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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.11 n.2 Rio de Janeiro dez. 2008
O corpo em desamparo: que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir?
A helpless body: who has eyes to see and ears to listen?
Nadja Nara Barbosa Pinheiro1
Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Paraná
RESUMO
O presente trabalho procura tematizar um tipo de adoecimento bastante comum de ser encontrado nas dependências hospitalares: o adoecimento psicossomático. Por meio de um caso clínico, tomado como disparador de questões teórico/clínicas, procura apresentar alternativas de compreensão teórica que sustente um manejo clínico adequado para os fenômenos psicossomáticos. Para tal, inicia pela apresentação da perspectiva freudiana sobre as neuroses atuais e psiconeuroses objetivando demonstrar como seus sintomas podem se implicar e sobrepor levando à constituição de uma neurose mista na qual o mesmo sintoma pode ser utilizado como ponto de interseção para expressar movimentos psíquicos diferenciados relativos a momentos de constituição subjetiva específicos. Apoiando-se na perspectiva winnicottiana, o texto finaliza apresentando a proposta de entendimento do adoecimento psicossomático como uma tentativa de defesa contra a desconstrução da interação psico/soma que uma vez efetivada lançaria o sujeito ao encontro de seu desamparo original.
Palavras-chave: Adoecimento psicossomático, Neurose atual, Psiconeurose, Psicossoma.
ABSTRACT
The present paper proposes a reflection on a disease frequently found at hospitals environment. It tries to respond some questions, which were brought up by a clinical case, in order to rich further theoretical understanding and a more adequate clinical handling on psychosomatic diseases. Thus, it presents Freuds perspective about Actual Neuroses and Psychoneuroses claiming to demonstrate that it is possible that a symptom be utilized by both neuroses at the same time. Those symptoms, however, are related to different psychological movements and specific stages of emotional development. By taking Winnicotts perspective, the paper finalizes proposing that we can understand psychosomatic diseases as a defense against the possibility of des construction of the integration of psycho/soma which once realized would lead the patient to his original helplessness.
Keywords: Psychosomatic diseases, Actual neuroses, Psychoneuroses, Psychosoma.
INTRODUÇÃO:
Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer o convite efetuado pela organização do evento para estar aqui hoje, compartilhando com vocês algumas das minhas reflexões, indagações, questionamentos e desde já os parabenizo pela importante e extremamente feliz iniciativa na organização de um espaço que procura enfatizar o trabalho que desenvolvemos em um hospital geral. Um trabalho que vem se tornando corriqueiro na vida do profissional de psicologia, mas que por não se constituir como o lócus tradicional de nossa ação nem da construção de nossos sistemas teóricos, tem demandado de nossa parte um grande esforço para torná-lo mais eficaz em termos terapêuticos, mais rigoroso em termos teóricos e mais reconhecido em termos profissionais. Essa tem sido nossa tarefa e esse evento, como outros, demonstra o quanto temos nos esforçado para que isso se torne realidade.
