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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.14 no.3 São Paulo Dec. 2012
ARTIGO ORIGINAL
Representações sociais dos catadores de um aterro sanitário: o convívio com o lixo
Social representations of pickers of a sanitary landfill: living with gabage
Representaciones sociales de colectores de un relleno sanitario: la convivencia con la basura
Eliane Ramos PereiraI; Rose Mary Costa Rosa Andrade SilvaI; Flávio Pinto de MelloII; Denize Cristina de OliveiraIII; Marcos Andrade SilvaIV
I Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro – RJ – Brasil
II Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ – Brasil
III Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ – Brasil
IV Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro – RJ – Brasil
RESUMO
Os catadores de lixo constituem trabalhadores informais em amplo crescimento que sobrevivem da catação em aterros ou lixões, o que implica um modo peculiar de vida com repercussões sociais, psíquicas e na saúde. O estudo objetivou descrever as representações sociais dos catadores acerca do trabalho cotidiano com lixo e o convívio social como catadores. Trata-se de estudo qualitativo baseado na teoria das representações sociais, no qual se utilizou a técnica de análise de conteúdo. Foram entrevistados 12 catadores de aterro sanitário em Niterói, no Rio de Janeiro. As representações dos catadores configuram-se em duas matrizes simbólicas, as quais mostram a vinculação do lixo à imagem do catador, que vivencia estigma, desamparo e sentimento de vergonha diante do preconceito da sociedade, e exclusão social; além disso, essas matrizes mostram a dualidade exclusão/inclusão e os dilemas entre necessidade de sustento e enfrentamento dos riscos, sem perspectivas de futuro melhor. Conclui-se que os catadores refletem os impactos psicossociais que sofrem por trabalhar no lixo e, por isso, necessitam de ações profissionais e governamentais inclusivas.
Palavras-chave: catadores; lixo/aspectos psicossociais; estigma; preconceito; representações sociais.
ABSTRACT
The garbage pickers are casual workers in growing, subsisting on scavenging in landfills or dumps, resulting in a peculiar way of life with social psychological and health consequences. The study aimed to describe the social representations of the pickers about the daily work with garbage and social life as scavengers. It's a qualitative study, based on the Theory of Socials Representations, using the Technique of Content Analysis. Were interviewed twelve collectors of a landfill in Niterói, Rio de Janeiro. The socials representations were configured into two symbolic matrices, showing a linkage of garbage in their own image, experiencing stigma, helplessness and feelings of shame in the face of society's prejudice and social exclusion also shows the duality inclusion/ exclusion, and dilemmas between necessity of livelihood and coping risk, no prospect of a better future. The collectors reflect the psychosocial impacts suffering for working in the garbage, requiring practices of inclusion by professional and government actions.
Keywords: collectors; garbage/psychosocial aspects; stigma; prejudice; social representations.
RESUMEN
Los recolectores de basura son los trabajadores informales, cada vez más crecientes, sobreviviendo de la basura en los rellenos sanitarios o basureros, resultando en una peculiar forma de vida con repercusiones sociales, psicológicas y en la salud. El objetivo fue describir las representaciones sociales de los colectores sobre su trabajo diario con la basura y la vida social como colectores. Estudio cualitativo, basado en la teoría de las representaciones sociales, utilizando la técnica de análisis de contenido. Entrevistados doce recolectores de un relleno sanitario en Niterói, Rio de Janeiro. Las representaciones sociales haya configurado en dos matrices simbólicas, muestreándose una conexión de la basura en su propia imagen experimentando estigma, desamparo y sentimiento de vergüenza delante prejuicio y exclusión social; y señalando también a la dualidad de la inclusión/exclusión y el dilemas entre la necesidad de subsistencia y los riesgos. Los colectores reflejan el impacto psicosocial que sufren por trabajar en la basura, lo que requiere acciones de inclusión por profesionales y del gobierno.
Palabras clave: colectores; basura/aspectos psicosociales; estigma; prejuicio; representaciones sociales.
