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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.27  São Paulo  2024  Epub 03-Fev-2025

https://doi.org/10.57167/rev-sbph.v27.536 

Relato de Experiência Profissional

Entre trocas de fraldas e recomendações médicas: a escuta de mulheres no contexto hospitalar

Exchanges between pregnant women and doctors: listening to mothers in the hospital context

Ana Beatriz Albuquerque ALMEIDA1 
http://orcid.org/0000-0001-5602-5061

Joyce Hilario MARANHÃO2 
http://orcid.org/0000-0002-4105-166X

Camilla Araújo Lopes VIEIRA3 
http://orcid.org/0000-0003-1706-3772

1 Centro Universitário INTA – UNINTA, Curso de Psicologia. Sobral, CE, Brasil,

2 Consultório particular. Fortaleza, CE, Brasil.

3 Universidade Federal do Ceará – UFC, Curso de Psicologia. Sobral, CE, Brasil.


Resumo

O hospital tem sido lugar de inserção de psicanalistas na escuta do sujeito e de mal-estares próprios a esse contexto. O trabalho no hospital tem nos proporcionado o atendimento de mulheres-mães que nos apresentam situações clínicas que burlam a lógica de uma práxis que aborda especificamente a vivência da doença e do tratamento. A escuta de mulheres-mães nos levou a questão em torno das pulsões invocante e escópica nas improvisações maternas diante de um filho. Apresentamos um caso clínico que têm a intenção de provocar a discussão sobre estar disponível para a escuta do sujeito e as (in)certezas e (im)perfeições de ser mulher-mãe diante da hospitalização de seus filhos e sustentar a possibilidade de um trabalho analítico em instituições de saúde. Escutar as mulheres-mãe na instituição hospitalar tem indicado e confirmado que a maternidade não é suficiente para recobrir a falta estrutural do sujeito, sendo necessário estar sensível para escutar, interpretar e intervir sobre o que cada mulher pode falar do que ela supõe sobre o maternar, sobre o outro lhe interpela e as possíveis elaborações sobre a sua feminilidade e o lugar representado pelo filho. Por fim, aponta-se que a presença do analista no hospital pode promover o bem-dizer da relação do sujeito com seu desejo, fazendo-o responsabilizar-se por aquilo que causa seu sofrimento e seus sintomas.

Palavras-Chave: Ambiente hospitalar; Teoria psicanalítica; Mulheres; Maternidade

Abstract

The hospital has been a place of insertion of psychoanalysts in listening to the subject and the discomforts inherent to this context. Working in the hospital has provided us with the care of women-mothers who present us with clinical situations that circumvent the logic of a praxis that specifically addresses the experience of the disease and the treatment. Listening to women-mothers led us to the question surrounding the evocative and scopic drive in maternal improvisations in front of a child. We present a clinical case that intends to provoke a discussion about being available to listen to the subject and the (un)certainties and (im)perfections of being a woman-mother in the face of the hospitalization of her children and sustain the possibility of an analytical work in health institutions. Listening to women-mothers in the hospital has indicated and confirmed that motherhood is not enough to cover the structural lack of the subject, being necessary to be sensitive to listen, interpret and intervene on what each woman can say about what she supposes the other questions her and the possible elaborations about her femininity and the place represented by her children. Finally, it is pointed out that the presence of the analyst in the hospital can promote the well-meaning of the subject’s relationship with his desire, making him take responsibility for that which causes his suffering and his symptoms.

Key words: Hospital environment; Psychoanalytic theory; Women; Maternity

INTRODUÇÃO

O hospital tem sido campo de entrada e de inserção de psicanalistas que se desafiaram a escutar o sujeito em um espaço originalmente de domínio médico, forjado para olhar e tratar o corpo do indivíduo (Moretto, 2019). Tal lugar nos convoca a trabalhar com questões relacionadas iminentemente ao contexto hospitalar – sofrimento causado pelo adoecimento, tempo da hospitalização, condução das terapêuticas, comunicação de notícias potencialmente desorganizadoras, contato com a morte, permanência de lesões de ordem estrutural ou funcional no corpo (Simonetti, 2015). O psicanalista inserido nas equipes interdisciplinares considera a ética do desejo, os efeitos do inconsciente e a presença do sujeito no social, se distinguindo de uma clínica médica tradicional (Maranhão & Vieira, 2019).

