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Estilos da Clinica
versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo ene./abr. 2021
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p145-159
10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p145-159
EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL
Infâncias imigrantes, silêncios e fronteiras do cuidado em um CAPS infantojuvenil
Niñeces inmigrantes, silencios e fronteras del cuidado en un CAPS para niños y adolescentes
Immigrant childhoods, silences and frontiers of care in a CAPS for children and adolescents
Enfances immigrées, silences et limites du soin psychologique dans un CAPS pour enfants et adolescents
Julia Hatakeyama JoiaI
IPsicóloga. Mestre pelo Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: julia.joia@gmail.com
RESUMO
O trabalho aborda o cuidado em saúde mental de crianças de famílias bolivianas em um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) Infantojuvenil em São Paulo. Essas crianças apresentam dificuldades na aquisição da fala e na interação social, e são encaminhadas majoritariamente pelas escolas. A apresentação de vinhetas clínicas buscará articular suas histórias ao contexto de imigração, às rupturas nas transmissões familiares, vivências de desamparo e estratégias de enfrentamento de um lugar social desqualificado. Discute-se a tendência à redução de tais impasses ao diagnóstico de autismo, cristalizando uma compreensão reducionista e dificultando a diferenciação e singularização dos casos. O silêncio dessas crianças e de suas famílias é entendido como efeito dos abalos nas transmissões familiares, mas também como formas de resistência à submissão cultural e identitária.
Palavras chave: saúde mental pública; imigração boliviana; crianças; silenciamento.
RESUMEN
Este trabajo tematiza la atención en salud mental de niños de familias bolivianas atendidos en un Centro de Atención Psicosocial para niños y adolescentes en São Paulo. Estos niños presentan dificultades para adquirir el habla y desarrollar la interacción social y son derivados principalmente por las escuelas. La presentación de viñetas clínicas buscará articular sus trayectorias al contexto de la inmigración, las rupturas en las transmisiones familiares, sus vivencias de desamparo y las estrategias para afrontar una posición social descalificada. Se discute la tendencia a reducir los obstáculos que se enfrentan al diagnóstico de autismo. El silencio de estos niños y sus familias se entiende tanto como resultado de los efectos del contexto migratorio como una forma de resistencia a la sumisión cultural e identitaria.
Palabras clave: salud mental pública; imigración boliviana; niños; silenciamento.
ABSTRACT
This article concerns mental health care among children from Bolivian families being attended at a Psychosocial Attention Care Center for Children and Youth in São Paulo. These children present difficulties in acquiring speech and developing social interaction and are referred principally by schools. The presentation of clinical vignettes will seek to articulate their trajectories to the context of immigration, the ruptures in family transmissions, their experiences of helplessness and the strategies they use to cope with the disqualified social position they occupy. The tendency to reduce the obstacles confronted by diagnosing such children as autistic is discussed. These children's and their families' silence is understood both as a result of the effects of the immigration context and as a form of resistance to cultural and identity submission.
Keywords: public mental health; Bolivian immigration; children; silencing.
RÉSUMÉ
Ce travail porte sur les soins psychologiques (de la santé mentale) donnés aux enfants issus de familles boliviennes dans un Centre de Soins Psychosociaux pour enfants et adolescents à São Paulo. Ces enfants ont des difficultés à acquérir la parole et à établir des liens d'interaction sociale. La présentation des vignettes cliniques porte sur l'articulation de leurs histoires avec leurs contextes migratoires et les ruptures de leurs transmissions familiales, leurs expériences d'impuissance et leurs stratégies pour affronter une place sociale dégradée. La tendance à réduire cette complexité au diagnostic de l'autisme est débattue. Le silence de ces enfants et de leurs familles est donc ici compris à la fois comme effets de leurs contextes migratoires mais aussi comme une forme de résistance à la soumission culturelle et identitaire.
Mots-clés: santé mentale publique; immigration bolivienne; enfants; silence.
Qhipnayra uñtasis sarnaqapxañani
Há que caminhar pelo presente
olhando o passado de frente
e carregando o futuro às nossas costas.
(aforismo aymará)
São Paulo é uma cidade (i)migrante. Desde a fundação pelos jesuítas e indígenas, foram muitos os processos imigratórios, do próprio Brasil e de outras nações, que construíram e povoaram a cidade. Desde os anos 2000, uma "nova onda migratória" vem trazendo sírios, venezuelanos, haitianos, chineses, congoleses, colombianos, além da intensificação das migrações já estabelecidas, de países como Peru, Paraguai e Bolívia, no que tem sido chamado de imigração Sul-Sul (Magalhães, Bógus & Baeninger, 2018).
A presença desses imigrantes na cidade vem reafirmando as barreiras no acesso a direitos e as profundas desigualdades incrustradas na sociedade brasileira. Essa nova onda migratória envolve, especialmente, pessoas não brancas, negras e indígenas (Brito, 2014), o que entrelaça questões do refúgio e imigração com as dinâmicas próprias do racismo estrutural de nossa sociedade, expondo a faceta segregadora da cidade e da cultura. A discriminação é um fator de sofrimento, quando não um risco de vida1, e também um dificultador no acesso a trabalho, a condições básicas de vida e reconhecimento social.
No caso das crianças, elas são, muitas vezes, uma espécie de ponte entre a tradição e cultura de origem e a cultura do país de destino, entre o espaço familiar e doméstico e o mundo dos impasses culturais e idiomáticos. Assim, são também nelas que incidem de forma particular muitos dos efeitos da imigração: por possuírem recursos psíquicos ainda em constituição e por habitarem a fronteira entre esses mundos, são mais vulneráveis ao sofrimento psíquico do que os adultos (Bezerra, Martins Borges & Pereira Cunha, 2019).
