Services on Demand
article
Indicators
Share
Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.12 no.3 São Paulo Mar. 2010
ARTIGO ORIGINAL
Consciência morfológica: um panorama da produção científica em línguas alfabéticas
Morphological awareness: an overview of scientific prodution in alphabetic languages
Conciencia morfológica: un panorama de la literatura científica en las lenguas alfabética
Vivian HagenI1; Luciene Corrêa MirandaI; Márcia Maria Peruzzi Elia da MotaII
I Universidade Federal de Juiz de Fora
II Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo revisar a produção científica nacional e internacional indexada no Scielo, Pepsic e no periódico Capes (Web of science, Psychinfo e Eric), entre 1999 e 2009, sobre a relação entre consciência morfológica e alfabetização. Foram selecionados estudos empíricos que descreviam o relacionamento da consciência morfológica e a alfabetização. Identificaram-se 76 que foram analisados considerando os seguintes aspectos: a faixa etária de interesse das amostras, os países onde a publicação do tema é mais frequente, os anos de publicação, os países onde o tema é mais frequente e as palavras-chave mais encontradas. Foram excluídos artigos de revisão da literatura, artigos que tratavam da consciência sintática sem focar os aspectos morfossintáticos ou da morfologia derivacional e bilíngue e capítulos de livros. Os resultados apontam para uma necessidade de publicação sobre o tema, por ser relativamente novo e com muitas questões ainda a serem abordadas.
Palavras-chave: Habilidades metalinguísticas; Consciência morfológica; Consciência fonológica; Leitura; Escrita.
ABSTRACT
This study aimed to review the scientific production nationally and internationally indexed in Scielo, Pepsic, and Capes journal (Web of science, and Eric Psychinfo), between 1999 and 2009, on the relationship between morphological awareness and literacy. Empirical studies that described the relationship of morphological awareness and literacy were selected. Seventy-six papers were identified. They were analyzed considering the following aspects: the age of the samples of interest, the countries where the publication were more frequent, the years of publication and the most frequent keywords. Papers that were excluded were literature review, papers dealing with the syntactic awareness without focusing on morphosyntactic or derivational morphology, papers with bilingual subjects, and book chapters. The results point to the need for more publications on the subject, and they show that this is a relatively new theme and many issues still need to be addressed.
Keywords: Metalinguistic awareness; Morphological awareness; Phonological awareness; Reading; writing.
RESUMEN
Este trabajo ha tenido como objetivo revisar la producción científica nacional e internacional indexada en el Scielo, Pepsic, y Capes periódicos (Web de la ciencia, de Psychinfo y de Eric) del año 1999 hasta el año 2009 en lo relacionado a estudios que asocian conciencia morfológica y alfabetización. Fueron seleccionados estudios empíricos que relacionaron la conciencia morfológica a la alfabetización. Fueron identificados 76 considerando los aspectos siguientes: la edad de las muestras de interés, los países donde el tema es más frecuente, los años de la publicación y las palabras claves. Se excluyeron los artículos de la revisión de literatura, artículos que se ocuparon de la conciencia sintáctica sin centrarse en los aspectos de los morfosintácticos o morfología derivacional y bilingüe, así como los capítulos de libros. Los resultados señalan que es necesario más publicaciones sobre el tema por ser relativamente nuevo y con muchas preguntas que todavía deberán ser trabajadas.
Palabras clave: Capacidades metalingüísticas; Conciencia morfológica; Conciencia fonológica; Lectura; Escritura.
Introdução
Habilidade metalinguística é a habilidade de refletir sobre a linguagem como objeto do pensamento (GARTON; PRATT, 1989). Ela difere da linguagem oral na medida em que envolve a manipulação intencional dos aspectos estruturais da língua. A linguagem oral é processada de maneira tácita implícita.
Os linguistas utilizam o termo metalinguístico para se referirem às atividades que envolvem a análise e a descrição da língua. Para a psicolinguística, essa definição envolve a ideia de que a atividade metalinguística deve ser entendida como habilidade de refletir não só sobre os aspectos formais da língua, como também do ponto de vista dos processos cognitivos e metacognitivos envolvidos nesse processamento (GOMBERT, 1992).
