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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.16 no.3 São Paulo Dec. 2014
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
Quando os estudantes falam sobre os problemas de aprendizagem: um estudo psicogenéticoI
When students talk about learning problems: a psychogenetic study
Cuando los estudiantes hablan de los problemas de aprendizaje: un estudio psicogenético
Eliane Giachetto SaravaliII; Camila Fernanda da SilvaII
I Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
II Universidade Estadual Paulista, Marília – SP – Brasil
Resumo
Considerando a teoria piagetiana e os estudos sobre a construção do conhecimento social, investigaram-se as ideias de estudantes sobre a aprendizagem e a não aprendizagem. Participaram 40 escolares de 6 a 16 anos, com queixas de dificuldades de aprendizagem, matriculados em escolas públicas no interior do Estado de São Paulo e submetidos a dois instrumentos: um desenho em que retratavam uma pessoa que aprende e outra que não aprende; e uma história envolvendo uma situação de não aprendizagem. Os dados obtidos apontam crenças bastante específicas construídas pela maioria dos participantes, correspondentes ao nível mais elementar de compreensão da realidade social. Suas interpretações desconsideram processos mais complexos para o fenômeno investigado e se centram em questões aparentes. Os resultados corroboram os estudos evolutivos realizados no contexto nacional, apontando ideias rudimentares, mesmo em sujeitos mais velhos. Sugere-se a necessidade de estudos que expliquem as causas desse atraso entre estudantes brasileiros.
Palavras-chave: conhecimento social; teoria piagetiana; estudo evolutivo; ideias de estudantes; aprendizagem.
Abstract
Considering Piaget's theory and studies on the social construction of knowledge, we investigated the ideas of students about learning and not learning. The study included 40 children between 6 and 16 years old with complaints of learning difficulties, enrolled in public schools in the state of São Paulo and subjected to two instruments: a drawing depicting a person who learns and does not learn another; a story involving a situation of not learning. The data indicate quite specific beliefs constructed by most participants, corresponding to the most basic level of understanding of social reality. His interpretations disregard more complex processes for the investigated phenomenon and focus on apparent issues. The results corroborate the evolutionary studies in the national context, pointing rudimentary ideas, even in older subjects. We suggest the need for studies to explain the causes of this delay between brazilian students.
Keywords: social knowledge; Piaget's theory; evolutionary study; student's ideas; learning.
Resumen
Teniendo en cuenta la teoría de Piaget y los estudios sobre la construcción del conocimiento social, hemos investigado las ideas de los estudiantes acerca del aprendizaje y no aprendizaje. El estudio incluyó a 40 niños entre 6 y 16 años con quejas de dificultades de aprendizaje, inscritos en escuelas públicas en el estado de São Paulo y sometidos a dos instrumentos: un dibujo que representa a una persona que aprende y outra que no se aprende; una historia que implica una situación de no aprendizaje. Los datos indican que hay creencias bastante específicas construidas por la mayoría de los participantes, correspondientes al nivel más básico de comprensión de la realidad social. Sus interpretaciones hacen caso omiso de procesos más complejos para el fenómeno investigado y consideran solamente problemas aparentes. Los resultados corroboran los estudios evolutivos en el contexto nacional, apuntando ideas rudimentarias, incluso en estudiantes mayores. Sugerimos la necesidad de estudios sobre las causas de este retraso entre los estudiantes brasileños.
Palabras clave: conocimiento social; teoría de Piaget; estudio evolutivo; ideas de los estudiantes; aprendizaje.
Considerando os estudos referentes à construção do conhecimento social, a partir da epistemologia genética piagetiana, apresentamos dados de uma pesquisa que objetivou investigar as representações de estudantes com queixas de dificuldades de aprendizagem sobre o aprender e o não aprender.
