registro da fantasia. O mais-gozar, lembra Lacan, surge "em suplência à interdição do gozo fálico" (1998, p. 70). Este último é o gozo que obtemos por meio dos nossos sintomas e que também é parcial, sendo o mais-gozar a nossa derradeira tentativa de capturar o que falta, que é um resto nocivo, um gozo ruinoso, uma espécie de gozo da morte, pois implica o fim do sujeito do desejo. A estrutura significante dos discursos funda-se sobre a interdição desse gozo último, que no aparelho de Lacan não foi nomeado, pois concerne ao que "não é nomeável" (Lacan, 1996, p. 168). Temos então duas formas de gozar parcialmente, ambas, portanto, insatisfatórias e passíveis de acontecer no funcionamento dos discursos: o gozo fálico, em torno dos sintomas e como efeito da repetição de determinadas posições do sujeito no discurso; e o gozo que se articula em torno do objeto a, que corresponde ao registro da fantasia que em última instância sustenta todo sujeito.
Esse registro último, que constitui uma espécie de véu cujo atravessamento nos colocaria em face do real, é o que estabelece as coordenadas do nosso desejo. Os sintomas respondem a essa ordem da fantasia, constituindo um segundo véu, sob a forma de uma mensagem cifrada, um nó de significações sustentado por uma rede de sobredeterminada simbólica que o movimento dos significantes (re)configura continuamente, mesmo que seja sob a ordem da repetição. Essa rede simbólica é a que corresponde à figura do Outro cujas raízes remetem, precisamente, ao registro da fantasia. No Outro, recorta-se o que concerne a uma falta que o sujeito busca suprir, com sua própria vida, com seus próprios sintomas, recorrendo para tanto ao laço social e às estruturas discursivas que lhe permitem criar esse laço.
Com esses elementos sucintamente expostos sobre a teoria dos discursos de Lacan, podemos agora retornar à questão da qual partimos, sobre o silenciamento docente, a formação continuada e o Discurso Universitário.
Sob a estrutura que é própria desse discurso, a formação continuada de quem na verdade já está formado e atuando com seus próprios saberes e sua própria experiência e que assim poderia ser considerado para que reveja, repense e eventualmente transforme as suas práticas educativas e as várias dimensões que condicionam seu trabalho na escola constitui um dispositivo de infantilização permanente dos docentes. Mas isso ocorre na mesma medida em que o laço social pressuposto nessa forma de discurso torna-se a maneira hegemônica ou invariável dessas ações acontecerem. É o que também pode ser afirmado a respeito de outros dispositivos instalados nas escolas e que operam de forma semelhante, sem dar lugar aos giros discursivos que possibilitariam alterar as posições relativas dos que neles se veem implicados.
No dispositivo discursivo que caracteriza o Discurso Universitário, os docentes a quem destina-se a formação continuada são sempre alunos, eles ficam na posição de objetos de gozo de quem articula um saber (S2) que não deixa à vista seu contexto singular de enunciação (S1), pois permanece oculto pelo semblante do mestre que sempre sabe o que é preciso fazer e dizer, como é possível notar observando a posição muitas vezes assumida pelos docentes especialistas responsáveis por cursos de formação continuada. De acordo com o que sugere o funcionamento próprio desse discurso, afirmar que são objetos de gozo significa entre outros sentidos possíveis que eles se prestam à realização de um desejo que se articula no laço implicado nesse discurso e que concerne à comunicação de um saber que, espera-se, seja assimilado por parte desses docentes em sua totalidade, sem lacunas nem mal-entendidos. Esses professores, nesse dispositivo, sempre estão em falta. É o que seu funcionamento supõe e produz. E o que aí afigura uma falta, com os docentes nessa posição, tende a cristalizar-se quando o discurso não gira, ao manter sempre do mesmo lado, nas mesmas posições, os que dessa maneira fazem parte do que corresponde a um sintoma social. Sintoma aqui entendido como uma determinada configuração dos laços sociais que se mantém estável, envolvendo diversos atores sociais e diferentes posições dos sujeitos nela implicados. Nesse caso, com os docentes na posição do que resta (a) e que bem corresponde a determinado sentido que vem à tona com um significante que muito se utilizou e ainda se utiliza para a formação continuada: reciclagem utilizado também em referência ao lixo, que é precisamente o que resta.