A aquisição da linguagem escrita é um objetivo básico a ser alcançado na fase inicial de escolarização e dela depende o sucesso da aprendizagem escolar nas fases posteriores da escolarização. Desde o momento em que a criança inicia sua vida escolar, a aprendizagem da leitura e da escrita se torna o objetivo principal, inicialmente em função da alfabetização, que marca a entrada da criança em um novo mundo, onde ela pode ser mais autônoma, por ser capaz de ler informações importantes e entender melhor o que está à sua volta, como também, a partir desse conhecimento, buscar formas de desenvolver essa nova capacidade. Assim, após a aprendizagem dessas habilidades, no decorrer dos anos da vida acadêmica, a leitura/escrita continua sendo fundamental para o ensino e a aprendizagem de diversas disciplinas.
O estudo do processo de aprender a ler e escrever envolve tanto as questões básicas do domínio do código alfabético como aquelas relacionadas à sintaxe ou à gramática em geral e até mesmo as literárias, que fazem parte da estrutura da língua. Porém, deve-se ressaltar que a apropriação da leitura e escrita ocorre de forma gradual, segundo uma sequência de desenvolvimento, na qual a criança reconstrói, de uma forma dinâmica, as relações entre os sistemas de representações fonológicas e ortográficas da língua (CORREA, 2005).
Já é acordado entre os pesquisadores da área que o desenvolvimento metalinguístico está intrinsecamente relacionado com a alfabetização, isto é, com as habilidades de leitura e escrita (CARLISLE, 1995; NUNES; BINDMAN; BRYANT, 1997; CARLISLE, 2000; CARLISLE; FLEMING, 2003; CAPOVILLA, GÜTSCHOW, CAPOVILLA, 2004; DEACON; KIRBY, 2004; DEACON; BRYANT, 2005; NAGY; BERNINGER; ABBOT, 2006). As crianças com melhores habilidades metalinguísticas também apresentam melhores escores nas tarefas de leitura e escrita.
Entre as habilidades metalinguísticas, três se destacam por contribuírem de forma causal na alfabetização: a consciência fonológica, a consciência sintática e a consciência morfológica. Recentemente, tem se argumentado que a consciência sintática deveria ser chamada de consciência morfossintática, porque alguns autores consideram que não é possível separar aspectos morfológicos dos sintáticos, e, portanto, há um só constructo: morfossintaxe (CORREA, 2009). Assim, a expressão consciência sintática vem sendo substituída por consciência morfossintática. Neste trabalho, focaremos os estudos publicados que utilizaram as duas expressões como descritores.
Na área de alfabetização, a consciência morfológica ou morfossintática vem sendo objeto de interesse nas pesquisas recentes. Fazem parte da aquisição da leitura e escrita dois princípios: o fonográfico, que corresponde à aprendizagem da relação entre as letras e os fonemas das palavras, e o semiográfico, que diz respeito à aprendizagem de como as letras se associam às unidades de significados que correspondem aos morfemas (MAREC-BRETON; GOMBERT, 2004). Esses dois princípios estão intimamente relacionados a duas habilidades metalinguísticas: consciência fonológica e consciência morfológica. O primeiro está relacionado com a consciência fonológica, ou seja, a capacidade de refletir sobre os sons da fala, e o segundo, à consciência morfológica, que será brevemente discutida e conceituada no presente artigo.
A consciência fonológica possui um importante papel na aprendizagem da leitura/escrita, ajudando na aquisição do princípio alfabético, o qual postula que as letras devem corresponder perfeitamente aos sons das palavras. Refletir sobre os sons da fala ajudaria a criança a associá-las às letras que os representam. Porém, nem sempre as palavras obedecem perfeitamente às correspondências entre letra e som. Assim, essa habilidade nem sempre é suficiente para a decisão da grafia correta de palavras e para a compreensão e interpretação da leitura, pois, em línguas alfabéticas, ocorrem variações no grau de correspondência entre as letras e os sons da fala.
No português, que é uma língua alfabética, essas correspondências não são sempre fiéis, pois diferentes letras/signos podem representar mais de um mesmo som da fala (por exemplo, s, ss, ç). Segundo Mota et al. (2000), mesmo que a criança saiba e utilize as regras de correspondências entre as letras e seus respectivos sons, não será suficiente para que ela desenvolva suas habilidades de leitura e escrita de modo satisfatório. Na língua portuguesa, pelo fato de algumas letras possuírem sonoridade muito parecida, diversas vezes é necessário que se recorra às regras gramaticais que possam orientar na escolha da letra correta. É nesses casos que a morfologia se insere como um recurso influente na decisão ortográfica.