A construção do conhecimento social, embora menos explorada pela obra piagetiana, vem sendo alvo de trabalhos nos contextos internacional (Delval, 2002; Amar, Abello, & Denegri, 2006; Rodriguez, Kohen, & Delval, 2008) e nacional (Araújo & Gomes, 2010). Nesses estudos, observam-se os seguintes aspectos: 1. o longo processo percorrido pelos indivíduos ao se apropriarem das informações provenientes do meio social, isto é, apesar de se tratar de um conhecimento socialmente difundido, ele é reorganizado pelo próprio sujeito (Monteiro & Saravali, 2013); 2. as crenças específicas, elaboradas, ao longo do desenvolvimento, sobre diferentes noções sociais (Trevisol, 2002; Othman, 2006; Tortella, Godoy, Vitorino, & Santana, 2013); 3. a semelhança dessas crenças entre sujeitos de diferentes contextos (Amar et al., 2006; Araújo & Gomes, 2010); 4. as implicações pedagógicas decorrentes da observância dos aspectos envolvidos na construção do conhecimento social (Guimarães, 2012); 5. as relações entre a construção do conhecimento social e outros aspectos do desenvolvimento, entre eles os mecanismos cognitivos (Mano, 2013).
Esses trabalhos sempre nos mostram a perspectiva dos indivíduos sobre essas questões e, em específico, dão voz a crianças e adolescentes sobre diversos conteúdos da realidade social.
Analisar as crenças que são construídas acerca das noções sociais, na perspectiva piagetiana, é considerar a influência do meio social, porém sem negligenciar o aspecto fundamental de significação e interpretação que cabe a cada sujeito. Dessa forma, o papel de interpretação, exercido a partir das solicitações sociais, é que permitirá a atribuição de um sentido às questões sociais.
A esse respeito, Delval (2002) explica que, na busca pela compreensão dos fenômenos sociais, percorremos três grandes níveis denominados pelo autor de "níveis de compreensão da realidade social".
Num primeiro nível, que se estenderia até por volta dos 10-11 anos, os sujeitos se baseiam sempre nos aspectos mais visíveis das situações em questão, desconsiderando processos ocultos e subjacentes, tão comuns em questões sociais. Apresentam também dificuldades em coordenar perspectivas diferentes e considerar a existência de conflitos.
Em relação ao segundo nível, que ocorre por volta dos 10-11 anos até os 13-14, Delval (2002) explica que os sujeitos começam a levar em conta aspectos não visíveis das questões analisadas, e tem início a consideração de processos que devem ser inferidos, pois estão inicialmente ocultos.
Num terceiro nível, que se inicia aos 13-14 anos, observa-se que os sujeitos estão de posse de mais informações sobre o meio social, mas aqui conseguem relacioná-las e integrá-las num sistema mais coerente: "Os sujeitos se tornam muito mais críticos em relação à ordem social existente, emitem juízos sobre o que é certo e o que não é e propõem soluções alternativas" (Delval, 2002, p. 231).
Uma questão que faz parte do cotidiano de estudantes e que é a maior função da instituição escolar refere-se à aprendizagem e aos seus problemas. As relações que os estudantes estabelecem em seu cotidiano escolar, bem como todas as vivências que experienciam em relação ao seu próprio desenvolvimento cognitivo, moral, social e afetivo, estão carregadas de significados e interpretações pautados no sucesso ou no fracasso da aprendizagem. Podemos dizer que essas questões se impõem, de maneira ainda mais ampliada, àqueles alunos que têm sucessivas experiências de insucesso ao aprenderem.
Considerando a maneira como analisam e interpretam as questões envolvendo a aprendizagem e seus problemas, objetivamos, neste trabalho, dar voz a alunos com queixas de dificuldades de aprendizagem. Pretendemos avaliar como crianças e adolescentes percebem, ao longo do seu desenvolvimento, o aprender e o não aprender.
Ao discutirem sobre a importância de conhecer como os estudantes pensam o aprender, Grácio, Chaleta e Rosário (2007) afirmam que analisar e debater nas salas de aula as concepções dos alunos sobre o tema é uma higiene educativa que deveria apoiar qualquer intervenção. Para os autores, a compreensão do aprender, na perspectiva dos protagonistas do processo, permite estudar e agilizar o fenômeno da aprendizagem, bem como fundamentar ações educativas que promovam um pensamento mais profundo e um controle maior sobre a própria aprendizagem.