Eu tive a oportunidade de trabalhar em um hospital geral na cidade do Rio de Janeiro, entre 1998 e 2004, na seção de psicologia, desenvolvendo atendimentos psicanalíticos ambulatoriais, com pacientes que não eram internos do hospital, mas que freqüentavam a seção de psicologia uma vez por semana exclusivamente para as sessões clínicas. Esses pacientes nos eram encaminhados, prioritariamente, pelos médicos das outras unidades do hospital quando esses percebiam que ao lado das queixas médicas, havia algo a ser decifrado pela psicologia. Através do trabalho com esses pacientes, eu pude perceber uma situação específica, bastante intrigante. Na maioria dos casos, os médicos, nos encaminhavam pacientes que, embora possuíssem uma doença fisiológica a partir da qual um diagnóstico e um plano de tratamento podiam ser estabelecidos, inexplicavelmente, eles se mantinham resistentes ao restabelecimento. Tal fato abria uma questão enorme para a lógica médica, pois indicava que a ordem biológica que organiza nosso campo fisiológico, não é soberana, mas por razões que desconhecemos, em algumas pessoas, às vezes, se submete a uma outra lógica. Porem, de forma igualmente intrigante, esses mesmos pacientes, quando submetidos ao processo psicanalítico, demonstravam uma enorme resistência e uma diminuta transformação subjetiva. O que nos demonstrava, por seu turno, que a lógica psicológica também não é soberana e esbarra em limites clínicos específicos. Ou seja, se por um lado, a medicina não apresenta uma compreensão teórica que possibilite um manejo clínico eficaz para esse tipo de adoecimento, por outro lado a psicanálise também não. E os pacientes se mostravam tão resistentes à proposta de cura médica quanto à transformação pelo método psicanalítico. O que eu podia perceber era que diante desses dois planos discursivos, o sofrimento permanecia quase que imutável. E não pensem que esses pacientes se mostravam arredios ao tratamento. Ao contrário, eles eram muito assíduos, freqüentavam o hospital com rigor, contavam e re-contavam suas dores inúmeras vezes e para diversas pessoas. E isso também me perecia bastante interessante, pois, de certa forma, eles grudavam em sua sintomatologia de uma maneira total e opaca. Aderiam ao sintoma de uma forma tão contundente que tornavam a nossa tentativa terapêutica de produzir um deslocamento semântico, um desdobramento discursivo quase que nula. Porem, o fato de tantas resistências estarem presentes, de certa forma, me fez pensar que provavelmente há uma escolha subjetiva sendo aí efetivada. Inserida de uma maneira a nos fazer crer, que nesse sintoma há algo de um sujeito a se expressar através desse tipo de adoecimento, que eu comecei a considerar como psicossomático.
É sobre esse trabalho no âmbito hospitalar que venho falar para vocês hoje, circunscrevendo minhas observações em torno desse fenômeno bastante comum de ocorrer em suas dependências, mas que, entretanto, nos traz grandes dificuldades de compreensão teórica e de manejo clínico. Fato este que justifica o nosso empenho em refletirmos sobre esse tipo de adoecimento e procurar trazer à luz, seus impasses, dificuldades, possibilidades de compreensão teórica e desdobramentos clínicos. Para desenvolver meus argumentos vou utilizar como exemplo e disparador para minhas reflexões e indagações um caso clínico, que ao me intrigar em demasia, tem me demandado um enorme esforço de compreensão e pelo seu inacabamento, conto, ao final de minha fala, com a contribuição que vocês possam me dar, no sentido de avançarmos juntos na direção de uma mais profunda compreensão.
ESBOÇO INICIAL DE COMPREENSÃO:
Para melhor compreender os atendimentos que vinha desenvolvendo no hospital iniciei reunindo, nesses pacientes, as variáveis que eu tinha para começar a trabalhar:
a - estávamos lidando com sintomas que não eram transformados pela clínica médica e nem pela clínica psicanalítica;
b- podíamos perceber a ocorrência de uma aderência enorme do paciente ao seu sintoma, que impedia que ele o tomasse como um enigma a ser decifrado. Porem, sendo considerado de ordem biológica, o sintoma era compreendido como algo externo ao controle e responsabilidade do sujeito. Paradoxalmente, no entanto, tomavam a centralidade de suas vidas de forma que se por um lado a linguagem parecia não produzir uma intermediação entre sujeito e sintoma, por outro, sujeito e sintoma pareciam uma coisa só.
c- uma apropriação pelo paciente, do sintoma como o ponto de inscrição familiar, na medida em que sempre que os pacientes se reportavam às suas dores e padecimentos, os sintomas apareciam como o elemento que os ligava aos seus pais e/ou a seus filhos. Ponto onde a hereditariedade emergia como enlace familiar como aquilo que fazia a transmissão de algo recebido dos pais e passado aos filhos, permitindo a formação de uma teia discursiva e um vínculo familiar.
