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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.8 n.2 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

A narrativa no contexto da ciência psicológica sob o aspecto do processo de construção de significados

 

La narrativa en el contexto de la ciencia psicologica como proceso de constrtuccion de significados

 

Narrative in psychological science as a process of meaning constrution

 

 

Carla A. Fonte

Universidade Fernando Pessoa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura caracterizar a emergência da narrativa numa ciência pósmoderna que encara o indivíduo como construtor de significados. Destaca-se a linguagem como elemento crucial na construção da matriz narrativa, desenvolvendo-se ainda algumas definições de narrativa com destaque para a sua importância no funcionamento psicológico. Defende-se a importância da narrativa sob o aspecto do processo essencial na construção de significados para a existência humana. Conclui-se salientando a narrativa como processo idiossincrático na sua relação com as experiências de vida de cada indivíduo.

Palavras-chave: Narrativa, Linguagem, Significado, Pós-racionalismo.


RESUMEN

Este artículo procura caracterizar la emergencia de la narrativa en una ciencia pos-moderna que enfrenta el indivíduo como constructor de significados. El lenguaje es destacado como elemento crucial en la construcción de la matriz narrativa, desarrollandose también algunas definiciones de narrativa destacando la importancia que las mismas tienen en el funcionamento psicológico. Se defiende la importancia de la narrativa como proceso esencial en la construcción de significados para la existência humana. Se concluye destacando la narrativa como proceso idiosincrásico en su relación con las experiencias de vida de cada indivíduo.

Palabras clave: Narrativa, Lenguaje, Significado, Pós-racionalismo.


ABSTRACT

This paper characterize narrative emergence in the post-modern science, that interprets human being as a meaning constructor. It is emphasize the language as a crucial element in the narrative and is development some narrative definitions and it importance for the human functioning. It is undertake the importance of the narrative as a essential process in the meaning construction to the human life. Conclusions are discuss in terms of the narrative as an idiosyncratic process in relationship with human life experience.

Keywords: Narrative, Language, Meaning, Post-rationalist.


 

 

Introdução

A ciência e a psicologia de orientação positivista depositaram uma profunda esperança na possibilidade de encontrar uma resposta, verdadeira e universal, para as suas inquietações acerca da natureza do universo e do ser humano. Acreditaram, além disso, que esse objectivo era tanto mais alcançável quanto mais se tornasse possível a eliminação da subjectividade humana, em prol de uma objectividade científica, metodológica.

Este paradigma, que procura a constituição de verdades absolutas, tem dado lugar a uma conceptualização da ciência, classificada como pós-empiricista, pós-estrutural, não fundamentada ou pós-moderna, que se destaca pelo confronto que estabelece com os princípios que tradicionalmente dominaram a produção de conhecimento (GERGEN, 1994).

Nesta nova perspectiva, o conhecimento emerge da interacção entre o sujeito e o seu contexto, sendo esta interacção continuamente auto-referenciada e interpretada a partir dos quadros de referência do sujeito.

Pretende-se com o presente texto analisar alguns dos contributos teóricos que emergiram desta nova concepção de ciência e suas implicações para a compreensão do funcionamento humano.

História e concepções da narrativa

Com a emergência da ciência pós-moderna, o indivíduo deixa de ser considerado um mero processador de informação para ser visto como um construtor activo de significados.

Esta concepção do ser humano como “construtor de significados” tem sido desenvolvida por diversos movimentos da psicologia: o construcionismo social, o construtivismo desenvolvimental, o pós-modernismo e a teoria narrativa (HENRIQUES, 2000).

Na análise dessas abordagens, encontram-se alguns pressupostos comuns, entre os quais

o facto de os seres humanos serem vistos como contadores de histórias; a defesa de que o pensamento é essencialmente metafórico e imaginativo e ainda que a manipulação do pensamento é caracterizada por uma procura intencional de significação (GONÇALVES, 1998, p. 257).

Além disso, “a realidade é vista como uma estrutura complexa, caótica e multipotencial, preferencialmente acedida através de diapositivos de natureza hermenêutica e narrativa” (GONÇALVES, 1998, p. 257).

