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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.11 no.1 Rio de Janeiro June 2008

 

 

Interconsulta psicológica

 

 

Marcele Regine de Carvalho*; Maria Alice LustosaI**

I Santa Casa da Misericórdia do RJ

 

 


RESUMO

A assistência em saúde pública é tarefa complexa e requer abordagem e intervenções baseadas em diferentes variáveis e em seus pontos de encontro. É neste contexto que a prática do conceito de interdisciplinaridade se mostra necessária. Uma forma de atuação que se baseia neste conceito é a interconsulta. O presente estudo visou revisar, principalmente nas bases de dados PubMed e SciELO, a literatura que aborda a interdisciplinaridade na área da saúde e a interconsulta psicológica, de forma a explicitar as contribuições de tais práticas para o atendimento integral do usuário do sistema de saúde, e também apontar as limitações que precisam ser superadas. Sabe-se que a interconsulta favorece a humanização do atendimento e enriquece a formação profissional do interconsultor. Nota-se a existência de um consenso sobre o conceito de interconsulta, porém sua prática ainda carece de investigações com adequado delineamento metodológico e que abordem os resultados das intervenções realizadas, principalmente na área de psicologia, em que poucas pesquisas são encontradas. A partir deste estudo, espera-se contribuir para a divulgação deste serviço e estimulação de novas pesquisas que ajudem a aprimorar, nortear e difundir o atendimento de interconsulta psicológica.


ABSTRACT

Public health assistance is a complex task and its approach and interventions must be based on different variables considering their intersections. In this context, putting the interdisciplinary concept into practice is necessary. One way of action that is based on this concept is consultation-liaison. This study aimed to review, mainly in PubMed and SciELO databases, literature that addresses psychological consultation-liaison in order to clarify the contributions of such practice for the integral attendance of the health system users, and also pointing out the constraints that must be overcome. It is known that the consultation-liaison favors the humanization of care and enriches the professional formation. There is a consensus on the concept of consultation-liaison , but its practice still needs research with appropriate methodological design and with an approach that addresses interventions' outcomes, particularly in the psychological field in which few researches are found. From this study a contribution to the spreading of this the referred service is expected as well as the stimulation of new research that will help improve and guide the psychological consultation-liaison care.


 

 

Introdução

A assistência em saúde pública é tarefa complexa e, conseqüentemente, requer abordagem e intervenções também complexas. Falar em saúde implica abordar variáveis anatomo-fisiológicas, sociais, culturais, psicológicas, epidemiológicas, ecológicas, políticas etc. É um amplo leque de variáveis que necessariamente funcionam como uma rede: interrelacionam-se em diferentes e, talvez, imprevisíveis pontos.

Como tentar compreender tal cenário tão múltiplo apenas por recortes distintos, ou seja, sem integrar as diferentes variáveis que o compõem? Como intervir de forma coerente sem trocar conhecimentos e expandir conceitos?

A partir de tais considerações nota-se a importância não apenas do conceito de interdisciplinaridade, mas da tentativa incessante de colocá-lo em prática. Isto significa envolver diferentes profissionais que estejam preparados para intercambiar saberes de forma que se complementem, gerando alternativas e soluções pertinentes e eficazes para cada caso abordado. A necessidade de intervenções conjuntas é clara, mas sua implementação nem sempre acontece por diferentes empecilhos, que vão desde limitações pessoais e práticas até institucionais e políticas.

Uma aplicação interessante do conceito de interdisciplinaridade na saúde diz respeito à interconsulta. A interconsulta consiste na presença de um profissional de saúde em uma unidade ou serviço médico geral atendendo à solicitação de um médico em relação ao atendimento de um paciente. Isto garante um atendimento global do paciente, tendo a psicologia um importante papel a cumprir neste contexto. Assim, a interconsulta psicológica pode em muito contribuir em conjunto com outros profissionais para uma abordagem biopsicossocial do paciente.

O presente estudo visou revisar a literatura que aborda a interconsulta psicológica, de forma a explicitar as contribuições de tais práticas para o atendimento integral do usuário do sistema de saúde e também apontar as limitações que precisam ser superadas neste contexto.

