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Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.1 São Paulo ene./abr. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p89-104 

10.11606/issn.1981-1624.v25i1p89-104

DOSSIÊ

 

Vicissitudes das adolescências na semiliberdade: da fragilização dos laços à busca de si

 

Vicisitudes de las adolescencias en la semilibertad: de la fragilización de los lazos en la búsqueda de sí mismo

 

Vicissitudes of adolescences in the semi-freedom socio-educative system: from the weakening of bonds to the search of thyself

 

 

Jacqueline de Oliveira MoreiraI; Bianca Ferreira RodriguesII; Juliana MorgantiIII

IDocente de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horiozonte, MG, Brasil. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br
IIDoutoranda em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: biancaferreira025@gmail.com
IIIMestranda em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: emaildajulianamorganti@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Parte-se de uma pesquisa que investigou como o caso movimenta as equipes das medidas socioeducativas de semiliberdade, para, no presente artigo, deixar-se levar também pelo caso como um fio condutor de análises e reflexões que demonstram as particularidades contidas num contexto generalizado de pobreza e marginalização. Assim, nosso objetivo é o de complementar a literatura existente acerca das medidas socioeducativas apresentando as particularidades das adolescências com que nos deparamos a partir do encontro com os profissionais da semiliberdade. O método empregado pretende produzir uma reflexão de forma a articular as singularidades dos casos com a literatura específica. Estruturou-se o presente artigo em três tópicos: primeiramente, nas adolescências com foco na constituição do eu e do corpo próprio e sua relação com as condutas de risco; em seguida, reflete-se sobre a relação do adolescente com a família, mais especificamente no que se refere ao conflito geracional; e, por fim, pensa-se as dificuldades na transmissão geracional. Concluiu-se que a abordagem do caso-a-caso se faz essencial para a construção de um olhar acerca dos adolescentes em situação de judicialização que vá para além dos esteriótipos e localize ali o sujeito e suas questões.

Palavras chave: adolescência; semiliberdade; psicanálise; adolescente infrator.


RESUMEN

Partimos de una investigación que investigó cómo el caso mueve equipos de medidas socioeducativas de semilibertad, de modo que, en este artículo, también podamos ser tomados por el caso como un hilo común de análisis y reflexiones que demuestran las particularidades contenidas en un contexto de pobreza generalizada y marginación. Nuestro objetivo es complementar la literatura existente sobre medidas socioeducativas, presentando las particularidades de la adolescencia que constatamos en el encuentro con profesionales de semilibertad. El método por utilizar pretende producir una reflexión para articular las singularidades de los casos con la literatura específica. Lo estructuramos en tres tópicos: primero, en las adolescencias con foco en la constitución del yo y del cuerpo propio y su relación con las conductas de riesgo; a continuación, se refleja sobre la relación del adolescente con la familia, más específicamente en lo que se refiere al conflicto generacional; y, por último, se piensa las dificultades en la transmisión generacional. Se concluyó que el abordaje del caso a caso se hace esencial para la construcción de una mirada acerca de los adolescentes en situación de judicialización que vaya más allá de los estereotipos y localice allí al sujeto y sus cuestiones.

Palabras clave: adolescencia; semilibertad; psicoanálisis; adolescente infractor.


ABSTRACT

This paper starts from a research that investigated how the case moves the teams of semi-freedom socio- educative system, in a way that makes it possible, in this article, to be taken by the case as a guiding thread of analyses and reflections that demonstrate the particularities contained in a generalized context of poverty and marginalization. Thus, our goal is to complement the existing literature on socio-educational measures, presenting the particularities of adolescence, which we found by meeting semi-freedom professionals. The method used aims to produce a reflection in order to articulate the singularities of the cases with the specific literature The paper was structured in three topics: first, adolescents with focus on the constitution of the self and of their own bodies, with risky behaviours; then, there is a reflection on the relation of the adolescent with the family, more specifically regarding to the generational conflict; and, finally, the difficulties in generational transmission are thought. We concluded that the case-by-case approach is essential for the construction of a view on the adolescents in a judicial situation, so that it can go beyond the stereotypes and locates the subject and his questions.

Keywords: adolescence; semi-freedom; psychoanalysis; adolescent offender.


 

 

A sociedade convoca os diferentes campos do saber a pensar e intervir nas atuais formas de sofrimento. Entre essas, gostaríamos de destacar a do adolescente infrator, especialmente aquele que se encontra em cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade. Esta, conforme preconiza o ECA em seu art. 120, é assim descrita: "O regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início, ou como forma de transição para o meio aberto, possibilitada a realização de atividades externas, independentemente de autorização judicial" (Lei n. 8.069, 1990, p. 100). Ou seja, a semiliberdade enfatiza o encontro regrado do adolescente com a liberdade por meio do acompanhamento de suas visitas familiares, sua inclusão na escola, nos cursos e o fortalecimento dos vínculos comunitários. Do lado da instituição, está a responsabilidade de propor uma rotina institucional adequada ao cumprimento de uma medida judicial e ofertar novas possibilidades ao adolescente. Do lado do adolescente, cabe a decisão por cumprir a medida, consentindo com a obrigação imposta pela lei de estudar e realizar cursos profissionalizantes e a responsabilidade de cumprir a rotina individual e coletiva previstas.

O campo Psi é chamado a pensar e intervir nesse contexto, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 (Lei n. 8.069, 1990). De lá para cá, a psicologia tem tentado produzir reflexões teóricas sobre as temáticas da violência, da criminalidade e da segurança pública em relação ao adolescente em situação de vulnerabilidade e envolvidos com a criminalidade. Podemos citar a revisão crítica de literatura de Moreira, Guerra e Drawin (2017), que realizaram "uma meta-análise dos artigos publicados sobre adolescência e medidas socioeducativas, no campo da psicologia, entre os anos de 2000 e 2012" (p.1). Concluindo que

a produção nacional pode ser reunida em três grandes categorias: (a) prático-experiencial, que apresenta relatos analíticos da prática na aplicação das medidas socioeducativas, privilegiando a experiência concreta; (b) político-institucional, que discute criticamente a dimensão política da lógica socioeducativa, detendo-se na análise estrutural de sua legislação e de suas instituições; (c) sociocultural, que analisa os determinantes sociais e psíquicos do fenômeno da violência juvenil (Moreira et al., 2017, p. 1).

