INTRODUÇÃO
O adoecimento crônico traz diversas implicações para o cotidiano dos indivíduos, impondo, muitas vezes, limitações físicas além de demandar a recorrente necessidade de realização de exames, tratamentos e internações hospitalares. Tais circunstâncias podem distanciar o indivíduo de sua família e dos ambientes de convivência, demandando adaptações e formas de enfrentamento diante desta nova situação. A doença renal crônica (DRC) é caracterizada como uma síndrome progressiva diante de uma lesão no rim, e pela perda progressiva e irreversível da função renal. Crucial para a homeostase corporal, a diminuição da função renal afeta todos os demais órgãos do corpo (Bastos et al. 2010). Diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, obesidade, hereditariedade, envelhecimento, doenças cardiovasculares e uso de medicações nefrotóxicas compõem os principais fatores de risco para a DRC (Bastos et al., 2010; Gonçalves, 2012).
A hemodiálise, forma de terapia renal substitutiva, é realizada em hospitais ou clínicas de diálise, e consiste na captação do sangue por meio de um cateter ou fístula arteriovenosa, o qual terá suas impurezas filtradas, assim como excessos de água e sais, ajudando a equilibrar os níveis de sódio, potássio, ureia, creatinina e outras substâncias. Após a filtragem, o sangue é devolvido ao/à paciente. Tal tratamento ocorre em sessões intermitentes, sendo geralmente realizadas três sessões por semana, com duração de cerca de quatro horas cada, podendo variar a depender do estado clínico de cada paciente.
De modo geral, pacientes que realizam hemodiálise precisam controlar a dieta e o consumo de líquidos de maneira rigorosa, podem possuir restrições em suas atividades laborais, bem como a diminuição de atividades físicas. Ao mesmo tempo, podem surgir alterações na imagem corporal, mal-estar emocional e sentimentos de desamparo, impotência e ansiedade (Carvalho & Moreira, 2015; Valle et al., 2013).
No que tange à qualidade de vida de pacientes com DRC, estudos apontam a necessidade de se atentar para as características sociodemográficas, clínicas e psicossociais que podem estar associadas e devem ser consideradas no desenvolvimento de estratégias de intervenções específicas. Tais dados importam na medida em que sofrimento físico, ausência de suporte social adequado e dificuldades financeiras estão comumente associados a um deficiente ajustamento psicossocial para a doença (Paduan, 2012; White & McDonnell, 2014). As percepções associadas à doença afetam as ações de enfrentamento, mas, por serem percepções modificáveis durante a intervenção psicológica, Clarke et al. (2016) indicam a necessidade de intervenção logo no início do tratamento.
Estratégias de enfrentamento com foco no problema (engajamento em consultas, tratamento e adesão ao regime e restrições de atividades) e busca por apoio social (entre familiares e equipe de saúde) foram amplamente encontradas na literatura como sendo recorrentes e efetivas na trajetória dos pacientes (Ramos et al., 2008; Kohlsdorf, 2016). A espiritualidade/religiosidade também é uma forma de enfrentamento recorrente face ao adoecimento renal crônico, sendo observada como um fator facilitador na aderência ao tratamento e na qualidade de vida (Bragazzi & Del Puente, 2013; Davison & Jhangri, 2010; Ottaviani et al., 2014; Ramírez-Perdomo, 2019). A busca da aceitação e a determinação em não sucumbir diante do adoecimento foram estratégias também observadas (Caress et al., 2001).
O aumento da incidência da DRC na população de indivíduos adultos jovens, relatado pela literatura, requer que esta população receba atenção e seja alvo de estudos e pesquisas relacionadas ao tema, tendo em vista que grande parte dos estudos sobre DRC está voltada para pacientes idosos/as (White & McDonnell, 2014).
Além disso, face às crescentes taxas de morbimortalidade provocadas pelas doenças crônicas no Brasil (Martins et al., 2021) e dos impactos do adoecimento na vida de pacientes e de seus/suas cuidadores/as (Brito, 2009), é importante a ampliação de ações que permitam a promoção da saúde e o fortalecimento de estratégias adaptativas às condições postas pelo adoecimento. Tal ampliação deve, necessariamente, envolver a realização de estudos que focalizem a compreensão dos/as próprios/as pacientes a respeito do adoecimento e suas implicações. Conhecer como pacientes com DRC vivenciam o adoecimento é um passo para a construção de novas perspectivas sobre essa experiência e para a construção de ações que promovam e facilitem o uso de recursos frente ao adoecimento e seus desdobramentos.
