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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.14 no.3 São Paulo Dec. 2012
ARTIGO ORIGINAL
Evidências de validade convergente do Millon Clinical Multiaxial Inventory-III
Evidences of convergent validity of Millon Clinical Multiaxial Inventory-III
Evidencias de validad convergente del Millon Clinical Multiaxial Inventory-III
Heloísa Karmelina Carvalho de Sousa; Hannia Roberta Rodrigues Paiva da Rocha; João Carlos Alchieri
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal – RN – Brasil
RESUMO
Este estudo tem como objetivo verificar características de evidências de validade e sensibilidade do Millon Clinical Multiaxial Inventory-III (MCMI-III) em identificar traços patológicos em pessoas com necessidade de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico usando o questionário de saúde geral de Goldberg (QSG) como instrumento de validade convergente. Foram avaliados 703 participantes com idades de 18 a 85 anos, dos sexos feminino e masculino, residentes e domiciliados em cidades brasileiras, representando todas as regiões do país. Os participantes foram divididos posteriormente em dois grupos (G1 e G2). Os resultados demonstraram que o grupo G1 (pessoas em tratamento) apresentou diferenças significativas entre as médias com relação ao grupo G2 (pessoas que não realizam tratamento). Por meio do QSG, resultados apontaram a relação com os escores do MCMI-III, contudo ainda são necessários estudos posteriores para confirmação dos resultados, além do estabelecimento de padrões normativos para a amostra brasileira.
Palavras-chave: transtornos de personalidade; Millon Clinical Multiaxial Inventory-III; tradução e adaptação; síndromes clínicas; dependência de álcool.
ABSTRACT
This study aims to determine the characteristics of evidence of validity and sensitivity of the Millon Clinical Multiaxial Inventory III in identifying pathological traits in people needing psychological or psychiatric treatment using the Goldberg General Health Questionnaire (GHQ) as an instrument for convergent validity. We evaluated 703 male and female participants aged 18 to 85 years old, resident in various Brazilian cities. Participants were divided in two groups: G1 and G2. The results showed significant differences between means of G1 and G2. Through the GHQ administration, results showed a relationship between the scores of the two instruments. However, further studies are needed to establish normative standards for the Brazilian sample.
Keywords: personality disorders; Millon Clinical Multiaxial Inventory-III; translation and adaptation; clinical syndromes; alcohol dependence.
RESUMEN
El presente estudio tiene como objetivo determinar la validad y sensibilidad del Millon Clinical Multiaxial Inventory III en la identificación de rasgos patológicos de las personas que necesitan tratamiento para trastornos psicológico y/o psiquiátrico utilizando el cuestionario de salud general de Goldberg (CSG) como medio de validez convergente. Se evaluaron 703 sujetos de entre 18 y 85 años, hombres y mujeres, residentes en las ciudades brasileñas. Los participantes fueron divididos en grupos G1 y G2. Los resultados mostraron diferencias significativas entre las medias de los grupos G1 y G2. A través de la administración del CSG se observa una relación entre las puntuaciones de los dos instrumentos. Sin embargo, se necesitan más estudios para establecer criterios normativos para la muestra brasileña.
Palabras clave: trastornos de personalidad; Millon Clinical Multiaxial Inventory-III; traducción y adaptación; síndromes clínicas; dependencia del alcohol.
Introdução
O conceito de personalidade relaciona-se à ideia de papel desempenhado por um indivíduo, podendo ser compreendida como um conjunto de padrões de comportamento- resposta que um indivíduo desenvolve, consciente ou inconscientemente, como seu estilo de vida e que representa um compromisso entre os impulsos e as necessidades internos e os controles (internos e externos) que limitam sua expressão (CAMPBELL, 2009). Millon et al. (2009) entendem personalidade como um padrão complexo de características psicológicas profundamente arraigadas e expressas automaticamente em quase todas as áreas do funcionamento psicológico, perpassando toda a matriz do indivíduo.
O Millon Clinical Multiaxial Inventory-III (MCMI-III) é um dos instrumentos construí do por Millon e seus colaboradores para operacionalizar seu modelo teórico. O MCMI-III, desde sua primeira edição, em 1977, é um dos instrumentos de avaliação da personalidade mais utilizados no contexto internacional e está em consonância com o DSM-IV. Consiste em um inventário de 175 itens de resposta do tipo falso ou verdadeiro, para avaliação de 14 padrões de personalidade e dez síndromes clínicas. Trata-se, portan - to, de um instrumento que avalia aspectos psicopatológicos da personalidade e, por isso, é indicado para indivíduos que estejam em processo de avaliação psicológica ou em acompanhamento de saúde mental.