Como é próprio de todo sintoma, há um gozo implicado na sua repetição e nas fantasias que o sustentam, e que podemos supor nutridas pelo que está no cerne das promessas sempre renovadas de métodos, didáticas, teorias educacionais, propostas pedagógicas, regras para agir ou se relacionar com os alunos e propostas de toda ordem apresentadas como fórmulas que em si próprias conteriam as chaves, se bem compreendidas e aplicadas, de uma ação educativa bem sucedida. Quer dizer, o que está no cerne dessas promessas é a figura do professor, responsabilizado pelo fracasso escolar e a baixa qualidade do ensino. O gozo que por meio delas se articula corresponde ao primado de determinados discursos pedagógicos que são os que afinal definem o universo simbólico de referência de inúmeros professores. No Outro, nos pontos de ressonância que o definem, muitos docentes encontram as coordenadas de seu desejo no campo em que atuam3. Desejo então que concerne ao registro de tudo o que antes foi mencionado (métodos, didáticas etc.) e que igualmente corresponde ao circuito do desejo de um sem-número de especialistas, mas com estes normalmente posicionados como agentes do DU.
Essas promessas são (re)produzidas não apenas no âmbito de determinados cursos, mas também pela imprensa pedagógica e pelo mercado didático de produtos vários oferecidos a docentes, escolas e redes de ensino. Desse mercado, que nos anos 1990 se intensifica com os novos produtos e assessores didáticos, procede um viés que contribui de forma incisiva para que o discurso na sua estrutura de DU tenda a não girar, a não dar lugar a outra configuração do laço social, mantendo os docentes numa posição que não é apenas a de eternos alunos desses especialistas ou assessores, pois ficam também na posição de consumidores, como nunca antes ficaram4.
Essa parece ser uma diferença essencial em face do caráter que a atualização ou capacitação de professores teve em outros períodos históricos, como no Brasil da primeira metade do século XX, quando havia um sentido emergencial e a docência era vocação e missão a serviço da moralização da infância e da formação do cidadão obediente às leis do Estado, envolvendo ainda a transmissão de um determinado legado cultural. O que nesse período era da ordem de um desejo que os professores buscavam realizar ao exercer o magistério passava por esses pontos de articulação dos discursos pedagógicos. E tudo indica que a atualização ou capacitação desses docentes se dava nos marcos próprios do DU, com hierarquias e posições que também tendiam a manter os docentes como alunos, em razão da autoridade conferida aos que então se ocupavam dessa formação por determinados discursos teóricos e pelas estruturas políticas de então. Foi o que ocorreu nos anos 1920, quando era premente mudar a mentalidade dos professores para efetivar a árdua tarefa de regenerar o país pela educação, sendo esse um viés promovido pela Associação Brasileira de Educação e nas reformas educacionais empreendidas em diferentes estados pelo poder político e pelos que então despontavam como profissionais da educação, como Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira (Carvalho, 2000b, p. 237).
Ao ser instituída como uma atividade permanente e essencial ao funcionamento dos sistemas de ensino, concomitante à emergência do docente como profissional e trabalhador, a capacitação ou atualização dos professores torna-se também uma atividade sobre a qual se lança com força o mercado, com todas as suas propostas e estratégias de marketing. Num contexto, ademais, em que os valores neoliberais se tornam hegemônicos, com a lógica empresarial penetrando cada vez mais nas escolas públicas e privadas no âmbito propriamente educacional ou pedagógico. O que tende então a predominar é um gozo de consumo e de ser consumido. Gozo tornado possível quando o laço próprio do DU dá lugar ao laço perverso em que todos, em posições diferentes, encontram-se implicados como objetos de um circuito que já não corresponde ao dessa estrutura discursiva, embora com ela se articule. Trata-se de um circuito que pode ser pensado como sendo o que corresponde ao que Lacan (1972) chama de Discurso do Capitalista (DC).
Essa estrutura supõe a existência de uma espécie de agenciamento maquínico da oferta de objetos feitos à medida de cada um, do "desejo" de cada sujeito. Desejo que podemos supor é o ponto de partida e também o efeito dessa maquinaria que, com seus múltiplos dispositivos, produz o semblante de encaixes perfeitos e que na verdade nunca se efetivam a contento, perpetuando assim a promessa que a mantém em funcionamento. Fantasia perversa como corresponde a todo e qualquer registro da fantasia que o circuito próprio daquele "discurso" que não é propriamente um discurso tende a tornar e às vezes torna mesmo efetiva, assim produzindo os efeitos reais que os corpos expõem, nas diferentes manifestações somáticas, por meio da violência e nas formas incompreensíveis do real comparecer. Essa particular fantasia, na sua versão de escola-máquina, corresponde ao sonho que acompanhou a história da escola desde seus primórdios na época moderna, quando a forma escolar é primeiramente delineada, tanto de forma concreta como nos colégios dos jesuítas na Europa do século XVI quanto na obra de pensadores como Comenius, com a sua máxima didática de buscar e instituir "ordem em tudo". No Brasil dos anos 1990, a fantasia da escola-máquina comparece também com força renovada quando se fala no "monumental desafio de transformar o ensino público de primeiro grau numa máquina azeitada e eficiente", que é o que a revista Nova Escola atribui ao então ministro da educação Paulo Renato Souza (Revah, 2004, p. 316).