Tendo em vista os objetivos supracitados, o estudo se concentrou no mapeamento teórico da literatura que trata da interconsulta psicológica. Para tal, foram explorados os seguintes pontos: a) O conceito de interconsulta, com ênfase no papel da psicologia no exercício desta função; b) Os pontos positivos e as limitações do trabalho de interconsulta.

As fontes bibliográficas foram pesquisadas através de: a) fontes eletrônicas: PubMed e SciELO, com delimitação do período de publicação de 1970 a 2006; b) revisão de capítulos de livros textos sobre interconsulta. As palavras-chaves utilizadas na pesquisa foram: interconsulta, consultation-liaison, consultoria psicológica, consultoria psiquiátrica, hospital geral, humanização. Foram utilizados textos em inglês e português.

 

O Conceito de Interconsulta

No Brasil, os hospitais gerais passaram a contar com enfermarias psiquiátricas na década de 50, mas sua real valorização só foi possível a partir da reforma psiquiátrica que, através da Lei n° 10216 de 06 de abril de 2001, recomenda a criação de unidades psiquiátricas em hospitais gerais, fazendo com que a relação já existente entre a psiquiatria e outras especialidades médicas se tornasse norma. Com a entrada da psiquiatria nos hospitais gerais foi possível constituir um novo campo de atuação, a interconsulta, que começou a ter destaque na década de 80 (Schmitt & Gomes, 2005).

Schmitt e Gomes (2005) consideram a interconsulta uma atividade interprofissional e interdisciplinar. De acordo com os autores, a interconsulta pode ser definida como a presença de um médico psiquiatra em uma unidade ou serviço médico geral atendendo à solicitação de um médico de outra especialidade. Os objetivos desta forma de atuação seriam (Schmitt & Gomes, 2005, p.72):

  • Atuar na interface com a Medicina em geral (difundir o conhecimento psiquiátrico entre outras áreas da Medicina, auxiliar e instrumentalizar o médico não psiquiatra a reconhecer e tratar situações de natureza psiquiátrica);
  • Auxiliar na assistência ao paciente de hospital geral, ajudando no diagnóstico e no tratamento de pacientes com comorbidade entre doença clínica e doença psiquiátrica;
  • Colaborar na abordagem psicossocial do paciente;
  • Auxiliar na tarefa de ensino e pesquisa.

Uma definição também ampla do conceito de interconsulta que compreende não só a assistência ao paciente e à equipe, mas também inclui a pesquisa e o ensino que beneficiem estes e também a instituição de saúde, é verificada por Scherer, Scherer e Labate (2002), Smaira, Kerr-Corrêa e Contel (2003) e Craig e Pham (2006).

Zavaschi, Lima e Palma (2000) definem a interconsulta como as ações desempenhadas pelos profissionais de saúde mental junto a outros profissionais no hospital geral. Os autores dão ênfase ao emprego genérico do termo interconsulta psiquiátrica em lugar de consultation-liason psychiatry. Desmembram tal termo de forma a dar-lhe seus significados originais. A consultoria (consultation) diz respeito à atuação do interconsultor na avaliação do paciente e na formação de hipóteses e de recomendações oferecidas às equipes solicitantes. Já no trabalho de ligação (liason) o interconsultor atua de forma mais direta no atendimento ao paciente, ainda como membro da equipe.

Martins (1992) ressalta como objetivos da interconsulta: a modificação do padrão de assistência centrada no trabalho para uma que dê ênfase ao paciente; a valorização do papel da relação médico-paciente e o aprofundamento do estudo da situação do paciente e dos profissionais nas instituições médicas. A partir destes objetivos, o autor aponta quatro principais áreas que têm sido investigadas na interconsulta. São elas: estudos descritivos, de avaliação, de diagnóstico e dos mecanismos pelos quais fatores psicossociais interferem no adoecer.

Outra possível definição da principal tarefa da interconsulta, citada por Andreoli e Mari (2002), é assistir a quem dá assistência, cooperar na tarefa a ser realizada trabalhando em conjunto com a equipe médica. Os mesmos autores ainda destacam que a interconsulta sempre compreende a semiologia dos aspectos psicológicos que concernem à relação médico-paciente: como ocorrem e como são conduzidos.