É um teste usado para detectar desordens de personalidade e algumas síndromes clí nicas (CRAIG, 2008). O inventário é composto por 28 escalas que mensuram aspectos específicos no teste. Entre essas escalas, estão quatro de verificação que indicam se há uma tentativa de produzir uma impressão extremamente positiva ou negativa (CRAISSATI; WEBB; KEEN, 2008). O inventário também se propõe a avaliar outras escalas referentes aos tipos de desordens da personalidade: escalas de transtornos moderados da personalidade, de transtornos severos da personalidade, de transtornos clínicos moderados e de transtornos clínicos severos (MILLON; DAVIS; MILLON, 2006, 2007; BAKER; VAN HASSELT; SELLERS, 2008).
As escalas de síndromes clínicas do MCMI-III representam transtornos de severidade moderada, classificados no DSM-IV como síndromes do eixo I, que estão baseados num padrão básico de personalidade do indivíduo e influenciam, por sua vez, a composição de padrões sindrômicos particulares – algumas síndromes ocorrem com mais frequência entre certos tipos de personalidade. Soma-se a isso o fato de que os problemas relacionados ao uso de substâncias frequentemente têm comorbidade com outros problemas de saúde ou comportamento, notadamente com transtornos afetivos, ansiedade e transtorno de personalidade antissocial (MILLON; DAVIS; MILLON, 2007).
Sobre os transtornos de personalidade, Beck, Freeman e Davis (2007) apontam a existência de problemas que envolvem dificuldades de estabelecer um diagnóstico, uma vez que raramente os problemas da personalidade constituem a principal demanda de um paciente que busca tratamento. Dados da Organização Mundial da Saúde (2011) indicam que homens e mulheres são diferentes tanto na intensidade quanto na natureza da manifestação sintomática dos transtornos de personalidade e síndromes clínicas. Nesse sentido, considera-se essencial assegurar a propriedade do MCMI-III em identificar as distinções intrínsecas a cada gênero.
Diante desse quadro, verifica-se a necessidade de estudos acerca da atualização e validade de instrumentos psicológicos, e especificamente de testes que contribuam para a avaliação de características de personalidade psicopatológica considerando aspectos socioculturais da população brasileira. Para Alchieri, Nunez, Cervo e Hutz (2008), os estudos de validade convergente são muito importantes, pois trabalham para a observação de indicadores seguros tanto no uso dos inventários de personalidade quanto na avaliação psicológica de outros aspectos. A validade convergente pode ser entendida como o relacionamento significativo entre duas ou mais medidas de um mesmo construto ou de construtos relacionados em sua teoria, e, para tanto, utilizam-se métodos ou instrumentos de avaliação variados (PASQUALI, 2003). Além disso, verifica- se que, no Brasil, não existem estudos e instrumentos que tratem da avaliação de transtornos de personalidade e síndromes clínicas (SISTEMA DE AVALIAÇÃO DOS TESTES PSICOLÓGICOS, 2011), o que torna essa área defasada. Assim, o MCMI-III contribui como um instrumento promissor para o avanço nas pesquisas acerca da temática supracitada. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo verificar evidências de validade do MCMI-III utilizando o questionário de saúde geral de Goldberg (QSG), atualmente o único instrumento comercializado que identifica elementos psicopatológicos, como instrumento de validade convergente.