A particular conjunção dessas estruturas discursivas, que torna predominante quando não única a dimensão imaginária do discurso, é facilitada e promovida nas particulares circunstâncias em que a figura do professor como trabalhador alcança um primeiro plano, sendo valorizado nessa condição no preciso momento em que também se vê afetado pelo conjunto de elementos que nessa década de 1990 transformam essa mesma condição. Esse processo se desenrola ao mesmo tempo em que ocorre uma importante transformação no papel do Estado, num contexto de ajuste das economias dos países em desenvolvimento, após o Consenso de Washington, quando a ideologia do Estado mínimo comparece no Brasil e se afirma por meio de políticas que no caso do ensino buscam promover sua melhoria a baixo custo, dando também continuidade à expansão do atendimento.
Conforme avaliam pesquisadores como Piolli, Silva e Heloani (2015, p. 594), nesse período o Estado "passa da condição de provedor para a de regulador ou de auditor que avalia resultados à distância por intermédio de controles cada vez mais centralizados". Esses controles, que incluem os testes standarizados das avaliações feitas nas diferentes redes de ensino, são desenvolvidos ao mesmo tempo em que se promove uma desconcentração administrativa, envolvendo a transferência de responsabilidades para municípios, escolas e professores, com um discurso que valoriza a autonomia e a promoção de parcerias com o setor privado. Com essa orientação das políticas educacionais, que avaliam a qualidade da educação tendo por base a melhoria dos indicadores e posições nos rankings, que incluem outras medidas como as bonificações que discriminam escolas e docentes de acordo com seu desempenho nos resultados desses testes, com metas em cuja definição não participam os educadores das escolas, processa-se uma profunda transformação no cotidiano e na gestão escolar. É o que sugerem Piolli, Silva e Heloani (2015), ao ressaltar a presença do paradigama empresarial na gestão da escola, com a exigência de produtividade baseada em determinadas metas e resultados e a consequente intensificação e autointensificação do trabalho, com a promoção do individualismo e a competitividade nas relações laborais, com a fragmentação do coletivo e a fragilização da dimensão política no âmbito escolar, com um discurso da qualidade e da eficiência que "oculta processos de controle e manipulação da subjetividade docente" (p. 605).
Os autores ainda se referem a determinados sentimentos e formas de adoecimento resultantes das particulares condições de trabalho presentes em muitas escolas, como sentimentos de angústia, frustrações, ressentimentos, estresse, depressão, distúrbios afetivos, entre outros. São sintomas ligados também ao que é da ordem de um excesso que abruma os docentes e que em muitos casos, provavelmente, é autoimposto, constituindo talvez uma forma de buscar saldar uma dívida assumida como própria, em razão de um discurso que os responsabiliza e culpabiliza. Responsabilidade e culpa, portanto, assumidas individualmente e enquanto membros da categoria docente a quem se atribui a razão de ser da baixa qualidade do ensino. Enfrentar esse encargo, nos termos em que costuma ser delineado nos discursos pedagógicos, exige investir em si próprios como profissionais. Para ser professor "nota 10" é necessário investir na carreira, na formação, estudar, fazer cursos e seguir a cartilha que é própria de revistas como Nova Escola, que todo ano escolhe seus professores "nota 10" divulgando em suas páginas como lograram essa proeza.
Muitos programas de formação continuada são organizados tendo em vista essa expectativa, resultando não raro em frustrações que fazem girar o discurso. Os docentes deslocam-se então do lugar que ocupavam no DU e no qual tornavam-se objetos de quem nesse discurso ocupava o lugar do agente. Ao operar esse giro, eles podem assumir outra posição, como muitas vezes acontece quando os professores ocupam o lugar do agente na estrutura discursiva que Lacan chama de Discurso da Histérica. Na posição de agentes desse discurso, os professores que assim tendem a permanecer no laço social veiculam uma interminável queixa, como é próprio desse dispositivo. Nele, no lugar do agente, temos um sujeito cuja falta, exposta, à vista de todos, o consome. Esse sujeito endereça-se então a quem supõe (S1) capaz de produzir um Saber (S2) que lhe permita suprir o que lhe falta para ser desejado (a), digamos que para se sentir pleno, um professor nota 10, conforme seria possível aventar. Entretanto, a situação de impotência em que se encontrava sob o DU não desaparece, volta a se configurar, mas de outra maneira.