Dessa forma, o objetivo deste estudo foi compreender como se configuram os processos de significação de indivíduos adultos jovens acerca da experiência de adoecimento renal crônico e como essas significações estão imbricadas no uso de recursos no processo de transição pós-diagnóstico. Partiu-se da hipótese de que a utilização de recursos traria contribuições para que a experiência do adoecimento fosse significada com contornos menos negativos e manifestações de afeto mais brandas.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para guiar o presente trabalho, optou-se pela Psicologia Cultural de Orientação Semiótica, campo da Psicologia que é construído sobre a concepção cultural do ser humano, e que busca explicar tanto as questões sociais quanto à ação individual nos mais variados contextos, permitindo o desenvolvimento de ferramentas que possibilitem a explicação da diversidade de situações da vida e a identificação de processos de mudança (Zittoun, 2015). Conforme Zittoun (2015), entre os pressupostos básicos da Psicologia Cultural estão: a compreensão de que cada pessoa é única; a indissociabilidade entre a pessoa e o contexto; a natureza temporal, histórica e dinâmica da experiência humana diante da irreversibilidade do tempo; e a ênfase em processos de construção de sentidos.
Conforme apontador por Valsiner (2012), na Psicologia Cultural, a cultura compõe o sistema psicológico individual, tendo um papel funcional dentro dele. O pertencimento a um país, grupo linguístico e sistema de crenças fornece material para o sistema psicológico dentro do qual a cultura se situa. Desta forma, a linguagem utilizada nas interações sociais orienta os modos de falar, sentir e pensar da pessoa, tornando-se, assim, uma ferramenta semiótica no seu sistema intrapsicológico.
SIGNIFICADOS
Muito antes do surgimento da Psicologia Cultural, as formulações da teoria histórico-cultural propostas por Vygotsky já apontavam que as funções psicológicas superiores humanas são constituídas em seu contexto histórico e cultural, surgindo inicialmente no nível social e, em seguida, no nível individual. Vygotsky (1934/1991) propôs que a Psicologia deveria ser objetiva, materialista, biossocial e dialética, devendo refletir a totalidade do indivíduo e considerando a relação do mesmo com a sociedade à qual pertencia, articulando seus aspectos internos e externos. Segundo o mesmo autor (Vygotsky, 1932/1995), o comportamento humano é o resultado da mediação de instrumentos e signos, a partir dos quais o indivíduo atua sobre o mundo externo, controlando-o e modificando-o, ao passo em que é modificado por eles. Quando do seu nascimento, a criança é equipada apenas de uma consciência prática, um funcionamento psíquico elementar condicionado por seu potencial genético e pelas restrições geradas pelo meio. Os processos psicológicos superiores, tais como memória lógica, atenção voluntária e formação de conceitos, surgem a partir da aquisição da linguagem (Vygotsky, 1934/1989), de modo que suas origens devem ser procuradas nos sistemas de signos sociais proporcionados pela cultura (Veer & Valsiner, 1996).
A fim de descrever os processos pelos quais o social constitui o psíquico, Vygotsky (1934/1989) elege a mediação semiótica como responsável por este fenômeno, na medida em que o significado da palavra é a unidade de análise que permite a investigação em Psicologia (Editor: Na Psicologia Cultural, certo?). O estudo do pensamento por meio da análise do significado possibilita a união do afetivo com o intelectual e permite identificar a trajetória das necessidades e impulsos de uma pessoa para seu pensamento, bem como do pensamento para os comportamentos e atividades (Vygotsky, 1934/1989).
A utilização do conceito de significado no presente estudo se dá pelo interesse em saber como indivíduos adultos jovens dão sentido às suas experiências de adoecimento, a partir do pressuposto de que através dos significados o ser humano se relaciona com o mundo. E o estudo de significados torna possível a apreensão do processo de internalização de atividades sociais que foram desenvolvidas historicamente. Segundo Valsiner (2012), a transmissão cultural do conhecimento se dá de maneira bidirecional, de modo que os indivíduos transformam ativamente, as mensagens culturais. Por meio dos signos, os seres humanos podem transcender qualquer contexto de atividade no aqui-e-agora, marcando uma profunda flexibilidade em seus relacionamentos com seus ambientes (Valsiner, 2012).
A criação de significados não se relaciona apenas com o ambiente imediato, mas também com esforços para se estar preparado para as incertezas do futuro, considerando que tal criação se dá na fronteira entre o aqui-e-agora e o futuro (Abbey, 2012). Nesta compreensão, o futuro é visto como influenciador do presente. A relação entre o presente e o futuro é descrita por Abbey (2012; Surgan et al., 2018) em termos de “A” (situação no momento imediato) e “não-A” (o que pode ser a situação no futuro), uma dimensão existindo na dimensão da outra. Cada momento presente existe na tensão com o que pode ser no futuro. Ao criar um sentido, o indivíduo é imediatamente desafiado pela apresentação do que poderia ser. A criação de significações se dá a partir do processo de superar a tensão entre o representado e o sentido imaginado do signo, sofrendo influências do contexto no qual o indivíduo se localiza (Abbey, 2012; Surgan et al., 2018).