O reconhecimento da criança como construtora de significados e de representações ímpares sobre o mundo em geral é de fundamental relevância para entendermos as relações estabelecidas em diferentes situações e momentos do seu desenvolvimento, como a experiência de aprender, processo tão central em sua vida (Arroz, Figueiredo, & Sousa, 2009), assim como os vínculos construídos no ambiente escolar, um dos contextos de socialização mais importantes e influentes para o desenvolvimento humano (Ladd, Buhs, & Troop, 2002).
Nesse sentido, estudos que dão voz às crianças e aos adolescentes podem nos ajudar a entender como as experiências escolares influenciam na construção do autoconceito dos estudantes, isto é, de que forma estes são afetados pelas percepções negativas que têm de si mesmos como alunos ou como membros de um grupo social (Elbaum & Vaughn, 2003).
Assim, defendemos que investigações desse teor podem colaborar significativamente para o fortalecimento de um campo da pesquisa que muito tem a contribuir para a compreensão dos processos de ensinar e, principalmente, de aprender. Conforme apontam Arroz et al. (2009), quando se almeja um sistema de ensino eficaz e, de fato, favorável ao desenvolvimento dos estudantes, é necessário ouvi-los e, sobretudo, valorizar suas concepções, uma vez que, antes de se investir em melhorias e transformações educacionais, é essencial perceber o que os principais envolvidos nesse contexto entendem por aprendizagem, suas causas, consequências ou possíveis problemas.
Considerando essas questões, o presente estudo buscou aproximar-se mais das crenças e percepções sobre o universo escolar, em específico sobre um problema crucial: a não aprendizagem.
A aproximação desse universo e de como ele é visto pelos alunos é, muitas vezes, realizada por meio da utilização de desenhos (Osti & Brenelli, 2009). Visca (1984), em seu clássico trabalho sobre técnicas projetivas psicopedagógicas, utilizou-se do desenho para avaliar como os alunos poderiam se relacionar com diferentes aspectos do cotidiano escolar, tais como a relação entre ensino e aprendizagem, a interação com os colegas, a rotina escolar, os papéis assumidos na escola etc. Dessa forma, por meio da representação e das explicações que os estudantes apresentavam sobre suas produções, era possível compreender melhor diferentes questões que compõem o contexto da aprendizagem. De acordo com Osti e Brenelli (2009, p. 41): "A partir da análise do desenho da criança, podemos conhecer quais representações participam do ambiente da sala de aula, quais os vínculos os alunos estabelecem com o aprender e quais as circunstâncias dentro das quais se opera essa construção do conhecimento".
Nos estudos e pesquisas sobre a construção do conhecimento social, o uso de desenhos e de imagens tem se mostrado uma técnica eficiente que desencadeia discussões e reflexões sobre elementos que podem permanecer ocultos numa entrevista clínica (Monteiro & Saravali, 2013). Delval (2002) sinaliza que, ao verbalizarem e explicarem suas produções, os indivíduos trazem à tona novos elementos, exemplos e comentários que dificilmente apareceriam num exame clínico comum.
Nesse sentido, nosso trabalho objetivou identificar essas representações naqueles que vivenciam situações de não aprendizagem, conforme veremos a seguir.
Método
Trata-se de um estudo evolutivo transversal baseado no método clínico-crítico piagetiano (Piaget, 1979). A pesquisa teve abordagem qualitativa, e a análise dos dados foi realizada mediante a interpretação das respostas dadas pelos sujeitos que indicam níveis de compreensão da realidade social (Delval, 2002).