Esses três elementos me fizeram pensar que eu estava diante fronteiriço, limítrofe, entre o fisiológico e o psicológico, entre o corpo e a sua representação psíquica, entre o campo da necessidade e o do desejo, entre o familiar e o singular, entre o dizível e o que ainda não se pode dizer. Razões pelas quais os discursos médico e psicanalítico os tangenciam, mas não os recobrem como um todo, e em decorrência, encontramos tantas dificuldades de manejo clínico nos incitando a produzir um aprofundamento teórico mais rigoroso que possa sustentar nossa prática clínica. Assim, entre os inúmeros casos que partilhavam desses elementos escolhi, como ilustração, um em especial que me parece paradigmático por trazer entrelaçado tanto questões somáticas quanto psíquicas, nos permitindo, a partir das teorias de Freud e Winnicott, irmos pensando em como tais entrelaçamentos se constituem para podermos, então, pensar quais as possibilidades de manejo clínico que possuímos.
O CORPO COMO DOBRADIÇA: ENTRE O SOMA E A PSIQUÊ
Foi com essas indagações, que recebi, no ambulatório, Maria Inês. Uma moça bonita, casada, dois filhos adolescentes, encaminhada pela clínica reumatológica do hospital, pois trazia um adoecimento intrigante. De quando em vez, seus tornozelos e joelhos se tornavam focos de um reumatismo tão doloroso que a paciente tinha que ficar acamada por semanas inteiras. Embora os médicos tenham produzido um diagnóstico preciso, pois os exames evidenciavam a lesão e a doença, esta, curiosamente, não cedia com a medicação indicada. Igualmente interessante era o fato de outras articulações, como os ombros, cotovelos e pulsos, não serem afetadas, como seria de se esperar. Por apresentar, também, uma insistente tristeza e dificuldade em gerir sua vida familiar, os médicos a encaminharam para um tratamento clínico na seção de psicologia.
Quando recebi Inês, no ambulatório, ela demonstrava grande apatia, seus joelhos e tornozelos vermelhos e inchados dificultavam seu caminhar e sua locomoção, e doíam....doíam....doíam!De imediato me lembrei da perspectiva freudiana ao tomar tais manifestações corporais como correlatos de estados emocionais que giram em torno de fatiga, irritação, tristeza, angústia difusa, como inseridos no campo das neuroses atuais. Lembrando que, no início de suas considerações teóricas, Freud propôs entender as afecções neuróticas sob duas vertentes: as psiconeuroses e as neuroses atuais. (FREUD, 1894;1895[1894]a;1895[1894]b;1896a, 1896b, 1896c).
Em sua perspectiva, as psiconeuroses eram concebidas como enfermidades nas quais há uma participação psíquica em sua formação, pautando seu fundamento na noção de defesa contra o sofrimento psíquico. Por sua vez as neuroses atuais, eram concebidas pelo autor, a partir de uma etiologia puramente somática. Para tal, Freud toma como princípio a existência de uma energia sexual somática que percorrendo as vias neurológicas específicas alcança um limiar de intensidade suficiente para investir um representante psíquico. Tal investimento psíquico, impele a uma ação específica o ato sexual através da qual permite-se o escoamento adequado da energia sexual e recupera-se o grau de tensão mínima anterior nas vias neurológicas de condução da energia sexual somática, permitindo assim, que o circuito se re-inicie. Esse seria o circuito adequado da sexualidade adulta. Porem, certos curtos circuitos podem ocorrer e produzir as afecções neuróticas: no caso das neuroses atuais a intensidade da energia sexual não é suficiente para romper o limiar psíquico e investir as representações mentais. A energia sexual somática é, nesses casos, defletida para vias inadequadas, geralmente corporais, produzindo uma gama de sintomas, tais como palpitações, fatiga, sudorese e somatizações diversas. Complicações que se estabelecem, nos informa Freud, pelo fato do paciente insistir em utilizar ações específicas inadequadas para a sexualidade, tais como a masturbação, o coito interrompido, ou a abstinência sexual prolongada. Tais práticas acabam por impor à energia sexual somática, por se encontrarem muito tensionadas ou muito empobrecidas, escoamentos por meios não adequados.