Neste artigo2, nos propomos a indagar sobre o cuidado em saúde mental de filhos de imigrantes no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Infantojuvenil Mooca Giravida3, cujo território abrange, entre outros, os bairros da Móoca, Brás, Pari e Belém, onde a concentração de imigrantes, em especial bolivianos, é muito alta, e já estabelecida há décadas. Eles são majoritariamente trabalhadores em oficinas de confecção da região, com regimes de trabalho precários. Em termos de origem, além de se identificarem como bolivianos, são também indígenas aymarás, quéchuas ou guaranis, sendo esses idiomas a língua materna de uma parte significativa deles. Como veremos, a origem indígena e seu idioma já carregam uma marca negativa e tentativas de apagamento anteriores ao momento da imigração.
Nos últimos anos, o CAPS vem sendo procurado por um número crescente de famílias bolivianas4, buscando atendimento para seus filhos/as pequenos, entre 3 e 6 anos. Costumam chegar ao serviço crianças que, além de não falar ou fazê-lo de forma ainda precária, tendem a permanecer mais isoladas nos contextos de socialização, estabelecendo parca comunicação e interação com os outros e, por vezes, com pouco repertório no brincar. Suas famílias chegam, inicialmente, bastante silenciosas e cautelosas ao falar, demonstrando certo receio de expor sua intimidade, o que é compreendido como resguardo a possíveis usos prejudiciais desses dados5. A comunicação, inicialmente truncada e difícil entre equipe e família, aos poucos vai sendo estabelecida, não sem muito investimento nesse vínculo.
Evidentemente, a singularidade de cada situação não é contemplada por esses descritores genéricos. Apenas ressaltamos que, em relação às crianças, para além dos impasses na aquisição da linguagem em decorrência da convivência bilíngue (ou até mesmo trilíngue), em grande parte dos casos, e de formas muito diferentes, apresentam-se preocupações referentes a impasses na constituição psíquica. Muitas vezes, o diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista) já está à espreita, seja pela escola, seja por outros profissionais de saúde, dificultando a singularização dos casos.
A patologização das questões trazidas por crianças pequenas filhas de imigrantes, sob a forma de autismo ou deficiência, vem sendo tematizada em outros territórios e serviços, fazendo-se presente nos trabalhos de Branco-Pereira (2019), Primo e Rosa (2019), Seincman (2019) e Masella (2019). Nos anos 2010, serviços de saúde da região central passaram a receber enxurradas de encaminhamentos de escolas para avaliação em saúde mental de crianças imigrantes, muitas com suspeita de autismo (Brandalise, 2017).
Tratar desse tema inscreve-se, portanto, no reconhecimento das dimensões sócio-políticas do sofrimento (Rosa, 2016), que incidem sobre a subjetividade, demarcando posições desfavoráveis aos sujeitos no laço social. Também representa uma reafirmação da dimensão ético-política que norteia a luta antimanicomial, no sentido da valorização da pluralidade cultural, étnica e subjetiva de diferentes modos de vida, e o combate aos discursos e práticas que capturam a diferença sob a forma de patologia ou desvio.
Da mesma forma, o reconhecimento das dimensões singulares da experiência implica considerar as infâncias, no plural, como experiências heterogêneas e múltiplas nos modos de ser criança. Os abismos socioeconômicos, as pertenças étnico-raciais e a territorialidade onde uma criança vive determinam certas formas de viver esse período da vida. Determinam também que lugar esses sujeitos terão no campo social e que acesso terão aos direitos básicos e mesmo ao direito à vida. Rejeitar a universalidade da infância é uma posição ética (Katz, 2019), pois, ao afirmar que as crianças precisam ser reconhecidas em seus contextos singulares, se está buscando a legitimação de sua experiência e de seus direitos.
É nessa perspectiva que nos debruçaremos sobre estas infâncias imigrantes, buscando compreender a falta de fala das crianças como inscrita na complexa trama do contexto imigratório, da posição que ocupam no laço social e seus efeitos subjetivantes. O silêncio das crianças e também de suas famílias, como veremos, se desdobra em múltiplos sentidos: como efeito do desamparo social e discursivo das famílias; como uma estratégia de resistência às malhas da intolerância; como reação ao traumático que representa o desenraizamento; e como um mecanismo de resguardo psíquico (Rosa, Berta & Carignato, 2009).
O estrangeiro no laço social
O incremento dos movimentos migratórios na contemporaneidade, assim como dos discursos xenofóbicos sobre o outro, o aumento visível da intolerância, dos chamados discursos do ódio e fascistas nos fazem indagar o lugar que o estranho ocupa no laço social. A impiedosa lógica neoliberal que marca nosso tempo e seus desdobramentos afetivos o medo e o ódio são os principais vetores da emergência das novas facetas da intolerância (Rosa, Penha & Ferreira, 2018).
Freud, em 1919, sugeria que, ao se deparar com o estrangeiro, o sujeito é tomado por angústia e horror, pelo que dele identifica como estranho, ao mesmo tempo que terrivelmente familiar (Freud, 1919/2010). Koltai (2000) sublinha que, em Freud, na constituição do narcisismo, o vislumbre de um outro que não coincide com a própria imagem causa uma angústia, na forma de ameaça ao próprio eu ou da perda do amor. O "narcisismo das pequenas diferenças" foi como denominou essa hostilidade em relação ao outro. Os processos identificatórios, por sua vez, organizam o sujeito em torno da busca por um ideal de eu, implicando a exclusão daqueles que têm outro ideal, ou a criação de um "objeto-dejeto" para onde canalizar o ódio (Koltai, 2000).