Participantes
Participaram desta pesquisa 40 escolares, entre 6 e 16 anos, de escolas públicas de uma cidade no interior do Estado de São Paulo, indicados por seus professores como alunos com dificuldades de aprendizagem. Como se trata de um estudo evolutivo, a faixa etária escolhida abrange um longo período do desenvolvimento na intenção de observar possíveis diferenças e/ou avanços, bem como evoluções na maneira como as crianças e os adolescentes respondem às questões. O número de participantes e a divisão foram definidos com base nas orientações de Delval (2002) e correspondem ao que segue: dez sujeitos de 6 anos, dez de 9 anos, dez de 12 anos e dez de 16 anos.
Instrumentos
A primeira parte do trabalho, após a seleção dos participantes, consistiu na elaboração de um desenho. Os alunos eram convidados a criar um desenho numa folha de sulfite dividida ao meio: em uma das metades, a proposta era de que o sujeito desenhasse uma pessoa que aprende, e na outra metade, uma pessoa que não aprende; em seguida, o sujeito deveria explicar o que fez. Esse instrumento teve como objetivo observar como os participantes representavam, por meio de expressões gráficas, o aprender e o não aprender nas/para as pessoas.
O segundo instrumento utilizado consistiu na análise de uma história envolvendo uma situação-problema de sala de aula. O objetivo foi verificar como os sujeitos viam as possibilidades de ação docente e o papel da escola na situação de não aprendizagem proposta. A história utilizada foi a seguinte:
O aluno Marcelo (de idade igual à do sujeito a ser questionado) não consegue aprender as lições que a professora ensina. Ele não consegue copiar a matéria da lousa, não entrega as lições de casa e não resolve os problemas propostos pela professora em nenhum dia. O que você acha dessa situação? O que você acha que está acontecendo com essa criança? Quem poderia ajudá-la? E a escola? E a professora? Por que será que ele não aprende? O que você acha que a professora poderia fazer? O que você acredita que deve ser feito? E se ele não aprender, o que vai ocorrer? Você conhece alunos assim? Como eles são? O que acontece com eles? Como você se sente diante de situações assim?
Procedimentos de coleta de dados
A pesquisa foi apresentada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa local. Todos os sujeitos entregaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido assinados pelos responsáveis. Os participantes foram entrevistados individualmente, fora da sala de aula, numa sala destinada a esse fim. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas para análise. Cada entrevista teve duração de cerca de 30 minutos, e a duração total da coleta de dados foi de aproximadamente dois meses. Os diálogos estabelecidos nas entrevistas, bem como os desenhos, foram identificados pelas três primeiras letras dos nomes dos sujeitos, seguidas da idade em anos e meses entre parênteses. Cabe lembrar que as falas das crianças e dos adolescentes participantes foram registradas literalmente na forma coloquial com que se comunicavam com a entrevistadora.
Procedimentos de análise dos dados
As respostas dos sujeitos, nos dois instrumentos, foram interpretadas e agrupadas por categorias, que foram analisadas conforme os níveis de compreensão da realidade social estabelecidos por Delval (2002).
Resultados
Em relação ao primeiro instrumento, o desenho, foram encontradas categorias de respostas que diferenciavam aquele que aprende do que não aprende por meio de questões relacionadas ao próprio sujeito, tais como disciplina/indisciplina, atenção/ falta de atenção na escola, necessidade de esforço pessoal, existência de problemas biológicos, físicos e cognitivos. Assim, as explicações para o problema proposto pelo desenho consideravam apenas um aspecto da questão toda, ou seja, o aluno; o desejo pessoal era aspecto essencial de uma pessoa que aprende. Vejamos o exemplo apresentado a seguir:
Diálogo estabelecido após o desenho:
Entrevistadora: O que você pensou para desenhar a pessoa que aprende?
EVA: Pensei em fazer uma escola com um montão de pessoa.
Entrevistadora: E essa pessoa que você desenhou, por que ela aprende?
EVA: Porque ela presta atenção e é quieta, não faz bagunça.
Entrevistadora: Presta atenção em quê?
EVA: Na professora e na atividade.
Entrevistadora: [...] O que você pensou para desenhar essa outra pessoa que não aprende?
EVA: Eu desenhei ele na rua, soltando pipa e fazendo bagunça.