Nesse sentido, Inês me reportava uma vida sexual bastante pobre em termos afetivos. O marido dizia não se sentir atraído por ela, não a procurava quase nunca e quando o fazia se satisfazia rapidamente sem se preocupar com ela. Inês, por seu turno, tentava não pensar em seu desejo, às vezes se masturbava, às vezes conseguia pensar em outra coisa, às vezes fantasiava....sentia-se tão esgotada que parecia não tem mais desejo sexual.Mecanismo que, para Freud, aponta para a incapacidade da energia sexual somática se fazer presente no registro psíquico, definindo para ele a etiologia de uma entre as neuroses atuais: a neurose de angústia.
Interessante pensar como Freud pontua, nesses mecanismos das neuroses atuais, que uma ação psíquica produz efeitos fisiológicos e vice-versa. Pois diante de uma ação inadequada nas formas de conduzir a vida sexual, uma resposta corporal se impõe ao implicar que a energia sexual somática encontre vias de escoamento secundárias através do corpo. Porem, tal escoamento acaba por produzir efeitos psíquicos como o cansaço, a irritação, a angústia difusa, etc. Enfim, trata-se das intricadas relações psique/soma? O que me parece contundente aqui é pontuarmos a decisão freudiana de entrelaçar radicalmente dois registros organizados a partir de lógicas diferenciadas, porem em constante interação. Sendo exatamente, sobre essa interação que Freud avança ao nos apontar uma estreita relação entre neurose de angústia e histeria. De forma perspicaz, ele percebe que ambas as afecções, geralmente, ocorrem na mesma pessoa. Para ele, ambas as patologias podem ser consideradas com neuroses de retenção, pois, se na neurose de angústia há uma retenção da energia sexual somática, na histeria há uma retenção da energia sexual psíquica. Se, na primeira, a energia sexual fisiológica eclipsada, encontra uma via alternativa de escoamento (o corpo), na histeria, a energia sexual psíquica eclipsada, também necessita encontrar uma via alternativa de escoamento e o faz através da conversão corporal. Porem, por tratar-se de uma energia psíquica, seus sintomas se organizam a partir de uma ordem lingüística, simbólica, de forma que seus sintomas representam a dificuldade que procuram solucionar. Em Inês, podemos perceber que seus sintomas corporais, além de marcar uma lesão reumatológica, marcavam, também, simbolicamente, duas coisas: a impossibilidade de caminhar por si mesma e a solidão, pois uma vez acamada, Inês rompia os laços com familiares e amigos.
Comecei, então, a questionar o que tornara possível, em Inês, essa sobreposição de afecções? Novamente me reporto a Freud. Ele nos informa que temos sempre que pensar na sobre/determinação das causas que concorrem para a edificação de uma afecção neurótica. O autor nos apresenta, a esse respeito, uma interessante equação etiológica: há fatores condicionais (a hereditariedade como pré-condição) sem os quais uma patologia não poderia se estabelecer, mas que sozinho não é capaz de eclodi-la. Há as causas específicas (necessariamente presentes o fator sexual) que se juntam às causas auxiliares (estafa, doença orgânica, sustos, perdas) para produzirem os efeitos patológicos, e por fim, há as causas precipitantes, ou seja, algo que ocorra na vida do sujeito que insere uma desorganização que faz eclodir os sintomas (FREUD, 1895). Segundo o autor, na clínica, seguimos das causas precipitantes e avançamos às auxiliares e específicas de forma a compreender as superposições de séries causais que se combinam na edificação de uma patologia. Iniciei, então, tentando entender como poderíamos pensar o que estava ocorrendo na vida de Inês que fora capaz de introduzir a desorganização e tornar seu caminhar tão difícil e solitário?
Os filhos estavam crescidos e começavam a impor um distanciamento. Inês começava a perceber que estava sendo menos necessária na rotina doméstica e que lhe sobrava tempo e não sabia bem o que fazer para os dias passarem. E se o marido realmente a deixasse como costumava dizer? Momentos de transição, de ruptura, de transformação. Talvez fosse melhor mesmo o tempo parar e já que ele não pára, Inês parava a si mesma e sozinha permanecia imóvel.