A este propósito, Guidano (1991, p. 4) refere [...]nós vivemos numa pluralidade de mundos e realidades possíveis criados pelas nossas próprias distinções perceptivas. Há tantos domínios de existência quantos os tipos de distinção construídas pelo observador.

Deste modo, a realidade é encarada como algo que só fará sentido depois de ser construída pelo próprio sujeito. Assume-se a possibilidade de existirem construções múltiplas desta mesma realidade, fomentando a multiplicidade do conhecimento, que está dependente do próprio sujeito.

É precisamente à luz dessas novas abordagens que a linguagem se vai assumir como elemento central. Esta passa a ser considerada não como um reflexo de uma realidade psicológica que lhe preexiste, mas como o próprio fenómeno psicológico (GONÇALVES, 1996), afastando, assim, a perspectiva representacionista tradicional que a encarava como um reflexo do mundo, passando a vê-la como uma forma de co-construir algo com o interlocutor.

O carácter hermenêutico da linguagem emerge da teia de relações que se estabelece entre as palavras, constituindo uma matriz narrativa (GONÇALVES, 2000). Dito de outro modo, é através da linguagem que construímos intencionalmente a nossa experiência, que depois dá lugar a uma configuração narrativa (MANITA, 2001). No mesmo sentido, MacNamee e Gergen (1992) argumentam que as construções que fazemos do mundo e de nós próprios são limitadas pelas nossas linguagens. De facto, é através da linguagem que os seres humanos conseguem expressar e comunicar a sua experiência. Construímos conhecimento e significado através da acção proactiva da linguagem, que exprime e potencia o que vivemos (GONÇALVES, 2000).

Na sequência da emergência da linguagem como aspecto central da construção do conhecimento, uma grande variedade de autores têm vindo a sugerir a idéia de narrativa (HOWARD, 1991). Esta tem sido objecto de crescente atenção na Psicologia, especialmente a partir de 1980 (SARBIN, 1986).

Várias definições de narrativa têm emergido, havendo alguns teóricos a argumentar que todos os pensamentos são narrativos (HOWARD, 1991), enquanto outros descrevem as narrativas como uma forma distinta de expressão de acontecimentos humanos com significado (BRUNER, 1986).

Outros autores têm sugerido que as narrativas “iluminam” os significados humanos (POLKINGHORNE, 1988; SARBIN, 1986), definindo narrativa como

uma estrutura de significação que organiza os acontecimentos e acções humanas numa totalidade, atribuindo deste modo significado às acções e acontecimentos individuais de acordo com o seu efeito de totalidade (POLKINGHORNE, 1988).

Sarbin (1986, p. 9) define a narrativa como: “A forma de organizar episódios, acções e relatos de acções, é uma realização que junta factos reais e de ficção onde o tempo e o espaço são incorporados”.

De facto, este princípio organizador da experiência humana presente na narrativa está subjacente à definição de narrativa apresentada por diversos autores.

Mishler (1986 apud FERNANDES, 2001) define narrativas como “cursos de acção coerentes e significativos com princípio meio e fim”. Van Den Broek e Thurlow (1991 apud HENRIQUES, 2000, p. 142) vêm sublinhar a dimensão da temporalidade ao longo da vida e estabelecem a associação entre a narrativa e a identidade. Assim, a nossa identidade é a narrativa coerente da nossa vida e constitui um princípio organizador central. As pessoas organizam a experiência no mundo social, conhecem-no e estabelecem transacções através de narrativas.

Gergen e Gergen (1986), definem a narrativa como a capacidade para estruturar acontecimentos com coerência e com um sentido de movimento e direcção no tempo. Polkinghorne (1988) salienta que a narrativa organiza os acontecimentos da nossa experiência numa sequência coerente e numa dimensão de continuidade temporal.

A narrativa surge, assim, não como uma representação de uma realidade cognitiva essencial, mas como um elemento central da experiência do indivíduo, uma forma de construir um conhecimento indissociável da experiência de existir (GONÇALVES, 1996). Quanto mais completa é a narrativa, mais coerente é o significado da experiência. “É através do processo de estruturação das experiências, dentro desta estrutura narrativa, que o ser humano encontra coerência e significado na sua vida” (HENRIQUES, 2000, p. 144).