Introdução
Com a interminável geração de resíduos advindos de todas as esferas, uma crescente demanda de trabalhadores informais busca restos aproveitáveis para a sua subsistência aliada à pobreza sempre presente nas sociedades, conhecidos como catadores de lixo. Inseridos nesse contexto, os catadores trabalham em aterros ou lixões, em busca de sobrevivência, e vivem em pobreza, miséria e exclusão.
O trabalho de catação constitui uma atividade alternativa para a obtenção de renda, a fim de garantir a sobrevivência dos catadores e de seus familiares, informam Medeiros e Macedo (2007), sendo a situação de desemprego o elemento fundamental para esse direcionamento. O aterro, local onde passam maior parte do dia, constitui uma área destinada à disposição ou ao aterramento do lixo sobre o solo para confinação segura ao ambiente (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004). Nesse ambiente de aterro, um vasto depósito de lixo de todos os tipos, os catadores vivem a maior parte do dia expostos continuamente a riscos potenciais à saúde, acidentes e doenças, além dos agravos psicológicos e sociais.
Gama e Koda (2010) enfatizam que a condição de marginalidade social vivida pelos catadores tem implicações de diversas ordens: econômicas, sociais, culturais e psíquicas . Para Rozman et al. (2008), as comunidades de catadores são socialmente marginalizadas e, em geral, não reconhecidas pelos programas nacionais como populações de risco potencial. Catando do lixo o material reciclável numa quantidade que seja suficiente para vender, o catador se submete a uma exaustiva rotina diária puxando seus carrinhos pesados, numa extensa e ininterrupta carga horária em condições precárias (MAGERA, 2003).
Apesar de constituir uma atividade laboral pela geração de renda, os riscos inerentes à catação de lixo inauguram uma nova categoria de morbidades, destacam Dall'Agnol e Fernandes (2007), problemática que, associada ao fato de constituir crescente demanda de serviços de saúde conveniados ao Sistema Único de Saúde, tem sido foco de interesse de profissionais de diversas áreas.
Por se tratar de uma classe trabalhadora informal em largo crescimento, com especificidades que implicam um modo peculiar de vida com fortes repercussões sociais, psíquicas e na saúde, torna-se fundamental desvendar o modo de pensar e viver desses catadores de lixo, em seu trabalho, junto ao seu grupo social e no convívio da sociedade, o que coaduna com a perspectiva das representações sociais.
O estudo objetiva, portanto, descrever as representações sociais dos catadores acerca do seu trabalho cotidiano com lixo e seu convívio social como catadores. Justifica- se, assim, o estudo das representações sociais entre os catadores, por acessar os modos de pensar a realidade vivida no trabalho com lixo, num cotidiano de riscos e necessidades, problemas sociais, psicológicos e de saúde, possibilitando, assim, efetivas intervenções.
As representações sociais consistem em um conjunto de conceitos e explicações, originado na vida cotidiana, e servem para orientar práticas e justificar comportamentos e posicionamentos, afirma Moscovici (2004). Segundo Jodelet (2001, p. 22), as representações sociais "são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado , com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social". Tais representações têm enfoque no arranjo entre imagens e linguagem, uma vez que realçam e simbolizam atos e situações que se tornam comuns, pois são usuais em um grupo social. Para Sá (1998), elas envolvem crenças, imagens e símbolos, um conjunto de conceitos que surgem da vida cotidiana e que são compartilhados socialmente por um grupo, incidindo sobre suas condutas e atitudes.