O trabalho em hospitais pediátricos nos leva cotidianamente ao encontro com mulheres-mães com sofrimentos que se enveredaram por caminhos que vão mais além daquilo que se pode prever e intervir em uma técnica psicológica que se intenta focal e breve. As mulheres, presença majoritária nas instituições hospitalares direcionadas à infância, são nomeadas nos serviços como mães-acompanhantes, significante utilizado para forjar uma função que inscreve a mulher na figura de mãe e principal referência de cuidado aos filhos, sendo este o lugar da suportabilidade da dor, da resignação e do papel coadjuvante no processo de cura da doença.

Em contrapartida, construímos este significante mulheres-mães para discutir a possibilidade de identificação de alguma mulher com o exercício da função materna diante de um filho com problemas orgânicos do desenvolvimento em contexto de hospitalização, além de apontar questões singulares na escuta do discurso construído pela mulher-mãe. A escuta de mulheres-mães nos levou a questão em torno das pulsões invocante e escópica (Assoun, 1999; Didier-Weil, 2012) nas improvisações maternas diante de um filho. Apresentamos um recorte de atendimentos realizados em um hospital pediátrico a fim de abordarmos essas questões para a clínica psicanalítica.

SER MULHER E SER MÃE

A diferença entre o masculino e o feminino na psicanálise nos fala de um lugar que não é anatômico, embora a partilha dos sexos se dê pela percepção e significação das diferenças anatômicas e no modo como o sujeito se posiciona diante da castração edípica. No começo do romance familiar, tanto a menina quanto o menino têm na figura materna o objeto de amor. Isso tem efeitos dos dois lados do circuito pulsional, pois a mãe identifica no filho um objeto a ser amado supondo a realização de seu desejo. A consequência para o bebê é a identificação com uma imagem ideal e a alienação aos discursos produzidos por este outro (Freud, 1905/2016; 1914/2010; Lacan, 1973/1988). É deste lugar de objeto fálico de satisfação de si mesmo e de sua mãe que o bebê vivenciará suas primeiras experiências de satisfação.

Essa relação dual de alienação e de satisfação do filho e de sua mãe é triangulada em um futuro próximo pela presença de algo ou alguém que venha a exercer uma lei simbólica de limitação dessa satisfação para ambos. É com este corte estrutural que se opera a separação do filho e de sua mãe e o fracasso do cuidador em amparar de forma totalitária a criança que se pode emergir um sujeito do desejo. Isto se deve porque a castração narcísica faz uma exigência psíquica de que o menino reconheça que não pode mais ocupar este lugar objetal para sua mãe, pela perda simbólica da posição fálica, causando uma angústia de castração – posição masculina – e de que a menina se perceba como aquela que sofre por já ter realmente perdido esse objeto – posição feminina (Didier-Weill, 2012).

Na criança, o efeito desse momento edípico faz cair as primeiras identificações com o desejo daquela primeira pessoa que o recepcionou no mundo, buscando no laço social outras identificações às quais possa direcionar algum afeto na busca por a satisfação outrora sentida, daí a construção da história de cada sujeito ser singular. Todo sujeito está diante da falta ao entrar na linguagem (Lacan, 1962-1963/2005), logo, para a psicanálise são pertinentes os efeitos da castração para cada sujeito a partir da diferença entre os sexos.

Na teoria freudiana, a sexualidade da mulher tem o amor como um dos seus eixos constitucionais, assim, a história edipiana se inicia ao se ver e ao saber ser castrada, rivalizando com a mãe que é igualmente castrada e se apaixonado pelo pai fálico. Nesta primeira forma de amor, a menina busca pelo objeto fálico ao qual possa se identificar, caminhando em direção daquele que supostamente o possui: o homem. É a inveja da posse do falo e o desejo de possuí-lo que faz a saída edipiana para a mulher a posteriori, pois é nesse encontro com objeto de satisfação que poderá se nomear e contar sua a história de sua existência (Assoun, 1999; Freud, 1933/2010, 1905/2016; Lacan, 1938/2003; Silva & Maranhão, 2018). Na leitura lacaniana sobre a sexualidade feminina, o amor da menina pelo pai está articulado às dimensões do desejo e do gozo a partir e mais além da lógica fálica, mantendo a pendência identificatória na ordem do ser amada pelo outro. Portanto, cada mulher buscará uma forma de resolução mais condizente com a essência da feminilidade e com a condição feminina de seu tempo (Zalcber, 2023).