A definição de Bruner (1990) vem salientar a vertente cultural, chamando a atenção, especificamente, para a questão da idiossincrasia como uma originalidade em relação ao culturalmente previsto, e para a função da narrativa na interacção social. Ou seja, a narrativa lida com a acção e a intencionalidade humana, mediando o mundo previsto culturalmente com o mundo idiossincrático dos desejos, crenças e esperanças.

Neste sentido, Gonçalves (1998, p. 23) afirma que “as narrativas só têm existência num processo interpessoal de construção discursiva e como tal são inseparáveis do contexto cultural onde ocorrem”, acrescentando, ainda, que “a narrativa não é um acto mental individual, mas uma produção discursiva de natureza interpessoal e culturalmente contextualizada”.

Wigren (1994) define a narrativa como o modo em que as experiências quotidianas são processadas, permitindo a sua compreensão. Este autor considera, ainda, que a narrativa permite a criação de ligações entre o próprio indivíduo e os outros.

Sendo a narrativa “uma forma de representar e reproduzir dramaticamente os acontecimentos” (VILLEGAS, 1995, p. 7), ela não tem apenas uma função de memorização. Ao contarem as suas histórias, os indivíduos não pretendem somente reter em memória e reelaborar a sua experiência, ou autojustificarem-se: pretendem, igualmente, convencer, persuadir ou impressionar terceiros, com o objectivo de obter dos mesmos compreensão, aceitação, valorização, ajuda ou recompensas (VILLEGAS, 1995).

Isto significa que a memória episódica retém dos acontecimentos uma estrutura esquemática mais coerente com os interesses do sujeito e menos fiel aos factos (VILLEGAS, 1995). Na verdade, não podemos esquecer que os factores emocionais interferem na memória dos acontecimentos, distorcendo-os ou actuando selectivamente sobre a sua retenção e recordação. Daí que, como defende Spence (1982), nunca podemos aceder à verdade factual, devendo fazer a distinção entre “verdade histórica” e “verdade narrativa”. O autor concebe as narrativas como construções interpretativas. A interpretação é “sempre um acto criativo cuja verdade histórica não pode ser determinada” (SPENCE, 1982) e a finalidade dessa construção é a de proporcionar ao indivíduo uma história coerente da sua vida, coerência esta que, por sua vez, imprime à experiência um sentido de continuidade. Assim, podemos concluir que, na linha das abordagens narrativas, representadas por todos os autores previamente citados, “construímos a nossa existência sobre a base de uma estrutura narrativa” (VILLEGAS, 1995).

Apesar de algumas diferenças na definição de narrativa proposta pelos diferentes autores, todas elas acabam por salientar a importância de alguns aspectos, como a temporalidade, associada à própria estruturação narrativa, a relação da narrativa com os contextos e, por fim, a produção de significações e sentidos (MANITA, 2001).

Tendo, então, presente que, segundo essas abordagens, o ser humano organiza o seu conhecimento de modo narrativo, constrói e interpreta a realidade que o rodeia, como é que este modo de conhecimento narrativo se articula com a construção de significados? No ponto que se segue tentamos dar resposta a esta interrogação.

A narrativa sob o aspecto do processo de construção de significados

A ligação da dimensão do significado à condição da existência humana é referida por vários autores. Polkinghorne (1988, p. 9), afirma que “o estudo da construção do significado é particularmente central para as disciplinas preocupadas com a explicação da experiência humana”.

Nesta mesma linha, Gonçalves (2000) defende que a “existência humana é caracterizada por um processo contínuo de construção de significado”.

Desta forma, a psicologia narrativa, na sua estreita ligação com a compreensão da existência humana, é uma psicologia da significação. Não se preocupa tanto com a entrada, tratamento e devolução de informação, mas essencialmente com a forma, ou com o processo, pelo qual o sujeito cria significações (FERNANDES, 2001).

Tal como já fizemos referência no ponto anterior, esta construção de significação está associada a uma visão do sujeito como uma unidade temporal que faz parte de uma comunidade onde existem inter-relações de natureza linguística e cultural.