Nesse sentido, o estudo é relevante por buscar acessar as formas de pensar dessa população que tem no lixo o meio de sustento da vida, sendo exposta a uma importante problemática psicossocial e de saúde, com riscos potenciais à sua integridade física e psíquica, estando desprovida de condições efetivas de qualidade de vida. Este estudo contribuirá também para reflexões e ampliação de investigações sobre essa clientela e permitirá intervenções psicossociais, acolhimento, educação para a saúde, entre outros aspectos.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo respaldado na teoria das representações sociais, já que os fenômenos de representação social estão presentes nos processos de práticas sociais, em constante movimento e interação social. A pesquisa foi realizada no aterro sanitário do Morro do Céu, na cidade de Niterói, de maneira que apreendesse o modo de vida dos catadores pela observação, como fonte complementar de informação a partir desse cenário socialmente construído. Nas proximidades do aterro, situam-se várias residências, inclusive um sítio limítrofe à área de despejo e várias casas de loteamento, onde moram cerca de 200 pessoas.
A amostragem teve como critério de inclusão os sujeitos maiores de 18 anos, independentemente de sexo ou raça, que exerciam atividades de catação no âmbito do aterro e que concordaram em participar da pesquisa. Foram excluídos aqueles sem condições clínicas aparentes para a investigação, ou seja, doentes mentais, os que apresentavam estado de embriaguez ou sob efeito de drogas. Totalizaram-se 12 catadores de lixo.
Para a coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas e sofreram análise baseada na técnica de análise de conteúdo de Bardin (2009), muito utilizada em estudos de representações sociais por permitir o acesso a diversos conteúdos, explícitos ou não, sobre determinado objeto ou comunicação cotidiana, entre outros (OLIVEIRA, 2008). Essa análise ajuda a atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura comum. A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense, nº 142/07, Caae nº 3112.0.000.258-07, contando com anuência do presidente da associação de moradores local, garantindo-se anonimato dos participantes.
A realização desta investigação encontrou muitas dificuldades no ambiente do aterro, devido a diversos problemas sociais existentes na ocasião. Após muitas tentativas e de variados modos, a aproximação aos catadores e a abertura de diálogo para acesso às informações finalmente tornaram-se possíveis após a mudança da própria imagem do pesquisador, ao vestir-se de modo bem simples, com roupas sujas e rasgadas, semelhante à imagem dos catadores. Essa identificação com eles, pela semelhança de estereótipo, possibilitou o estabelecimento de relacionamentos amistosos, deixando- os mais à vontade para as entrevistas. Somando-se a essa estratégia, a entrada no local foi viabilizada e facilitada por meio do acesso à carroceria de caminhões de lixo que transitavam para despejo, servindo de condução ao interior do aterro sanitário. Um local comum de encontro de alguns catadores era um bar dentro do aterro, onde se podia dialogar com eles e combinar as entrevistas, que, em geral, ocorriam nos intervalos dedicados ao almoço ou após a catação, sentando-se aos arredores dos montões de lixo.
Resultados
Na caracterização dos catadores, constam sete homens e cinco mulheres, mostrando- se uma inserção de mulheres na atividade de catação. Nenhum deles concluiu o ensino fundamental. Quanto à faixa etária, sete são adultos ou de meia-idade, entre 28 e 43 anos, e o restante, jovens entre 18 e 27 anos, o que confere uma problemática social relevante, já que, em fase produtivamente importante, poderiam estar em outras atividades laborais com melhores perspectivas de vida. Aliando-se a esse complexo aspecto, no que se refere à questão familiar, oito moram com companheiro(a) e sete possuem dois filhos ou mais, dos quais dois têm quatro filhos.
Na análise dos dados, configuram-se duas matrizes simbólicas, assim entendidas conforme a construção de sentidos dos catadores sobre o seu convívio na sociedade, os quais carregam também no corpo o estigma do lixo e, também, acerca do seu convívio no aterro, em meio ao trabalho com o lixo junto aos demais catadores. Assim, em "restos da sociedade: o lixo como estigma social", traduz-se a vinculação do lixo à sua própria imagem numa conflituo sa realidade de vergonha diante do preconceito e da exclusão social por parte das pessoas no convívio social, ao se apresentarem impregnados dos restos que catam do aterro. E, "entre os resíduos e os riscos: um dilema psicossocial", revelam-se a dualidade exclusão/inclusão e o dilema entre o imperativo de subsistência e a falta de outras opções de sustento senão a de submeter-se aos riscos do ambiente contaminado do aterro; numa crença de que, no lixo "é difícil ficar doente", emerge a desesperança de melhor qualidade de vida numa triste expectativa de que trabalharão no aterro "enquanto o corpo aguentar".