Entrevistadora: E essa outra pessoa, por que não aprende?
EVA: Essa aqui faz bagunça, não presta atenção na atividade, na professora e não faz nada.
Entrevistadora: Como assim? Por que não faz nada?
EVA: Ela só vai na onda dos bagunceiro e se torna um bagunceiro.
Entrevistadora: O que significa "ir na onda dos bagunceiros"?
EVA: É que quando o bagunceiro fica chamando pra ir fazer bagunça, ele vai. Ele vai porque ele quer.
Entrevistadora: O que precisaria acontecer para essa pessoa aprender?
EVA: Os pais chamar atenção.
Entrevistadora: De que jeito?
EVA: Pegar no pé dele pra ele estudar e parar de fazer bagunça.
Entrevistadora: Assim ele aprenderia?
EVA: Acho que sim.
Em relação ao segundo instrumento, foi possível observar a manutenção de uma maneira de explicação do fenômeno social em questão. Notamos, portanto, que as mesmas categorias continuavam a prevalecer e que os estudantes responsabilizavam os próprios alunos pela não aprendizagem. Ao pensarem em soluções para o problema, elencam questões pontuais, e há uma dificuldade grande na consideração de processos e na coordenação de perspectivas diferentes. Quando relacionam possibilidades de ajuda e/ou intervenção, as ações se concentram em punição ou alguma forma de atitude em relação ao aluno, considerado sempre o maior e único culpado. Alguns exemplos:
Entrevistadora: O que acontece com o Marcelo?
Aluno: Ele tem que estudar mais.
Entrevistadora: Por que ele não aprende?
Aluno: Porque ele tem que estudar mais pra poder passar de ano. Ele só fica conversando, fazendo bagunça.
Entrevistadora: Quem pode ajudar o Marcelo?
Aluno: A professora.
Entrevistadora: De que jeito?
Aluno: Chamando os pais, né? Falar pra ele ficar quieto.
Entrevistadora: Assim ele vai aprender?
Aluno: Vai, né? [...] (VIC 9; 8)
Entrevistadora: O que você acha que acontece com o Marcelo?
Aluno: Porque ele não tem força de vontade de aprender, de fazer nada... não tem interesse, não pensa no que pode acontecer com ele, se isso vai fazer falta ou não. Simplesmente não tá nem aí.
Entrevistadora: Quem pode ajudar o Marcelo?
Aluno: A família, os professores.
Entrevistadora: Como podem ajudar?
Aluno: Conversando, pedindo pra ele prestar atenção, pra ele fazer as atividades [...].
Entrevistadora: E se ele não aprender, o que pode acontecer?
Aluno: Vamos dizer que ele vai perder várias oportunidades na vida dele, porque ele não aprendeu, não fez nada praticamente [...] (KAT 16; 5).
Com base nos níveis de compreensão da realidade social discutidos anteriormente, esse tipo de resposta se baseia nos aspectos mais visíveis das situações em questão, desconsiderando processos ocultos e subjacentes, como as ações do professor, a relação entre o ensino e a aprendizagem, as questões familiares etc. Há dificuldades em coordenar perspectivas diferentes e perceber a existência de conflitos. As respostas inseridas nesse nível explicam, por exemplo, a situação-problema do personagem da história de uma maneira bastante simples e superficial, bem como parecem desconsiderar aspectos externos ao próprio indivíduo, mas que também podem interferir em sua aprendizagem. Assim, o não aprender está sempre e somente vinculado a um esforço pessoal ou à indisciplina. As soluções apresentadas são sempre simples, bastando ao aluno tornar-se mais disciplinado e/ou motivado. Quando outras pessoas são envolvidas, suas ações também são quase lineares; assim, aos mestres basta ensinar, aos pais basta conversar, e tudo se resolverá.
De acordo com nossa análise, a maior parte dos sujeitos, dos mais novos aos mais velhos, centra suas justificativas nesses aspectos mais evidentes e superficiais. Os dados apontaram que a maioria tem dificuldades para refletir sobre a temática e tende a culpabilizar o aluno que não aprende, não conseguindo considerar diferentes fatores e elementos. Destacamos que 90% da amostra foi classificada segundo o nível I de compreensão da realidade social.