Bruner (1986) afirma que é a dimensão narrativa do pensamento que vai abrir a porta para o estudo dos significados humanos. No entanto, a construção de significado para a nossa experiência

não é desligada dos significados culturais e históricos veiculados nas narrativas em que nascemos, nos desenvolvemos e que ordenam as nossas relações, as nossas práticas e os contextos das nossas interacções (FERNANDES, 2001, p. 44).

Ou seja, a narrativa estrutura os significados da nossa vida numa estreita ligação com os significados sociais e culturais.

Blumer (apud MANITA, 2000, p. 18), teórico do interaccionismo simbólico, já nos anos 1920/30 do século XX destacou o facto dos sujeitos agirem em função dos significados que as situações ou os eventos têm para si, sendo que esses significados são um produto social resultante das interacções entre os indivíduos.

Isto é, o indivíduo é um ser que produz significações diversas, orientadoras da sua acção.

Também Piaget defendeu a inseparabilidade da relação sujeito-objecto, afirmando que o conhecimento surge como um produto da interacção entre os dois. Para que o sujeito conheça o objecto, deve operar sobre ele num processo que envolve a transmissão mútua. Por isso, o conhecimento não é uma cópia da realidade, dependendo antes da actividade do sujeito (MAIA, 1998).

Segundo Gonçalves (1996), a nossa identidade pessoal, a coerência narrativa da nossa vida estão largamente dependentes da construção de significados, que surge, deste modo, como um organizador central no nosso funcionamento.

Defendemos então, e de acordo com as propostas dos autores mencionados, que a narrativa tem uma natureza inerentemente significadora, permitindo a organização da diversidade da experiência num mundo de sentidos. Tal como refere Gonçalves (2000, p. 56), “organizar narrativamente a experiência é, sobretudo, dar-lhe um sentido”.

Nesta linha de compreensão teórica, têm sido desenvolvidos diversos estudos que procuram aprofundar o conhecimento sobre as narrativas e o seu papel no processo de construção de significados, aplicadas a problemáticas e vivências específicas.

Gonçalves; Maia; Alves; Soares; Duarte e Henriques (1996) procuraram explorar as dimensões do conteúdo narrativo em psicopatologia através da construção e validação de narrativas-protótipo em indivíduos diagnosticados com diversos tipos de psicopatologia: dependentes de opiácios, alcoólicos, anoréxicos, perturbações do pânico com agorafobia e depressivos. Assim, analisaram em que medida diferentes tipos de psicopatologia podem tipificar formas prototípicas de significação narrativa. Em termos globais, os resultados evidenciam que o conteúdo narrativo, a organização discursiva de diferentes tipos de psicopatologia correspondem a diferentes organizações prototípicas, com componentes rígidos e inflexíveis da organização narrativa da experiência. Quer dizer, foram validadas e identificadas narrativas-protótipo de vários tipos de organização discursiva em psicopatologia: da agorafobia; da anorexia; da toxicodependência; da depressão e do alcoolismo (GONÇALVES, 2000).

No sentido de analisar narrativas pessoais significativas de sujeitos consumidores e não consumidores de haxixe e ecstasy relativos ao fenómeno droga, Fonte (2003) conclui num trabalho com estudantes universitários que a existência de narrativas com significados associados à droga e aos usos de drogas nestes jovens têm dimensões comuns integrantes no discurso sociocultural vigente. Estes dados estão de acordo com a dimensão cultural presente na construção narrativa que já abordamos previamente. Nesse estudo a mesma autora constata, ainda, que, nos mesmos estudantes, verifica-se a construção narrativa de significados pessoais diversos relativos ao fenómeno droga, interpretáveis à luz da experiência individual de consumos (de terem ou não já consumido algum tipo de droga) e da história de vida de cada sujeito (FONTE; MANITA, 2003). Esses resultados confirmam que a narrativa organiza nossas experiências idiossincráticas, conferindo- lhes significado, que depois vamos continuamente construindo e reconstruindo.

Num outro estudo de Cavadas e Fonte (2005), tentou-se analisar os significados narrativamente construídos e organizados por crianças com familiares alcoólatras, relativamente à sua família. Os resultados salientam a influência das dinâmicas familiares na construção de significados sobre a família, por um lado, e a existência de significados sobre a concepção de família associados ao alcoolismo, por outro. Também aqui as experiências de vida, neste caso de ter familiares alcoólatras, são organizadas de modo narrativo, permitindo depois a elaboração de significados sobre a família associadas a esta experiência.