Sob a ótica do estádio do espelho lacaniano, e seguindo Koltai, a constituição de um eu unificado passa pela relação especular com o Outro primordial, quando o bebê se identifica e assume aquela imagem que lhe é oferecida. Isso não acontece sem uma ambivalência de sentimentos de amor e ódio em relação ao outro especular, que Lacan chamou de "amódio". A visão do estrangeiro, ou daquele que se mostra diferente, "quebra o espelho" identificatório e mobiliza no sujeito uma agressividade radical e o desejo de aniquilamento do outro (Koltai, 2000).
Quanto ao estrangeiro imigrante, os discursos xenófobos e racistas o constroem como grande causador do mal-estar da comunidade e objeto de ódio, um bode expiatório do mal-estar. Com imigrante ou refugiado estamos nomeando uma série de contextos diversos, como a fuga compulsória de territórios em guerra, de violências ou perseguições, ou ainda a mudança em busca de condições socioeconômicas mais dignas. Em todos eles, entretanto, há um deslocamento territorial e existencial que desenraiza o sujeito de determinada identidade, comunidade ou pertinência e lança-o no desafio da construção de uma nova territorialidade física e psíquica (Rosa, Berta & Carignato, 2009). Tal ruptura pode também significar um desejo de rompimento com dinâmicas aprisionantes, demonstrando que, para além de um processo de desenraizamento e luto, existe uma dimensão desejante que impulsiona a busca por uma vida melhor.
Nesse luto, a busca por uma nova posição subjetiva no laço social nem sempre ocorre tranquilamente. Em muitos casos, o sujeito se depara com uma realidade dura, em que as exigências imediatas de sobrevivência e adaptação o deixam absorvido pelo presente, sem poder rememorar e viver um período de elaboração da perda (Rosa et al., 2009). Não podendo vivenciar esse processo junto à sua rede originária de pertinência e de significação, o sujeito se vê fragilizado, contando somente com suas defesas individuais (Moro, 2015).
Como veremos nas histórias contadas a seguir, parecem de extrema importância os efeitos nos sujeitos daquilo que Rosa (2016) denominou desamparo discursivo, que demonstra o precário lugar social que o sujeito estranho/estrangeiro pode ocupar. O desamparo discursivo consiste na fragilização do campo discursivo, que protege o sujeito do real, garantindo o acesso a valores, tradições e elementos da cultura que organizam os sentidos de sua experiência e fornecem ao sujeito um lugar no laço social. Vejamos como esses processos aparecem nas histórias das famílias.
Costurando histórias imigrantes
Lucía e Diego6 estão no Brasil há dez anos. Ela e o marido se casaram muito jovens, na Bolívia. Um primo do marido, que já morava no Brasil, convenceu-o de que, vindo para cá, eles ganhariam dinheiro e teriam casa e alimentação gratuita no local de trabalho. Lucía não queria vir, mas acabou convencida pela família do marido. Chegando aqui, o primeiro local onde trabalharam era uma confecção em que a jornada de trabalho era das 7 horas da manhã às 2 horas da madrugada, de domingo a domingo. Não era o que imaginavam saindo da Bolívia. Encontraram um segundo local de trabalho, mas ainda assim eram 15 horas de trabalho por dia. Foi nesse local que nasceram Nina e seu irmão.
Como os pais de Nina, a maioria das famílias atendidas é proveniente da zona rural, especialmente do entorno de La Paz, e já chegou ao Brasil há muitos anos. A vinda para o Brasil, em geral, é de um casal jovem que busca melhores condições de vida para sua família e uma mobilidade social e econômica que o contexto boliviano não permite7. Em muitos casos, são os próprios compatriotas que agenciam a vinda e a colocação no primeiro trabalho. Prometem boas condições de vida e trabalho, mas, ao chegar, os imigrantes encontram um circuito exploratório de oficinas8, comandadas muitas vezes por coreanos ou por outros bolivianos: jornadas de 12 ou até de 18 horas diárias, baixos salários; condições precárias de habitação e alimentação; restrição do direito de ir e vir; falta de documentação e dificuldades de achar alternativas de trabalho e sobrevivência.
Álvaro, pai de uma criança atendida, contou que na Bolívia lhe disseram que ia trabalhar em uma "oficina", ao que imaginou um escritório de advogado ou doutor, mas aqui entendeu o uso de má-fé do falso cognato: a palavra "oficina" em espanhol quer dizer "escritório"; a tradução de "oficina" seria "taller" (local de trabalhos manuais). Já nesse momento, o idioma aparece como ilusão e engano, e a chegada ao Brasil como uma armadilha, um inesperado que se abre. Desde o princípio, o imigrado se encontra "lost in translation"9, situação em que algo do sentido da mensagem fica perdido no caminho e na qual também o interlocutor se perde.
Na história de Álvaro, a vinda ao Brasil é fundada em um desencontro com a língua, cujos efeitos parecem reverberar também nos tropeços de José, que chega ao CAPS com 4 anos, ainda sem falar, e com grandes dificuldades na interação. Retrospectivamente, depois soubemos, a história da família é marcada pela proibição da língua materna indígena e tentativas de apagamento desta origem.