Discussão
Evidenciando a configuração do lixo sempre presente no cotidiano dos catadores, no cerne de suas significações, cabe salientar que esse movimento de construção de sentido ocorre a partir das representações que o grupo elabora no coletivo, significando um dado objeto no segmento vivido. Assim, as representações sociais são organiza das "enquanto sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros e organizam as comunicações e as condutas sociais" (JODELET, 2001, p. 36).
Matriz simbólica 1: vivendo à margem da sociedade: o lixo como estigma social
O lixo impregnado na autoimagem e o autoconceito dos catadores
Nas representações sobre o convívio social, o lixo configura-se atrelado a um estigma vivido no social, pela sujeira e pelo odor característicos dos catadores, que se percebem como estranhos no meio da sociedade, focos de aversão e medo dos transeuntes:
[...] a gente passa todo sujo pela rua e percebe que tem gente que pensa que a gente vai assaltar [...] fica com medo, olha estranho (E5).
Parece que as pessoas têm medo, acham que a gente vai assaltar só porque a gente anda sujo pela rua (E3).
As pessoas ficam com medo da gente, a gente fica assim todo sujo trabalhando no lixo, pensam que a gente vai roubar, até parece que bandido anda assim todo sujo (E9).
[...] toda a vez que você sai, pessoas ficam te olhando estranho (E10).
O lixo, designado como restos ou como tudo aquilo desprovido de uma utilidade óbvia e objetiva, adquire uma imagem negativa, quase sempre associada à sujeira, à doença, à morte e à miséria (VELLOSO, 2010). Em função da repugnância ao lixo, os catadores são alvo de estigma, direcionado em geral às pessoas que o manuseiam, ainda que profissionalmente. Para Goffman (1988, p. 11), estigmas constituem "sinais corporais, sobre os quais se intentava exibir algo mau e pouco habitual no status moral de que os apresentava". Indicam um atributo que produz descrédito, desvantagem em relação ao outro, determinando uma identidade deteriorada por uma ação da sociedade.
Sobrevivendo dos restos da sociedade e sentindo-se como tal ao portarem suas roupas sujas, rasgadas e malcheirosas, os catadores se descobrem em situação de inferioridade ante as pessoas que andam limpas, sendo passíveis, portanto, de contínua marginalização social. A questão da alienação é, na verdade, como o Outro vê o catador de lixo, e, portanto, essa visão alienada desse Outro gera no ser social catador de lixo o estranhamento, uma vez que a representação que este tem de si é distinta da representação que o Outro tem dele, ainda que uma influencie a outra.
Impregnado em sua própria identidade corporal, o lixo influencia um modo próprio de autoconceito na significação de ser catador, construindo-se numa autoimagem negativa e alienada ante a repulsa da sociedade. A identidade é formada e transformada no âmago da dialética que envolve indivíduo e sociedade, considerando-se a questão das relações entre a identidade socialmente atribuída e a identidade subjetivamente apropriada, conforme destacam Berger e Luckmann (1985). Nesse sentido, a identidade dos catadores constitui-se como dialética entre a identificação atribuída a eles pelos outros e a autoidentificação, "entre a identidade objetivamente atribuída e a identidade subjetivamente apropriada"(BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 177), o que depende do conhecimento socialmente difundido em um todo dotado de sentido, em que o Outro é parte integrante.
A percepção do preconceito e da exclusão: silenciados pela vergonha
As representações sociais dos catadores revelam modos de pensar diante do enfrentamento de algum tipo de preconceito em razão de seu trabalho com o lixo, por perceberem atitudes aversivas de pessoas em relação à sua própria imagem de catador:
Eu já até me acostumei, eu andar assim toda suja por aí eu já nem ligo mais (E2).