Dessa forma, a grafia de certos vocábulos não depende somente da aplicação de regras de correspondência entre letra e som, e, além disso, a leitura não é apenas a decodificação e transformação de signos em som, envolve uma série de outros fatores em que um dos mais importantes é o conhecimento do vocabulário que auxilia na compreensão do texto. De tal maneira, a consciência morfológica vem contribuir nesse aspecto para a leitura/escrita, pois tem como seu objeto de reflexão os morfemas. Morfemas são as menores unidades formadoras das palavras que possuem significado próprio. Existem duas grandes classes de morfemas: as raízes e os afixos. A raiz pode ser definida como núcleo mínimo de uma construção morfológica. Os afixos podem ser de dois tipos: prefixos, afixos adicionados antes da raiz, ou sufixos, afixos adicionados depois da raiz. Assim, a palavra “enraizamento” tem três morfemas “en”, “raiz” e “mento”. Os morfemas também podem ser classificados como flexões ou derivações. As flexões são sufixos que determinam o gênero e o número nos substantivos e adjetivos, e nos verbos constituem os sufixos temáticos, modo-temporais e número-pessoais (LAROCA, 2005). Assim, as palavras podem ser morfologicamente simples, quando são compostas de um morfema, ou morfologicamente complexas, quando são formadas por dois ou mais morfemas.
Nos últimos trinta anos, várias pesquisas sobre aquisição da língua escrita têm estudado o papel das habilidades metalinguísticas no processo de alfabetização. Esses estudos têm sido realizados no Brasil e no mundo (BRADLEY; BRYANT, 1985; TUNMER, 1990; REGO; BRYANT, 1993; CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2000; BARRERA; MALUF, 2003; GUIMARÃES; 2003; PLAZA; COHEN, 2004; BOWEY, 2005).
Para comprovar a importância e contribuição da morfologia na aprendizagem, Nunes e Bryant (2006) descrevem uma série de estudos demonstrando a importância da reflexão sobre os morfemas que compõem as palavras para ortografia. Os autores mostram que essa reflexão ajuda as crianças a decidir, de maneira correta, sobre a representação gráfica da língua. Esses estudiosos acreditam ainda que as crianças precisam adquirir habilidades que lhes proporcionem um melhor entendimento de que as palavras não são sempre escritas da mesma forma como são pronunciadas. Além disso, é importante salientar que a origem morfológica determina a grafia das palavras. A palavra “laranjeira”, por exemplo, que tem ortografia ambígua, poderá ser escrita corretamente se a criança conhecer sua origem: “laranja”. Os significados das palavras podem ser igualmente inferidos na leitura, desde que a pessoa saiba o significado da palavra que as originou (MOTA, 2008).
Mann (2000) argumenta que o processamento morfológico é importante para a leitura. Em primeiro lugar, como já argumentamos, a escrita pode ser analisada em vários níveis. Um desses níveis é o semiográfico, no qual se estabelece a compreensão dos grafemas na representação dos significados das palavras (MAREC-BRETON; GOMBERT, 2004). A consciência morfológica facilitaria a aquisição do princípio semiográfico. A segunda razão seria específica à natureza da ortografia estudada. A argumentação principal para explicar a relação encontrada entre o processamento morfológico e a alfabetização vem de pesquisas realizadas em falantes do inglês. A natureza da ortografia inglesa é motivo de problemas para crianças e adultos que estão aprendendo a escrever.
No inglês, as relações de correspondência letras e sons são mais “opacas” do que em ortografias como o finlandês, o português ou o espanhol. Por opacas queremos dizer que muitas palavras não obedecem às regras de correspondência entre letra e som. Muitas das irregularidades encontradas no inglês podem ser explicadas pela estrutura morfológica das palavras (CHOMSKY; HALLE, 1968; STERLING, 1991). Por exemplo, no inglês a palavra heal que rima com il e a palavra health que rima com elf têm a mesma origem semântica, por isso são escritas da mesma forma, embora sejam pronunciadas de forma diferente.
A importância da consciência morfológica na aquisição da língua inglesa escrita tem sido bem demonstrada em uma série de estudos que visam a explorar a relação entre a consciência morfológica e a alfabetização. Joanne Carlisle mostrou que a habilidade de refletir sobre os morfemas das palavras está associada ao desempenho na leitura de palavras isoladas e à compreensão de leitura (CARLISLE, 1995, 2000; CARLISLE; FLEMING, 2003), bem como ao desempenho da escrita (CARLISLE, 1988, 1996).