Tais desdobramentos começavam a fazer novos sentidos para mim, os seus sintomas corporais ao lado de sua tentativa de imobilização, sua fuga para a interioridade, sua busca pela atenção dos outros (familiares, médicos psicólogos) seriam apelos para que os outros olhassem para ela? O corpo aparecia aqui como palco simbólico para fenômenos histéricos ao lado dos fenômenos psicossomáticos? Sobrepondo, como nos indica Freud, sobre o mesmo sintoma uma afecção histérica e uma neurose atual? Creio que sim, e Freud, mais uma vez, nos ajuda a avançarmos um pouco mais na intrigante questão sobre as razões pelas quais as pernas seriam o lugar nos quais ambos os fenômenos se expressam. Porque seriam elas o ponto de interseção entre fenômenos histéricos e psicossomáticos?
O CORPO COMO PALCO: O SOMA EXPRESSA A PSIQUÊ
Segundo Freud (1904 [1901]), os sintomas histéricos, embora sejam simbólicos em sua etiologia, necessitam para sua constituição de uma complacência somática ou seja, uma facilitação em alguma parte do corpo que, por sua fragilidade, se presta a ser solo sobre o qual os sintomas histéricos se edificam. Assim, por exemplo, Freud nos indica que, se por um lado, a afonia de Dora simbolicamente representava seu amor pelo Sr K, tal construção histérica só pôde assim se constituir porque organicamente, havia aí uma fragilidade que o sustentava. Igualmente, em Inês, o tema das pernas se tornou importante ponto de correlação entre sintomas histéricos e afecções somáticas. Ponto de interseção psico/soma, que interligava também vida atual e infância. As pernas além de serem o lugar em que o reumatismo já se fazia presente quando Inês era criança, era também o lugar preferencial para receber as surras de vara de marmelo que sua mãe aplicava quando fazia algo errado. Tanto as dores reumáticas quanto as surras de vara de marmelo cessaram por longos anos o que a fez pensar estar curada. Mas curiosamente as dores retornaram quando o seu primeiro filho homem nasceu, embora ele fosse mais novo do que a menina. Estranhei o fato e resolvi investigar um pouco mais. Investigação que lançou em direções diversas e entrelaçadas, temas sobre maternidade, feminilidade, sexualidade nos inserindo em uma camada de causalidade mais profunda que apontava para inúmeros dilemas e conflitos edipianos e infantis. Através de seu discurso fomos tecendo tramas que simultaneamente a ligava e separava de sua mãe. Segundo seu relato, a mãe sempre esteve muito ocupada com as tarefas domésticas e com tantos filhos, os últimos, como Inês, foram criados pelos irmãos mais velhos. Por um lado, tal procedimento a aproximava de uma de suas irmãs e a afastava da mãe. Os únicos momentos em que a mãe estava mais próxima de Inês eram os das surras com vara de marmelo. (Poderíamos apontar aqui para uma identificação entre dor e prazer? Entre sofrimento e amor?) Na maior parte do tempo, se sentia abandonada e desamparada, sem ter para onde correr quando precisava. Hoje apresentava um grande ressentimento em relação à forma como sua mãe a tratava. Costumava me dizer que felizmente, tinha crescido muito diferente de sua mãe, que elas não se pareciam em nada, nem física nem afetivamente. Difícil situação para uma mulher em sua constante tarefa de construção da feminilidade a qual requer, entre outras coisas, que seja possível uma identificação inconsciente com a figura materna.
Interessante foi perceber que essa identificação ocorria por meio de um mecanismo corporal. Uma vez Inês me disse: - eu não tenho nada a ver com minha mãe! Nada! Só nas dores nas pernas somos iguais e eu brinco com ela dizendo que nem que ela queira dizer que não é minha mãe, nossa doença não nega! sou filha dela!!!!