Álvaro conta que a língua materna de sua avó (que reconhece como mãe) é o aymará, e é nessa língua que ele conversa com ela por videochamada. Lembra que os idiomas indígenas foram durante muito tempo proibidos na Bolívia, sendo motivo de vergonha e uma marca de atraso cultural. Sua avó falava o idioma às escondidas e nunca chegou a aprender totalmente o espanhol. Com orgulho, conta que atualmente são reconhecidos oficialmente 36 idiomas no país. A esposa de Álvaro também descende de uma família aymará, mas eles não falam o idioma entre si, somente o espanhol. Já com o filho José, falam o português.
Essa história parece ser também a de muitas outras famílias, inclusive aquelas que têm por língua materna um idioma indígena, sendo o próprio espanhol aprendido secundariamente. O silenciamento dos idiomas indígenas, referido por Álvaro, remete a uma longa história de violências coloniais e seus aspectos simbólicos de dominação, dentre eles a perseguição ao idioma. Antes mesmo de chegarem ao Brasil, muitas vezes, essas famílias migraram dentro da própria Bolívia, do campo para as periferias das grandes cidades. Como maioria de origem rural e indígena, sofrem discriminação nos centros urbanos, sendo considerados camponeses de segunda classe, atrasados e com costumes primitivos10.
A família recém-chegada a São Paulo em geral mora na própria confecção onde trabalha, em pequenos quartos, em condições muitas vezes insalubres, em um universo bastante fechado de vigilância e controle constante pelos empregadores. Há situações em que os trabalhadores sequer têm a chave da casa, e sua saída fica condicionada ao controle dos patrões. As crianças são acomodadas de forma a atrapalharem o menos possível a produção, muitas vezes em locais improvisados, em meio às máquinas de costura, sem assistência de adultos e expostas a acidentes (Paixão, 2020). A maternagem fica submetida à lógica produtiva.
Na confecção onde os pais de Nina trabalhavam, cerca de 12 horas por dia, havia uma sala com TV para as crianças, e as mulheres eram advertidas quando iam amamentar ou cuidar dos filhos. Nina, quando bebê, ficava quase sempre sozinha, acompanhada do celular ou da TV. Há dois anos, os pais trabalham na Feira da Madrugada, da 1 às 8 horas, ficando os dois filhos também sob o monitoramento do celular, pois não têm com quem deixá-los.
As condições impostas pelo trabalho dificultam de forma bastante concreta o processo de maternagem das crianças, desde pequenas. Apesar de ser uma tendência no mundo contemporâneo, o uso das telas na ausência do cuidador se apresenta como um risco na produção de um mundo simbólico da criança, podendo gerar entraves na constituição psíquica (Bernardino, 2017).
Algumas famílias conseguem melhorar um pouco sua condição de trabalho (mudar de oficina, trabalhar por conta própria em mercados de rua como a Feira da Madrugada) e acabam por se adaptar à cidade. Quando juntam dinheiro, voltam para férias na Bolívia, mas a possiblidade de voltar definitivamente fica distante; ou torna-se uma dúvida permanente entre ficar ou voltar.
Os pais de Juan moravam na zona norte até o ano passado, quando sofreram três assaltos, sendo que, em um deles, o assaltante apontou uma arma para a cabeça de seu único filho. Desde então vivem assustados e com medo. A mãe não anda pela cidade desacompanhada. Perguntam-se constantemente se o assalto tem a ver com o atraso no desenvolvimento que Juan está apresentando. No ano passado, passaram dois meses na Bolívia, onde ele frequentou um fonoaudiólogo e teve grandes avanços na fala. Questionam-se se deveriam retornar à Bolívia para que o filho melhore, não conseguem se decidir.
O medo da cidade e os problemas apresentados pelo filho escancaram a insegurança vivida em São Paulo, em contraponto com uma ideia da Bolívia como lugar conhecido e familiar, e que parece afetar também Juan. Os familiares das crianças que acompanhamos, de forma geral, relatam que sentem falta da terra natal, das comidas, do ambiente rural, dos familiares. Conversam com eles, quando possível, por videochamada ou por telefone. Mas na vida cotidiana em São Paulo, relatam ter pouca ou quase nenhuma rede de suporte, não têm com quem contar, e os núcleos familiares tendem a ficar mais fechados em si mesmos.
Camila, mãe de Cristian (de 5 anos), relata que sua gravidez foi difícil, ela não comia, e estava sempre tomada por preocupações com trabalho e dinheiro. Quando Cristian tinha 10 meses, foi internado com desnutrição e anemia. No hospital, lhe disseram que o Conselho Tutelar poderia abrigá-lo, por negligência. Na segunda vez que o levou para o hospital, novamente sofreu ameaça de que ele poderia ser abrigado. A mãe se pergunta se não seria melhor ele ter ido para o abrigo. Não tem ajuda de outros, e tem vergonha de pedir e assumir as necessidades pelas quais passa a família.
Ao lado de um desamparo social importante quanto a condições sociais, econômicas e jurídicas para a sobrevivência, evidencia-se o desamparo discursivo. As vivências tão intensas de desenraizamento e vulnerabilidade de algumas famílias parecem estar também relacionadas ao pouco amparo no discurso social, que não seja como incapacitado ou indesejado. No hospital, é dito à mãe de Cristian que ela talvez perca o seu filho, o que reafirma sua própria dúvida se ela tem condições de maternar. O sentimento de vergonha expresso por Camila, e que é reafirmado pela posição da equipe do hospital que a ameaça, parece central em sua experiência, fazendo-a isolar-se ainda mais no núcleo familiar e evitar transparecer suas dificuldades. É só depois de muitas semanas de participação no grupo de famílias que Camila conta essas histórias, e passa a expor sua condição difícil de vida e solicitar ajuda.