Ressalta-se que ao falarmos em mãe e pai apontamos para o exercício de funções parentais que culturalmente se associam a ideia da existência dos gêneros feminino e masculino. No entanto, a teoria psicanalítica avança nesta questão binária ao remeter-se à operação da castração como mote para a constituição de uma posição feminina e masculina pelo sujeito.

Localizada no lado do que sabe não ter-querer o falo, a mulher precisa se fazer objeto causa de desejo para aquele que é fálico, a fim de se satisfazer com substitutos objetais que estão para além do falo (Lacan, 1938/2003). Contudo, a falta originária do desejo se impõe para a mulher, justamente por ser da dimensão estrutural, sendo inaccessível o gozo pela linguagem. Aqui, entra em cena a mulher como “demandante de olhar” (Assoun, 1999, p. 184), decidida a não fracassar no jogo de sedução do outro para que garanta sua própria existência.

É no jogo da existência que a mulher faz apelo para ser simbolizada, ou seja, simboliza sua falta com um significante fálico (Didier-Weill, 2012). Cotidianamente encontramos no hospital pediátrico mulheres que buscam na maternagem essa identificação narcísica que venha encobrir sua falta, com efeitos psíquicos para a mulher-mãe e o filho adoecido. A questão urgente na discussão sobre o feminino passa a ser: a maternidade é suficiente para recobrir a falta da mulher?

Acreditamos que analiticamente o filho não sustenta a realização fálica da mulher, porquanto, é necessário a separação da díade mãe-criança e a presença de uma mulher em sua condição faltante e não-toda.

Ao apresentar um caso clínico em que uma mulher aparece nesta posição de exercício da maternagem e do cuidado hospitalar de um filho com problemas orgânicos no desenvolvimento, se intenciona abordar os discursos e os impasses advindos deste significante mulher-mãe. Embora as mulheres possam se implicar com o trabalho de cuidar dos filhos, tanto por uma questão estrutural como pela demanda externa, por vezes, responder a isto causa na mulher um questionamento sobre com que olho ela é olhada – cogito especular elaborado no feminino – e respondendo ao que ela imagina que os outros querem dela, tratando-se, portanto, de uma validação especular.

Em nosso trabalho, percebemos a constância da questão sobre o que se mal e bem entende daquilo que supõe do olhar do outro sobre si, assim como o que produz discursivamente diante da relação com a alteridade na escuta analítica das mulheres-mães no hospital e é a partir dessa experiência que podemos acompanhar o caminho trilhada por algumas mulheres para tornarem-se mães.

A HISTÓRIA DE MULHER-MÃE NO HOSPITAL PEDIÁTRICO

Nesse relato de experiência cumprimos as diretrizes e as normas reguladoras da Resolução da CONEP 510/2016 e, após a anuência do Comitê da instituição hospitalar sob o número de protocolo CAAE: 55708122.6.0000.5684, realizamos a escrita deste artigo. Apresentamos um recorte dos atendimentos realizados com uma mulher-mãe e seu bebê em uma unidade de Neurologia de um hospital pediátrico, a fim de ilustrar esse movimento de (in)certezas e (im)perfeições no exercício da maternagem pela mulher-mãe durante a hospitalização de seu filho.

Durante o processo de hospitalização, o pai não pode estar presente devido ao exercício de atividade laboral para prover os recursos financeiros da família. Também não houve a explicitação pela mulher da demanda por atendimento do companheiro ou de outro membro familiar, atividade possível de ocorrer no contexto hospitalar quando há a solicitação pelo paciente ou a identificação da necessidade pela psicóloga/psicanalista.