As pessoas olham diferente pra gente (E3).
Todo mundo sabe que a gente trabalha lá, mas acham que a gente é mendigo... olham pra gente... parece até que está com medo (E8).
Eu já estou acostumado [...] olham para gente como se a gente fosse de outro mundo (E9).
Olham estranho pra gente, parece até que eu peço alguma coisa pra eles, aqui na área não, já tá todo mundo acostumado (E10).
Nessa perspectiva, as representações emergem associadas ao fato de sentirem-se como "mendigos" ou "bandidos" na representação de si mesmos, diante da sociedade , ao perceberem as expressões de "medo" por parte de alguns. Apesar de alguns catadores mencionarem ser indiferentes no tocante a essas atitudes de exclusão, eles, em outros momentos dos seus discursos, externam tristeza ao relatarem que as pessoas fazem julgamentos errados a seu respeito, olhando-os de modo "estranho" como se fossem "bandidos" e deles se afastam "com medo", o que demonstra que de fato se incomodam com as atitudes discriminatórias das pessoas.
O preconceito é uma atitude negativa em relação a uma pessoa baseada na crença de que ela tem as características negativas atribuídas a um grupo, conforme Allport (1954). Considera-se que a compreensão dos preconceitos sociais passa pela análise de como as representações se expressam no senso comum. Como pessoas sociais, estamos numa espécie de estufa de vidro, em tempos aparentemente calmos, sendo possível um certo terror da vida, em toda parte, à flor da pele; e quando tratamos uma pessoa particular como um ser impessoal, existe um elemento de violência, lembra Moscovici (2011).
O lixo é demarcador da finitude humana e causador de ojeriza, atribuindo-se adjetivos que o afastam do meio social como perigoso e nocivo à sociedade, e, assim, a maioria das pessoas se afasta do lixo ficando restrito àquele excluído social, que, assim como o lixo, tem como característica a periculosidade (EIGENHEER, 2003). E, diante do preconceito vivido, emergem as expressões de vivência de humilhação e vergonha:
[...] ah, todo mundo sente um pouco de vergonha de sair por aí falando que é catador, as pessoas pensam que a gente fica nas lixeiras catando coisa pra comer. Aqui a gente separa para vender, é que nem um ferro-velho (E11).
[...] mas as pessoas veem muito aparência (E4). Todo mundo pensa que eu trabalho na Clin, porque se eu digo que sou catador todo mundo pensa que sou mendigo (E6).
Só quando alguém fica com medo da gente que eu fico bolada (E12).
A imagem de humilhação e vergonha que os catadores fazem de sua profissão e posição social também está associada à baixa escolaridade e à falta de estudos, o que, para Medeiros e Macedo (2006), é comum entre catadores. Isso se confirma nessa investigação, já que a totalidade absoluta dos catadores não concluiu o ensino fundamental.
Matriz simbólica 2: vivendo do lixo: riscos, dilemas e crenças
Convivendo com outros trabalhadores do lixo: um sentimento de inclusão
Nas representações acerca de seu trabalho cotidiano no aterro, comparece a ideia de inclusão num sistema social organizado, junto a outros de catadores lixo, em função do tipo de material que catam, uns com metais, outros com plásticos ou papelão:
[...] é dividido assim, em dois setores de trabalho. Tem pessoas que catam PET, plástico, papelão, papel branco, plástico fino, vidro. E tem as pessoas que trabalham só com resto de lixo do estaleiro, aí só cata ferro maciço, cobre, alumínio, metal (E7).
Evidencia-se uma ambígua realidade de exclusão/inclusão, entre inclusão dentro do aterro e exclusão fora dele. Não obstante excluídos pela sociedade, os catadores traduzem o aterro como um modo de sentirem-se incluídos socialmente por estarem inseridos numa atividade de certa forma organizada junto a outros catadores. Esse modo de pensar, que externa certo orgulho do trabalho que exercem ao demonstrarem conhecimento do local, dos materiais e do grupo que ali trabalha, permite que se sintam incluídos socialmente como trabalhadores do lixo, vivendo a mesma realidade laboral daquele coletivo. Assim, a catação se torna uma atividade que faz do excluído um trabalhador inserido no trabalho, não obstante a exclusão imposta pela sociedade.