Estudos em diferentes ortografias têm sido mais escassos e demonstram alguns resultados contraditórios. No francês, Colé et al. (2003) demonstraram que o processamento morfológico estava presente desde o início da alfabetização.
No finlandês, Lehtonen e Bryant (2005) verificaram que havia um efeito facilitador do processamento da morfologia na escrita das crianças de primeiro ano, mas esse conhecimento não era explícito. Esses resultados indicam que o efeito do processamento morfológico pode variar com o grau de transparência ortográfica da língua.
No português, os estudos sobre esse assunto são mais escassos. A maioria deles, até então, focou a morfologia flexional e sua relação com a ortografia (QUEIROGA; LINS; PEREIRA, 2006; MOTA; SILVA, 2007). Recentemente, alguns estudos investigaram o papel da morfologia derivacional (MOTA; ANNIBAL; LIMA, 2008; MOTA et al., 2009).
Assim, a consciência morfológica é um tema relativamente recente na literatura. Trata-se de um tema de interesse das ciências afins da psicologia e da educação, em particular da psicologia do desenvolvimento humano, pois é preciso entender se o papel do processamento morfológico é um processamento universal, presente nas diversas línguas, ou se é dependente das características das ortografias estudadas. A resposta para essa questão é de grande relevância, uma vez que traz implicações para práticas educacionais e teorias sobre o processamento metalinguístico.
Dessa forma, à medida que esse campo de pesquisa avança, questões vão surgindo, tanto teóricas quanto metodológicas, entre elas a especificidade da relação entre consciência morfológica e a leitura e escrita, a idade de aquisição dessa habilidade metalinguística e as implicações pedagógicas dessas descobertas. Porém, a literatura internacional ainda carece de estudos que mostrem a universalidade desse fenômeno. Para isso, é preciso que esse constructo seja investigado em diferentes ortografias. Utilizaram-se os princípios e as leis da bibliometria, que pode ser definida como uma prática multidisciplinar e é um recurso que começou a ser utilizado para identificar comportamentos da literatura e sua evolução em determinados contextos sócio-históricos. Visa quantificar resultados de busca de pesquisa (BUFREM; PRATES, 2005). Oferece um instrumento para avaliar os principais temas de interesse, os grupos de pesquisa interessados no assunto, entre outras questões.
Este trabalho tem como objetivo fazer um levantamento de publicações sobre o tema “consciência morfológica” e sua relação com a alfabetização em línguas alfabéticas, verificando a frequência dessas publicações em produção científica nacional e internacional indexada no Scielo, Pepsic e no periódico Capes (Web of Science, Psychinfo e Eric), entre 1999 e 2009. Pretende-se:
1. Enfatizar a faixa etária de interesse das amostras pesquisadas.
2. Enumerar as línguas estudadas e os países onde a publicação do tema é mais frequente.
3. Identificar os anos de publicação dos artigos.
4. Identificar as palavras-chave mais encontradas e sua frequência de ocorrência.
Método
Fonte
Foram pesquisados artigos publicados em revistas indexadas na base de dados de periódicos Capes (Psychinfo e Web of Science, Eric), Scielo e Pepsic sobre a relação entre o processamento morfológico e a alfabetização, em um período de dez anos (de 1999 a 2009). As três primeiras bases de dados escolhidas contêm periódicos de publicação internacional das áreas da psicologia e educação, visto que o tema enquadra ambas as áreas. As duas últimas bases de dados indexam artigos nacionais multidisciplinares e de psicologia, respectivamente. Selecionaram-se 76 artigos. Os artigos encontrados pela busca foram selecionados a partir da análise dos temas, dos abstracts, das palavras-chave e dos descritores do artigo. Essa seleção objetivou identificar os artigos indexados que apontam haver uma relação entre a consciência morfológica e a aprendizagem da leitura e escrita. Foram excluídos três outros artigos de revisão da literatura (apenas encontrados na base de dados nacional), artigos que tratavam da consciência sintática sem focar os aspectos morfossintáticos ou da morfologia derivacional e de amostras bilíngues (24 artigos), capítulos de livro ou livros que constavam na lista obtida a partir desses termos-chave e artigos que tratavam de assuntos não diretamente ligados ao tema como os já citados.
Procedimento
Como descritores, utilizaram-se, para as bases de dados internacionais, as expressões: “morphological awareness and reading”, “morphological awareness and spelling”, “syntactic awareness and reading” e “syntactic awareness and spelling”. Para as bases de dado nacionais, por causa da tradição da pesquisa nacional que muitas vezes trata a expressão “consciência morfológica” como sinônima de “consciência sintática”, utilizaram-se: “consciência morfológica”, “consciência metalinguística”, “consciência sintática” e “ortografia”.