Com o intuito de contribuir para o diálogo entre o saber Psi e as medidas socioeducativas, e se localizando numa perspectiva prático-experiencial, foi realizada a pesquisa "Impasses e perspectivas das intervenções realizadas na semiliberdade junto aos adolescentes autores de ato infracional: uma leitura através da construção interdisciplinar de caso na perspectiva da psicanálise", financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Edital Universal da Fundação de Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), aprovada pelo comitê de ética responsável.

Tal pesquisa teve como objetivo investigar os impasses e as perspectivas das intervenções realizadas na semiliberdade junto aos adolescentes autores de ato infracional. Ou seja, buscou- se refletir sobre os possíveis conflitos e saídas inerentes à condução de um caso. Para tanto, foi realizado um acompanhamento das movimentações das equipes interdisciplinares nas casas de semiliberdade na condução de um caso, através da escuta dos relatos dos profissionais e de trechos de encontros desses com os adolescentes gravados em áudio.

Nossa proposta foi orientada pela lógica da singularidade do caso clínico, ou seja, defendendo o compartilhamento e a escuta do caso como dispositivo que produz as movimentações na equipe. Destacamos o trabalho com a escuta, pois, como nos ensina o pensamento freudiano, ela nos coloca diante da possibilidade da construção de intervenções. A sustentação teórica foi pensada a partir da perspectiva psicanalítica e a metodologia inspirada pelo trabalho de Teixeira (2010) junto aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) de Belo Horizonte. Teixeira afirma o sujeito, no caso a história do jovem, "ao vir à luz, na construção singular de um caso clínico, produz uma torção subjetiva na equipe que o acompanha, dando ao caso uma percepção inédita, assim como uma consequente mudança em sua condução." (Teixeira, 2010, p. 34).

Portanto, o método dessa pesquisa foi "eminentemente prático, baseado na discussão exaustiva dos casos" (Teixeira, 2010, p. 25). Isto é, além de seguirmos o preceito freudiano que propõe a psicanálise como uma forma de investigação e de intervenção integradas, pensamos o sujeito do caso "como vetor de orientação a ser utilizado nos trabalhos da equipe" (Teixeira, 2010, p. 24). Com isso, possibilitamos um esvaziamento dos saberes pré-estabelecidos e permitimos a circulação de saberes a partir da posição dos diversos atores. Um olhar exterior pode oferecer uma nova perspectiva e a psicanálise nos permite um direcionamento singular ao caso e às suas particularidades.

O encontro semanal com essas equipes nos possibilitou a escuta de casos desses adolescentes, o que nos motivou a produzir uma reflexão que articulasse as particularidades dos casos com a literatura específica sobre o tema da adolescência afirmando, pois, que se trata de uma experiência plural, sobretudo, no que se refere à experiência adolescente em uma situação judicializada. Sabemos que o perfil atendido pelo Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA) de Belo Horizonte é de jovens pardos e pretos do sexo masculino, com idade entre 14 e 17 anos, e escolaridade entre o sexto e oitavo ano do Ensino Fundamental (Belo Horizonte, 2013). No caso, nos interessam aqueles que respondem pela medida de semiliberdade.

Nosso objetivo com a pesquisa foi trabalhar com as equipes a construção e desenvolvimento do caso. Entretanto, esse artigo, não se dedica a apresentar as movimentações da equipe. Pretendemos, aqui, deixar que o caso movimente nossas reflexões ao apresentar alguns jovens em suas singularidades e na articulação possível com a teoria, considerando que, na maioria das vezes, esses adolescentes são representados no conjunto e não nas particularidades de suas histórias. Para tanto, utilizaremos os relatos dos casos e os momentos registrados na forma de gravação de áudios, apresentados nas reuniões de equipe das casas de semiliberdade, observando-se todos os requisitos éticos de pesquisa, principalmente o emprego de nomes fictícios e a não divulgação de quaisquer informações que possam identificar os participantes. Em outras palavras, nosso objetivo é o de complementar a literatura existente acerca das medidas socioeducativas, em especial da semiliberdade, apresentando as particularidades das adolescências com que nos deparamos a partir do encontro com os profissionais que atuam nesses espaços. O método empregado pretende produzir uma reflexão de forma a articular as singularidades dos casos com a literatura específica. Ou seja, não se pretende uma análise estritamente psicanalítica, como se vê nos estudos de caso nos moldes da clínica individual clássica, mas a construção de uma reflexão que seja conduzida pelo caso, a exemplo das movimentações das equipes.

Além disso, é importante salientar que nosso acesso aos casos foi mediado pelas equipes visitadas, que os escolhiam de acordo com o que parecia lhes representar um desafio, uma vez que esse era o objetivo inicial da pesquisa. Isso nos permitiu uma escuta dos casos no a posteriori, condição na qual pudemos analisar as vicissitudes das movimentações dos jovens e, sobretudo, algumas de suas questões singulares que não podem ser esquecidas, ainda que inseridas num contexto marcadamente segregatício e racista.

Sabemos que nossos jovens se assemelham a tantos outros no Brasil, como por exemplo, aos jovens descritos por Warpechowski e De Conti (2018) que falam

de sujeitos com histórias de vida marcadas por muitas perdas, tanto afetivas como materiais. Crianças e adolescentes que crescem sem conhecer sua história, que circulam por várias famílias ou equipamentos de abrigagem, que sofrem situações de miséria, abandono, violência de várias ordens (familiar, de Estado), que habitam territórios e zonas irregulares e de risco, em moradias precárias, que ficam desatendidos em suas necessidades básicas (saneamento, energia, saúde, educação, trabalho). (Warpechowski & De Conti, 2018, p. 324).