Para Menchetti, Tarricone, Bortolotti e Berardi (2006) os principais aspectos da interconsulta dizem respeito a desenvolver uma colaboração contínua com os médicos, melhorar a qualidade do tratamento para pacientes com transtornos psiquiátricos e modificar os caminhos da assistência: dar suporte aos médicos generalistas no manejo dos casos psiquiátricos mais simples e focar o atendimento de saúde mental nos casos severos ou de difícil tratamento.

 

A Importância da Interconsulta em Saúde Mental

A hospitalização representa um desafio à capacidade de adaptação do indivíduo, provocando diferentes reações; tanto positivas, de enfrentamento, quanto negativas, interferindo no restabelecimento. As respostas do indivíduo à doença e/ou à internação são moduladas por fatores biopsicossociais. Estas respostas acarretam mudanças no auto-conceito e na auto-imagem do indivíduo, em seu estilo de vida, na dinâmica dos relacionamentos familiar e social (Scherer et al., 2002). Sendo assim, o adoecer e a consequente necessidade de cuidados são fatores potenciais de estresse. Sabe-se que a permanência prolongada do paciente no hospital pode não apenas ser consequência direta de sua patologia, mas também da severidade de relações patológicas estabelecidas no ambiente hospitalar, tornando o tratamento mais difícil (Andreoli & Mari, 2002).

A maior permanência também pode ser decorrente de patologias psicológicas ou psiquiátricas (Andreoli & Mari, 2002). Um importante dado aponta que 30% a 50% dos pacientes internados em hospital geral podem apresentar um transtorno psiquiátrico, e apenas 1% a 12% são encaminhados para avaliação ( Smaira et al. , 2003). Além disso, transtornos psiquiátricos estão fortemente associados com a presença de doenças físicas (Creed, 2003; Smaira et al. , 2003).

Transtornos psiquiátricos em atendimento primário e em hospitais gerais geralmente não são reconhecidos ou adequadamente tratados por conta de sua alta prevalência ou pela demanda do sistema de saúde. Arolt et al. (1995) apontam, em um estudo sobre a prevalência e as necessidades de tratamento de pacientes com transtornos psiquiátricos, que 25% dos pacientes internados e de departamentos cirúrgicos de um hospital na Alemanha foram indicados para tratamento psicoterapêutico contínuo. Mais um dado que reforça a necessidade da detecção e tratamento (manejo) dos transtornos psiquiátricos no ambiente hospitalar.

Vários estudos apontam os custos e as consequências negativas de negligenciar o manejo de transtornos psiquiátricos e queixas psicossociais durante o tratamento. Sobre os custos e a utilização dos serviços médicos, sabe-se que tal negligência acarreta na maior duração do tratamento médico, mais frequente e menos apropriada utilização de diagnósticos médicos e procedimentos, além de repetidas e desnecessárias readimissões hospitalares. Em relação ao bem-estar do paciente, a falha em identificar e tratar adequadamente queixas psiquiátricas ou psicológicas leva a um atendimento deficiente e ao sofrimento desnecessário (de Cruppé et al., 2005).

O aumento do conhecimento de bases biológicas e sociais de comuns transtornos psiquiátricos e a evidência de tratamento adequado e efetivo para diversos transtornos acabam por aumentar a necessidade de tratamento apropriado dos pacientes de hospitais gerais. A prevalência e a severidade de transtornos que envolvem a interface do somático e psíquico, considerando não apenas os transtornos psiquiátricos, mas também somatizações e comorbidades físicas/psiquiátricas, servem de argumento para que tais patologias recebam devida atenção durante a permanência do paciente no ambiente hospitalar (Creed, 2003).

Diferentes autores descreveram os motivos que levavam clínicos, cirurgiões e outros membros da equipe de saúde a requisitar interconsulta psiquiátrica; os mais comuns foram: dúvidas sobre o diagnóstico do paciente, colaborar com o diagnóstico diferencial entre patologias orgânicas e psicológicas, persistência de reclamações do paciente, comportamento de paciente que perturba o funcionamento da enfermaria, a sensibilização da equipe pelas atitudes do paciente e a dificuldade em lidar com sentimentos e reações decorrentes, risco e/ou tentativa de suicídio, pacientes com transtornos psiquiátricos e problemas na relação médico-paciente ( Smaira et al. , 2003).