Algumas vezes, essas palavras inçaram artigos que não se relacionavam diretamente com o tema (por exemplo, processamento morfológico e envelhecimento, processamento sintático em crianças bilíngues, desenvolvimento ortográfico), porém permitiram a obtenção de uma amplitude maior de artigos sobre o assunto tratado.
Resultados
Todos os artigos pesquisados envolviam estudos empíricos: observação sistemática, estudos experimentais ou estudos longitudinais utilizando técnicas de análise multi-variada de dados. Usavam como técnica de coleta de dados tarefas experimentais que envolviam a avaliação da consciência morfológica ou a avaliação da leitura e escrita, além dos controles usuais das habilidades cognitivas das crianças por meio de testes padronizados.
Optou-se por apresentar os resultados em tabelas, as quais apresentam os itens pesquisados. Cabe ressaltar que esta pesquisa bibliográfica enfocou apenas crianças que se encontram no ensino regular e que não possuem necessidades educacionais especiais (como crianças com perdas auditivas ou problemas na aquisição da linguagem, que não fossem a dislexia). Para contextualizar os resultados apresentados, textos clássicos anteriores a 1999 algumas vezes foram incluídos na discussão dos resultados. Observou-se que a inclusão desses textos não compromete uma visão do panorama das tendências na análise de dados e questões centrais tratadas nos últimos dez anos pelas pesquisas do tema abordado.
Faixa etária das amostras
A Tabela 1 mostra a frequência de ocorrência de artigos publicados por faixa etária. Cabe ressaltar que a faixa etária é um dado importante desta pesquisa, o qual apresentou resultados interessantes. A maioria dos trabalhos focou a segunda infância, idades de 7 a 11 anos, 32,89% (N = 25), seguidos de 30,23% (N = 23), nos primeiros anos da adolescência. Apenas 7,89% da amostra (N = 6) referia-se a um público de adultos, e, finalmente, 3,94% (N = 03) dos trabalhos destinavam-se a crianças e adolescentes ao mesmo tempo e, por isso, foram categorizados em separado. Cabe ressaltar que apenas dois dos trabalhos envolveram as idades pré-escolares, e apenas um trabalho focou simultaneamente em crianças, adolescentes e adultos.
País de publicação
A Tabela 2 aponta os países que registram pelo menos uma publicação. Pôde-se observar uma certa diversidade de nacionalidades onde têm sido publicados resultados de pesquisa sobre a consciência morfológica, mesmo tendo os Estados Unidos como o país que mais publicou artigos sobre o assunto. No entanto, cabe ressaltar que 48 artigos (63%) foram realizados em países que têm como língua nativa o inglês. Registraram-se oito publicações brasileiras.
Ano de publicação
Em relação aos anos de publicação, os artigos encontrados mostraram uma distribuição irregular, como pode ser observado na Tabela 3: enquanto alguns anos registram muitos artigos publicados, houve, em outros períodos, apenas três ou quatro publicações, mas pode-se observar que, a partir de 2006, houve um pequeno aumento de publicações. Selecionaram-se artigos publicados entre 1999 e 2009. Os anos de maior quantidade de publicação foram 2006, 2007 e 2008, quando se publicaram 46 artigos sobre o tema. É importante ressaltar também que, em 2000, houve sete publicações. Em contra partida, publicou-se, em 2001, apenas um artigo sobre o tema. A Tabela 3 mostra a frequência de publicações por ano.
Delineamento metodológico
O delineamento metodológico desses trabalhos também é um fato relevante a ser investigado. A maior parte dos trabalhos (95%), N = 72, com exceção de 4 (0,05%), que eram casos clínicos, utilizou metodologia quantitativa para investigar o tema.
As palavras-chave utilizadas nesses artigos são também uma importante fonte de investigação, visto que elas direcionam a busca de uma pesquisa. As mais frequentes nos artigos pesquisados serão elucidadas. A expressão que mais apareceu entre as palavras-chave dos trabalhos pesquisados foi “consciência morfológica” (morphological awareness). Leitura (reading), consciência fonológica (phonological awareness) – outra habilidade metalinguística que vem sendo muito pesquisada – e criança (children) também apareceram nos trabalhos, o que se justifica pelo fato de a maioria deles tratar da importância da consciência morfológica na aprendizagem em idade precoce. Dislexia (dislexya) é um termo que apareceu em alguns dos artigos, já que alguns enfocam a consciência morfológica como uma alternativa para o ensino de crianças com dificuldades de aprendizagem. Escrita (spelling), habilidade metalinguística (metalinguistics) e leitura também podem ser beneficiadas pela morfologia. A metalinguística é uma habilidade que visa à reflexão da língua pela própria língua. Alfabetização (literacy), escrita (writting), morfemas (morphemes) e treino (training) também apareceram.