RUPTURAS E TRANSIÇÕES NO CURSO DA VIDA
As mudanças ocorrem durante a vida desde a concepção até a morte. O desenvolvimento ocorre dentro desta tensão constante entre continuidade e mudança. Segundo Zittoun (2012), algumas mudanças são parte dos hábitos contínuos da vida dos indivíduos (mudanças transitivas), ao passo que outras demandam novas formas de conduzir uma situação, novas elaborações, novos meios de ação e de relacionamento com o ambiente (intransitivas). Estas mudanças intransitivas são chamadas de rupturas (Zittoun, 2012), momentos críticos em que os modos de ajustamento contínuo são interrompidos, podendo ser resultado de fatores externos ou internos, e esperadas ou não pelos indivíduos. As rupturas demandam, do indivíduo, processos de ajustamento e adaptação entre este e o ambiente, as chamadas transições (Zittoun, 2012; 2015). As rupturas no curso da vida levam a três linhas de mudança mutuamente dependentes: processos de identidade (quando o indivíduo precisa definir quem é e como se posiciona diante da situação), processos de aprendizagem (aquisição de conhecimentos e competências para lidar com a situação) e processos de construção de sentidos (elaboração dos aspectos simbólicos das mudanças, manutenção de integridade e continuidade) (Zittoun, 2015).
A partir dos pressupostos da Psicologia Cultural, Zittoun (2012) destaca o papel dos recursos utilizados pelos indivíduos como meios facilitadores nos processos de transição. Estes facilitam o processo de imaginação, permitindo considerar alternativas de futuro e a reflexão sobre a narrativa pessoal. Zittoun (2012) elenca: (1) recursos institucionais, que abrangeriam contextos sociais planejados socialmente para facilitar processos de transição, como o hospital, em caso de adoecimento; (2) relações interpessoais, que possibilitam trocas de experiências e fortalecimento, podendo envolver familiares, amigos/as, e profissionais; (3) recursos semióticos, referentes a conhecimentos sociais, informações científicas e artefatos culturais que podem ser utilizados pelos indivíduos para lidar com as rupturas, na medida em que oferecem suporte à atividade imaginária e fornecem conteúdos que permitem o distanciamento e a transformação das experiências pessoais; (4) recursos pessoais, a capacidade reflexiva do indivíduo de assumir experiências passadas, estabelecer ligações e redefinir problemas.
MÉTODO
DELINEAMENTO
Com o foco nos significados da experiência do adoecimento atribuídos por participantes com DRC, o delineamento escolhido foi o estudo de casos únicos, visando compreender a generalidade a partir de particulares sempre únicos (Valsiner, 2009; 2012).
PARTICIPANTES
Os critérios de seleção de participantes foram: 1. ter diagnóstico de DRC; 2. estar em tratamento hemodialítico por um período igual ou superior a seis meses; 3. ter entre 21 e 31 anos, faixa etária escolhida em virtude de ser um período marcado por diversas rupturas e pelas demandas de novas formas de ajustamento. Foram selecionados, a partir da rede de contato do pesquisador e por meio de divulgação do estudo em redes sociais, três indivíduos adultos jovens de 31, 21 e 29 anos, dois do sexo masculino e um do sexo feminino, aos quais foram atribuídos, ficticiamente, os nomes de Herbert, Beatriz e Mateus.
INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Foram utilizados um questionário sociodemográfico e uma entrevista narrativa com a seguinte pergunta disparadora: “Fale-me de sua trajetória, desde os primeiros sintomas até o momento presente. Conte-me tudo o que você lembrar”. Caso a narrativa a partir da pergunta disparadora não contemplasse os objetivos do estudo, o pesquisador recorria a um roteiro relacionado a tais objetivos. A entrevista com Herbert e Mateus ocorreram presencialmente, em locais por eles escolhidos. Em razão da indisponibilidade de horários compatíveis, com Beatriz a entrevista foi feita por telefone.
As entrevistas foram transcritas, lidas exaustivamente e os dados organizados em categorias para, depois, serem analisados à luz dos pressupostos da Psicologia Cultural, a partir do uso dos conceitos de significações, rupturas e transições (abarcando o uso de recursos). Também foi feita a articulação dos dados com os estudos da literatura. O estudo seguiu as recomendações da Resolução nº 466/2012 (Conselho Nacional de Saúde [CNS], 2012) e os parâmetros do Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005), tendo sido submetido ao Comitê de Ética em pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com o seguinte número de Certificado de Apresentação Ética (CAAE): 57691316.0.0000.5686.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Inicialmente, apresenta-se um breve resumo da trajetória de adoecimento de cada participante, delimitando os pontos de rupturas e transições. Em seguida, são apresentados e analisados os significados, ambivalências e o uso de recursos frente ao adoecimento.