Em um estudo conduzido no Hospital clínico da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP); Smaira et al. (2003) fizeram um levantamento sobre os motivos de requisição de interconsulta. A maioria dos pedidos, acompanhados de orientação sobre a conduta necessária, referiu-se a alteração comportamental concomitante com humor depressivo, assim como elação, com agitação ou dificuldade de descanso. Em seguida, constatou-se pedidos sobre dúvidas diagnósticas ou terapêuticas. As outras solicitações referiam-se à presença de antecedentes psiquiátricos ou dificuldades no relacionamento com o paciente.

Já na avaliação dos interconsultores em decorrência dos pedidos de interconsulta, neste mesmo estudo (Smaira et al., 2003), constatou-se os seguintes diagnósticos: transtorno mental de base orgânica (29,8%), alteração decorrente de abuso de álcool (21,3%), transtornos depressivos (21,3%), transtornos ansiosos e conversivos (10,6%). Também foram encontrados casos em que não cabiam diagnósticos psiquiátricos (4,2%).

Smaira et al. (2003), além dos dados já apresentados, citam diversos estudos que apontam os motivos e a freqüência de pedidos de interconsulta, assim como o diagnóstico dado aos pacientes a partir da avaliação dos interconsultores. Dois deles destacam-se ao interesse deste estudo, já que foram realizados no Brasil, ambos no Hospital Clínico da Universidade de Campinas (UNICAMP). Um deles ressalta os principais pedidos de interconsulta psiquiátrica como sendo: avaliação da condição mental do paciente, ajuda no diagnóstico diferencial entre patologias orgânicas e psiquiátricas, acompanhamento de pacientes submetidos a procedimentos traumáticos e requisições decorrentes de desajuste na relação médico-paciente. O outro aponta os principais diagnósticos elaborados a partir de interconsulta, em ordem de freqüência: reações de ajustamento, depressão e psicose orgânica.

Tendo em vista a necessidade de atendimento pelas requisições e avaliações supracitadas, para que o atendimento seja coerente, a avaliação do interconsultor deve incluir definição de diagnóstico psiquiátrico (quando for o caso), identificação de sintomas ou problemas relatados pelo paciente, eventos significantes e a possível descrição de comportamentos de enfrentamento disfuncionais (Menchetti et al., 2006).

O serviço de interconsulta em saúde mental pode oferecer intervenções terapêuticas focais que dêem suporte ao tratamento oferecido por médicos generalistas, o que reforça o cuidado ao paciente compartilhado pela equipe.

O interconsultor tem também como função auxiliar no entendimento das reações da família, da equipe e do paciente. Pode ajudar na identificação e no manejo de reações mal adaptativas ao estresse. Pode servir de suporte para a equipe responsável pelo paciente, a qual, em momentos difíceis, pode perder a capacidade decisória, o equilíbrio emocional e/ou a habilidade de conduzir a situação (Zavaschi et al., 2000).

Ainda como importante papel do interconsultor, pode-se citar, quando necessário, a prescrição de psicofármacos (quando, neste caso, o interconsultor for um médico psiquiatra. Sendo outro profissional de saúde, tem como função solicitar parecer psiquiátrico para avaliação da necessidade medicamentosa); assim como intervenções psicológicas pertinentes à situação hospitalar. Reuniões com médicos e outros profissionais da equipe de saúde podem ser solicitadas, de maneira que o interconsultor possa conhecer as experiências e as opiniões dos outros profissionais, assim como estes possam adquirir conhecimento prático em relação ao trato com o paciente (Menchetti et al., 2006).

Nota-se a variedade dos casos em que pode ser útil e essencial a presença do interconsultor. Os interconsultores voltados à saúde mental têm a incumbência de manejar as dificuldades apontadas acima, sendo sua atuação de essencial importância tanto para a recuperação do paciente e o bem-estar da família, quanto para o trabalho mais saudável da equipe hospitalar.

Utilizar-se de uma visão biopsicossocial, centrada no paciente, visando a humanização do atendimento, considerando a qualidade vida de todos aqueles presentes no ambiente hospitalar, são formas de manejar as situações que envolvem a ação da equipe de saúde mental, destacando a importância da atuação ativa e constante destes profissionais nas instituições de saúde.