Seguindo a trilha das autoras, interessa-nos apresentar a expressão da infância e da adolescência de alguns jovens com problemas, articulando suas histórias de vida com a psicanálise e outros saberes. Consideramos que os modos de construção da adolescência em situação de semiliberdade remetem a traços específicos desse contexto, que não podem ser desconsiderados, mas gostaríamos aqui de destacar como cada sujeito se constitui como uma célula de singularidade, a partir da desconstrução do coletivo que a análise do caso nos permite. Existem diversas concepções de adolescência na psicologia. Trabalhamos, assim como Moreira, Rosário e Santos (2011), com uma perspectiva "que considera que as transformações corporais advindas com a puberdade, juntamente com as significações sociais que tais mudanças comportam, incidem em um determinado modo de ser sujeito" (p.458). Em outras palavras, estamos às voltas com a busca pela singularidade, por um adolescente que precisa trabalhar para elaborar sua determinação histórica e retirar dela suas consequências (Alberti, 2009). Assim, podemos dizer que abrimos mão de uma única concepção de adolescência, considerando-se que ela não é completa, fechada em si mesma. Uma teorização universal pode submeter o campo da singularidade a equívocos que nos afastam dos sujeitos, por isso a importância de se ressaltar que estamos diante de um fenômeno plural:

[...] certamente a juventude não é um una, ela é múltipla, a semelhança da população adulta. Nessa esfera, não existe um arquétipo, mas, sobretudo, jovens marcados por sexo, classe social, local onde vivem, sua origem e a de seus pais, sua história pessoal, a situação relacional em que se situam (Le Breton, 2002/2009, p. 32).

Diante disso, buscaremos destacar como cada um desses jovens vivem a sua adolescência, mas sem esquecer que estamos às voltas com jovens pobres, negros, de periferia e envolvidos com a criminalidade. A riqueza do material encontrado e a escassez de trabalhos acadêmicos em psicologia na área da semiliberdade, especialmente daqueles que tratam dos aspectos particulares de cada subjetividade, justificam nossa empreitada e nos motivam a continuar investigando.

Assim, estruturamos o presente artigo em três tópicos que explicitam o percurso de nossas reflexões, pensando primeiramente nas adolescências com foco na constituição do eu e do corpo próprio a partir do corte com a posição infantil e sua relação com as condutas de risco, em seguida nos debruçamos sobre a relação do adolescente com a presença ou a ausência do pai, mais especificamente no que se refere ao conflito geracional e, por fim, pensamos as dificuldades na transmissão geracional.

 

Adolescências: constituição do eu, do corpo próprio e sua relação com as condutas de risco

A palavra adolescência tem sua origem etimológica no Latim ad (para) + olescere (crescer). Segundo Matheus (2008)

adolescência é um termo que, em sua versão latina (adulescentia), já era utilizado desde os idos tempos do Império Romano, nos séculos I e II, a fim de descrever e delimitar um período específico na vida dos cidadãos, conforme previa a rígida hierarquia patriarcal (p. 617).

Assim, o surgimento da palavra não coincide com o aparecimento do conceito de adolescência como uma fase do desenvolvimento humano que se situa entre a infância e a vida adulta. Para Ariès (1960/1978), pensar a adolescência como fase entre dois marcos pode ser tributado ao modelo de racionalidade do final do século XIX. Acreditamos que o texto kantiano, Resposta à pergunta: o que é esclarecimento, nos oferece subsídios para entender o modelo de racionalidade mencionado por Ariès. Nesse texto, Kant (1783/2009) revela que para o homem sair da minoridade e alcançar a maioridade faz-se necessário fazer uso pleno da razão. A minoridade é definida como "a incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem direção alheia" (Kant, 1783/2009, p.407). Nesse sentido, a maioridade exige liberdade responsável e autonomia no uso da razão. Servir de seu entendimento sem tutela. A adolescência seria esse momento de transição da heteronomia para a autonomia. Segundo Rosário (2010),

no primeiro momento, o sujeito está submetido às normas do outro, dos pais, dos adultos. À medida que vai crescendo, deverá conquistar, ainda que de forma lenta, a autonomia, entendida como suas próprias normas (p. 73).

Assim, a passagem para a autonomia se articula com a presença do outro. Segundo Elia (1995) "o corpo só poderá ser pensando pulsionalmente como corpo-efeito do investimento libidinal" (p. 96). Todavia, ainda quando crianças, alguns adolescentes envolvidos com a criminalidade constituem seus corpos, sua identidade, no centro de relações fragilizadas. Como apontam Gomes e Pereira (2005), "para a família pobre, marcada pela fome e pela miséria, a casa representa um espaço de privação, de instabilidade e de esgarçamento dos laços afetivos e de solidariedade" (p. 359). Ou seja, podemos dizer que o nosso corpo, a nossa carne, é constituído principalmente no núcleo familiar, mas este se relaciona com o contexto social no qual está inserido, seguindo uma lógica moebiana, não sendo possível identificar qualquer tipo supremacia entre tais dimensões. Dessa forma, os desenhos inscritos no corpo por este Outro parental serão persistentes e marcados por um "estado de privação de direitos que atinge a todos de forma muito profunda, à medida que produz a banalização de sentimentos, dos afetos e dos vínculos" (Gomes & Pereira, 2005, p. 360).

Para Freud (1923/1976), o corpo aparece como uma condição de possibilidade da identidade. O autor revela: "o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (Freud, 1923/1976, p.41). O próprio corpo é um fator que possibilita a distinção entre id e eu e a diferenciação dos estímulos externos e internos, portanto, se trata da separação da realidade externa através da percepção de uma identidade. Assim, podemos pensar em uma codependência entre o corpo e o sistema perceptivo, pois o último possibilita a delimitação do primeiro, mas sem o corpo o sistema perceptivo não teria espaço para atuação qualitativa.

Como destaca Campos (2007) "na constituição do eu, ao lado da diferenciação do isso, é de suma importância o papel das identificações" (p.63). Ou seja, a relação com o outro próximo é fundamental para constituição de um corpo, de um eu. Assim, perguntamos: é possível inscrever novas experiências nesses corpos jovens que possibilitem construir nova relação com seu eu, corpo, e com o mundo?

Acreditamos que uma resposta categórica para essa pergunta não seja possível, mas apostamos que todos podem se organizar em torno de referências seguras. De qualquer forma, a puberdade anuncia de dentro do corpo, uma mudança. Podemos dizer metaforicamente que esse corpo se arrebenta e esses adolescentes que se encontram em situações de fragilidade relacional tornam literal a ação de oferecer seu corpo para situações de arrebatamento. Consideramos que as condições em que foram realizados os primeiros investimentos libidinais para constituição de corpo são decisivas para esse momento de enfrentamento com o real. Quais são as marcas, peculiaridades das trajetórias de narcização possíveis para estes jovens negros, pobres e de periferia?