Na época, a mulher tinha 21 anos de idade e estava acompanhando seu filho de 9 meses para a troca de uma bomba de baclofeno, terapia utilizada para reduzir a espasticidade severa causada pela hidrocefalia causada pelo excesso de líquido cefalorraquidiano. Esse dispositivo é implantado cirurgicamente no abdômen e se conecta à coluna vertebral por meio de um cateter, demandando um período longo de hospitalização para a definição da terapêutica, realização do tratamento e recuperação cirúrgica. Por vezes, o procedimento pode causar inflamação, necessitando refazê-lo, o que pode ocasionar a recorrência de internações hospitalares em um mesmo ano.

O encontro com esta mulher-mãe ocorreu após o pedido da fisioterapeuta da equipe multiprofissional que, após ver a mãe tentando acalentar o filho que tinha o choro irritado, supôs a necessidade da genitora ser atendida pela equipe de Psicologia. Aqui podemos apontar a diferença entre estar em uma equipe de saúde e se inserir em um trabalho na equipe (Moretto, 2019), pois ao que um outro profissional supõe uma demanda para o analista – não necessariamente que seja uma demanda que leve a um trabalho analítico – abre-se a possibilidade de escutar alguém que pode vir a desejar ser escutado.

No contexto hospitalar, a sustentação do ato pelo analista deve ser orientada pela disposição em escutar as associações livres do paciente, único padrão que não varia, mas que também não fecha o tratamento, antes direciona para a escuta de um sujeito sem qualidades a priori e orienta para a criação de estratégias de um bem-dizer de si pelo paciente (Lacan, 1982/1998).

No primeiro atendimento da díade no leito, o bebê estava dormindo, pois havia sido sedado devido às dores pós-cirúrgicas. A mulher-mãe estava organizando os poucos pertences do filho levados ao hospital (uma chupeta, algumas fraldas de pano e produtos de higiene) ao mesmo tempo em que mantinha um olhar atento em direção ao bebê.

Após apresentar o trabalho de escuta clínica dos pacientes na enfermaria, me disponibilizei a acompanhá-los durante o período de hospitalização, ao que ela prontamente aceitou. Ainda nesse atendimento, a mulher-mãe me falou de seus planos de organizar a festa de aniversário de 1 ano de seu filho e de todos os feitos que ele já tinha conquistado até o momento da cirurgia – sorrisos, beijos, sustentação da cabeça e os primeiros ensaios para engatinhar – atrelados a uma narração de um progresso desenvolvimentista esperado no primeiro ano de vida.

Suspeitei que essa fala havia sido arquitetada por ela diante das várias entrevistas com profissionais da Medicina, Terapia Ocupacional, Fisioterapia e Fonoaudiologia do setor, uma vez que esta enfermaria era vinculada a clínica de Neurologia onde os pacientes e seus familiares são constantemente questionados acerca do desenvolvimento da criança, sobre os sinais e as comorbidades provocados pela doença a fim de poderem construir seus diagnósticos e exercer suas terapêuticas. Além disso, nessa unidade há um incentivo persistente de uma parceria das famílias com a equipe de saúde para exercer as práticas de estimulação precoce durante a hospitalização e após a ida para o domicílio.

Retomo a fala da mulher-mãe para os preparativos da festa de aniversário diante da hospitalização, com o intuito de desconsertar o que ela vinha contando de modo linear e colado ao discurso médico sobre o adoecimento e desenvolvimento do filho. É na convocação para falar de si que o sujeito pode criar o nada a partir do significante, transformando o mau-olhado que vem do outro em um bem-entendido sobre o que o outro quer dela (Didier-Weill, 2012). A fala desta mulher arquitetava aquilo que ela havia suposto ser desejado pelos profissionais de saúde, pois é comum a ideia entre os pacientes de que não devem frustrar as expectativas da equipe de saúde quanto ao tratamento ofertado. É nesse hiato entre perceber-se diante desta alteridade causador de um mal-entendido e supor o que este outro deseja que a intervenção do psicanalista ocorre na interpretação do desejo na palavra do paciente e apostar em um furo neste discurso encobridor do sujeito do desejo.