Nas crenças que fogem desse padrão e que podem ser enquadradas no nível II, percebemos que as respostas já começam a considerar o papel do professor de forma mais crítica, não tão linear como no nível anterior. Dessa forma, o aluno pode não aprender porque o professor não ensina bem. Não se justifica mais a aprendizagem somente por fatores sempre e apenas inerentes aos próprios alunos. As respostas agregam mais informações, ainda que os sujeitos não consigam coordená-las num todo coerente, e novos elementos e pessoas aparecem como causas e soluções possíveis, como um problema familiar, uma ajuda psicológica, entre outros. Essas características se mantiveram constantes tanto no desenho como na história em 10% de nossa amostra. A seguir, apresentam-se alguns exemplos.
Diálogo estabelecido após o desenho:
Entrevistadora: Mas por que ela aprende?
ANA: Ah... uma que também ela não é tipo tão bagunceira e essas coisas. E outra, a professora é muito... a professora ensina melhor [...]. Depende do tipo do professor e também do aluno.
Entrevistadora: O que depende do professor?
ANA: Ah... tipo se o professor for um professor aplicado, um professor inteligente, ele vai ensinar uma coisa certa pro aluno. Agora tipo, se for um professor relaxado que ele vai lá senta e não passa as coisas na lousa pro aluno fazer, ele não vai aprender nada, não vai entender [...].
Diálogo estabelecido:
Entrevistadora: O que você pensou para desenhar a pessoa que aprende?
JOY: Ah... eu desenhei aqui uma menininha prestando atenção na professora que hoje em dia é muito difícil, né? Ela tá sentada, prestando atenção numa professora.
Entrevistadora: Por que essa pessoa aprende?
JOY: Quando a gente presta atenção na professora, a gente aprende muita coisa. [...]
Entrevistadora: Quem presta atenção sempre aprende?
JOY: Ah... eu não digo nem todo mundo.
Entrevistadora: Por quê?
JOY: Ah... tem muita gente que tem a cabeça fraca e na primeira explicação nem todo mundo aprende, né?
Entrevistadora: O que é ter a "cabeça fraca"?
JOY: É ter dificuldade pra entender as coisa.
Entrevistadora: Que dificuldade é essa?
JOY: Dificuldade... tem muita gente assim. Eu tipo mesmo sou desse jeito, eu sou bem difícil pra entender em algumas matérias.
Entrevistadora: Por que será que acontece isso?
JOY: Sei lá... tem matéria hoje em dia que é muito difícil. Pra gente aprender, a professora tem que explicar bem certinho, bem direitinho, aí aprende. [...]
Entrevistadora: E essa outra pessoa que não aprende, em que você pensou para desenhar?
JOY: Eu desenhei uma menininha com celular na mão que praticamente não presta atenção e acaba prejudicando o aluno.
Entrevistadora: Por que ela não aprende?
JOY: Porque não presta atenção, né?
Entrevistadora: Quem ensina essa pessoa que não aprende?
Entrevistadora: O que está acontecendo com o Marcelo?
Ana: Ele não deve tá prestando atenção [...]. Pra ele aprender tinha que parar e pensar no que ele tá perdendo, pra professora ajudar também. Tem professor que é relaxado e fica falando que esse aluno não tem mais jeito, só que ele tem [...] (ANA 12; 10).
Entrevistadora: O que está acontecendo com o Marcelo?
Igo: [...] pode ser uma culpa do professor que chega e tem os preferidinho, vai lá e ensina mais pra um, menos pra outro [...] (IGO 16; 11).