 

Efetividade e limitações da interconsulta

Diversos são os pontos positivos envolvidos no trabalho interdisciplinar da interconsulta, porém neste campo de atuação muitas limitações ainda se fazem notar. Ambos os aspectos serão abordados a seguir.

Quanto à efetividade, sem dúvida a humanização do atendimento e o foco no paciente diante de uma concepção biopsicossocial são pontos essenciais a se destacar. A preocupação da atuação de interconsulta em conciliar aspectos relacionados a uma visão global do paciente, aspectos que visam a relação médico-paciente, a contratransferência percebida pelo médico e implicações institucionais denotam uma abordagem ampla, que em contrapartida pode ser por demais complexa devido a sua diversidade.

Martins (1992) cita a possibilidade que este campo de atuação proporciona ao interconsultor de ampliar sua formação. São abordadas questões relacionadas ao adoecer nos campos da psicologia e psicopatologia, que se estendem do âmbito individual ao institucional, como também questões referentes à interação entre os fatores biológicos e psicossociais. Além disso, é um trabalho que possibilita o conhecimento mais profundo das instituições assistenciais e a possibilidade de desenvolvimento de pesquisas também neste âmbito.

Em uma pesquisa que visou avaliar alguns fatores que influenciam a prática de interconsulta psiquiátrica, Botega et al. (2000) constatou que os profissionais que trabalham nesta área sentem-se motivados por sua vocação, pela possibilidade de renovar conhecimentos e de expandir seu relacionamento profissional. Porém os profissionais também citaram dificuldades, tais como: irregularidade das chamadas dos outros profissionais, desvalorização do psiquiatra pelos outros médicos, remuneração insuficiente, ambiente de trabalho adverso, desvalorização das atividades por outros psiquiatras. Na investigação, o desgaste físico ou emocional também foi muito enfatizado.

Não ter vinculação com uma equipe de interconsulta e fazer consultoria esporadicamente significa, para grande parte dos profissionais abordados, entrar em campo só para atender casos especiais, sem o compromisso com a manutenção do serviço. E estas características influenciam em muito a qualidade de trabalho. Além disso, Botega et al. (2000) ainda fazem importante consideração sobre a interconsulta e seu status na saúde brasileira: como a interconsulta não é prevista pelo SUS e por diversos convênios, acaba sendo desconsiderada, tendo o profissional que oferecer “amostra grátis” de seu trabalho para que as vantagens do mesmo sejam percebidas.

Na mesma pesquisa, foram abordados profissionais que desistiram de trabalhar na área de interconsulta. Os principais motivos apontados foram: falta de tempo, honorários insuficientes, falta de oportunidade de trabalho na área e preferência pelo trabalho individual com o paciente.

Martins (1992) aponta dificuldades relatadas por médicos psiquiatras relacionadas a aspectos institucionais. Eles citam a grande demanda de pacientes, a demora, a falta de recursos materiais, o pouco tempo destinado a cada consulta e também o tipo de paciente atendido. A partir deste relacionamento conturbado com a instituição, é possível que o profissional, com sua auto-estima abalada, acuse a impotência da instituição ou do paciente, “defendendo-se” de sua própria frustração, o que é passível de desviá-lo de seu foco de trabalho e influenciar suas intervenções. Esta consideração pode também ser estendida a outros profissionais de saúde, não excluindo o psicólogo interconsultor.

Outras limitações ainda envolvidas no serviço de interconsulta abarcam a formação e a forma de diagnóstico e conduta dos profissionais que atuam nesta área. O verdadeiro potencial da interconsulta acaba por ser prejudicado pela formação falha dos profissionais, principalmente no conhecimento que abarca a interface entre biomedicina, psicologia e psiquiatria (Andreoli & Mari, 2002; Malt, 2003). Além disso, a não padronização da avaliação e dos critérios diagnósticos utilizados dificulta o cruzamento de informações em pesquisas científicas (Smaira et al., 2003), interferindo também nas intervenções realizadas. Outro ponto importante, que sofre influência das considerações anteriores, é a necessidade de produção de evidências que comprovem a eficácia das intervenções dos serviços de interconsulta (Smith, 2003). A formação insuficiente, sem uma uniformização de conduta e adequação para pesquisa, inviabilizam a verificação da efetividade das atuações e repercussões dos serviços prestados por interconsultores, prejudicando o aperfeiçoamento das intervenções realizadas.