Discussão
Pesquisas sobre a produção científica são de extrema importância por atualizarem, direcionarem e informarem os pesquisadores e profissionais interessados no assunto sobre o que os estudos em determinada área já deram conta de desvendar e no que ainda é preciso aprofundar sobre determinado tema. Dessa forma, investigam-se autores reconhecidos, promovem-se discussões e por fim cria-se o pensamento crítico para o levantamento de um problema de pesquisa. Para garantir um panorama atualizado na área, foram escolhidos como critérios de inclusão estudos publicados nas principais bases de dados na área de psicologia do desenvolvimento cognitivo, utilizando bases nacionais e internacionais. Esses critérios sempre apresentam limitações, pois são recortes feitos pelo pesquisador. Entretanto, as bases escolhidas congregam as publicações dos principais autores nessa área e permitem que tenhamos uma noção das tendências observadas no estudo dessa temática.
Mota et al. (no prelo) descrevem dois grupos teóricos que discutem o desenvolvimento da consciência morfológica. O primeiro defende que a consciência morfológica se inicia cedo, nos primeiros anos escolares (MAREC-BRETON; GOMBERT, 2004). De acordo com o segundo grupo, a consciência morfológica é uma aquisição tardia, que ocorre depois da consolidação do princípio alfabético (NUNES; BRYANT, 2006; NAGY; BERNINGER; ABBOT, 2006). Em relação à faixa etária das amostras, a prevalência é de estudos voltados para crianças em idades entre 7 e 13 anos, o que reflete a segunda corrente teórica. Há uma preocupação mais recente, mas que ainda não caracteriza uma tendência à investigação e intervenção precoces de tentar investigar se essa habilidade já está presente nos primeiros anos escolares (COLÉ et al., 2003). É possível observar um aumento de estudos focando idades inferiores às já exploradas. De fato, os resultados mostram a necessidade de investigações nessa faixa etária.
Quanto à ortografia escolhida, a maioria dos artigos pesquisados (N = 48) foi realizada em língua inglesa. Apenas oito foram realizados em português. O interesse por falantes do inglês sobre o tema tem relação estreita com as características ortográficas dessa língua. Como visto, essa língua possui várias palavras irregulares e uma ortografia que apresenta dificuldades para o aprendiz. Muitas das irregularidades encontradas no inglês podem ser explicadas pela estrutura morfológica das palavras (CHOMSKY; HALLE, 1968; STERLING, 1991).
Não há, entretanto, nenhuma razão que possa apontar para o fato de que, em línguas com ortografias regulares, não haja o processamento da morfologia (LEHTONEN; BRYANT, 2005). Esses dados indicam a necessidade do aumento de pesquisas que investiguem a universalidade do fenômeno em outras línguas alfabéticas. Os estudos realizados em ortografias que não inglês ainda são poucos, o que não permite que se estabeleça um quadro claro da importância dessa habilidade para as línguas alfabéticas como um todo.
Estudos sobre a consciência morfológica são relativamente recentes, por isso foi importante investigar o padrão de desenvolvimento do interesse pela área. Podemos observar um aumento considerável das publicações na área a partir de 2006. Esse padrão demonstra a importância que o assunto vem tomando entre pesquisadores da área em anos recentes. É interessante notar que a maioria dos estudos investigados utilizou metodologia quantitativa para responder às questões levantadas.
Os estudos sobre as habilidades metalinguísticas são necessários para que a relação entre elas e o aprendizado da leitura e da escrita se estabeleça. Estudos experimentais que buscam demonstrar essa relação nem sempre são adequados para aplicação educacional (GOSWAMI; BRYANT, 1990). Com base nessa constatação, podem-se apresentar duas questões que pesquisadores interessados no tema “processamento morfológico e escrita” precisam focar:
• Existe uma relação causal entre consciência morfológica e alfabetização?
• Como traduzir para o cotidiano escolar práticas que desenvolvam o processamento morfológico?