As vicissitudes das histórias de narcização se tornam decisivas quando o sujeito é convocado pela puberdade para rever sua posição no mundo e no laço social. Segundo Le Breton (2002/2009), a juventude é um tempo de experimentação e liberdade, abrindo espaço para a aparição de condutas de riscos. Por vezes, podemos dizer de transgressões mínimas, como sair do ônibus sem pagar. Em outros casos, condutas que podem ser enquadradas como ato infracional e, ainda, outras que colocam em risco a vida. Parece-nos interessante enfatizar que as condutas de risco são comuns na adolescência, mas determinados enquadres as criminalizarão.

Podemos citar o caso de Denis, O Pimentinha, que jogou um balão de água do segundo andar da escola e, por acidente, molhou o diretor. A escola acionou a Guarda Municipal e o adolescente foi encaminhado para o CIA/BH. Em situação similar, uma adolescente de classe média alta colocou uma bomba caseira no banheiro de uma escola da região nobre da cidade. A direção aplicou uma advertência e suspensão de dois dias para a adolescente. No primeiro caso, parece-nos que ocorreu uma criminalização de uma conduta de risco, provavelmente, porque partiu de um jovem pobre e negro, recorte social que, de acordo com o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2016), carrega o estigma dessa criminalização. Entretanto, não podemos desconsiderar que algumas condutas de risco incorram realmente em atos infracionais. O caso de Patrick é um exemplo disso e revela também as dificuldades do adolescente em realizar a passagem da infância para vida adulta.

Patrick, nome fictício baseado no personagem do desenho animado Bob Esponja Calça Quadrada, suscita na equipe da casa de semiliberdade um sentimento de preguiça, na medida em que fala e se comporta, na relação com os adultos, de maneira infantil, tal qual o personagem do desenho animado. A equipe não percebeu essa estratégia no início da relação, uma vez que o jovem se define como vítima das situações, posição afirmada e sustentada no discurso materno. O jovem vem de uma outra casa de semiliberdade, na qual produziu uma situação de agressão com uma agente de segurança. Na narrativa de Patrick, sua posição foi de autodefesa, mas a direção da casa atual consulta a outra semiliberdade e descobre que o adolescente teve um papel ativo na agressão. A mãe culpabiliza os técnicos da antiga casa de semiliberdade, ação que ela repete com a casa atual.

Parece existir uma distância entre o Patrick dos atos e o Patrick do discurso da mãe e de suas próprias narrativas. Um episódio ilustra essa distância: Patrick agride um adolescente da antiga casa de semiliberdade, na escola, mas não comenta o acontecimento com a equipe ou com a mãe. No entanto, o adolescente agredido faz um boletim de ocorrência. Patrick, quando descoberto, diz para a mãe que o boletim foi feito pela equipe da casa atual, colocando-a no campo da desconfiança para a mãe. A equipe decide intervir, convocando a mãe e apresentando os relatórios das comissões e comportamentos de Patrick. Essa ação parece funcionar como uma separação da relação alienada e alienante que mãe e filho estabelecem. Isso, a partir do questionamento da mãe quanto ao real posicionamento do filho nas relações que estabelece.

No caso de Patrick, parece-nos decisivo um corte na sua relação com a mãe no que tange à sustentação do lugar infantil de vítima. A equipe aposta na possibilidade de Patrick assumir uma posição mais amadurecida com o outro adulto. É interessante mencionar que dois dos atos infracionais de Patrick são: pegar o carro da professora para ficar correndo na rua da escola e, em outro momento, pegar uma moto para "dar um rolê". Parece que os atos, além de revelar uma atitude de busca infantil de curtir a vida, também oferecem visibilidade, sobretudo para o olhar materno, já que o paterno se apresenta como um estrangeiro, aquele que foi para fora do país e agora reside em outra cidade. Pensamos, no caso de Patrick, que é fundamental o corte da sua posição infantil em relação à mãe no processo de construção de uma posição mais madura.

De acordo com Le Breton (2002/2009), as condutas de risco mais comuns na adolescência se apresentam como uma restauração narcísica. Na concepção do autor, o perigo e o desafio constituintes da conduta de risco possibilitam a construção de "uma imagem melhor de si mesmo, construir uma identidade para si, expulsar para o mais longe possível o medo da insignificância" (Le Breton, 2002/2009, p. 41). Vemos no caso de Patrick justamente esse medo da insignificância, não obstante exista um grande investimento libidinal de sua mãe, o que faz com que suas condutas de risco não caracterizem um lançar-se à morte. Poderíamos, então, levantar a hipótese de uma articulação entre a radicalidade das condutas de riscos e a precariedade do campo de investimento libidinal na constituição do eu?

O que pudemos perceber, a partir da articulação dos fragmentos de vida e das teorias que dizem respeito às características da adolescência, sobretudo as descritas por Le Breton, é que condutas de risco são próprias desse período, mas nos casos dos adolescentes em vulnerabilidade e/ou moradores de periferias urbanas aqui apresentados, frequentemente são criminalizadas. Nas análises dos casos, localizamos a articulação entre a radicalidade das condutas e a precariedade do investimento, vindo do campo do outro. Questão que será melhor abordada no item seguinte, especialmente no que se refere ao investimento paterno.

 

Os adolescentes e seus pais: como romper com uma autoridade parental fragilizada?

A figura paterna aparece como ponto fundamental para se pensar a precariedade do investimento libidinal e sua relação com as condutas de risco dos jovens. Na escuta das narrativas em supervisões, constatamos que a ausência do pai concreto é recorrente e frequentemente configura ponto de enlace do jovem com a criminalidade. Pudemos perceber que, em alguns casos, a ausência concreta do pai produz um efeito de imaginarização deste como herói-bandido. Sabemos com Vorcaro, Mazzini e Monteiro (2008), que é fundamental distinguir a ausência do pai concreto e a falha na inscrição do nome do pai. Não é possível afirmar que a ausência do pai concreto seja o fator causa da violência entre os adolescentes, porque cada sujeito se posiciona de uma forma singular frente aos acontecimentos da vida. As autoras revelam:

A relação dos indivíduos com os seus pais, durante a infância, fornece a estrutura das outras relações que serão estabelecidas ao longo da vida. Entretanto, conforme descreve Lacan (1995) em "As relações de objeto", a construção das funções materna e paterna, bem como o efeito destas, não equivale às pessoas que as encarnam, mas refere-se ao que foi transmitido ao sujeito em constituição como ideais referenciais dessas funções. A ausência da figura concreta do pai certamente implicará uma especificidade para a vida dos sujeitos. Isso é sabido e inquestionável. A questão é saber se tal especificidade determinará o cometimento de atos infracionais durante fases posteriores da vida (Vorcaro et al., 2008, p. 136).