Outro aspecto importante é escassa solicitação de interconsulta em relação a desordens psiquiátricas, variando de 1 a 13% dos casos encontrados. As poucas solicitações decorrem da não identificação dos casos pelos médicos ou pela equipe de enfermagem, embora alguns sintomas sejam reconhecidos pela equipe. Mas mesmo estes sintomas reconhecidos não resultam em solicitação de interconsulta. Tal fato não apenas mantém o problema vigente, como pode aumentar a morbidade e a mortalidade nos hospitais gerais. Porém não se deve responsabilizar apenas a equipe médica ou de enfermagem nestes casos. A responsabilidade também é da equipe de interconsultores, já que a organização do serviço de interconsulta também tem interferência nas taxas de encaminhamento para o próprio serviço (Smaira et al., 2003).

Muitas vezes, também, a interconsulta é solicitada de forma vaga, através de parecer que solicita apenas avaliação e conduta, sem mencionar os sintomas, a patologia ou situações experienciadas pelos pacientes. A maioria das solicitações diz respeito a problemas vivenciados pelos pacientes, sem haver relato de possíveis dificuldades que possam ter surgido da relação médico-paciente (Smaira et al., 2003).

 

A Interdisciplinaridade na Interconsulta Psicológica

A maioria das publicações sobre interconsulta referem-se à interconsulta psiquiátrica, área em que esta especialidade foi constituída. Porém é possível expandi-la para outros profissionais em saúde. Schmitt e Gomes (2005) esclarecem esta necessidade ao apontar três áreas de atuação definidas como as principais na interconsulta psiquiátrica: a avaliação psiquiátrica clínica, a avaliação psicológica e familiar e a avaliação de aspectos bioéticos. A partir de áreas tão diversificadas de ação, os autores colocam a necessidade da participação de uma equipe de profissionais de distintas áreas da saúde, que comporiam a equipe de interconsulta psiquiátrica. Um exemplo de profissional de saúde envolvido nesta equipe seria o psicólogo. Desta forma, nota-se a percepção da psiquiatria da necessidade do trabalho interdisciplinar e do reconhecimento da importância da psicologia na avaliação psiquiátrica. Questiona-se por que não expandir então a denominação da interconsulta como psicológica, e também por que não tornar mais ampla a denominação da equipe de interconsulta, como interconsulta de equipe de saúde.

Como no trabalho interdisciplinar as disciplinas não perdem identidade, há campo para psiquiatria, psicologia e demais áreas de saúde. Aliás, não só existe campo, mas a necessidade da participação dos diversos profissionais para que o objetivo de atendimento biopsicossocial seja atingido. Desta maneira, a psicologia pode começar a ser citada e requisitada na interconsulta, como denota Martins (1992), para o trabalho em conjunto com outros profissionais. Porém, para que isso aconteça, são necessárias: a divulgação desta atividade, a inserção dos profissionais nos serviços de saúde e a devida pesquisa para aprimorar sempre os serviços prestados; além, também, da flexibilidade da equipe. Requisitos não muito fáceis de serem atendidos.

O papel da psicologia no ambiente hospitalar é bastante amplo, sendo assim o interconsultor psicológico tem um trabalho complexo a desempenhar, que vai englobar três principais níveis de atividade: assistência psicológica a pacientes, famílias e equipe de saúde; realização de pesquisas científicas e promoção de conhecimentos teórico-técnicos. O psicólogo envolve-se em atividades psicoterapêuticas, preventivas e pedagógicas; tendo como função primordial ser um agente de mudança na instituição de saúde (Lustosa, 2000).

 

Conclusão e considerações finais

O diversificado cenário da área de saúde necessita de constante investigação, de forma a construir conhecimentos que possam ser revertidos à população em geral, garantindo seu direito à saúde, qualidade de vida e bem-estar. Porém, estudar e aprimorar variáveis tão complexas não é tarefa simples e, cada vez mais, profissionais são solicitados a colaborar. O espaço hospitalar, por exemplo, antes caracterizado como exclusividade da equipe médica e de enfermagem, hoje, a partir da evolução do conhecimento em outras áreas da saúde, cede espaço para outras especialidades, tais como: nutrição, psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, serviço social etc. Porém, a ocupação deste espaço por diferentes especialidades profissionais não garante que o trabalho esteja ocorrendo em conjunto, que esteja havendo troca de informações e integração entre conhecimentos fronteiriços; ou mesmo que as demandas dos usuários estejam sendo atendidas de forma humanitária, ou seja, de maneira integral.