A primeira pergunta precede a segunda, pode depender da ortografia estudada e chama atenção para a necessidade de ampliar os estudos nessa área. A relação entre consciência morfológica e dificuldades na aprendizagem ainda não está totalmente estabelecida. Faltam estudos de intervenção que possam estabelecer a relação causal entre essa habilidade e a escrita e também estudos que demonstrem a eficácia de intervenções que desenvolvam essas habilidades. Assim, mais estudos precisam ser realizados por pesquisadores brasileiros para que se tenha uma compreensão mais geral do desenvolvimento dessa habilidade em falantes do português do Brasil.
Conclusão
Apesar das limitações devidas aos recortes escolhidos, o objetivo deste trabalho foi atingido na medida em que foi possível investigar as tendências e a evolução do estudo do processamento morfológico no Brasil e no mundo. Foi possível também levantar questões para investigações futuras que podem enriquecer a área. É importante destacar a necessidade de mais estudos nessa área que abordem o português, já que a frequência de artigos encontrados em nossa língua é consideravelmente menor que o número de publicações realizadas em língua inglesa.
Referências
BARRERA, S. D.; MALUF, M. R. Consciência metalinguística e alfabetização: um estudo com crianças da primeira série do ensino fundamental. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 491-502, 2003. [ Links ]
BOWEY, J. A. Grammatical sensitivity: its origins and potential contribution to early reading skill. Journal of Experimental Child Psychology, v. 90, n. 4, p. 318-343, 2005. [ Links ]
BRADLEY, L.; BRYANT, P. Children’s reading problem. Oxford: Basil Blackwells, 1985. [ Links ]
BUFREM, L.; PRATES, Y. O saber científico registrado e as práticas de mensuração da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 34, n. 2, p. 9-25, 2005. [ Links ]
CAPOVILLA, A. G. S.; CAPOVILLA, F. C. Efeitos do treino de consciência fonológica em crianças com baixo nível sócio-econômico. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 13, n. 1, p. 7-24, 2000. [ Links ]
CAPOVILLA, A.; GÜTSCHOW, C.; CAPOVILLA, F. Habilidades cognitivas que predizem competência de leitura e escrita. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 13-26, maio/ago. 2004. [ Links ]
CARLISLE, J. Knowledge of derivational morphology and spelling ability in fourth, six, and eight graders. Applied Psycholinguistics, v. 9, p. 247-266, 1988. [ Links ]
______. Morphological awareness and early reading achievement. In: FELDMAN, L. B. (Ed.). Morphological aspects of language processing. Hillsdale, Lawrence Erlbaum Associates, 1995. p. 189-209. [ Links ]
______. An exploratory study of morphological errors in children’s written stories. Reading and Writing: An Interdisciplinary Journal, v. 8, p. 61-72, 1996. [ Links ]
______. Awareness of the structure and meaning of morphologically complex words: impact on reading. Reading and Writing: an Interdisciplinary Journal, v. 12, p. 169- 190, 2000. [ Links ]
CARLISLE, J.; FLEMING, J. Lexical processing of morphologically complex words in the elementary years. Scientific Studies of Reading, v. 7, n. 3, p. 239-253, 2003. [ Links ]
CHOMSKY, N.; HALLE, M. The sound pattern of English. New York: Harper and Row, 1968. [ Links ]
COLÉ, P. et al. Morphologie des mots et apprentissage de la lecture. Reeducation Orthophonic, v. 213, p. 57-60, 2003. [ Links ]
CORREA, J. A avaliação da consciência morfossintática na criança. Psicologia Reflexão e Crítica, v. 18, n. 1, p. 91-97, 2005. [ Links ]
CORREA, M. F. Como os adultos aprendem a ler? 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia)–Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. [ Links ]
DEACON, S. H.; BRYANT, P. What young children do and do not know about the spelling of inflections and derivations. Developmental Science, v. 8, n. 6, p. 583-594, 2005. [ Links ]
DEACON, S. H.; KIRBY, J. R. Morphological awareness: just “more phonological”? The roles of morphological and phonological awareness in reading development. Applied Psycholinguistics, v. 25, p. 223-228, 2004. [ Links ]
GARTON, A. F.; PRATT, C. Learning to be literate. The development of spoken & written language. Oxford: Basil Blackwell, 1989. [ Links ]