Ana, mãe de Paulo, após semanas em que não nos vemos por conta da pandemia do coronavírus, nos surpreende contando que teve um bebê há poucos meses e que escondeu de todos a gravidez. Usava roupas largas para que a barriga não aparecesse. Quando perguntada sobre o porquê, ela diz apenas que sentia muito medo; por mais que se insista, apenas repete "muito medo", uma inominável angústia que a silenciou.
O medo de Ana não encontra palavras, resiste a nomear a chegada de um outro filho, como se assim retardasse a realidade de sua existência. Assim como no relato de Camila, o medo, a insegurança e a desconfiança aparecem frequentemente nos relatos e se relacionam tanto a aspectos mais materiais e econômicos, que geram uma permanente instabilidade nas condições de sobrevivência, como também na relação subjetiva com a realidade.
Giraud e Moro (2004) ressaltam como "tornar-se pai e mãe" significa atualizar lógicas transmitidas pela comunidade e pela cultura, havendo, no caso dos imigrantes, uma necessidade de reinventar uma parentalidade, nem sempre com amparo de um coletivo ou de uma linhagem de transmissão. As mães atendidas, por exemplo, expressam a falta que suas próprias mães fazem, na sua função de referência para seus processos de maternagem. Os efeitos de perda de pertencimento a uma família, a uma cultura, a uma língua, a uma tradição parecem ser centrais nas experiências dessas famílias.
Desse modo, entendemos a dificuldade na aquisição de fala das crianças que nos chegam para atendimento também como efeito dos processos de silenciamento que observamos em suas famílias, sob múltiplas facetas. A partir das histórias narradas, o silêncio aparece derivado de vivências de desamparo, que despertam angústias e medos inomináveis; ou ainda como um anteparo de proteção frente a uma realidade na qual não se pode confiar. Da mesma maneira, o silêncio se apresenta também como estratégia de resistência frente à tentativa de apagamento dos traços identitários e de um repertório simbólico na imposição de outra cultura. É a partir dessas múltiplas dimensões que indagamos aqui sobre o enigma que essas crianças nos trazem.
O silenciamento do estrangeiro na escola
A escola é um importante espaço onde os filhos de imigrantes circulam e onde as questões interculturais se acirram. É também a creche ou a escola quem sinaliza uma questão a respeito da saúde mental e faz o encaminhamento para o CAPSij ou para a UBS (Unidade Básica de Saúde). No caso dos filhos de bolivianos, a entrada na escola tende a acontecer mais tardiamente do que a média11. Esse dado parece relacionar-se com barreiras (muitas vezes invisíveis) de acesso ao mundo escolar, e também com uma desconfiança em relação ao espaço da escola e sua condição de acolher a criança.
No caso de Cristian, sua mãe conta que não confiavam que a escola pudesse cuidar dele, especialmente pelas dificuldades que apresenta. Haviam pedido vaga em creche, mas acabaram desistindo. Quando o conhecemos, com 4 anos, ele só tinha tido contato com o ambiente doméstico, com pouca estimulação. Após algumas conversas em que incentivamos que ele fosse incluído na escola, e garantimos que acompanharíamos o processo, os pais matricularam-no em uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil). Parece que uma transferência inicial estabelecida conosco pôde se estender à escola.
A escola tem comparecido como o primeiro lugar onde a criança a família têm maior contato com o mundo fora do âmbito familiar, e isso parece gerar insegurança e desconfiança. Entendemos que o início do contato com o mundo escolar é conflituoso para todas as famílias, por representar uma ruptura com a ideia de que a mãe ou a família podem garantir tudo o que a criança precisa, e por incluir na relação com a criança outros adultos, inicialmente desconhecidos, estando todos referenciados a regras coletivas, que não são as mesmas que operam no âmbito familiar.
Ao visitarmos a creche de Paulo, de 3 anos, pudemos observá-lo junto a sua turma e conversar com as professoras. Quebrando as expectativas de que nós, os "especialistas", estivéssemos lá para dizer a elas como lidar com Paulo e confirmar seu diagnóstico de autismo, solicitamos que elas nos contassem as estratégias usadas com ele. Contaram como, desde a chegada à creche, ele passou a poder estar com os colegas e acompanhar a rotina, sendo que inicialmente mordia e gritava indiscriminadamente. Aquele diálogo pareceu legitimar o saber que as próprias cuidadoras tinham sobre ele e reforçar sua condição de operar na relação com a criança. No entanto, as relações entre a escola e a mãe eram de desconfiança mútua.
A tensão e os conflitos entre família e escola, tão comuns, ganham mais elementos no caso dos imigrantes, uma vez que as famílias levam mais tempo para se sentirem ambientadas no funcionamento da escola e suas dinâmicas. A desconfiança é mútua nessa relação. O idioma e a cultura, novamente, se tornam um empecilho no estabelecimento de laços, e as mães ficam receosas sobre como seu filho lidará com o fato de estar entre outros, ou mesmo se será compreendido.
Um estudo realizado por Freitas e Silva (2015) mostra que, na escola, filhos de imigrantes são sempre lembrados de que são "estrangeiros", "imigrantes" ou "bolivianos", mesmo que a maioria tenha nascido no Brasil. Esses atributos são sempre carregados de inferioridade, e do pressuposto que "os que chegam de fora é que devem se adaptar" e se responsabilizar por suas dificuldades. Os autores mencionam que, em momentos de tensão, o nome da criança é suprimido e ela é referida como "boliviana" ou simplesmente "boliva", tal como ocorre com as crianças com diagnósticos.