Daí a importância da interdisciplinaridade. E como uma forma de aplicação deste conceito, ainda muito teórico mas em busca de uma prática mais concreta, se pode apontar o trabalho de interconsulta. E de forma mais específica, de acordo com o foco deste estudo, o trabalho de interconsulta psicológica. Verificou-se na literatura que não há discordância acerca do conceito de inteconsulta, mas que sua prática precisa ser melhor estudada.

O interconsultor é um profissional de saúde que participa do processo de atendimento que o paciente recebe no serviço de saúde (Gorayeb, 2001). Embora tecnicamente a responsabilidade pelo atendimento global do paciente seja do profissional que solicita o pedido de interconsulta, os interconsultores também são responsáveis por prezar a integralidade de atendimento e de abordar o maior número de variáveis possíveis em conjunto (a equipe de interconsulta), avaliando de forma ampla cada paciente.

Neste panorama, as atribuições do psicólogo interconsultor são inúmeras, começando, talvez, por prezar e difundir o trabalho em equipe já no momento do pedido de interconsulta. De forma geral, o papel do psicólogo na interconsulta pode basear-se no trabalho de psicologia hospitalar. Ele tem a função de apoiar, informar (e certificar-se que a informação foi compreendida) e intervir em aspectos relacionados à saúde bio-psico-socio-espiritual do paciente, sua família e equipe; promover um relacionamento saudável entre equipe, família e paciente; colaborar na comunicação e relacionamento da equipe de saúde; informar à equipe, respeitando a ética, sobre aspectos importantes relacionados ao trato ou entendimento da situação do paciente naquele contexto específico; promover atividades de ensino e pesquisa visando divulgar e aprimorar conhecimentos.

Portanto, para que estes papéis sejam representados de forma adequada e pertinente, segundo Besteiro e Barreto (2003, citado por Castro & Bornholdt, 2004, p. 52), a formação do psicólogo precisa contemplar conhecimentos sobre: “bases biológicas, sociais e psicológicas da saúde e da doença; avaliação, assessoramento e intervenção em saúde; políticas e organização de saúde e colaboração interdisciplinar, temas profissionais, éticos e legais e conhecimentos de metodologia e pesquisa em saúde”. Desta maneira preza-se pela qualidade da atenção prestada, aumentando a eficácia das intervenções e diminuindo custos; além de contribuir com o conhecimento (Castro & Bornholdt, 2004).

De forma específica, visando realizar uma atendimento focal, mas que considere as reais necessidades dos pacientes, incluindo atenção ao contexto em que estão inseridos e a relação com a equipe que o atende, é importante que o psicólogo interconsultor possa inicialmente realizar uma análise funcional do ambiente e das demandas impostas por paciente e equipe (Gorayeb & Rangé, 1998, citado por Gorayeb, 2001).

A partir de tais avaliações e do entendimento sobre o funcionamento do paciente, família e equipe, e sua interrelação contextualizados no ambiente hospitalar, estratégias de intervenção podem ser traçadas e colocadas em prática. A proposta de um plano de ação junto à equipe de forma a contribuir com o restabelecimento do paciente deve ser feita de forma concreta e objetiva, e precisa ser passada em linguagem clara, que aumente a possibilidade de comunicação efetiva (Gorayeb, 2001).

Apesar das imensas potencialidades do serviço de interconsulta, muitas barreiras ainda se impõem e, consequentemente, seu aperfeiçoamento, divulgação e disseminação acabam por ser prejudicados. Algumas destas limitações, muitas vezes estratégicas, são reforçadas a seguir.

No Brasil, o número de serviços de interconsulta psiquiátrica é desconhecido, e sua quase totalidade encontra-se em hospitais-escola (Scherer et al., 2002). Acredita-se que o mesmo seja verdadeiro para a interconsulta psicológica. Além disso, cabe destacar a escassez de pesquisas na área de inteconsulta psicológica.