A intervenção sobre o discurso da mulher-mãe fez com que ela enveredasse para um outro ponto da história, contando que tinha uma outra filha de 6 anos, mas que não a criava, significante que irá se repetir nos próximos atendimentos. Ela explicou a sua impossibilidade e do seu marido de cuidarem da filha devido à situação de pauperização na época da gestação, optando por deixar a menina sob os cuidados da avó materna.

Lembrando a questão do modo como cada um se envereda com os efeitos da sua castração (Lacan, 1938/2003), interpreta-se que o significante da pobreza operou como este corte que fez a mãe separar-se de sua filha muito precocemente, tempo insuficiente para que ela pudesse criar algum enredo que trouxesse menos dor e mais satisfação à sua história de maternagem dos filhos.

A gravidez do segundo filho fez com que ela resolvesse criá-lo, indicando nessa escolha uma identificação com a posição materna, já que ela havia expressado algumas vezes que não se sentia mãe da primeira filha. Ela conta que os filhos não haviam tido gestações planejadas, mas agora o marido tinha um emprego melhor e podia comprar coisas que ajudavam no sustento material desse bebê.

O desejo dessa mulher-mãe de maternar esse filho perpassa também pela possibilidade de lhe prover um bem-estar físico, escancarando a fantasia desta mulher de que era necessário algum valor econômico para investir afetivamente em um filho, remetendo a história de sua própria parentalidade em que seus pais também tiveram dificuldades financeiras para sustentar os filhos. Evidencia-se a tentativa de encontrar outros sentidos para o significante da pobreza e assim conquistar a posição fálica perante este novo filho, sustentando aí seu desejo de ser amada pelo outro e contar uma outra história sobre a maternagem. A situação de pauperização (Iamamoto & Carvalho, 2008) teve efeitos sobre a subjetividade desta mulher, nesse jogo de sedução e alienação a qual ter que encantar seu bebê, ter algo a oferecer ao filho torna essa maternagem quase impossível, pois simbolicamente e imaginariamente somente pode ser sustentada na aquisição de objetos da realidade, aos quais ela pouco tinha acesso.

A pauperização não se refere somente a uma condição da família, posto que advém do próprio modo de produção do capital. A pobreza produzida pelo sistema do capital ao explorar a mais valia do trabalhador não paga a ele o total dos valores produzidos por ele, gerando uma desigualdade estrutural. Sabe-se que o fato de ter uma situação socioeconômica desfavorável não significa que a experiência de vinculação parental com os filhos esteja em risco. Não é à toa que mesmo o acesso às políticas sociais nos âmbitos da saúde, educação, assistência social e habitação não é suficiente para que se constitua uma posição de autoria e de responsabilização pelo sofrimento causado pela pauperização e sustentação de seu desejo de maternar o filho.

O modo como esta mulher-mãe introjetou os acontecimentos relativos à situação de vulnerabilidade social vividos na própria infância e os transformou em experiências de ser filha de seus pais e de ser mãe se repetia em um discurso de que não poderia sustentar seus próprios filhos e, posteriormente, de que não poderia receber auxílio financeiro do Estado para fazê-lo, pois acreditava que era necessário que ela e o marido encontrassem rendas próprias para cuidar do filho, com o risco de mais uma vez fazer um fechamento de sentido do significante pobreza na ideia de impossibilidade de maternar.

Lembro de dizer-lhe que não ter dinheiro é algo que parecia mesmo dificultar a sua maternidade, mas que ali no hospital eu percebia que ela conseguia cuidar do seu filho. Esta interpretação vai em direção a uma extração do sujeito, um manejo clínico para que haja um questionamento da fantasia de impossibilidade de exercer a maternagem em uma condição de pobreza.

Ao decorrer dos atendimentos, a mulher-mãe vai deslizando dessa posição de denúncia das marcas de uma infância pobre e de auto-acusação de uma incapacidade para dar aquilo que supunha não ter aos filhos, engajando-se em seu tratamento psíquico.

A internação durou 2 meses, período em que houve o diagnóstico de hidrocefalia, a cirurgia para a implantação da bomba de baclofeno e a recuperação pós-cirúrgica. Os atendimentos começaram após a cirurgia, tendo sido trabalhadas questões relacionadas à pobreza, à dor e ao choro irritado do bebê, à expectativa de retorno para o lar, à preparação da casa para ter condições sanitárias mínimas e à realização da festa de aniversário do filho.