Como já vimos, o Outro, a referência simbólica (re)configurada no DU é obra do agente desse discurso, por meio de um jogo entre S1 e S2 que exclui os que nesse discurso assumem o lugar do outro, nesse caso os alunos-docentes. Quando ocorre o giro discursivo que instala o DH, a (re)configuração do Outro não mais se processa do lado do agente, mas do outro, daquele (S1) a quem se demanda a produção de um saber (S2). E aqui também é possível pensar que a (re)configuração do Outro exclui os docentes, dado que se processa do lado do outro a quem o agente se endereça5. A impotência inerente ao silenciamento docente pode então ser lida como resultado dessa exclusão, em ambas estruturas discursivas6.
Segundo Lacan (1998, p. 122), a histérica sempre derruba o mestre. Quer dizer, o que vem do Outro nunca satisfaz e, em consequência disso, quem se mantém como agente nessa estrutura continua a procurar interminavelmente um mestre (S1) capaz de se manter nessa posição. Concretamente, podemos supor que essa função de mestre é desempenhada por quem, numa escola ou rede de ensino, está na direção ou coordenação, fazendo parte da hierarquia do sistema educacional. E uma resposta que nesse âmbito costuma ser dada é a de mobilizar os especialistas de quem os docentes esperam obter o que os discursos pedagógicos continuamente prometem. Promessa que deve ser (re)articulada toda vez que os professores se frustram com esses mestres, como costuma acontecer após sua participação nos inúmeros programas de formação continuada que frustram suas expectativas, dando lugar então às queixas que caracterizam a posição do agente no DH.
Da mesma forma que o valor dos docentes oscila entre tudo e nada, quando sobre eles recai a expectativa de excelência da educação escolar e a responsabilidade pelo seu fracasso, eles próprios também oscilam entre esses extremos toda vez que se veem implicados na bipolaridade característica do trânsito entre aqueles dois discursos (DU-DH). Ou seja, entre a expectativa em relação ao Saber do mestre do DU ou dos especialistas que os discursos pedagógicos enaltecem e a queixa que caracteriza o agente do DH. O campo pedagógico muitas vezes parece tomado por essa bipolaridade de tudo ou nada. Sintoma narcísico que a todos tende a abraçar hoje em dia, como sugere Calligaris (2011).
O que fazemos com "isso"?
Nas últimas décadas, a cultura docente viu-se reconfigurada a partir de representações como as que ficaram condensadas nos significantes-mestres profissional e trabalhador, segundo um percurso paradoxal, no qual essas representações oriundas das lutas docentes se transfiguraram, invertendo inclusive seu valor no preciso momento em que, supunha-se, estava-se a caminho da valorização do professor. Esse percurso, com as representações nele produzidas, com as fantasias que dele resultam, contém "isso" que fossiliza os docentes na posição em que hoje se encontram, guardando também as chaves de uma possível mudança. Toda ação que busque promovê-la, que busque alterar "isso" que corresponde a um determinado sintoma social, com suas especificidades nos diferentes contextos, provavelmente deverá mobilizar essas representações e os significantes que as sustentam, de modo a dar lugar a Outro universo simbólico.
O Outro, enquanto universo simbólico que corresponde ao que é estritamente singular, mas que também concerne ao que é de ordem sociocultural, com seus particulares pontos de ressonância socialmente produzidos (Revah, 2004), é o lugar dos significantes o tesouro dos significantes, como já mencionado estendendo-se do registro inconsciente até as formas de expressão mais explícitas e conscientes. Quando Lacan afirma que o inconsciente é a política, podemos entender que o que está em jogo na política é o Outro, com os significantes que contém e mobiliza, envolvendo o modo como se (re)configura. A política pode então ser pensada como a ação que põe em movimento os discursos, que os faz girar ou que os imobiliza, que faz surgir e sustenta a bipolaridade antes mencionada ou que permite a mudança dos sintomas sociais, possibilitando a reconfiguração disso que os sustenta como último esteio.