GOMBERT, J. E. Metalinguistic development. Hertfordshire: Harverster Wheatsheaf, 1992. [ Links ]
GOSWAMI, U.; BRYANT, P. E. Phonological skills and learning to read. London: Erlbaum, 1990. [ Links ]
GUIMARÃES, S. R. K. Dificuldades no desenvolvimento da lecto-escrita: o papel das habilidades metalinguísticas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 19, n. 1, p. 33-45, 2003. [ Links ]
LAROCA, M. N. de C. Manual de morfologia do português. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005. [ Links ]
LEHTONEN, A.; BRYANT, P. Active players or just passive bystanders? The role of morphemes in spelling development in a transparent orthography. Applied Psycholinguistics, v. 26, n. 2, p. 137-155, 2005. [ Links ]
MANN, V. A. Introduction to special issue on morphology and the acquisition of alphabetic writing systems. Reading and Writing: an Interdisciplinary Journal, v. 12, p. 143-147, 2000. [ Links ]
MAREC-BRETON, N.; GOMBERT, J. E. A dimensão morfológica nos principais modelos de aprendizagem da leitura. In: MALUF, M. R. (Org.). Psicologia Educacional – questões contemporâneas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p. 105-121. [ Links ]
MOTA, M. et al. Erros de escrita no contexto: uma análise dentro da abordagem da teoria do processamento da informação. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 13, n. 1, p. 1-6, 2000. [ Links ]
MOTA, M. E. da. Considerações sobre o papel da consciência morfológica nas dificuldades de leitura e escrita: uma revisão da literatura. Psicologia Escolar e Educacional, v. 12, n. 2, p. 347-355, 2008. [ Links ]
MOTA, M. M. P. E.; ANNIBAL, L.; LIMA, S. A morfologia derivacional contribui para a leitura e escrita no português? Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 21, n. 2, p. 311-318, 2008. [ Links ]
MOTA, M. M. P. E.; SILVA, K. Consciência morfológica e desenvolvimento ortográfico: um estudo exploratório. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 86-92, 2007. [ Links ]
MOTA, M. M. P. E. et al. Relação entre consciência morfológica e leitura contextual medida pelo teste de Cloze. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 22, n. 2, p. 223-229, 2009. [ Links ]
______. Desenvolvimento da consciência morfológica nos estágios iniciais da alfabetização. Psicologia: Reflexão e Crítica (UFRGS. Impresso), 2011. No prelo. [ Links ]
NAGY, W.; BERNINGER, V. W.; ABBOT, R. D. Contributions of morphology beyond phonology to literacy outcome of upper elementary and middle-school students. Journal of Educational Psychology, v. 98, n. 1, p. 134-147, 2006. [ Links ]
NUNES, T.; BINDMAN, M.; BRYANT, P. Morphological strategies: developmental stages and processes. Developmental Psychology, v. 33, n. 4, p. 637-649, 1997. [ Links ]
NUNES, T.; BRYANT, P. (Org.). Improving literacy by teaching morphemes. New York: Routledge, 2006. [ Links ]
PLAZA, M.; COHEN, H. Predictive influence of phonological processing, morphological/ syntactic skill, and naming speed on spelling performance. Brain and Cognition, v. 55, p. 638-373, 2004. [ Links ]
QUEIROGA, B. A. M. de; LINS, M. B.; PEREIRA, M. de A. L. Conhecimento morfossintático e ortografia em crianças do ensino fundamental. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 22, n. 1, p. 95-100, 2006. [ Links ]
REGO, L. L. B.; BRYANT, P. The connections between phonological, syntactic and semantic skills and children’s reading and spelling. European Journal of Psychology, v. 8, n. 3, p. 235-246, 1993. [ Links ]
STERLING, C. Introduction to the psychology of spelling. In: STERLING, C.; ROBSON, C. (Org.). Psychology, spelling & education. Adelaide: Multilingual Matters, 1991. p. 1-15. [ Links ]
TUNMER, W. E. The role of language prediction skills in beginning reading. New Zealand Journal of Educational Studies, v. 25, n. 2, p. 95-112, 1990. [ Links ]
Contato
Márcia Mota
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Campus Francisco Negrão de Lima – Pavilhão João Lyra Filho
R. São Francisco Xavier, 524, 10° andar, Bloco B, sala 10.019
Maracanã – Rio de Janeiro – RJ
CEP 20550-900
e-mail: mmotapsi@gmail.com
Tramitação
Recebido em janeiro de 2009
Aceito em setembro 2010
1Ex-aluna de Iniciação Científica da disciplina Treino de Pesquisa.