Para Medeiros e Macedo (2006), a atividade de catação de lixo abarca alguns aspectos positivos, pois dela se obtém o sustento, mas também negativos, pela complexidade da problemática. Por isso, a relação dos catadores com o lixo é ambígua, refletindo a dialética inclusão/exclusão, saúde/doença, orgulho/humilhação.
Vivenciando o caos: dilemas e riscos no ambiente de lixo
Outra perspectiva reflete o modo de pensar o cotidiano em meio a montantes de lixo misturado, de diversas procedências, um verdadeiro caos no ambiente de catação:
Eu acho que eles tinham que dar mais em cima do povo sobre a mistura de vidro, plástico, papel, eles misturam muitas coisas [...] porque tinha que haver uma coleta especial para esses tipos de coisas (E4).
[...] tinha que separar melhor o lixo que é jogado lá (E3).
As pessoas tinham que já deixar o lixo separado (E9).
Poderiam separar mais o lixo que chega no lixão pra gente (E6).
A catação está associada fortemente à vivência de riscos constantes no ambiente do aterro, o que tem impacto sobre a saúde. Na presente investigação, observou-se que o lixo era gradualmente depositado e acumulado de modo desordenado, e, por isso, os catadores tinham que revolver por longas horas o lixo ali depositado, catando material aproveitável, especialmente os recicláveis. A cada caminhão que despejava o lixo, os catadores se aglomeravam numa incansável busca pelos produtos que representam a subsistência deles.
Os catadores revelaram inquietação acerca da necessidade de maior segurança, já que o trabalho de catação seria melhor se o material já viesse separado e despejado distintamente, o que facilitaria muito a catação e diminuiria a exposição aos riscos:
Eles misturam muitas coisas cortantes, muitas vezes a gente fura a mão [...] tinha que haver uma coleta especial para esses tipos de coisas, o pessoal era para ter consciência disso (E4).
A gente tinha que ter mais segurança [...] tem muito ferro e agulha espalhada por lá (E3).
[...] até se machucar, né, vira e volta um se corta lá (E7).
Isso aí vem junto com o lixo do estaleiro (E10).
O ambiente de aterro constitui um contínuo risco aos catadores. Sisinno e Moreira (1996) advertem que alguns metais, como cádmio, cromo, manganês e chumbo, podem ser encontrados no líquido percolado (chorume) e em compartimentos ambientais (águas superficiais e subterrâneas, solos), e em níveis acima do que seria o tole rável. Medeiros et al. (2010) mostram a necessidade de construir programas de educação ambiental que gerem mudanças efetivas e duradouras nos comportamentos pró-ambientais.
Somando-se às suas concepções, em meio à noção do perigo de acidentes e doenças, pode-se apreender um inquietante dilema que os catadores vivenciam entre o risco de acidentes e insegurança a que se submetem continuamente, e a necessidade de continuar trabalhando na catação, evidenciando riscos também psicossociais.
A crença sobre a saúde: "Quem trabalha lá no aterro é difícil ficar doente"
No contexto representacional dos catadores, há um peculiar modo de pensar acerca da saúde, refletindo uma baixa procura por atendimento, a não ser para os filhos:
Quem trabalha lá dentro do aterro é muito difícil ficar doente (E1).
Ninguém da minha família vai lá. Só levo meu filho quando tá doente (E3).
Vou ao médico uma vez na vida e outra na morte (E8).
[...] só quando fico doente mesmo e olhe lá (E5).
[...] muito de vez em quando, aquilo lá é sempre uma loucura (E7).
Ah só quando meus filhos têm algum problema, fora isso eu não vou lá não. Muita fila e ninguém atende a gente direito (E6).