Método
Participantes
Participaram do estudo 703 pessoas com idades de 18 a 85 anos, de ambos os sexos, residentes e domiciliadas em várias cidades de todas as regiões do país e cujos níveis de escolaridade compreendem ensinos fundamental, médio e superior. Os participantes foram divididos em dois grupos – G1 e G2 –, de acordo com o critério de autorreferência estabelecido como modo de identificação de uso reconhecido como problemático para substâncias (álcool e outras drogas) e de eles estarem ou não passando por tratamento psicológico/psiquiátrico no momento da resposta ao instrumento. Esse procedimento está respaldado no fato de que o uso problemático de sustância poderia ser um indicador inicial para verificação discriminativa do instrumento. Esse procedimento buscou caracterizar um critério de avaliação autorreferida como critério que pudesse caracterizar a necessidade de atendimento psicológico, sem fundamentalmente definir, num primeiro momento, diagnóstico psiquiátrico. Salienta-se que tal procedimento não visou substituir o uso de critérios clínicos diagnósticos, mas sim de preliminarmente distinguir grupos. A autopercepção da necessidade de atendimento psicológico ou psiquiátrico foi adotada como critério de inclusão para definir a existência de sofrimento psíquico. Dessa forma, pôde-se diferenciar o grupo de pessoas que não percebiam esta necessidade ou não tinham histórico deste tipo de acompanhamento e compensar a ausência de procedimentos duplo cegos, impossíveis de serem aplicados neste estudo. Os participantes foram cooptados entre maio de 2009 e dezembro de 2010.
Os participantes do G1 foram abordados por acadêmicos ou profissionais de psicologia (em torno de dez entrevistadores) devidamente treinados em salas de espera das clínicas-escola de psicologia das instituições de ensino superior de Natal (RN), bem como em centros de tratamento para pessoas que manifestavam dependência de álcool e outras drogas de todo o país, e em hospitais psiquiátricos. O grupo de contraste (G2) foi composto por estudantes universitários dos mais variados cursos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A coleta atendia aos critérios de inclusão sem histórico ou necessidade de atendimento psicológico ou autorreferência por problemas por uso de álcool e outras drogas.
Na amostra, 22% dos participantes têm entre 18 e 21 anos; 45,7%, entre 22 e 40 anos; 27,9%, entre 41 e 60 anos; e 3,6%, entre 61 e 85 anos, e 70,4% são homens. A porcentagem dos que estão cursando ou concluíram o ensino fundamental é de 44,7%, 20,2% estão cursando ou concluíram o ensino médio, e 34,7% têm ou estão no ensino superior. A porcentagem dos que já precisaram de acompanhamento psicológico é de 45,7%, 40,1% já utilizaram psicofármacos prescritos, 39,1% fizeram uso abusivo de álcool nos últimos seis meses, e 33% usaram de forma abusiva drogas ilícitas nos últimos seis meses. O grupo G1 foi composto por 463 pessoas.
Instrumentos
Além do MCMI-III, foi utilizado o QSG (PASQUALI; GOUVEIA; ANDRIOLA; MIRANDA; RAMOS, 1996) que serviu como instrumento para fornecer elementos de atenção a aspectos psicopatológicos de validação convergente. A opção pelo QSG, independentemente de haver no manual informações sobre especificidade e sensibilidade, deu-se por ser o único instrumento psicológico comercializado e com anuência do Conselho Regional de Psicologia (SISTEMA DE AVALIAÇÃO DOS TESTES PSICOLÓGICOS, 2011) para avaliar aspectos e sintomas relacionados à psicopatologia e à saúde geral. O QSG é composto de 60 itens que mensuram sintomas psiquiátricos não psicóticos. O QSG apresenta outros fatores que agrupados formam o fator de saúde mental: estresse psíquico, morte, desempenho, sono e somático. O fator estresse psíquico diz respeito a experiências de irritação, impaciência, tensão, cansaço e sobrecarga; o fator morte está relacionado com o desejo de acabar com a própria vida, já que a pessoa a considera como inútil, sem perspectivas e sem sentido; o fator desempenho, por sua vez, se refere à consciência da capacidade de realizar ou desempenhar as tarefas rotineiras de forma satisfatória; o fator sono é representado pelos distúrbios do sono, ou seja, problemas relacionados com o sono, como pesadelos ou insônia; e, por último, o fator somático se refere a problemas orgânicos, como dores de cabeça, fraqueza e calafrios (PASQUALI ; GOUVEIA; ANDRIOLA; MIRANDA; RAMOS, 1996).
Como fonte de informação complementar, um questionário sociodemográfico foi incluído na folha de resposta do MCMI-III, com o objetivo de proporcionar maior conhecimento acerca das condições biopsicossociais preenchidas pelos próprios participantes.