No começo dos atendimentos, a irritação do bebê era tomada como uma resposta à dor causada pela doença e pelo procedimento cirúrgico, o que lhe fazia recorrer aos médicos para que lhe ajudassem a cuidar de seu filho. A angústia da mulher-mãe diante do choro irritado do bebê foi transformada em escuta de um pedido de cuidado por ela, se sentido desejada pelo outro.

A colagem ao discurso médico como orientador dos cuidados maternos prestados a seu filho funcionou para esta mãe como uma segurança diante do real da doença, permitindo inscrever outros sentidos no corpo marcado do filho. A preocupação da mulher-mãe com o controle das infecções hospitalares e com as atividades de estimulação precoce, além do discurso estruturado com empréstimos do vocabulário médico pode ser lido também como um recurso que possibilitou contornar o adoecimento e fragilidade do filho para ampará-lo e protegê-lo, assim como para proteger-se dessa impossibilidade de maternagem em um ambiente potencialmente traumático como a instituição hospitalar e em uma situação de pauperização.

Lembramos que, ao mesmo tempo em que se é necessário minimizar a angústia dos pais, explicitar possíveis dúvidas sobre a doença da criança e atuar na equipe de saúde com os outros profissionais, é um desafio não cair em um discurso da ciência e da pedagogia, isto é, não contribuir para uma ortopetização do corpo do outro em parâmetros desenvolvimentistas.

O trabalho com a psicanálise nos tem ensinado que nem devemos assumir uma postura que busca rivalizar, corrigir ou substituir os outros saberes presentes no hospital e nem tampouco discursar ao lado da ciência e de uma maestria para criar estratégias de compreensão, adaptação, bem-estar ao ambiente hospitalar (Moretto, 2019; Simonetti, 2015).

Ainda, foi também a suposição de que eu podia saber algo sobre o seu bebê que fez com que o trabalho analítico com esta mulher-mãe pudesse acontecer. O encontro com a maternidade a confrontou com o bebê da realidade, diferente daquele imaginado por ela e que viria fazer realizar seu desejo de ser mãe. No entanto, a ideia de que com aquele filho poderia exercer a maternidade foi posta à prova com o diagnóstico de hidrocefalia, pois exigiria mais do que ela supunha poder dar ao filho.

Ao decorrer dos atendimentos semanais, geralmente três vezes na semana variando apenas o turno, a mãe deslizou de uma posição de não saber e de poder acalentar o filho para um lugar de interpretação do choro e de outras demandas do filho, brincando com um bebê de corpo frágil e muito sensível. Pude acompanhar o processo de identificação da mulher-mãe com a maternagem de um bebê que exigia cuidados constantes e que encontrou na posição de mãe dedicada o amparo possível para lidar com um bebê irritado e deficiente.

Após 1 mês da alta hospitalar, o bebê e a mulher-mãe retornam ao hospital devido a uma falha na função de drenagem do líquido cefalorraquidiano pela bomba de bacofleno. Ao saber da nova internação, vou ao leito para escutar essa mulher-mãe, ao que encontro uma jovem falante e com um excesso de cuidados com o filho, agora com 1 ano de idade recém-completo. A busca ativa por pacientes seja em uma primeira internação no serviço hospitalar ou outras hospitalizações posteriores é algo comum na rotina hospitalar, pois assim se pode verificar a existência de alguma demanda emocional que pode ser acompanhada pela psicóloga/psicanalista.

Neste novo contato com a díade, percebo que a mulher-mãe tinha erigido uma série de interditos sobre o corpo do filho: não se podia chegar próximo ao leito para não interferir nos aparatos técnicos e nem segurar o bebê nos braços para não causar danos ao dispositivo implantado no filho. Mais uma vez, o pai não pode estar presente devido ao trabalho. Também não houve a presença de outro familiar que pudesse acompanhar a criança na ausência da genitora ou de demanda emocional para avaliação da necessidade de atendimento da psicóloga/psicanalista.