[...] quando chega nossa vez, eles dizem que a senha já acabou, a gente não pode ficar indo lá todo dia
[...] a gente tem que trabalhar (E12).
Na perspectiva das representações sociais, denota-se que as pessoas acabam construindo teorias de senso comum que podem sustentar suas práticas sociais em relação à saúde, afirmam Teixeira, Schulze e Camargo (2002). Assim, no enfoque psicossocial, as crenças têm forte repercussão nas atitudes das pessoas. A crença que "é muito difícil ficar doente" aparece como um conforto psíquico perante a exclusão e as dificuldades de acessibilidade ao sistema de saúde.
Para Porto et al. (2004), os catadores enfrentam impasses sociais por não possuírem nenhuma proteção quando afastados por problemas de saúde e consideram como doenças somente as situações mais críticas que os impedem de ir ao trabalho.
Os catadores sofrem de frequentes dores lombares, problemas gastrintestinais e ferimentos, contudo não podem deixar a catação, pois dependem para subsistência da família. Para Sisinno e Oliveira (2000), problemas de saúde são comuns entre os catadores, como parasitoses, hepatite, doenças de pele, respiratórias, danos nas articulações e outros.
A abordagem social, a educação em saúde e o atendimento humanizado e acolhedor constituem estratégias inclusivas e alinhadas de cuidar daqueles que têm, no trabalho com o lixo, a sua fonte de sustento, devendo-se garantir os princípios de humanização e integralidade da atenção a essa classe trabalhadora, assim como sua cidadania.
Desprovidos de proteção individual
Além do desamparo sofrido tanto em função do desprezo e alienação da sociedade, quanto na falta de condições humanas de trabalho, os catadores se sentem desprotegidos na catação de lixo pelos vários riscos a que se submetem para sobreviver:
[...] trabalho de bermuda chinelo, de qualquer jeito, luva eu uso sempre (E1).
Uso só de vez em quando, agora eu tô de luva e bota, mas às vezes vou de bermuda, largadão (E2).
Eu não uso nada, trabalho de bermuda sem camisa (E3).
Já trabalhei muito de short, agora que já tô mais velho não faço mais isso não (E4).
[...] só às vezes mesmo que vou assim (E5).
Quando tá muito quente, não dá pra ficar de luva o tempo todo não (E6).
Não costumo usar, só de vez em quando (E11).
O lixo também é sinônimo de perigo para os que trabalham direta ou indiretamente com ele, expondo-se a riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos que se traduzem no termo perigo, informam Santos e Silva (2011). A exposição a inúmeros riscos se estende desde o transitar no aterro para coleta, incluindo a catação, até o ato de levar o produto de seu trabalho a locais de troca, onde essas pessoas se expõem, pela última vez, aos riscos que o material coletado pode oferecer.
Observou-se que, dentro e nos arredores do aterro, muitos catadores não utilizavam nenhum tipo de proteção individual. Muitos dos protetores utilizados por esses trabalhadores foram encontrados em suas catações. Há que se enfatizar que todo indivíduo no âmbito do trabalho deve ter, como parte indissociável da sua atividade laboral, a proteção e segurança contra tudo aquilo que possa atingi-lo de forma física ou psicossocial.
Desesperança de melhor qualidade de vida: "Enquanto o corpo aguentar..."
Apesar da necessidade de certa imunidade conferida pelo contato pelo próprio lixo, o trabalho de catação de lixo se conecta a uma desesperança, a uma incerteza acerca do futuro. Preocupações afloram a respeito de suas vidas após atingirem uma idade avançada e não mais poderem produzir renda. Durante a pesquisa, os catadores manifestaram preocupação quanto ao futuro e à aposentadoria. Por meio de lamentações, expressaram a sensação de desamparo social por não gozarem de direitos trabalhistas:
Não sei, acho que eu vou trabalhar direto, meu pai tem 65 anos e trabalha lá no lixão até hoje, enquanto o corpo aguentar a gente vai trabalhando (E4).