Fernandes (2001) investigou o impacto das memórias do cliente na activação de memórias do terapeuta. No contexto da sessão terapêutica, entende-se a psicoterapia como um encontro de narrativas terapêuticas, em que o terapeuta activa as suas memórias pessoais durante a sessão. Assim, em termos globais, conclui-se que, na actividade de conversação e de interacção terapêutica, o terapeuta participa na co-construção de histórias do cliente, fazendo recurso às suas próprias histórias, salientando assim as narrativas presentes em ambos, que se “encontram”.

Esses estudos evidenciam a importância do conhecimento narrativo no funcionamento humano, e, sobretudo, destacam a idéia central, que já defendemos neste texto, de que organizamos a nossa experiência de modo narrativo, atribuindo-lhe significado.

Assim, defendemos a necessidade de continuar a desenvolver estudos que aprofundem o conhecimento sobre a forma como o ser humano constrói a sua experiência de modo narrativo e lhe atribui significado. Estes poderão decorrer aplicados aos mais diversos fenómenos da experiência humana. A este propósito destacamos o trabalho de investigação em curso de Aguiar e Fonte sobre Narrativas e Significações da Doença em Crianças com Diabetes Mellitus Tipo I.

 

Considerações finais

A narrativa desempenha um papel fundamental na construção de significados dos seres humanos. Emerge como um processo mediador entre significado e existência humana. No entanto, como consideram vários autores, as narrativas não recriam literalmente a experiência. As histórias que contamos são construídas para dar significado à nossa experiência. Por isso, não é qualquer história que “serve”; como tal, as histórias que contamos acerca das nossas vidas podem ser radicalmente transformadas.

Na opinião de Sluzki (1995), por um lado, uma narrativa demasiado diferente da anterior não será reconhecida pelo sujeito como sua, por outro, se a nova narrativa for parecida com a antecessora, ela não resistirá por muito tempo, uma vez que a antiga história, devido às suas ligações com o mundo real, que já é familiar aos indivíduos, voltará a vigorar. Este poder transformativo das narrativas reside, portanto, na sua capacidade de re-narrar os acontecimentos das nossas vidas, atribuindo-lhes novos significados.

A identidade pessoal, como já foi referida, e a coerência narrativa da vida estão amplamente dependentes da construção de significados (RENNIE, 1994).

Contudo, o significado narrativo não se constitui como algo eterno e permanente, mas, pelo contrário, está sempre sendo transformado na contínua actividade de construção sobre a nossa experiência (FERNANDES, 2001). Como participantes numa cultura, transportamos conosco um estoque de significados acumulados ao longo da nossa história pessoal e social (POLKINGHORNE, 1988).

Sarbin (1986) defende que nós pensamos, fantasiamos, compreendemos e fazemos escolhas de acordo com uma estrutura narrativa, segundo a qual, além da construção de significado para as experiências passadas, planeamos proactivamente experiências futuras.

Assim, cabe aos sujeitos a interpretação da diversidade de experiências e acontecimentos numa construção dotada de sentido.

Organizar narrativamente a experiência é, acima de tudo, conferir-lhe sentido, sentido esse que se desenrola ao longo da trajectória existencial, inevitavelmente repleta de experiências diversificadas como é característico dos seres humanos (MANITA, 2000, p. 19).

Em conclusão, podemos dizer que as narrativas construídas para dar sentido à vida podem ser continuamente reconstruídas, de acordo com as experiências por que passamos. Não concebemos a nossa acção vazia de significado, pois perante determinado acontecimento ou experiência (pessoal e social), somos levados a reinterpretar sucessivamente a realidade, na busca de uma mais completa e congruente compreensão subjectiva dessa experiência, mas numa estreita ligação com os significados sociais e culturais dominantes (FONTE; MANITA, 2003).

 

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Endereço para correspondência
Contato:
Carla A. Fonte
Praça 9 de Abril
349 4249-004
Porto – Portugal
e-mail: cfonte@ufp.pt

Tramitação
Recebido em agosto de 2005
Aceito em janeiro de 2006

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