Intrigante forma de pertencimento a uma família, de se alinhar com uma mãe e de se identificar com ela e através da dor de uma doença, comprovar uma filiação. O que me fez pensar na primeira e mais profunda causa etiológica que Freud nos aponta como sendo necessária para a instalação de uma doença neurótica: a hereditariedade. Se não for pela afetividade, o carinho, o amor, a agressividade e a raiva, o corpo se habilita a fazer essa função e pela dor, tal como uma marca, fazia o enlace entre Inês e sua mãe, permitindo, com isso, que a construção subjetiva pudesse se organizar em torno desse ponto.
Re-encontrei inúmeras vezes esse mesmo mecanismo em diversos pacientes. Com que indisfarçável prazer a dor de uma doença somática era descrita como o ponto de identificação com os pais, ou irmãos ou filhos. Me parecia que nesses momentos tais adoecimentos faziam uma suplência ao elo afetivo que muito raramente, ou muito fragilmente os conectam às suas famílias. O adoecimento físico, de uma forma muda e seca, os inseria em uma linhagem familiar, ponto de ancoragem a partir do qual o sujeito podia construir uma narrativa singular sobre si mesmo, sua história precedente e seu futuro.
O CORPO COMO ESCRITURA: O SOMA NA PSIQUÊ.
Em Inês, desses dois elementos, ou seja, uma relação materna pautada no abandono e uma identificação estabelecida por mecanismos corporais, passei a pensar em uma necessidade de compreendê-los os inserindo em um momento de desenvolvimento subjetivo arcaico, anterior ao Édipo e à possibilidade da linguagem poder exercer sua função simbólica de representar algo em sua ausência. Por tratar-se de um momento anterior à aquisição da linguagem supõe-se que não haja, ainda, recursos psíquicos que possibilitem uma organização subjetiva. Razão pela qual o plano corporal funciona, em suplência, à procura de manter a organização utilizando-se para isso de um tipo de defesa extrema: o adoecimento psicossomático.
Para pensar o adoecimento psicossomático recorro aqui, não a Freud, mas a Winnicott. Autor que possui uma forma de pensar as relações psique/soma, no meu entender, bastante rica, na medida em que para ele, há uma positividade interessante em tal tipo de fenômeno pois este se relaciona com um modo de organização subjetiva arcaica. O autor, em sua perspectiva, parte da hipótese, tal como Freud, sobre a existência de um momento inicial de constituição subjetiva em que o ser humano, ao nascer, se apresenta em um completo estado de desamparo físico e psíquico. Nesse momento, totalmente incapaz de satisfazer por si mesmo uma série de necessidades fisiológicas que clamam por satisfação, o bebê necessita radicalmente de um outro para tal. Para garantir a sobrevivência de um bebê, há, portanto, que existir um ambiente/ mãe que o acolha e satisfaça, a tempo e a hora, suas necessidades básicas. Em correspondência, uma série de sensações corporais dispersas e não interligadas entre si, se sucedem inúmeras vezes inscrevendo-o no diferencial prazer/desprazer. Para Winnicott (1956), será justamente a repetição constante dessas experiências de satisfação aquilo que vai permitindo a ocorrência de uma paulatina integração à não-integração original. Esse processo de integração se estabelece em dois níveis de registro: um corporal, no qual as sensações suscitadas vão se remetendo umas às outras de forma a dar substrato a um contorno corporal; e um nível psíquico na medida em que tais experiências vão recebendo sentidos e significações efetivas e emocionais a partir dos cuidados maternos. Nesse rastro, os trilhamentos psíquicos vão sendo constituídos em paralelo e em concomitância às sensações corporais. Razão pela qual, para o autor, tal processo se configura como os rudimentos iniciais de uma progressiva integração do soma na psique. Ou seja, se configura como o início de uma trama psicossomática que deverá perdurar ao longo de nossas vidas e funcionar de forma organizada e harmônica, sustentando a nossa sensação de continuar existindo, isto é, que nosso corpo habita uma morada: nosso Ser. (WINNICOTT, 1949) Porem, nos alerta o autor, por tratar-se de uma trama, de uma organização em constante movimentação e re-arranjos, pode haver momentos em que tal integração sofra abalos que a tensionem ao rompimento. Rompimento que para Winnicott (1990) significa uma forma radical de adoecimento quer seja do corpo puro ou da psique em dissociação, indicando pouquíssimas possibilidades de restauração. Nessa perspectiva, o adoecimento psicossomático é entendido como uma defesa contra a desintegração das malhas psicossomáticas que nos lançaria ao encontro do desamparo original.