TRAJETÓRIA DE ADOECIMENTO DE HERBERT
Herbert tinha 31 anos quando participou do estudo e residia com a sua avó materna. Aos oito anos de idade, após um acidente ao brincar com fogos de artifício, recebeu o diagnóstico de diabetes tipo 1, devendo, a partir de então, adotar uma rotina de cuidados que incluía o uso de insulina e a abstenção de alguns alimentos. Sobre este momento, Herbert afirma “... acho que daí começou várias fases difíceis de minha vida”, mostrando que tais circunstâncias eram percebidas como ruptura e demandantes de modos de ajustamento e adaptação entre ele e o ambiente, ao afirmar que precisou “aprender a conviver com isso” (Zittoun, 2012; 2015; Lima & Ristum, 2021). Ao longo dos anos, Herbert precisou ser internado por diversas vezes e vivenciou uma ambivalência constante entre cuidar de sua saúde e correr riscos. Por volta dos 28 anos, Herbert passou a sentir enjoos recorrentes e, após a realização de alguns exames e consultas, fora diagnosticado com DRC, passando a fazer hemodiálise seis meses depois.
TRAJETÓRIA DE ADOECIMENTO DE BEATRIZ
Com 21 anos à época da entrevista, a participante Beatriz residia com uma tia materna, o marido desta e alguns primos. O diagnóstico de DRC foi recebido aos 17 anos, quando cursava o Ensino Médio e um curso técnico. Beatriz apontou que desde a infância sempre tivera episódios recorrentes de fraqueza intensa, dores de cabeça e febre, sintomas estes que surgiam e em seguida se esvaneciam. Em um destes episódios, após uma elevação súbita da pressão arterial, a participante fora internada e submetida a exames. Nesta ocasião, recebeu o diagnóstico de DRC e a informação de que deveria iniciar o tratamento hemodialítico com urgência, pois havia “perdido” os dois rins. O impacto do diagnóstico foi tão intenso que Beatriz desmaiou ao recebê-lo. Seu relato foi de que, após o desmaio, já acordou na sala de hemodiálise, conectada à máquina dialisadora. Tais eventos são percebidos como disruptivos, através da sensação de pânico, choro e mal-estar e a afirmativa “não foi nada fácil”. Sobre a rotina de tratamento, ela afirmou “eu não consigo fazer mais nada”, demonstrando o cansaço por todas as restrições vivenciadas. Beatriz relata que, associado a DRC, também possuía paratireoide e tivera um episódio de derrame pericárdico. Diante do adoecimento, Beatriz é instada a recorrer constantemente a novas formas de adaptação e sustentação, buscando forças para dar continuidade ao tratamento e às implicações deste, como mudanças na rotina e na alimentação, fatores apontados como recorrentes também no estudo de Valle et al. (2013).
TRAJETÓRIA DE ADOECIMENTO DE MATEUS
Mateus contava com 29 anos quando participou do estudo, e residia com a sua namorada. Recebeu o diagnóstico aos 27 anos, quando fazia um Curso da Área de Exatas, tendo que conciliar o tratamento hemodialítico com as aulas na Faculdade. Antes do diagnóstico, Mateus tinha sintomas como vômito, inchaço nos pés e pescoço, dores nas costas e acúmulo de água no organismo. Tais sintomas, muitas vezes, o impediram de ir à Faculdade e o levaram a buscar auxílio profissional. Após a realização de diversos exames e de sete dias de internação, recebeu do nefrologista o diagnóstico de DRC e a recomendação para iniciar a hemodiálise. Mateus relatou que, após exames, foi constatado que os seus rins não cresceram adequadamente ao longo da vida. Ele considerou que seus hábitos de vida também contribuíram para o adoecimento, em especial, sua alimentação, rica em comidas industrializadas. Após o diagnóstico, mudou o estilo de vida, abandonando o consumo de álcool e deixando de frequentar “farras”, expressando que a ruptura do diagnóstico conduziu à construção de novos sentidos para a vida.
SIGNIFICAÇÕES E AMBIVALÊNCIAS
A experiência do recebimento do diagnóstico foi significada de formas diferentes para os três indivíduos participantes, ainda que alguns eixos comuns tenham sido observados. De modo geral, os indivíduos participantes manifestaram inquietações e dúvidas na presença dos primeiros sintomas, associando-os a alguma manifestação sintomática anterior. Assim, Herbert os relacionava com os episódios de mal-estar provocados pela diabetes, Mateus também os atrelava a episódios de tontura anteriores e Beatriz associava-os aos rotineiros momentos de mal-estar súbito.