O projeto do presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes – CEP-HUOL (294-09), garantindo-se as disposições da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
Os escores brutos obtidos foram somados em escalas e posteriormente ajustados segundo a proposta original do instrumento em uma planilha eletrônica no Excel for Windows. Assim, cada uma das 28 escalas obteve um valor por participante, e esses instrumentos foram consequentemente agrupados em dois grupos. Para comparação das médias dos escores em cada escala entre grupos independentes, foi utilizado o teste t de Student para medidas independentes. Para os casos em que não foi encontrada homogeneidade de variâncias por meio do teste de Levene, utilizou-se o valor corrigido para igualdade de variâncias não assumida. Também foram feitas análises de correlação, em que o coeficiente de correlação produto-momento de Pearson foi calculado entre as escalas do MCMI-III e as do QSG. Para as análises, utilizou-se o pacote estatístico Predictive Analitics Software (PASW/SPSS) 18 for Windows.
Com relação aos grupos G1 e G2, os padrões de resposta demonstrados pelas médias correspondem aos apresentados na Tabela 1.
A comparação entre os grupos, G1 (n = 462) e G2 (n = 240), indica diferenças significativas entre as médias dos escores brutos pontuados no MCMI-III para todas as escalas. Observa-se que, de forma geral, as médias mais altas foram predominantes no G1, à exceção das escalas de desejabilidade, histriônico e compulsivo. Os desvios padrão, por sua vez, foram menores para G2 na maioria das escalas, e isso indica que os escores brutos pontuados por tal grupo variam menos em torno da média se tomarmos como referência o G1, evidenciando menor variabilidade entre o grupo G2.
Com relação aos padrões de pontuação de escores entre homens e mulheres, verificaram- se diferenças (p < 0,001), à exceção das escalas de desejabilidade, valorização negativa, esquizoide e depressão maior, que apresentaram diferenças (p < 0,05), e das escalas de compulsivo e transtorno somatoforme, que não apresentaram diferenças entre médias estatisticamente significativas. À exceção das escalas de desejabilidade e histriônico, todas as médias foram maiores no grupo formado pelos homens (13,3 ± 3,3 e 14,4 e ± 4,0), respectivamente.
Fez-se uma distinção entre pontuação de baixo risco de desenvolver doença mental e pontuação considerada distúrbio (pontuação alta) no fator saúde geral do QSG, segundo escore calculado e classificado de acordo com o manual e as médias dos escores obtidos nas escalas do MCMI-III, com o objetivo de verificar as possíveis expressões quanto à saúde mental do indivíduo. Assim, 531 dos participantes foram classificados como de baixo resultado e 111 como distúrbio, sendo os resultados distribuídos de acordo com a Tabela 2.
À exceção das escalas de consistência e narcisista, todas as escalas apresentaram diferenças (p < 0,001) entre as médias do grupo com baixo escore e do grupo com alto escore no QSG. Para o grupo com pontuação alta no fator saúde geral, as médias nas pontuações do MCMI-III foram maiores que no grupo que pontuou baixo nesse mesmo fator, à exceção das escalas de desejabilidade, histriônico e compulsivo. A mesma classificação com o fator saúde geral foi utilizada para comparar as médias do grupo G2. As diferenças entre médias foram estatisticamente significativas (p < 0,05) para todas as escalas, à exceção de narcisista, dependência de álcool, dependência de substâncias e transtorno delirante.
Apresentou médias mais altas o grupo que pontuou alto no fator saúde geral do QSG e nas escalas de consistência, validade, valorização negativa, esquizoide, evitativo , antissocial, sádico, negativista, borderline, paranoide, transtorno de ansiedade, transtorno somatoforme, transtorno do pensamento e depressão maior, o que indica maiores comprometimentos psicológicos tanto no MCMI-III como no QSG. Já as escalas de desejabilidade, histriônico e compulsivo apresentaram médias maiores para o grupo classificado como de baixos resultados no QSG. As escalas de depressivo, dependente, autodestrutivo, esquizotípico, transtorno distímico e transtorno de estresse pós-traumático apresentaram médias mais baixas para o grupo que pontuou baixo no referido fator.
Com a finalidade de investigar acerca de relações existentes entre o MCMI-III e o QSG, foram realizadas análises de correlação entre as escalas do primeiro instrumento e as do segundo. Os resultados podem ser vistos na Tabela 3.
Observa-se que todas as correlações tiveram suas magnitudes fracas e médias e foram estatisticamente significativas, à exceção da escala de narcisista. As escalas de consistência, histriônico, antissocial, sádico, compulsivo, bipolar, dependência de álcool, dependência de substâncias e transtorno delirante apresentaram correlações fracas, enquanto as demais apresentaram correlações moderadas em todas as escalas do QSG.