O CORPO COMO APELO: CONTORNOS AO DESAMPARO.
Aqui se inserindo a minha proposta que nossa função clínica seja justamente de tomarmos o adoecimento psicossomático como um apelo subjetivo que o paciente lança através do corpo como um pedido de ajuda e assim o procedendo, podermos encontrar alternativas clínicas adequadas e eficazes. Para tal, se com Freud aprendemos que a clínica das psiconeuroses nos leva aos desdobramentos do Édipo, com Winnicott aprendemos que a clínica dos fenômenos psicossomáticos nos insere na re-construção de um momento de constituição subjetiva, primitivo, anterior, inclusive, ao advento da linguagem. (WINNICOTT, 1955) Dessa forma para lidarmos com esses fenômenos necessitamos perceber que a nossa função clínica perpassa a possibilidade de agirmos como a mãe/ambiente no sentido de criarmos condições junto ao paciente de construção de novos contornos, significações e sentidos que permitam a integração de sensações dispersas e a-significativas, facilitando a ocorrência de um processo de constituição das malhas psicossomáticas. Para tal, devemos agir como nos sugere Winnicott (1967), como um espelho integrador por meio do qual o paciente possa ir construindo um sentido de existência no qual a psique seja lugar de morada para o corpo e suas sensações. O interessante é que no ambiente hospitalar tal possibilidade fica extremante diminuta, na medida em que a lógica médica tende muito mais para a fragmentação do que para a integração, já que privilegia um tipo de pensar dicotômico e reducionista. Residindo ai, a meu ver, a importância do trabalho do psicólogo psicanalista ou não na rede hospitalar como catalisador da integração através de uma escuta clínica que leve em consideração a existência de um sujeito que se organiza através de séries lógicas (existencial/cultural/subjetiva/lingüística/espiritual/afetiva/ emocional) que transmuta a lógica biológica. Pensando e agindo dessa forma, foi possível abrir à Inês a ao seu sofrimento um longo e lento caminho que nos conduzisse à construção de novas formas de apropriação de seu corpo, seu desejo, sua vida, seu futuro.
É nesse sentido que retorno aqui uma citação freudiana que nos permite perceber como o autor, ao se surpreender e se maravilhar com a multiplicidade simbólica dos sintomas histéricos se propôs a desvendar sua semântica lingüística, nos afirmando:
Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, fica convencido de que os mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles cujos lábios calam, denunciam-se com as pontas dos dedos; a denúncia lhes sai por todos os poros. Por isso, a tarefa de tornar consciente o que há de mais secreto no anímico é perfeitamente exeqüível. (FREUD, 1904[1901], p. 78)
Creio que, de forma similar, diante do apelo que nos é lançado através do corpo pelos fenômenos psicossomáticos, levar adiante os legados de Freud e Winnicott seja nos dedicarmos a entender o que o corpo, em sofrimento, pode nos dizer. E abrindo possibilidades de deciframentos possamos tornar sua mensagem visível ao nosso olhar e compreensível aos nossos ouvidos. Enfim, que tenhamos olhos para ver e ouvidos para ouvir o corpo que se apresenta em quase desamparo, nos hospitais, é o nosso maior desafio.
Referências Bibliográficas:
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1 Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica, Professora Adjunto do Departamento de Psicologia da UFPR. nadjanbp@ufpr.br
Trabalho apresentado na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde setembro 2008 Londrina, Paraná.