No caso da educação escolar, os dispositivos discursivos que mantém e (re)configuram o Outro, aqui entendido como universo simbólico que sobretudo os discursos pedagógicos delimitam, concernem a instâncias diversas. A instituição escola é uma delas. Nela, o Outro é (re)configurado cotidianamente por meio de dispositivos que tendem a perpetuá-lo por meio de determinadas modalidades de funcionamento discursivas. Desses dispositivos discursivos e do que eles permanentemente repõem parece resultar a inércia que é própria da cultura escolar, com os traços diferentes e singulares característicos de cada escola. Daí a importância de ações com os docentes, no caso da formação continuada, que se desenrolem no âmbito da escola onde atuam ou que nela incidam de forma a atingir os dispositivos discursivos que impedem a circulação da palavra a partir de posições outras por parte dos docentes, que não as fixadas por esses dispositivos. Além da implicação subjetiva dos professores, isso supõe que seja de algum modo considerada a dimensão coletiva do trabalho docente tendo em vista a singularidade da instituição em questão, com a dinâmica que a caracteriza, com suas peculiares formas de vínculo. É claro, porém, que não é possível dizer a priori o que é mais fundamental para promover mudanças que façam que a escola brasileira saia do registro ao qual se faz referência quando se fala em fracasso escolar ou baixa qualidade do ensino. A história evidencia, assim como a psicanálise, que o ponto de entrada para promover mudanças significativas capazes de alterar o que é da ordem de um sintoma social não está dado de antemão. As mudanças de peso parecem produzir-se ou desencadear-se no lugar onde surge o inesperado, o qual não significa geração espontânea, mas antes um trabalho que caberia qualificar de político ou micropolítico e que precisa produzir inúmeros traços. Sem a produção desses traços, precedendo-a, qualquer mudança significativa seria difícil de ocorrer ou mesmo improvável. São eles os que sustentam o que é da ordem de uma emergência produzida graças ao efeito retroativo da cadeia significante. Isso corresponde à aposta própria da política, aposta sobre o imponderável disso que emerge e que pode ser parcialmente apreendido e (re)direcionado pelos que melhor lidam com a temporalidade própria do kairós.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
Estrada do Caminho Velho, 333
04021-001 Guarulhos SP Brasil.
revahdaniel@gmail.com
Recebido em agosto/2017.
Aceito em dezembro/2017.
NOTAS
1. Essa sugestão de Lacan pode ser encontrada na versão do Seminário 14, A lógica do fantasma, publicada pelo Centro de Estudos Freudianos de Recife, conforme aponta Ana Costa (2014). A respeito desse ponto, veja também Passone (2014).
2. Sobre o modo como surge a significação, pelo efeito retroativo do corte produzido na cadeia significante, veja-se, em Lacan (1997), o capítulo "O ponto de basta". A esse respeito, veja-se também Revah (2004).
3. Os pontos de ressonância correspondem aos pontos de basta criados com significantes-mestres chamados nesse caso de significantes de ressonância que adquirem ressonância social, definindo por isso a posição de inúmeros sujeitos implicados em determinada rede discursiva. A esse respeito, veja-se Revah (2004).
4. Dizer que o discurso não gira é equivalente a entender que uma determinada forma de circulação da palavra não se modifica, que determinadas posições e funções dos sujeitos estabelecidas no laço social perpetuam-se, assim afetando e estreitando o campo da comunicação e o da significação. Se o discurso "não gira, range", diz Lacan (1998, p. 170), "bem onde as coisas colocam problemas, quer dizer, no nível do posicionamento de algo que se escreve a". O a, nesse caso, concerne ao objeto a um objeto perdido, real, que não cessa de não se escrever, afigurando uma espécie de enigma que perturba o que no laço social tende a se cristalizar. Quando Lacan diz que "há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro" (1996, p. 27), uma forma possível de entender essa afirmação é pensar que o que pode fazer o discurso girar porque opera como enigma na posição de agente, cavando uma falta no laço social não comparece da forma como deveria, como causa do desejo. E aqui vale lembrar que a função de objeto a no DA define o lugar do agente, do analista no caso.
5. No caso do DH, é possível pensar que a interrogação própria da/o histérica/o é a que desencadeia a resposta empreendida do lado do outro. De modo que a maneira como o Outro se (re)configura nunca na verdade é alheia ao laço agente-outro. No DU também seria possível pensar que, de certa maneira, algo da ordem do laço sempre está em jogo na (re)configuração do Outro, mesmo que fundamentalmente se processe de um lado, que nesse caso concerne ao agente/verdade.
6. Essa forma de entender o DU e o DH segue a sugestão de Lacan (1996), que nesses discursos situa o que é da ordem da impotência.