Os autores apontam, também, a heterogeneidade de posturas das professoras: das mais sensíveis e disponíveis a usar estratégias específicas, a posturas mais severas, em que a criança é repreendida frequentemente, gerando ainda mais retração na comunicação e socialização. Em outra pesquisa (Novaro, Borton, Diez & Hecht, 2008) sobre escolarização de crianças indígenas e imigrantes12, o silêncio dessas crianças também é ressaltado como marca importante, sendo indagado como expressão de um lugar social desvalorizado e desautorizado, pela falta de estimulação para sua expressão, e também uma estratégia cultural de diferenciação.
Apesar dos desafios que a criança enfrenta na escola, esta representa para as famílias um lugar de extrema importância, por fornecer um apoio no cotidiano sobrecarregado e na introdução dos códigos brasileiros para a próxima geração. Para as crianças, da mesma forma, percebe-se a importância de descobrirem novos espaços e relações. A professora da educação infantil pode ser um elemento fundamental no processo de adaptação e de desenvolvimento do mundo afetivo da criança. Se esta reside em um ambiente sobrecarregado e com poucos estímulos, a circulação que o ambiente escolar propicia pode ser crucial na ampliação de repertórios afetivos e subjetivos.
A questão do idioma é um tema frequente nas escolas. Ao lado de profissionais que se esforçam para estabelecer uma comunicação e inserir pouco a pouco a criança no idioma, há outros que consideram o idioma um "a mais", que foge à responsabilidade da escola e que tem que ser resolvido pela família. A orientação geral que os pais escutam é que não podem falar espanhol com os filhos, pois isso os impediria de aprender o português. Na nossa observação, isso gera o silenciamento das comunicações entre pais e filhos, ou ainda a sensação de que estão sendo "maus pais", no caso de seguirem falando espanhol, principalmente nos casos daqueles que não falam português. A escola, na intenção dar suporte ao aprendizado da língua portuguesa pela criança, produz um significativo efeito de deslegitimação da língua materna e de sua transmissão, assim como também de todo o repertório cultural e simbólico ligado a ela. Essa deslegitimação pode afetar também as transmissões afetivas, podendo aprofundar um desligamento afetivo entre a criança e sua família e história.
Primo e Rosa (2019), analisando relações entre escola e filhos de imigrantes em São Paulo, indicam que a condição migrante na escola é um tema ainda pouco discutido e que, nas unidades escolares, tende a ficar silenciado e invisível, sendo muitas vezes patologizado13. A relação com a alteridade fica pautada na demarcação entre "nós" e "eles", ficando o "nós" livre de questionar-se sobre sua posição, e o "eles" sobrecarregado pela projeção daquilo que é incomodo, indesejado, ineficiente.
Nesse sentido, a criança filha de imigrantes bolivianos serve aqui como um analisador de como a escola, como instituição, vem podendo se articular ao se defrontar com uma alteridade radical, que exige dela um (re)posicionamento. Majoritariamente, o lugar ofertado a essas crianças está marcado pela invisibilidade e pelo silenciamento. É, portanto, também pelo silêncio que as crianças parecem fazer frente a esse cenário, como uma recusa a um contexto desfavorável de interação ou a um lugar em que sua cultura e idioma acabam por ser desqualificados.
Uma das estratégias de neutralização da diferença, qualificada como desviante, será pela via da patologização, ao resumir os efeitos desses impasses ao quadro psicopatológico, mais especificamente, ao autismo.
O diagnóstico de autismo e a anulação de diferenças
Muito se tem discutido sobre a denominada "epidemia de autismo": a generalização desse diagnóstico, com critérios cada vez mais abrangentes e imprecisos, vem consolidando uma tendência preocupante. Tem sido assustadora a quantidade de crianças pequenas recebidas no serviço com o diagnóstico de autismo, feito muitas vezes com base em indicadores padronizados, em uma consulta única e sem um olhar singularizado para a criança e sua história. Os preceitos da Reforma Psiquiátrica e do campo da infância e juventude têm buscado uma outra ética de trabalho, baseada na escuta da singularidade e na aposta nas capacidades, e na recusa a esta lógica diagnóstica, que precocemente aprisiona o sujeito.
Uma vez diagnosticadas, corre-se o enorme risco de que as crianças e as famílias passem a "incorporar" o autismo, assim como todo o discurso produzido por ele, como um elemento identificatório central na sua imagem de si. O discurso médico passa, assim, a ordenar a relação do indivíduo com sua subjetividade e sofrimento, negando suas dimensões conflitivas e inapreensíveis (Guarido, 2007).
A escola tem se mostrado um elemento fundamental nesse processo, apresentando uma tendência a tomar situações problemáticas ou não compreendidas como sinal da presença de uma psicopatologia. Um exemplo são as práticas e discursos institucionais que condicionam o acesso de crianças a recursos escolares de apoio à apresentação de laudo médico com diagnóstico classificado de acordo com o CID (Código Internacional de Doenças). Ainda que conviva com outras práticas que mantem um olhar atento e aberto para cada criança, o que deveria ser uma oferta de apoio especializado às crianças com dificuldades pode acabar deixando a escola ainda mais refém da lógica medicalizante, dependente do discurso médico.