As experiências anteriores de internamentos contribuíram para que Herbert significasse sua experiência como vida de hospital, pois, seu cotidiano estava intimamente ligado à esfera hospitalar, como mostra sua fala: “E acho que minha vida foi assim desde sempre... de hospital.” Atrelado a isso, Herbert aponta uma significação de morte iminente, ao relatar que houve “várias vezes de chegar ao hospital e achar que eu não iria sobreviver, muitas vezes foram assim.”. Tal significação parece ter forjado algumas decisões em sua trajetória, como evidencia seu relato de que a sensação de morte iminente contribuiu para que vivesse “sem pensar no futuro”, agindo, por vezes, de formas que julgava inconsequente.
O diagnóstico de DRC foi comumente associado a signos que denotavam aspectos ruins e limitantes da doença. Herbert relata que se tratava de “Algo desconhecido” e aponta os momentos iniciais como uma fase horrível, sendo o início do tratamento hemodialítico um fator agravante em sua experiência: “assim, no início foi a fase horrível, eu dizia que não iria fazer, que eu ia morrer, mas não ia fazer nada disso”. Com o passar do tempo, a DRC e a hemodiálise são significadas como aceitáveis, fazendo com que se engaje na rotina de tratamento: “depois, com o tempo, passa a aceitar assim, vai fazendo. Tô até hoje fazendo isso”.
Também atrelando aspectos negativos à experiência do adoecimento, Beatriz faz uso do signo “Doença dolorosa” ao descrever o processo inicial. Além disso, equipara sua condição a uma espécie “dependência da máquina”, relação esta marcada por uma profunda dependência, o que remete ao estudo de Weissheimer (2013); segundo este autor, durante a hemodiálise, a máquina funciona como uma espécie de prótese que é acoplada ao corpo, demandando adaptações e gerando angústias manifestas por meio do pavor e impaciência.
Na experiência de Beatriz, a DRC é significada como algo irremediável, já que o transplante é visto como o melhor tratamento, mas que ainda não representaria a solução final, pois, “pode dar errado ou então dar certo e com um certo tempo, você volta pra máquina”. Assim, “fazer a hemodiálise” constitui-se num signo forte (Valsiner, 2014), sem deixar margem para a não a realização deste tratamento: “Ou a gente faz ou a gente faz. A gente não pode deixar de fazer porque a gente não quer. Primeiro porque a intercorrência vai ser com nós mesmos e a gente vai passar mal”.
Semelhantemente a Herbert, Mateus significa as experiências com a DRC como um baque inicial e a possibilidade de morte iminente; nas primeiras horas, achou que iria morrer e que não havia mais nada a se fazer. Inicialmente, não sabia em que consistia a hemodiálise, mas, após o diagnóstico, passou a investigar sobre o assunto com o auxílio da família e da equipe de saúde. Revela, então, que “a ficha caiu” quando fez a primeira sessão de hemodiálise, momento em que pôde entender, de fato, o que estava se passando. Mateus também descreve a DRC fazendo uso dos signos “doença precoce” e “doença cada vez mais comum”, alertando para o aumento de diagnósticos em indivíduos mais jovens. Segundo seu relato, antes da DRC, quando pensava em morte ou algo relacionado a isso, dizia: “isso aí graças a Deus que não acontece comigo... Deus é mais...”. Tal característica se coaduna com os achados de Atobrah (2012), que afirma que indivíduos adultos jovens frequentemente não se consideram em risco para o adoecimento.
Após a ruptura do diagnóstico, Mateus aponta que vivenciou “problemas de saúde” que o levaram a ver “a morte mais próxima.” Os recursos do período de transição levaram-no a ver tais questões de forma mais “simples” e a vivenciá-las com mais “tranquilidade”: “hoje eu vejo que existe forma de tratamento, e existe todo um acompanhamento (...) e que, sendo bem instruído pelas pessoas, não tem pra que ter preocupação em si”. Tais mudanças no seu posicionamento evidenciam o processo de internalização das significações a respeito do adoecimento, a partir de um significado pessoal mais profundo que orientava sua relação com o mundo (Valsiner, 2012; 2014), permitindo a aceitação e o enfrentamento das adversidades.