No período de três meses dessa nova hospitalização, a mulher-mãe foi construindo um sentido para os regressos corporais do filho, ele já não tinha a tonicidade corporal anteriormente conquistada, demorava a responder ao sorriso, ao olhar e a voz da mãe. Ela tomava essas ausências do filho como um sinal de que algo não ia bem e acreditava que os atendimentos de estimulação precoce durante e após a hospitalização o filho poderiam ajudar na (re)conquista de seus feitos de outrora.

Nos novos atendimentos, a mulher-mãe se enveredou por um caminho mais denso de suas memórias, lembrando-se do momento em que havia entregue a sua filha para ser cuidada pela avó materna, mostrando a atualidade do seu sofrimento por não ter maternado o primeiro bebê. Os atendimentos giraram em torno de uma rivalidade com a sua mãe, pois a mulher-mãe acreditava que a genitora não queria que a criança fosse criada por ela. Reclamava que a filha não a chamava de mãe, acreditando na existência de uma interferência provocada pela própria mãe para que sua filha não atendesse seu pedido recente de ser chamada por aquele significante, uma vez que este já era direcionado à avó.

A mulher-mãe atribuía esta recusa da filha ao fato de outrora faltar-lhe recursos financeiros para poder lhe comprar roupas e outros objetos. Em outro momento, revelou não ter feito a festa de aniversário do filho por falta de dinheiro, associando novamente seu sofrimento a essas falhas de não poder dar aquilo que deseja aos filhos.

A questão em torno das pulsões invocante e escópica se complexifica nas improvisações maternas diante dos filhos (Assoun, 1999; Didier-Weil, 2012), pois após a ida para o domicílio surge uma possibilidade de abertura para o significante pobreza interlaçado com o significante deficiência. O significante da deficiência surgiu após a primeira alta hospitalar e a sua ida ao Centro de Assistência Social (CRAS) – dispositivo da Política de Assistência Social para acompanhamento de pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade, no curto intervalo das duas internações hospitalares. No CRAS ela foi orientada a solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), um benefício estatal que garante uma renda mínima para prover os cuidados de pessoas com deficiência e idosos de baixa renda com mais de 65 anos.

Ser olhada pela marca da pobreza lhe causou angústia e uma recusa às solicitações da equipe de saúde e de sua família para solicitar o BPC. Este bem-fazer pelo outro apontado pelos profissionais de saúde e familiares tornou-se um risco para a existência dessa mulher na relação com a alteridade, uma vez que este filho visto pelos outros como deficiente não lhe causava prazer e nem identificação com a função materna, sendo necessária a rejeição deste lugar de deficiente para seu filho, a fim de produzir algo que sustentasse a filiação.

Ressalta-se que a recusa da deficiência é em algo do significante e não a expulsão dele todo, assim, essa rejeição do recebimento do auxílio financeiro não conseguia excluir a falta narcísica da experiência de pobreza. Foi necessário para ela suportar o fracasso de seu bebê e as falhas em sua maternagem para, enfim, poder sair da hospitalização com o que se tem nomeado no hospital como alta social, ou seja, quando o paciente não necessita de cuidados em saúde, mas precisa de amparo econômico do Estado para poder continuar o tratamento em domicílio.

Durante este tempo da internação social, o exercício da maternagem encontrou uma trilha direcionada para uma interpretação do olhar do bebê nas idas e vindas do centro cirúrgico, das preferências dele pelos profissionais da equipe de saúde e de como ele olhava para ela. Essas suposições também se enveredaram para os movimentos corporais involuntários e incontrolados da criança, apontando para uma vontade de mandar beijos, de sorrir e de procurá-la.

Por vezes questionava sobre quando o filho sorriria novamente e se seria feliz, se quando voltassem para casa poderia colocá-lo no chão para que começasse a andar. Essas perguntas não foram respondidas por mim para que ela mesma produzisse algo, mas quando feitas aos profissionais da Fisioterapia e Terapia ocupacional durante os atendimentos de intervenção precoce no leito eram respondidas com uma negação não suportada pela mãe.

Diante desse contexto, foi necessário intervir com a equipe, advertindo sobre a importância dos profissionais não insistirem que a mãe reconhecesse o filho como deficiente nesse momento, pois esse desejo pelo bem da criança fazia barreira ao desejo dessa mulher em tornar-se mãe desse filho (Lacan, 1982/1998; 1958/1998).