Compreendermos que a identificação com o diagnóstico pode cumprir uma importante função de aplacar angústias da família, uma vez que ela encontra assim uma forma de nomear, de pertencer e de dar sentido à experiência de estranheza e diferença que vive. Além disso, as hipóteses diagnósticas têm seu lugar na construção de uma direção de tratamento e de cuidado junto a cada criança e família. Ao mesmo tempo, destacamos a importância de que esse sentido possa ir sendo tecido para além do diagnóstico, singularizando-o em torno de cada sujeito, de forma a não congelá-lo a priori em uma condição irreversível e mantendo, assim, o caminho aberto para que as crianças possam nos surpreender.
No CAPSij, a expectativa de confirmação do diagnóstico de autismo, e mesmo a explícita pressão por este, mobiliza grandes esforços, no sentido de sensibilizar o entorno família, escola para atentar o olhar às necessidades daquela criança e à forma singular como ela tem feito laço. No caso das crianças imigrantes, a expectativa pelo diagnóstico é bastante similar; no entanto, as dificuldades no contato com a família imigrante, assim como com seus traços culturais e idiomáticos, podem dificultar as diferenciações entre as situações e gerar uma tendência equivocada e apressada ao diagnóstico.
Crafa (2017) compilou estudos em diversos países, indicando que crianças filhas de imigrantes têm um risco maior para o diagnóstico de autismo, comparadas a não-imigrantes. A denominada teoria imigrante do autismo (imigrant theory of autism) enfatiza fatores epigenéticos (carga ambiental que ativa determinados genes) e fatores ambientais e sociais que afetariam a gravidez da mulher imigrante e o desenvolvimento da criança14. Das suas conclusões, podemos apreender que há uma maior produção de diagnóstico de autismo nessa população, ou seja, uma tendência à redução patológica de impasses de diversas ordens: sociais, culturais, idiomáticos, identitários.
A própria autora ressalta o risco da patologização da diferença, quando crianças com matrizes culturais diferentes das ocidentais hegemônicas podem ter traços culturais tomados como sintomas de autismo, ou seja, "às vezes cultura pode parecer autismo e autismo pode parecer cultura" (Crafa, 2017, p. 60). Como exemplo, ela cita padrões de comunicação, às vezes mais retraídos ou que evitem o contato visual, ou ainda dificuldades com a expressão da língua, que podem ser interpretados como sinais de atraso no desenvolvimento. Podemos citar também o alto índice de diagnóstico de autismo dado a crianças filhas de imigrantes brasileiros no Japão (Tobace, 2016), que parece refletir muito mais uma desadaptação à cultura do que uma condição psicopatológica.
A "epidemia" de diagnósticos de autismo que vemos atualmente evidencia como o discurso científico vem se afirmando como única verdade sobre a experiência do sujeito, codificando-a sob a forma de "check list" de sinais e sintomas. No contexto de famílias imigrantes, o diagnóstico de autismo pode anular toda a singularidade que essa criança vive, inclusive os impasses que sua condição de filha de imigrantes, e todo seu repertório cultural e simbólico, colocam na relação com o mundo. O diagnóstico de autismo, como fruto do discurso de autoridade médica, muitas vezes reafirma o silenciamento das crianças e suas famílias na produção de narrativas próprias sobre si e sobre o seu sofrimento, restando a elas obedecer à prescrição médica. Impõe-se, então, o desafio de tentar escapar dessa armadilha e desmontar essa poderosa rede discursiva para se encontrar com o sujeito, e para que este possa se indagar sobre suas questões e constituir seu próprio saber sobre si.
Sustentar perguntas, habitar fronteiras
Guiados pela experiência imigrante, buscamos explorar alguns atravessamentos que a posição estrangeira no laço e no discurso social pode operar nas transmissões familiares, culturais e idiomáticas, indagando o que desse processo se relaciona ao silêncio expresso pelas crianças que recebemos. O sintoma de não falar, por mais que expresse impasses singulares na história de cada sujeito, no que diz respeito a enlaçar-se no campo social, desejante e linguageiro, também sugere um sintoma social, um silenciamento carregado de vetores históricos, políticos e identitários.
As situações que trazemos como enigma são, talvez, aquelas em que a condição imigrante se torna um fator de vulnerabilidade nos processos constitutivos primordiais do sujeito. É importante frisar que se trata do recorte das crianças que nos chegam buscando ajuda, em contraste a todas as outras, filhas de imigrantes, que crescem sem apresentarem essas questões. Não queremos, portanto, defender uma correlação entre imigração e impasses na constituição psíquica, mas sim formular perguntas sobre como as vulnerabilidades associadas podem incidir sobre o psiquismo. Falamos aqui de vulnerabilidades referentes à criança, a seus pais e famílias, relativas ao lugar social que ocupam, às condições materiais que encontram para o cuidado das crianças, ao impedimento (ou não) dos pais de viverem uma relação simbólica com sua origem e de a transmitirem aos filhos.
No trabalho clínico com as crianças e famílias, é essencial considerar estas múltiplas compreensões como guias de alerta contra compreensões mecânicas onde as diferenças permaneçam invisíveis. Caso contrário, o diagnóstico de autismo (ou mesmo outros diagnósticos) pode responder e simplificar esse complexo encadeamento, e tornar-se, o próprio diagnóstico, um fator de vulnerabilidade, terminando por restringir as possibilidades de interação e de aposta na criança e em seu potencial. Correlações diretas entre imigração e autismo podem reforçar um olhar que desconsidera a diversidade daquele que é considerado estrangeiro e de suas condições de vida, na tentativa de normatizá-lo a partir de parâmetros pretendidos (ou supostamente) universais.