Discussão
Os resultados descrevem um grupo sem indicadores psiquiátricos (definidos clinicamente), objetivando verificar a capacidade do MCMI-III em diferenciar, pelas escalas propostas, os dois grupos. É importante salientar que neste estudo não se pretende atender aos critérios de sensibilidade e especificidade, imprescindíveis à diagnose, mas sim dar início a estudos que possam verificar o potencial do instrumento em nossa cultura.
Quando se observam as médias dos escores brutos de todas as escalas do MCMI-III nos grupos G1 e G2, pode-se perceber que, como já era esperado, as médias foram maiores para o G1 na maioria das escalas, o que evidencia a adequada relação de construto do instrumento para identificar pessoas que manifestam alterações ou percepções de alterações quanto aos aspectos de saúde. Tais dados seguem o padrão encontrado em diferentes pesquisas que compararam escores brutos e/ou ponderados entre os grupos que apresentavam padrões clínicos de psicopatologia e aqueles que não apresentavam em todas as três versões do MCMI (GARDEN; SULLIVAN; LANGE, 2010; SISTIAGA; URRETA; JODAR; COBO; EMPARANZA; OTAEGUI; POZA; MERINO; IMAZ; MARTÍ-MASSÓ; MUNAIN, 2010). As pesquisas supracitadas apresentam critérios diagnósticos diferentes do usado no presente estudo, ou seja, neles foram utilizados diferentes instrumentos no intuito de identificar transtornos que pudessem distinguir grupos que apresentam indicadores de doenças psiquiátricas e/ou psicológicas daqueles que não apresentam. Porém , como há dificuldade em estabelecer indicadores de diagnósticos precisos e confiáveis – uma vez que até então não existiam instrumentos capazes de avaliar transtornos de personalidade e síndromes clínicas no Brasil –, foi preciso considerar, para esta pesquisa, o autorrelato referente a encaminhamento para tratamento psicológico/psiquiátrico como critério para distinção de grupos vistos como saudáveis e grupos vistos como desadaptados. Diante do exposto, é essencial destacar que há limitações no estudo acerca do critério escolhido para distinção dos grupos, uma vez que este não permite assegurar se de fato há ou não alteração psicológica/psiquiátrica no participante. Contudo, como primeira aproximação no contexto de verificação de distinções entre grupos com características específicas, vislumbram-se aspectos promissores na continuação dos estudos com a proposta teórica e instrumental de Millon, no MCMI-III.
Davis e Hays (1997) apontam para uma sobreposição entre as pontuações nas escalas de evitativo, depressivo e dependente, e, no presente estudo, tais escalas aparecem com médias e desvios padrão similares. O fato de todas as escalas terem médias de seus escores maiores para o grupo G1, à exceção das de desejabilidade, histriônico e compulsivo, pode ser explicado por meio dos estudos de Lenny e Dear (2009). Os achados desses autores apontam para médias maiores nas escalas já citadas para um grupo de pessoas que falsearam positivamente suas respostas no MCMI-III, indicando que pessoas que não manifestam transtornos de personalidade (ou seja, que não possuem padrões de resposta considerados pessimistas) apresentam pontuação maior nessas escalas.
Os resultados com relação à comparação entre as médias de homens e mulheres apresentam controvérsias com relação ao estudo de atualização do MCMI-III realizado por Millon et al. (2009). Tal pesquisa contava com 753 pacientes internos e pacientes ambulatoriais com médias maiores para as mulheres nas escalas de evitativo, depres sivo, dependente, negativista, masoquista, esquizotípico, borderline, paranoide, ansiedade, somatoforme, bipolar, transtorno de pensamento e depressão maior. Tais distinções podem ter se formado pelo fato de grupo amostral dos estudos de validade do MCMI-III para o Brasil ter sido abordado em locais em que a prevalência de homens com transtornos mais comprometedores da saúde psíquica era maior, como no caso das clínicas de reabilitação. As mulheres do G1, apesar de terem a sua amostra maior que a masculina, foram abordadas, em sua maioria, nas clínicas-escola, que, por sua vez, são caracterizadas por atender, em geral, a uma demanda de transtornos mais brandos do que os centros supracitados costumam receber. A Organização Mundial da Saúde (2011) apresenta dados que indicam a existência considerável de diferenciação entre os sexos com relação à prevalência e ao desenvolvimento dos transtornos mentais, pois os sexos têm a influência sobre determinantes socioculturais e, consequentemente, sobre a saúde mental, o status social e a suscetibilidade e exposição a riscos que contribuam para a manifestação da doença mental. Além disso, os estereótipos de sexo sobre a propensão para problemas emocionais nas mulheres e nos problemas de alcoolismo nos homens parecem reforçar o estigma social e restringir a procura de atendimento, o que representa uma barreira para a identificação precisa do transtorno psicológico. Em nosso estudo, não foram encontradas diferenças significativas entre os sexos nos resultados do instrumento para as escalas de transtornos mentais graves, tais como esquizofrenia e transtorno bipolar, semelhantes aos dados encontrados na Organização Mundial da Saúde (2011).