Assim, nos interessa destacar as relações de alguns adolescentes em situação de medida socioeducativa de semiliberdade com a ausência ou presença do pai concreto em suas histórias de vida. Vamos citar, primeiramente, o caso de Michael Corleone, jovem de 15 anos que se apresenta como um poderoso chefão da venda de drogas, em similaridade ao personagem da trilogia de Copolla, que herda de seu pai um império da criminalidade. A equipe da casa de semiliberdade revela que tal ideia é uma fantasia do adolescente, pois ele localiza a criminalidade como um espaço fascinante, considerando que o pai e o irmão mais velho eram envolvidos com o crime e foram assassinados. Como poetiza o conjunto Legião Urbana: "Quando criança só pensava em ser bandido / Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu".

Nosso jovem Corleone apresenta um ponto de identificação com o pai morto e deseja ocupar o mesmo lugar dentro da criminalidade. Na narrativa do adolescente, o pai cumpriu 28 anos de prisão e ele, Michael, teria sido concebido naquele local. Porém, na época do nascimento, o pai teria passado alguns dias no hospital com o filho recém-nascido porque a criança nasceu com problemas de saúde. Não podemos determinar os pontos de ficção dessa narrativa, mas compreendemos que ela remete a certa fixação de Michael na imagem do pai morto.

Soma-se a essa narrativa de um pai implicado, os movimentos explícitos de descrença da mãe em relação ao filho. A mãe não acredita no filho e nem nos efeitos da medida socioeducativa na construção de uma nova posição de vida. Ela anuncia que não confia em Michael nem para portar sua própria carteira de identidade. Não podemos deixar de pensar sobre o conteúdo latente da afirmação materna: "eu preferia deixá-lo sem identidade". Parece- nos que o que resta para Michael são as fantasias do amor de um pai morto e, portanto, um projeto de ser como o pai idealizado. Michael não foi alfabetizado, fato que revela a ausência do amparo das grandes instituições na garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.

Souza e Costa (2013) anunciam que "as famílias estão abrindo mão da socialização das crianças cada vez mais cedo, não tendo a sociedade ainda desenvolvido fontes extrafamiliares adequadas de socialização e apoio" (p.281). As autoras ainda nos apresentam a ideia de filho parental para compreender o lugar que alguns desses adolescentes ocupam na estrutura familiar. Estes jovens desempenham diferentes papéis ao lado da mãe, de provedores, de protetores. Papéis que deveriam ser de adultos.

Esses casos nos levam a indagar a possibilidade de uma crise com a autoridade parental, e como tal se daria, considerando-se o texto freudiano (Freud, 1909[1908]/1996), ainda que seja possível compreender o ato infracional, dentre outras coisas, como uma reação contra autoridades. Como fragmento de cotidiano, podemos citar a fala de um jovem ao se referir à visita do pai na socioeducação, quando o pai chega alcoolizado. O adolescente revela: "Meu pai é um pai com aço; é um palhaço". O pequeno chiste denuncia a fragilidade da imagem da figura parental para o filho. Tradicionalmente, os palhaços representam um humor infantil, mas não a ideia de autoridade. Segundo Le Breton (2002/2009), o jovem se encontra "estimulado pela indeterminação real do mundo circundante e pela incapacidade da família para assumir o papel de contenção, e, assim, a confusão adolescente prolonga-se e transmuda mais profundamente em crise da juventude" (p. 35).

Sobre os efeitos da ausência da figura paterna na vida desses adolescentes podemos citar os casos de Douglas (17 anos) e Leandro (15 anos), nomes fictícios, escolhidos pelas pesquisadoras a partir dos pseudônimos que eles próprios escolheram para se identificar. Cabe ressaltar que Douglas escolheu um nome que se refere ao falecido pai e Leandro o nome do filho que vai nascer. A escolha de Douglas nos remete a uma busca do pai perdido e Leandro parece apostar na paternidade, ao mesmo tempo que mantém uma identificação com o lugar de filho - pai e filho da própria esperança. Douglas, órfão de pai e mãe, se vê envolvido com a criminalidade após a morte de seu progenitor: "Eu tinha dois ... eu nem lembro dela [mãe] não ... eu era novo. Meu pai eu lembro, gostava... nó ... meu pai morreu eu tinha quatorze ... aí eu comecei a me envolver nos quatorze ... Eu comecei a fumar, cheirar, a vender."

O próprio adolescente destaca que a perda foi um marco para sua entrada no mundo do crime, mesmo não imprimindo a ela todo o crédito para seu envolvimento com o tráfico:

Aí depois que meu pai faleceu eu cabei conhecendo umas más amizades né... Mas eu não fui com eles não... a gente tem escolha e faz o que a gente quer... Aí eu acabei escolhendo a oportunidade errada né...

Leandro, por sua vez, também destaca a perda e nos permite inferir que essa perda seja um determinante psíquico para seu enlaçamento com a criminalidade:

É... mas eu também... já vi muita coisa... Minha vó... vi meu vô morrendo... eu presenciei na hora que ele morreu. Ela tava de diabetes, tava com o toquinho da perna só... aí, foi lá, ele tava diabético, não tava muito bom não, tava muito grave... aí, tipo que ele tinha me dado um abraço e um beijo, falou "eu vou tirar um cochilo aqui, meu filho... com Deus" e eu "com Deus também", eu dormi e ele assim... quando eu acordei tinha aquele tanto de enfermeiro assim, em casa... "aí, não fica triste não", eu "o que que ta acontecendo?"... "seu avô morreu"... eu tinha uns 6 anos... aí eu fiquei pá... eu nem sabia o que era isso não... aí no velório lá, todo mundo chorando, bem chorando e eu sem saber o que era direito... quando eu fiz meus 10 anos é que eu fui entender o que que aconteceu com ele... meu vô morreu. [...] com uns 7 anos eu já tava vendo arma, com meu irmão roubando... aí com 11 anos eu fui lá e envolvi.

É importante assinalar que Douglas faz uma reflexão sobre seu papel na escolha do mundo do crime, enquanto Leandro parece ser arrebatado para essa vida em função de seus relacionamentos sociais (amizades, familiares).