Nossa proposta aqui é buscar manter uma disposição para um olhar que crie diferenciações, inclusive na pesquisa diagnóstica. Jerusalinsky (2011) ressalta como a infância é um momento privilegiado, em que o psiquismo se encontra mais favorável a inscrições e reinscrições. Os diagnósticos poderiam criar um engessamento dessa plasticidade e produzir uma profecia autorrealizável a partir de sinais cristalizados precocemente.
Também é importante lembrar que, para crianças pequenas, toda condição simbólica no seu entorno faz radical diferença. O tempo da infância é um tempo de constituição, que necessita certos pressupostos de laços, a presença e o olhar de outros humanos, assim como condições para que estes laços se façam e possam constituir afetivamente a criança. Se os diagnósticos prematuros podem cristalizar situações, também as intervenções feitas geram uma demanda para a criança, à qual ela pode responder rapidamente.
Da mesma forma, as indagações aqui trazidas se propõem a desdobrar questões a partir da experiência com essas famílias, mantendo as leituras em aberto. O desafio é, portanto, habitar fronteiras linguísticas, culturais e psíquicas, favorecendo um campo de escuta e de fala, uma zona bilíngue. O silêncio das famílias e sua atitude de receio no contato requer inicialmente um investimento ativo, que busque enlaçar o sujeito e propor um espaço de confiança para o trabalho. Em nossa experiência, somente produzindo esse espaço, essa ponte entre dois (ou mais) universos, é que podemos acessar as dimensões de sofrimento dos sujeitos e um espaço de acolhimento e de escuta e fala. Pouco a pouco, portanto, o silêncio pode dar lugar às histórias da família, da criança, aos primeiros balbucios e palavras.
É também nesse espaço de escuta que podemos acessar a singularidade que cada criança e família trazem, e criar hipóteses e diagnósticos de cada situação, enraizados nas dimensões subjetivas e afetivas envolvidas na constituição desses pequenos sujeitos. Assim, a criação de pontes e travessias é que fortalece a construção de um discurso próprio, que alinhava passado, presente e a projeção de um futuro. Como no aforismo aymará citado, qhipnayra uñtasis sarnaqapxañani: caminhar pelo presente se faz sempre olhando para o entrelaçamento entre futuro e passado; entre os rastros da história marcados na memória e no corpo, e o futuro, como desconhecido e novo, e que vai se fundar na relação com o passado.
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Recebido em setembro de 2020 Aceito em fevereiro de 2021.
1 Recentemente, em maio de 2020, lamentamos o assassinato do imigrante angolano João Manuel na Zona Leste de São Paulo, motivado por racismo e xenofobia.
2 Este texto foi produzido no contexto do curso Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientae, tendo o fundamental apoio de Renata Guarido, e buscou expressar construções coletivas teórico-clínicas da equipe do CAPSij tecidas por suas trabalhadoras ao longo de muitos anos.
3 O CAPSij Mooca Giravida existe desde 1992. Inaugurado pela então prefeita Luiza Erundina de Sousa, foi uma das primeiras experiências em saúde mental infantojuvenil da cidade de São Paulo, inicialmente como um Hospital Dia Infantil, depois como um CAPSij.
4 Neste CAPSij, as primeiras crianças filhas de bolivianos foram atendidas há cerca de 15 anos. Estas não falavam e somente imitavam o barulho das máquinas de costura ou do rádio que ficava ligado.
5 Muitas famílias não têm documentos legalizados para permanência no país ou apresentam algum tipo de irregularidade junto aos órgãos oficiais.
6 Todos os nomes utilizados são fictícios, para garantir o anonimato dos usuários.
7 A oferta de serviços públicos de acesso universal no Brasil, como escolas e saúde pública, também é um atrativo, dado que na Bolívia em muitos lugares não se oferecem esses recursos.
8 Em muitos casos, essas condições configuram trabalho análogo ao escravo e são fiscalizadas pelo Ministério Público e outras organizações. A denominação trabalho escravo, entretanto, é evitada por grupos que atuam junto aos imigrantes e pelos próprios, por poder aprisioná-los a esse significante, estigmatizando-os.
9 Literalmente, "perdido na tradução" se refere tanto ao sentido que pode se perder quando algo é traduzido para outro idioma, como ao próprio sujeito, perdido por não encontrar uma tradução.
10 A violência e o ódio ao indígena podem ser ilustrados nas cenas de queima da bandeira Whipala, símbolo da diversidade de povos que compõem a Bolívia, por ocasião de uma crise política, em novembro de 2019.
11 Na maior parte dos casos, as crianças são encaminhadas pela escola quando estão iniciando a EMEI (4 ou 5 anos), sem nunca terem frequentado a creche.
12 Realizada em duas escolas da periferia de Buenos Aires que atendiam filhos de indígenas e imigrantes bolivianos, paraguaios e peruanos.
13 As escolas, por sua vez, argumentam que não há direcionamento nem formação específica oferecida pela Secretaria de Educação sobre como lidar com a questão da imigração, e que é impossível debruçar-se sobre a essa questão com a sobrecarga de trabalho e escassez de recursos humanos.
14 Uma interessante exceção na correlação é o denominado paradoxo latino: entre a comunidade hispânica nos EUA (especialmente a de origem mexicana) há taxas menores de autismo em comparação com famílias não imigrantes. Uma hipótese para explicar esse dado é a importância de uma forte rede social que dê suporte à mãe e iniba fatores estressores após a imigração (Crafa, 2017).
Revisão gramatical: Orlando Joia
E-mail: ojoia@uol.com.br