Às vezes eu fico pensando em quando é que eu vou me aposentar, trabalhar direto não dá não (E6).
Não sei, acho que vou me aposentar só por idade mesmo, a gente aqui não tem carteira assinada (E7).
Se aparecesse outro trabalho, eu trocaria na hora, pelo menos teria meus direitos e minha carteira assinada (E11).
O cotidiano do trabalho com o lixo abarca um dilema psicossocial que traduz uma posição de desamparo. Por um lado, essas pessoas precisam trabalhar na catação, independentemente dos riscos, e, por outro, não há perspectiva que garanta a sobrevivência, especialmente quando não mais tiverem forças para o trabalho. A maioria dos catadores que apresentaram essas preocupações já trabalha no aterro há mais de dez anos e se encontra na faixa etária acima de 28 anos. Pode-se apreender que, à medida que avançam em idade, mais aumentam seus anseios relacionados aos direitos previdenciários que gozariam se estivessem num trabalho formal.
Por não se enquadrarem em nenhuma categoria de trabalho, os catadores tornaram- se excluídos das vantagens que poderiam usufruir. Trata-se de uma população marginalizada, desassistida, sem voz na sociedade e ignorada pelas políticas nacionais de saúde pública e por programas como populações de alto risco (ROZMAN et al., 2008). O contexto representacional dos catadores exibe uma problemática psicossocial que requer amplas intervenções. Convém ressaltar que "a saúde é o direito do cidadão, mas também uma dimensão que abarca a política enquanto poder humano que emerge das relações entre os homens e destes com a natureza" (SILVA et al., 2008, p. 1.166).
Ressalta-se a importância de intervenções humanizadas de profissionais, como psicólogos, enfermeiros, médicos e de outras áreas, a essa população, que precisa ser inserida em programas especiais no atendimento de suas necessidades de amparo psicossocial, saúde, integridade e segurança, já que constitui a forma mais alinhada de uma assistência efetiva e igualitária, garantindo a sua cidadania.
Considerações finais
As representações sociais refletem o impacto psicossocial sofrido pelos catadores por viverem do lixo. Nesse cotidiano, os catadores trazem consigo as marcas de uma realidade que se mostra viva em cenas perversas, sentindo-se desamparados. Marcados pela imagem de sujo, com odor fétido no corpo e nas roupas, impregnados com próprio produto das incansáveis horas de seu trabalho, são alvo de preconceito e exclusão da sociedade, estigmatizados como o lixo que revolvem e manuseiam no cotidiano.
Ante as nuanças representacionais da vivência dos catadores de lixo e do impacto psicossocial, como cerne de exclusão e adoecimento, destaca-se a importância de práticas sociais inclusivas e de ações profissionais e governamentais. A condição de po breza e de exclusão social que afeta indivíduos nessas circunstâncias certamente precisa ser pensada em sua amplitude, na medida em que envolve várias dimensões como aquelas que remetem à esfera econômica e das políticas públicas de saúde.
Em função de o estudo focar a investigação das representações sociais dos catadores, considera-se como limitações a impossibilidade de amplo e completo detalhamento do ambiente e modo de vida observados durante a investigação, assim como as interações entre eles e dentre eles e o social, não obstante nuanças permearem o estudo.
Pela relevância do trabalho cotidiano que exercem na preservação e no equilíbrio ambiental em nossa sociedade, a contribuição deste trabalho se reforça como subsídio para novos estudos acerca dessa temática, favorecendo um ponto de partida para o desenvolvimento de intervenções diversas a fim de propiciar melhor qualidade de vida e amparo psicossocial aos catadores. Recomenda-se que se explorem alternativas no sentido de pensar políticas públicas para o atendimento desse segmento da população.
Referências
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Endereço para correspondência
Contato
Eliane Ramos Pereira
e-mail: elianeramos.uff@gmail.com
Tramitação
Recebido em março de 2012
Aceito em julho de 2012