A comparação entre escores do MCMI e do fator saúde geral do QSG permite-nos inferir que o grupo menor de pessoas que pontuaram altos escores no QSG se deve ao fato de a amostra ter sido maior no G2. Todas as médias foram maiores para o G1, à exceção de desejabilidade, compulsivo e histriônico. A comparação feita com o grupo G2, por sua vez, demonstra a diferença entre os resultados apontados para o grupo G1, o que evidencia mais uma vez a sensibilidade do instrumento em diferenciar pessoas que manifestam dependência alcoólica daquelas que não manifestam.
Os resultados apontados na correlação entre as escalas do MCMI-III e o QSG permitem inferir que a fraca correlação encontrada entre as escalas de consistência, histriônico, antissocial, sádico, compulsivo, bipolar e transtorno delirante está relacionada às características intrínsecas ao próprio transtorno avaliado, uma vez que os aspectos avaliados pelo QSG não são prototípicos desses transtornos (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2002). Já com relação à dependência de álcool e dependência de substâncias, tal correlação pode se dever ao fato de os participantes que apresentaram alta pontuação em tais escalas se encontrarem em tratamento para os transtornos correspondentes. Esse tratamento pode ter causado interferência nas respostas dos pacientes. No que se refere à correlação moderada encontrada nas outras escalas do MCMI-III, esta pode ter ocorrido porque o QSG não é um instrumento específico de avaliação para transtornos de personalidade, pois avalia os mesmos construtos do MCMI III. Porém, embora o QSG apresente limitações no que se refere ao seu uso como instrumento de validade convergente do MCMI-III, as correlações encontradas podem ser consideradas como dados relevantes e promissores para evidenciar indicadores de validade do inventário pesquisado. Por meio do QSG, resultados apontaram a relação com os escores do MCMI-III, contudo ainda são necessários estudos posteriores para confirmação dos resultados e o estabelecimento de padrões normativos para a amostra brasileira.
Cabe salientar que estudos comparativos entre instrumentos na área de transtorno de personalidade ou mesmo de comprometimentos psicopatológicos são raros na área psicológica, e, assim sendo, estimadores sobre os resultados de testes comparados entre si são pouco usuais, de forma que não se verificam elementos comparativos a esses resultados na psicologia brasileira, e a proposta deste estudo é inédita nesse contexto.
Considerações finais
Neste estudo, abordaram-se a fundamentação e o desenvolvimento do conhecimento científico nas áreas de avaliação psicológica e de critérios diagnósticos psiquiátricos de transtornos e síndromes. A continuidade de estudos relacionados à validação do MCMI-III para o Brasil é de relevância, na medida em que se trata de um instrumento potencial no contexto de psicopatologia dos transtornos de personalidade e que apresenta uma base teórica atual e relevante que considera aspectos não avaliados por testes psicológicos utilizados no país. Assim, é imprescindível que se desenvolvam novas pesquisas na área de psicopatologia, com o objetivo de ampliar e aperfeiçoar o conhecimento sobre essa temática. Em novos estudos, devem-se buscar aspectos de complementariedade diagnóstica entre as escalas e avaliações psiquiátricas, num contexto ambulatorial, para os demais transtornos e síndromes clínicas.
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Endereço para correspondência
Contato
Heloísa Karmelina Carvalho de Sousa
e-mail: helosousa@hotmail.com
Tramitação
Recebido em novembro de 2011
Aceito em agosto de 2012