As narrativas dos indivíduos participantes também evidenciaram pontos de tensão e ambivalência ao longo da trajetória de adoecimento. A tensão entre “cuidar da saúde” versus “correr riscos” acompanhou Herbert em diversos momentos, desde a descoberta da diabetes, quando vivenciara dilemas entre se abster ou não de bebida alcóolica e determinados alimentos, passando pelo dilema “realizar a hemodiálise” versus “não realizar a hemodiálise”, até uma tensão mais recorrente no momento da pesquisa: “realizar o transplante” versus “não realizar o transplante”. Sobre o início da hemodiálise ele relata: “eu me imaginei numa máquina daquela fazendo... só que eu imaginava isso e ao mesmo tempo eu pensava assim, que era melhor eu não fazer, sair fazendo o que quisesse e morrer”. Tal conflito demarcava a não aceitação da doença, na medida em que, em alguns momentos, ele prefere morrer. O conflito foi parcialmente resolvido com a adesão ao tratamento, pois, ele considerou que isto seria mais apropriado, havendo, portanto, uma modificação dos sentidos sobre o adoecimento e sobre a vida, de modo que suas experiências de vida foram modificadas e novas significações foram construídas a partir da apropriação do discurso de profissionais de saúde, da família e de amigos/as (Abbey, 2012; Surgan et al., 2018). Tais processos já haviam sido apontados por Caress et al. (2001), ao sinalizar que o adoecimento pode ser visto como um obstáculo que precisa de superação, podendo gerar distintos modos de respostas, como a aceitação e a determinação em não ceder.
Esta tensão entre “não aceitação” versus “aceitação da doença” também foi experienciada por Beatriz. Ela relata que, após a internação que culminara no diagnóstico, a vontade era “de querer acreditar que aquilo ali é um sonho, um pesadelo e que ia passar logo”. Em oposição a isso, em outros momentos Beatriz mostra aceitar o adoecimento como um sofrimento necessário, dando ênfase ao papel de Deus como um auxiliador nesse processo: “Então, Deus deu ainda uma oportunidade”.
Ao se deparar com uma condição em que necessitaria de um tratamento hospitalar recorrente, atrelada a uma máquina, foi possível observar, em Beatriz, a tensão entre “inútil” versus “alguém de valor”: “Eu me senti uma pessoa inútil, que não pudesse fazer nada, que não pudesse estudar”. Considerando que a juventude é vista, pela sociedade, como uma fase de conquistas e definição de marcadores que permearão a vida adulta (Mattos, 2013), havendo uma cobrança de produtividade, sucessos e conquistas, Beatriz parece apropriar-se dessas expectativas sociais ao demonstrar um sentimento de inutilidade. Supostamente, não estaria apta a dar continuidade a sua busca e concretização dos objetivos que são esperados pela sociedade, já que se depara com limitações que comprometem o desempenho de atividades diárias. Tal comprometimento, conforme Paduan (2012), pode afetar a qualidade de vida de pacientes com DRC.
Entretanto, a partir do suporte social e trocas de experiências com outros pacientes, familiares e profissionais, Beatriz cria novas formas de significação e passa a se ver como alguém capaz e que pode realizar seus objetivos: “eu fui vendo que eu também sou capaz, independente dessa doença”. Beatriz relata: “Eu conheci várias pessoas que me levantou, que me mostrou que eu sou capaz, independente dessa doença, independente desse tratamento. Mostrou do que eu sou capaz: de estudar, de terminar meus estudos graças a Deus”.
A experiência de Mateus apresenta a tensão entre “ausência de esperanças” x “possibilidade de superação”, considerando que as significações iniciais foram imensamente pessimistas, quando achou que iria morrer, mas que, com o tempo, ele foi percebendo que não estava só e que poderia viver com a DRC. “Segurança” versus “Não-Segurança” também é outra tensão marcante para ele: “eu acho mais é aquela questão da insegurança às vezes pra, pra pessoas no meu caso, na minha situação assim que não querem se aposentar, querem trabalhar... E... pessoas no meu caso assim fica muito complicado”. Mateus busca recorrentemente superar tal tensão, sempre adquirindo informações quanto ao mercado de trabalho e áreas em que ele poderá atuar sem que o adoecimento se constitua como barreira, ao mesmo tempo em que busca antecipar obstáculos e formas de superá-los. Um destes exemplos, refere-se aos estigmas que as marcas corporais e a fístula podem causar em eventuais contratações de trabalho. Carvalho e Moreira (2015) apontam essas transformações no corpo, na mente e no mundo, sentidas por pacientes renais, principalmente no que diz respeito às restrições impostas pelo adoecimento.
RECURSOS NOS PROCESSOS DE TRANSIÇÃO
Os indivíduos participantes da pesquisa relataram diferentes formas de uso de recursos ao lidarem com os processos de transição frente à ruptura do adoecimento. Tais recursos são ferramentas culturais usadas pelos indivíduos, facilitando a imaginação e permitindo ressignificações de suas narrativas e alternativas de futuro (Zittoun, 2012; Lima & Ristum, 2021).