Temos, ainda, o caso de Lyon, jovem de 15 anos que fala francês por ter morado três anos em um país francófono. Ele não encontra ressonância no desejo materno e luta para encontrar um pai como referência simbólica que lhe ofereça um lugar de pertencimento. O jovem tem dois irmãos adultos que apresentam histórico de envolvimento com a criminalidade. O mais velho já cumpriu medida socioeducativa e sentença e o outro ainda responde usando tornozeleira eletrônica. Cada um tem um pai diferente, mas o pai no registro de Lyon é o mesmo de seu irmão que está com a tornozeleira. Lyon demanda a mudança do registro para o nome do pai biológico. Parece-nos que esse é um pedido que revela um desejo de pertencimento a uma cena familiar específica.

A mãe e o pai de Lyon viveram juntos até os seus seis anos de idade, depois, dos 6 aos 10 anos, a criança viveu com os avós paternos, pois a mãe se mudou para um país de língua francesa. Os avós se queixaram do comportamento do menino e ele foi enviado para ficar com a mãe, onde viveu dos 10 aos 14 anos. Quando regressa, sozinho, para o Brasil é acolhido pelo irmão mais velho, mas este é preso e o adolescente se encontra só. Nesse momento se inicia a sua vinculação com a delinquência e a prática de atos infracionais. Depois de um ano, a mãe retorna do estrangeiro para assinar o termo de responsabilidade legal junto ao Estado e à medida de semiliberdade. A mãe não apresenta disponibilidade para estar com Lyon e o jovem revela que os três anos fora do país foram marcados por solidão e uso de drogas.

O adolescente parece não se apropriar dos benefícios que a estadia no exterior ofereceu como, por exemplo, a habilidade com a língua francesa. Pensamos que o embaraço familiar de Lyon não se localiza mais na expectativa do acolhimento da mãe, mas sim naquela de poder se sentir vinculado a um pai. Nosso jovem francófono percebe-se sem pai, nem mãe. Assim, seus atos infracionais nos remetem a um pedido de ordenação do mundo adulto. Neste sentido, consideramos delicada a ideia de que todo adolescente se movimenta na direção da ruptura com a autoridade parental, como proposto por Freud (1909[1908]/1996), pois os casos aqui apresentados demonstram uma relação diferente com essa autoridade, que dificilmente se esgota nos moldes sociais tradicionais.

O tema da crise em relação às autoridades parentais se relaciona, sobretudo, à questão da autonomia nas reflexões sobre adolescência. Lacadeè (2011), reconstruindo Freud, revela que "ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso de seu desenvolvimento" (p. 262). Mas, para se libertar da autoridade dos pais, é necessário ter pais que ocupem essa posição. Não podemos afirmar que todo adolescente se encontra em uma relação parental desse tipo. Os casos analisados nos apresentam a sujeitos que são lançados ao mundo, ainda na primeira infância, sem o investimento libidinal de autoridades parentais, o que gera uma ausência ou insuficiência de cuidados.

Sobre essa questão da ausência ou fragilidade da autoridade parental, Le Breton (2002/2009) denuncia dois problemas: o primeiro se refere ao movimento de alguns pais na direção de "se tornar camaradas dos filhos" (p.34) dificultando, pois, a travessia da adolescência; e o segundo, apresenta dados de uma pesquisa francesa de 1998 sobre adolescentes sob a responsabilidade da Protection Judiciaire de la Jeunesse. Segundo o autor, no caso desses adolescentes, a fragilidade da posição paterna é comum: "O pai, ou quem o substitui, pode ser, quando muito, um bom companheiro, se não está totalmente ausente, mas é incapaz de se posicionar como mais velho e como educador" (Le Breton, 2002/2009, p. 38).

No Brasil a situação não é diferente e ainda temos o agravante de nos depararmos com casos nos quais os familiares dependem financeiramente do adolescente. Souza e Costa (2013), a partir da perspectiva da teoria sistêmica, nos apresentam um estudo sobre "os significados que as famílias de adolescentes privados de liberdade atribuem à medida socioeducativa de internação" (p.277). Os adolescentes estudados são vítimas de violência no seio familiar e apresentam uma situação de pobreza e vulnerabilidade social, predominando a configuração na qual a mãe é quem exerce a chefia familiar. As autoras revelam que, em todas as famílias estudadas, há um envolvimento de algum membro com a criminalidade (pai, tio, irmão e outros). Assim, não podemos deixar de considerar a importância para esses jovens do contato com a criminalidade no interior da família, da ausência paterna e da marginalização social.

Considerando, especificamente, a ausência paterna no processo de inserção dos jovens na criminalidade, podemos ainda dizer da cena na qual, apesar de não representarem figuras de autoridade, o adolescente alça os pais a essa posição para que possa destituí-los posteriormente. Como afirma Lacadée (2011), a adolescência introduz um "furo na consistência do Outro parental" (p. 254). Sabemos que na experiência cotidiana desses sujeitos a figura paterna costuma não se apresentar de forma consistente, mas a criança pode atribuir a esse Outro parental certa densidade, que a adolescência se valerá de ferramentas para furar.

Assim, podemos concluir, com base nos fragmentos analisados, que a ideia de que a adolescência constitui um movimento de ruptura com as autoridades parentais pode ser repensada, a partir de situações nas quais nos deparamos com a vacância dessas posições. Ou seja, precisamos considerar outros delineamentos de relação e de enlaçamento com o Outro parental, que contemplem circunstâncias distantes daquelas protagonizadas por famílias constituídas e vividas mais tradicionalmente, incluindo aí suas formas de transmissão.

 

Dificuldade das famílias na transmissão de vida

Sabemos que a presença do outro é condição de possibilidade da constituição do eu e a qualidade dessa presença produz marcas nesse eu. Como revela Birman (1996):

[...] o sujeito em psicanálise seria marcado pela alteridade, marca constitutiva do seu ser [...]. Se o sujeito se constitui pela costura entre o corpo pulsional e o Outro, num movimento sempre recomeçado e insistente, ele é atravessado pela alteridade (p. 62).

O eu estabelece para si um ideal inspirado na perfeição do eu infantil. Segundo Freud (1914/1990), o ideal do eu é um modelo exemplar da relação do homem com sua vida libidinal: "O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal" (p. 111).