Após a desospitalização, a mulher-mãe me solicitou o acompanhamento por outro profissional da área da Psicologia fora do hospital. Nesse momento, ela já havia construído uma possibilidade de maternagem do filho, incluindo o recebimento do BPC como um direito do filho para poder realizar o tratamento de estimulação precoce. O significante deficiência foi desatrelado do significante ser pobre, associando-se à ideia de luta por direitos sociais, uma causa à qual a mulher-mãe poderia militar e erigir um lugar para si e seu filho.

Ainda, abdicou dos cuidados com a filha mais velha, afirmando não ter como criar duas crianças, e mudou-se para uma residência mais próxima de sua mãe, que iria ajudar com os cuidados do neto. Esta é uma dissolução da rivalidade com a mãe na medida em que sai da posição de subjugação ao desejo do outro de querer criar sua filha para a um lugar de escolher não poder cuidar desta primeira criança para se dedicar ao segundo filho, participando da criação da primeira filha como uma expectadora presente simbolicamente, já que não deixou de marcar seu lugar como mãe biológica para a criança e sua própria mãe.

Estas saídas encontradas pela mulher-mãe falam de um modo de existir no social diante de tantas contingências, mas que agora em uma posição de autoria pode se responsabilizar pelos efeitos da pauperização na sua vida e história familiar, bem como sustentar seu desejo de maternagem do filho deficiente.

Em nossa prática percebemos o quanto o adoecimento e a hospitalização dos filhos produzem efeitos nas mulheres-mães. No entanto, por vezes, estas nos falam de questões que estão para além do diagnóstico, da terapêutica e da cura ou morte de suas crianças, apontando para o modo como cada um pode contar suas experiências de maternagem e de hospitalização.

Pensar a oferta de um trabalho psicanalítico no hospital é estar advertido de que mesmo o psicanalista disponibilizando sua escuta, o trabalho de elaboração só começa quando há a implicação do sujeito com a vontade de saber sobre o seu sintoma. Deste modo, estar disponível é poder escutar e autenticar a história produzida por cada um para recobrir tais experiências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho no hospital tem nos proporcionado o atendimento de mulheres-mães que apresentam questões que burlam a lógica de uma práxis que aborda especificamente a vivência da doença e do tratamento, nos revelando questões acerca do par olhar-ser olhada e da produção discursiva sobre o exercício de maternagem pela mulher como um modo de existir diante da alteridade. Essas demandas não são trazidas de modo rápido e fácil pelos pacientes, mas comparecem e nos mostram que é possível sustentar o ato analítico em instituições de saúde.

O relato sobre os atendimentos realizados com as mulheres em condição de maternagem tem o intuito de apontar que a presença do analista no hospital pode promover o bem-dizer da relação do sujeito com seu desejo, fazendo-o responsabilizar-se por aquilo que causa seu sofrimento e seu sintoma. Esse é um processo subjetivo que requer certo tempo de formulação de uma demanda pelo sujeito para que possa iniciar um trabalho de elaboração e que nem sempre coincide com o tempo cronológico de tratamento de uma doença.

Escutar as mulheres-mães na instituição hospitalar tem indicado e confirmado que a maternidade não é suficiente para recobrir a falta estrutural do sujeito, sendo necessário estar sensível para escutar, interpretar e intervir sobre o que cada mulher pode falar sobre o ela supõe que o outro lhe interpela e as possíveis elaborações sobre a sua feminilidade e o lugar representado pelo filho.

REFERÊNCIAS

Assoun, P. (1999). O olhar e a voz: lições psicanalíticas sobre o olhar e a voz: fundamentos da clínica à teoria. Companhia de Freud. [ Links ]

Didier-Weil, A. (2012). Lacan e a clínica psicanalítica. ContraCapa. [ Links ]

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Financiamento: Próprio.

Recebido: 02 de Junho de 2023; : 15 de Fevereiro de 2024; Aceito: 09 de Setembro de 2024

Correspondência: Ana Beatriz Albuquerque Almeida psicbia@gmail.com

Conflito de interesses:

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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