Considerando que o adoecimento pode ser visto como uma manifestação inesperada e indesejada da ordem do biológico no curso da vida, ele demanda adaptações e ajustamentos, de modo que a instituição hospitalar deve funcionar como um espaço socialmente criado com o objetivo de auxiliar os indivíduos nestas situações. Assim, os saberes e práticas do campo hospitalar podem dar suporte às mudanças de identidade e à construção de sentidos, ao tempo em que ocorre, simultaneamente, o processo de tratamento e/ou tentativa de cura. Contudo, nem sempre os indivíduos percebem as instituições hospitalares de tal maneira, ou, por vezes, integrantes destas instituições não cooperam para tal. Para Herbert, a primeira instituição hospitalar, onde iniciou o tratamento, era utilizada como um recurso institucional. Lá ele recebeu suas primeiras informações acerca da doença e da possibilidade de transplante. Ao ser transferido para uma outra clínica, Herbert passou a se sentir inseguro diante do que chamou de falta de cuidado e ausência de comprometimento de alguns profissionais. Narra episódios em que médicos/as pareciam não estar preparados/as e alguns técnicos/as de enfermagem “não sabiam mexer na máquina muito bem” e o sentimento de que “É um lugar que eu acho que a qualquer momento pode acontecer uma besteira”. Em seu relato, atribui à má higienização da máquina dialisadora um episódio de mal-estar, com tonturas e ânsias de vômito. A partir de sua experiência com esta instituição hospitalar, nota-se que a equipe de saúde, que deveria atuar como uma rede de apoio aos pacientes no tratamento, em grande parte, não funcionava como tal.
Beatriz e Mateus pontuaram aspectos positivos das instituições hospitalares como oferecedoras de suporte. Além disso, Beatriz cita o Centro Espírita e a associação de pacientes da qual faz parte, como outras instituições que lhe ofereciam material simbólico no enfrentamento do adoecimento. A religião desempenha um papel importante no modo como a participante significa os seus eventos de vida. Sobre o Centro Espírita que frequenta ela diz: “ali eu recebo a força maior que eu acredito, é... assim, é muita oração. Pedir a Deus pra tudo dar certo. E só agradecer”. Na mesma direção desses dados sobre o papel da espiritualidade no enfrentamento do adoecimento estão os relatados por Davison e Jhangri (2010), Ramírez-Perdomo (2019) e Oliveira et al. (2022), que destacam a importância da espiritualidade para a saúde, ao contribuir para a melhoria da qualidade de vida de pacientes, mesmo diante de desafios físicos e psicológicos. No grupo de WhatsApp de pacientes com DRC, Beatriz encontrou e forneceu suporte a pessoas que vivenciavam situações semelhantes.
A relação de Mateus com a instituição universitária permite que este se engaje em atividades e objetivos próprios do contexto. Assim, ao distanciar-se de questões imediatas do adoecimento, faz uso do isolamento da doença como forma de enfrentamento, processo também visto na literatura (Weissheimer, 2013). Evita, dessa forma, pensamentos negativos sobre sua condição e busca construir perspectivas de futuro mais desejáveis, marcadas pela atuação profissional, sem que o adoecimento seja um fator limitante.
Os indivíduos participantes relataram a participação de importantes figuras de suporte social, atuando como recursos de relações interpessoais. Mateus destaca o papel de sua namorada e sua mãe, Beatriz cita o papel dos amigos e duas tias e Herbert cita a mãe, mas observa que, em alguns momentos, precisou delimitar a sua independência. Essa questão do limite concorda com o que Ibrahim et al. (2015) pontuam sobre algumas manifestações da rede de suporte que busca auxiliar, mas que, por vezes, são vistas como exageradas por pacientes.
O uso de recursos simbólicos também foi observado através das narrativas dos três participantes. Herbert e Mateus relatam ter ouvido músicas, durante as sessões de hemodiálise, como forma de refletir sobre os sentidos das letras e de se distanciar momentaneamente do contexto de tratamento. Herbert também cita o filme “Homem Irracional” (Allen, 2015), e se identifica com uma personagem que busca encontrar objetivos na vida. Beatriz relata que gostava de ler durante a hemodiálise e faz menção ao livro “Um amor para recordar” (Sparks, 2011). Diz se identificar com a história e reflete sobre similaridades entre a sua trajetória de adoecimento e a da protagonista do livro. Assim como a personagem, Beatriz relata que tem encontrado pessoas que, com seu amor e atenção, têm contribuído para suavizar as dificuldades e ajudá-la a pensar mais positivamente, abandonando sentimentos de incapacidade. Estes relatos refletem que os indivíduos participantes se utilizaram de artefatos culturais, dando-lhes sentidos e significados pessoais que os auxiliavam no processo do tratamento (Zittoun, 2018).