Dessa forma, no âmago do eu vive o outro. O eu é constituído na relação com o outro sendo que essa alteridade habita seu o cerne eternamente. O eu carrega no seu corpo e psiquismo as marcas indeléveis da relação com o outro. Assim, podemos afirmar que os adolescentes aqui apresentados carregam as marcas das relações com seus outros parentais. Famílias marcadas pela pobreza e com embaraço no processo de transmissão de uma herança cultural que poderia oferecer contornos identitários e, assim, abrir a possibilidade de uma nova inserção para os filhos. O tema da quebra da transmissão de uma herança cultural parece-nos decisivo para a compreensão de uma espécie de desenraizamento que lança o jovem em um vácuo sem referências identificatórias que possibilitariam a construção de uma imagem narcísica valorativa de si; o que perpetua, pois, a situação de pobreza e de exclusão.

Sabemos que algumas famílias encontram dificuldades para efetivar o processo de transmissão de uma herança cultural e que, algumas vezes, a herança deixada é a vida vinculada à criminalidade, como no caso de Henrique (14 anos). Esse jovem se apresenta como um herdeiro de um ponto de venda de drogas, sendo seu pseudônimo a marca da herança e da nobreza do comando do ponto. Sua mãe gerenciava um ponto de venda de drogas no hipercentro da cidade, ao qual abandonou devido ao uso de drogas, passando a morar na rua. A filha herda o ponto, mas por cause de dívidas com o narcotráfico é assassinada. Henrique, então, herda o ponto de venda de drogas. O jovem estava sob os cuidados da tia paterna, mas o garoto vive um tempo nas ruas, especificamente, nas mediações do ponto da família, vendendo e consumindo drogas na época do gerenciamento da irmã. O pai é funcionário da Superintendência de Limpeza Urbana e oferece para o filho alguns benefícios, como plano de saúde, mas é alcoolista. Henrique se encontra sob sua própria gerência, não recebe uma herança cultural para se organizar no mundo, apenas uma herança de marginalização.

Le Breton (2002/2009) nos oferece uma reflexão sobre os efeitos maléficos da fragilização da transmissão de heranças culturais sobre a relação das jovens gerações com a vida. Segundo o autor, não somos mais uma sociedade de herdeiros:

A fragmentação atual dos sistemas simbólicos, sua precariedade quando se reconstroem, torna difícil a transmissão às jovens gerações das balizas suscetíveis de alicerçar, cultural e socialmente, o sentimento pessoal de seu valor próprio como indivíduos. Não há ritual ou evidência social que venha garantir ao jovem, nesse momento de sua história individual, que sua existência tem um significado e valor (Le Breton, 2002/2009, p. 36).

Aqui, nos parece possível matizar a posição do antropólogo a partir da psicanálise que trabalha com a ideia de que o sujeito e o outro se articulam no e pelo laço social, seguindo uma lógica moebiana. Assim, não seria possível identificar uma supremacia ou hierarquização destas dimensões. Não tecemos tais considerações para dizer que a criminalidade seja apenas frutos de escolhas e traumas pessoais, pois não nos furtamos em considerar o contexto social desses jovens, tão caro a nossa análise. Nossa intenção é a de contribuir com a apresentação das particularidades de cada história que emerge nesse contexto de desvantagens, conforme foi possível constatar em nosso trabalho de escuta. A partir disso, apostamos que o caso-a-caso nos dê elementos para olharmos novamente para o todo social com mais amplas perspectivas.

Assim, o que assistimos na atualidade é um movimento de inserção desses adolescentes em uma criminalidade violenta que em um logica paradoxal os mata. Segundo Le Breton (2002/2009), "a conduta de risco atesta o enfrentamento com mundo cuja aposta não é morrer, mas viver mais" (p.32). O autor acrescenta que o projeto com a conduta de risco é de "nascer de si mesmo dentro do sofrimento e assim alcançar finalmente um significado desse mesmo que permita retomar o controle da própria vida" (Le Breton, 2002/2009, p. 33). Nesse sentido, acreditamos que, apesar do alto índice de morte entre esses sujeitos, a inserção na criminalidade não representa um movimento de lançar seus corpos à morte, mas de "interrogar simbolicamente a morte para saber se vale a pena viver" (Le Breton, 2002/2009, p.33).

Le Breton (2002/2009) nos oferece uma brilhante análise sobre as condutas de riscos entre jovens, acreditamos que algumas das ideias por ele anunciadas se revelam como excelentes possibilidades de compreensão da movimentação de vida de jovens pobres, negros e da periferia brasileira, que produz, como consequência, suas mortes. Colocar-se em risco, ou colocar sua vida em risco, é experimentar o sentimento de sua necessidade pessoal, do valor e do sentido de sua vida. O autor ressalta que a casuística para essa ação é complexa e pode se relacionar com diversos fatores:

os motivos para pôr em perigo a própria vida a fim de existir são inúmeros e misturados, apenas a história pessoal do jovem é suscetível de esclarecer o sentido de sua passagem ao ato, uma vez que o outro, vivendo situação semelhante, parece estar satisfeito com ela ou assume condutas diferentes. A conduta de risco tem sua origem no abandono, na indiferença familiar, mas também, ao contrário, na superproteção (Le Breton, 2002/2009, p. 40).

Desafiar a morte aguça o sentimento de liberdade e cria a ilusão de que ela está na esfera do seu poder. Soma-se ao ganho de desafiar a morte e construir uma imagem engrandecida, o efeito de tal ação no olhar do outro. Dessa maneira, estimulados pela gratificação dos pares e pela restauração narcísica, a conduta de risco se apresenta como um caminho de inscrição na realidade.

Grenouille pode nos oferecer subsídios para visualizar esse movimento de se lançar à morte para conferir o valor de sua vida. Como o personagem do romance de Süskind que fora abandonado, Grenouille foi expulso de casa pelo pai aos 10 anos. Vivendo em situação de rua, a criança precisou provar sua força e valor, assim, lança seu corpo infantil nas tarefas de intermediação de drogas. O perigo não existe para aquele que não tem nada a perder. Grenouille só é apreendido com 12 anos. A equipe da casa de semiliberdade localiza a mãe e solicita sua presença com a certidão de nascimento do adolescente. A resposta da mãe é: "ele que se vire". É exatamente o que Grenouille faz desde os 10 anos de idade.