Em relação ao terceiro nível, Saravali, Guimarães, Guimarães e Melchiori (2013) explicam que há uma ampliação considerável das variáveis envolvidas, bem maior que no nível II. Nesse sentido, há inúmeras razões para que um aluno não aprenda, e fatores mais complexos são apresentados, como, a exclusão escolar e social. Há também várias possibilidades de intervenção, e os sujeitos apontam, às vezes, na mesma resposta, a escola, a professora, a família, outros profissionais e os amigos como possíveis agentes. Aparece o início dos acordos sociais, ou seja, o estabelecimento de compromissos entre aqueles que desempenham seus papéis sociais (Saravali et al., 2013). Em nosso estudo, não encontramos categorias de respostas que pudessem ser enquadradas nesse nível.
A Tabela 1 mostra a distribuição dos sujeitos pelos níveis de compreensão da realidade social.
Discussão e considerações finais
Podemos observar que, de nossa amostra, somente quatro participantes se apresentaram no nível II de compreensão da realidade social e nenhum no nível III. Tal fato pode nos falsear a dizer que isso ocorre porque estamos falando de alunos com queixas de dificuldades de aprendizagem, e, por isso, essa construção não ocorreu de forma plena.
No entanto, esse resultado corrobora aqueles encontrados nos estudos evolutivos brasileiros que indicam que o nível III, mesmo entre participantes mais velhos, já com 15, 16 anos, tem sido pouco encontrado (Mano, Guimarães, & Saravali, 2013).
Dessa forma, esses indivíduos permanecem com ideias bastante rudimentares sobre questões sociais, em específico sobre um conteúdo bastante familiar – a aprendizagem e a não aprendizagem. Se assim permanecerem, suas representações do mundo social podem manter-se simplistas, carregadas de preconceitos e estereótipos, o que pode impedir uma reflexão mais abrangente dos fenômenos.
Essa maneira de enxergar as questões envolvendo o aprender e o não aprender, mais aparente e rotulante, influencia o modo como os estudantes se relacionam com essas questões quando elas se aplicam aos colegas e quando se aplicam a si próprios. Assim, culpabilizar sempre o próprio o aluno por uma situação de não aprendizagem é um raciocínio que influenciará a análise que poderão fazer de si mesmos. É o caso de como JOY (16; 6) explica seu próprio insucesso: "Eu tipo mesmo sou desse jeito, eu sou bem difícil pra entender em algumas matérias".
Portanto, conhecer essas ideias nos mostra melhor essa visão que os alunos têm sobre a questão e pode ajudar na elaboração de intervenções mais eficazes.
A busca pela explicação do atraso que ocorre nos sujeitos brasileiros é uma possibilidade importante de abertura a novas pesquisas na área. De acordo com o referencial psicogenético, uma questão que nos parece importante de nortear essas novas investigações refere-se à relação entre a construção do conhecimento social e o desenvolvimento cognitivo, ainda pouco explorada nas pesquisas da área. Talvez, no caso dos nossos participantes, o prejuízo na construção de suas estruturas cognitivas possa justificar suas dificuldades na construção de representações mais elaboradas de conteúdos sociais, como demonstrou Mano (2013), ainda que a autora não tenha trabalhado com alunos com problemas escolares.
Assim, o campo de estudos sobre o conhecimento social no contexto brasileiro é ainda carente de explicações mais detalhadas sobre como esses processos ocorrem. Essas explicações são elementos essenciais para pensar o cotidiano escolar e o trabalho para a construção de uma noção social. Práticas pedagógicas coerentes com o desenvolvimento do aluno devem considerar as características dessa construção. A escolha de atividades, bem como a forma de desenvolvê-las, deve caminhar no sentido de solicitação de reflexões e ações sobre os conteúdos da realidade social, de modo a evitar a priorização da transmissão de informações e a passividade. Os desequilíbrios provocados devem auxiliar os alunos a pensar as possibilidades de resolução de conflitos, reconhecer novos elementos e ser capazes de coordená-los.
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Endereço para correspondência:
Eliane Giachetto Saravali
Avenida Hygino Muzzi Filho, 737, Mirante
Marília – SP – Brasil. CEP: 17525-000
E-mail: eliane.saravali@marilia.unesp.br
Submissão: 29.9.2013
Aceitação: 10.7.2014