Um campo de expansão para a interconsulta é o atendimento primário em saúde e a medicina geral fora do ambiente hospitalar, porém estudos de implantação e caracterização da população a ser atendida precisam ser realizados para que estes serviços venham a ser implantados.

Uma requisição universal diz respeito à integração, no cuidado ao paciente, da saúde física e mental. Porém, ainda são necessárias pesquisas sobre modelos de tratamento, melhores intervenções ou procedimentos, papéis do profissional e eficácia dos tratamentos (Lipsitt, 2003).

Apesar da extensa literatura sobre serviços de interconsulta, a maioria dela ainda é de caráter descritivo: trata da estrutura e do processo do trabalho em interconsulta. Muito poucos estudos avaliam os resultados do serviço prestado, sua eficácia. Apesar da pequena quantidade, há estudos de avaliações do serviço feitos tanto por profissionais quanto por pacientes, porém estes últimos são a minoria (Callaghan, Eales, Coates & Bowers, 2003).

Além disso, os critérios de pesquisa da maioria dos estudos são pouco confiáveis, necessitando de melhor delineamento metodológico. Uma necessidade a ser suprida neste aspecto, segundo Callaghan et al. (2003), é a maior completude de informações coletadas sobre a população atendida. A coleta destas informações visa facilitar a comparação entre serviços. Existe também a necessidade de estudos que comparem de forma sistemática diferentes modelos de serviços de interconsulta a partir da avaliação de resultados indicada pelos membros da equipe de saúde e também pelos pacientes.

A potencialização dos serviços de interconsulta passa não apenas pelo aperfeiçoamento clínico (que provém da investigação científica e atuação profissional), mas também por mudanças organizacionais. Algumas mudanças bem simples que podem ser implementadas, segundo Rigatelli e Ferrari (2004), seriam: definições mais rigorosas sobre o procedimento de intervenções, principalmente para situações clínicas comuns ou críticas; uso regular de formulários de pedido de interconsulta e resposta do parecer e o uso de base de dados computadorizada.

Sabe-se que muitos passos devem ser dados na área de interconsulta psicológica e que estes, muitas vezes, esbarram em questões financeiras, institucionais e estigmas profissionais. Porém, mesmo diante destas problemáticas, o profissional interconsultor não pode perder o foco de seu objetivo primordial que é trabalhar para a saúde do paciente, tendo em vista a humanização do atendimento.

A proposta de humanização deve estar presente no trabalho de interconsulta, já que este trabalho interdisciplinar exige comunicação aberta entre todos os envolvidos. É uma forma de respeito aos direitos do ser humano e de abodagem integral no processo saúde-doença, já que diferentes variáveis poderão ser levadas em consideração.

Mota, Martins e Véras (2006) citam pesquisas que apontam que a humanização traz melhoras no ambiente que traduzem-se na redução do tempo de internação, aumento do bem-estar dos pacientes e funcionários, diminuição das faltas de trabalho entre a equipe de saúde e redução dos gastos hospitalares, como consequência.

Conforme visto neste estudo, interdisciplinaridade, interconsulta e humanização são termos que caminham juntos e sua aplicação prática deve seguir este mesmo princípio. Espera-se que esforços sejam investidos em pesquisas enfocando especificamente a interconsulta psicológica, com desenhos metodológicos refinados e avaliação de resultados dos serviços prestados, de forma que os dados coletados possam ser tão fidedignos quanto o possível, possibilitando o direcionamento de futuras ações e a construção de formas mais eficientes de intervenção e manejo de situações hospitalares. Estes esforços são passíveis de reverter-se em garantia de direitos e em um bem-estar global. Desta forma, pode-se aumentar a visibilidade do serviço de interconsulta psicológica, possibilitando sua expansão, o que garantiria o maior acesso à população.

 

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* Marcele Regine de Carvalho: Psicóloga, Especialista em Psicologia Hospitalar pela Santa Casa da Misericórdia do RJ - marcelecarvalho@gmail.com
** Maria Alice Lustosa: Psicóloga, Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar da Santa Casa da Misericórdia do RJ-cepsirj@terra.com.br

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