No mesmo dia da resposta da mãe, ocorre um episódio na casa, um conflito físico entre três adolescentes. A equipe de segurança convoca a polícia. É feito um boletim de ocorrência, mas ele não cita o terceiro adolescente envolvido na briga, que é Grenouille. A ausência do nome de Grenouille no boletim de ocorrência poderia produzir um constrangimento junto ao grupo. Grenouille não volta à casa de semiliberdade após a saída do fim de semana, quando a equipe telefona, ele atende como nome de Jonathan, mas não retorna. É interessante que a mãe revelou para a equipe que para ela o filho se chama Jonathan. Passados os prazos de 48 horas, outro adolescente é designado. Grenouille quer voltar, mas o procedimento depois do prazo é aguardar uma nova vaga.

A fragilização de laços parentais, e um possível resultado de violências sociais e segregações, pode causar impactos nos adolescentes que, por vezes, podem produzir uma imagem de si fragilizada e quebrada. Assim, sendo frágeis, tornam-se passíveis, de um lado, de serem eliminados e, de outro, de serem facilmente manobráveis por mentes que usam sua força agressiva para condutas antissociais e criminosas. Neste sentido, o convite para integrar um grupo que desafia a lei é sedutor, como revela Rosa (2002),

Na adolescência, novas operações se processam para fazer valer outro discurso, além discurso do pai: operações que possibilitam o pertencimento e o reconhecimento do jovem como membro do grupo social e que dependem das formas, condições e estratégias oferecidas pelo grupo social (p. 229).

Concordamos com Rosa no sentido da força que o grupo pode exercer sobre o adolescente que se encontra em situação de fragilização e desfiliação. Diante disso, se faz importante reafirmar uma transmissão de herança social e cultural que se coloque enquanto alternativa aos grupos que veem no desafio à lei seu modus operandi.

 

Considerações finais

O trabalho desenvolvido durante a pesquisa "Impasses e perspectivas das intervenções realizadas na semiliberdade junto aos adolescentes autores de ato infracional: uma leitura através da construção interdisciplinar de caso na perspectiva da psicanálise" nos possibilitou lançar um olhar sobre a multiplicidade das adolescências, dando ênfase às particularidades dos casos de adolescentes cumpridores de medida socioeducativa na semiliberdade, a partir da perspectiva psicanalítica.

A ideia da adolescência como uma experiência plural foi particularmente importante, pois, a partir dela, pudemos refletir sobre a passagem da heteronomia para a autonomia, ou não, articulando, nas histórias dos jovens, as experiências peculiares da adolescência à fragilidade da figura parental.

A escuta e análise das histórias dos jovens citados neste artigo nos forneceu material para refletir sobre os efeitos da ausência da figura paterna, que, embora vivenciada de formas distintas por cada um desses jovens, descortinam o fato comum de que, numa fase da vida em que é esperado que haja uma ruptura com a autoridade, em especial com a autoridade parental, muitos desses jovens nem sequer chegam a viver essa autoridade. Dessa forma, os adolescentes demonstram realizar um movimento de alçar os pais a uma posição de autoridade para poder destituí-los e se apropriar de um lugar próprio em suas próprias histórias. Tais construções os colocam diante do fato de que eles vão assumir diferentes papéis ao lado da mãe (provedor, objeto de afeto, de frustrações) e vão ter que lidar com seus corpos constituídos no centro de relações muitas vezes fragilizadas, um verdadeiro desafio para suas construções identitárias.

Nosso percurso reflexivo nos levou a um questionamento sobre a possibilidade de inscrição de uma nova relação desses jovens com seu eu, com seus corpos e com o mundo, posto que nem todos demonstram em suas narrativas ter referências seguras em torno das quais possam se organizar. Tal questionamento norteou nossas análises em vários momentos, nos permitindo afirmar que esses adolescentes apresentam as marcas das relações com seus outros parentais. Deparamo-nos com histórias nas quais famílias, marcadas pela pobreza, lidam com o embaraço no processo de transmissão de uma herança cultural que poderia oferecer contornos identitários e, assim, abrir a possibilidade de uma nova inserção para os filhos. O tema da quebra da transmissão de uma herança cultural pareceu-nos decisivo para compreensão de uma espécie de desenraizamento que lança o jovem em um vácuo sem referências identificatórias, que possibilitariam a construção de uma imagem narcísica valorativa de si; o que perpetua, pois, a situação de pobreza e de exclusão.

A resultante disso é que assistimos, na atualidade, a um movimento de inserção desses jovens em uma criminalidade violenta que em uma lógica paradoxal os mata. Fato que nos convidou a pensar sobre as condutas de risco assumidas por esses adolescentes. Dessa forma, buscamos na análise de Le Breton (2002/2009), que mostra que as condutas de risco dizem de um enfrentamento com o mundo cuja aposta não é morrer, mas viver mais, subsídios que nos possibilitam afirmar que, no caso dos jovens deste artigo, a inserção na criminalidade não representa um movimento de lançar seus corpos à morte, mas de interrogar simbolicamente a morte para saber se vale a pena viver (Le Breton, 2002/2009). Na trajetória de lançamento desses corpos há, em algum momento, o encontro com a criminalização de tais condutas de risco e, em cada caso à sua maneira, mais ou menos bem-sucedida, ocorre o fundamental corte na posição infantil. A conduta de risco se apresenta como um caminho de inscrição na realidade.

Caminhos e saídas vão sendo construídos com maior ou menor sucesso no que diz respeito às possibilidades futuras e, no encontro com o real, temos adolescentes com uma imagem de si fragilizada e quebrada, tornando-se, dessa maneira, alvos elimináveis por um lado ou manipuláveis por outro, estando à mercê de mentes que usam sua força agressiva para condutas antissociais e criminosas.

Assim, concluímos que o nosso texto contribui, a exemplo de Rosa (2002) e de Warpechowskie e De Conti (2018), para publicizar as vidas concretas de jovens em situações de vulnerabilidade que respondem por medidas socioeducativas. Acreditamos que tal perspectiva seja importante para ampliar o olhar sobre a adolescência pobre brasileira para além da criminalização.

 

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Recebido em maio de 2019 – Aceito em março de 2020.

 

 

Revisão gramatical: Juliana Morganti
E-mail: emaildajulianamorganti@yahoo.com.br

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