Entre os recursos pessoais, aqueles que permitem assumir experiências passadas e o estabelecimento de conexões e redefinições de problemas (Zittoun, 2012), observou-se que Herbert relata buscar sempre ter uma perspectiva positiva sobre sua experiência de DRC, além da busca pela adaptação e aprender a conviver com esta realidade. Beatriz aponta características suas: “extrovertida”, “brincalhona”, “espontânea” que considera terem lhe ajudado na busca pela superação e na tentativa de estabelecer laços pessoais fortalecedores, no enfrentamento da DRC. Mateus relata que passou a refletir mais sobre sua responsabilidade pessoal quanto aos cuidados necessários e a criar esperança diante da situação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como no estudo de Atobrah (2012), participantes do presente estudo relataram não ter conhecimentos claros sobre a doença antes do diagnóstico, demarcando a recorrente característica entre indivíduos adultos jovens de não se considerarem em risco para um adoecimento crônico. Isso se reflete na demora por busca de atendimento profissional diante dos primeiros sintomas. Após as vivências dos meses iniciais de tratamento, os indivíduos participantes demonstraram já possuir conhecimentos mais consolidados a respeito da DRC, denotando processos de internalização e externalização a partir das informações disponíveis na cultura coletiva, especialmente as fornecidas por profissionais de saúde e aquelas obtidas em busca ativa na internet. Os indivíduos participantes passaram também a refletir sobre seus hábitos de vida e possíveis contribuições da falta de cuidado com corpo para o adoecimento renal.
O diagnóstico do adoecimento foi percebido como ruptura por todos os indivíduos participantes, isso se evidenciou pelas sensações de desestrutura, de medo e de perspectiva de morte iminente. A experiência de Beatriz foi tão avassaladora que ela chegou a desmaiar ao receber o diagnóstico, mostrando a ausência de signos verbais ao lidar com a intensidade da ruptura. Os processos de transição após a ruptura do diagnóstico foram marcadamente influenciados pelas sugestões sociais da rede de apoio e permitiram que os indivíduos participantes vivenciassem certa tranquilidade no campo afetivo. Esta tranquilidade não denota a superação definitiva de medos e apreensões a respeito do adoecimento, mas a significação da possibilidade de conviver com este e de superar as dificuldades. Diante do adoecimento, Herbert, Beatriz e Mateus engajaram-se em processos de significações permeados por tensões e ambivalências. Tais tensões refletiam a intensidade da ruptura e a importância do uso dos recursos e de uma rede de suporte, de modo a fornecer sugestões sociais que contrariem o estabelecimento de signos rígidos e alienantes.
Por meio de suas práticas e saberes, a atuação de profissionais de saúde se reveste de um papel de suma importância nestes contextos de diagnóstico e tratamento; participantes do estudo apontaram a importância destes profissionais como recursos para lidar com o adoecimento. Contudo, é necessário demarcar a importância do acolhimento e acompanhamento profissional. Algumas experiências relatadas demonstraram a necessidade de maior capacitação destes/as profissionais, não apenas no quesito técnico e prático, mas principalmente no que tange ao cuidado à saúde integral dos indivíduos, com um atendimento mais humanizado, acolhedor e promotor de espaços de voz a pacientes. Isso para que estes/as possam demarcar sua autonomia em relação com o próprio corpo, a saúde e a vida, reduzindo sentimentos de vulnerabilidade, ansiedade, medo e estresse.
A importância de membros da família e de amigos/as como figuras de apoio social também foi percebida, assim como em diversos estudos encontrados na literatura (Ibrahim et al., 2015; Lonargáin et al., 2017; Mello, 2011; Ramírez-Perdomo, 2019; Ramos et al., 2008; White & McDonnell, 2014). Os cuidados se apresentam a partir do acompanhamento em consultas, internações e sessões de hemodiálise, bem como através de sugestões sociais e palavras de incentivo e de superação. A utilização de artefatos culturais como recursos diante do adoecimento, com destaque para a música, cinema e literatura, alerta para a importância da democratização do acesso a estes artefatos, considerando que possibilitam identificações e construções de sentidos diante de experiências disruptivas, como é o caso do adoecimento. Tais achados confirmam a hipótese de que a utilização de recursos no enfrentamento do adoecimento traz implicações na experiência do mesmo.
Como limitações, o presente estudo teve entrevistas pontuais com os indivíduos participantes, de modo que estudos futuros, podem se valer de delineamentos longitudinais, com construção de dados a partir de diferentes momentos na trajetória de adoecimento. Além de que podem valorizar estratégias que permitam o acesso a experiências mais amplas dos indivíduos, superando o exclusivismo de coleta de dados verbais.
Sugere-se que haja cada vez mais intervenções nas diversas esferas de experiências dos indivíduos adoecidos, objetivando a promoção da saúde e do bem-estar nestes.