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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.18 no.3 São Paulo Dec. 2016
https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v18n3p156-167
ARTIGOS
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
Rodas de conversa: uma intervenção da psicologia educacional no curso de medicina
Conversation circles: a statement by the educational psychology in the school of medicine
Ruedas de conversación: una intervención en psicología educativa en la carrera de medicina
Patricia Ingrisani Branco; Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
RESUMO
A formação médica pode ser atravessada por grande carga emocional e sofrimento, os quais na maioria das vezes não são compartilhados em decorrência das exigências presentes no ambiente acadêmico. Nesse contexto, a psicologia educacional é solicitada a desenvolver estratégias que contribuam para melhorar a qualidade da permanência do acadêmico de medicina. Este artigo avalia uma prática psicológica, desenvolvida junto a um grupo de oito estudantes de medicina, por meio de Rodas de Conversa, baseadas nos conceitos de dialogismo e exotopia, pressupostos bakhtinianos. A avaliação, realizada pelos próprios participantes, apontou que as Rodas contribuíram para a mudança dos sentidos atribuídos às exigências do grupo e à maneira de respondê-las; deslocou o eixo de análise da esfera individual para a institucional, diminuindo a tensão e a autocobrança; favoreceu a desculpabilização, além de promover o engajamento dos estudantes pelo desenvolvimento de ações coletivas.
Palavras-chave: psicologia educacional; medicina; sofrimento; engajamento de estudantes; rodas de conversa.
ABSTRACT
Medical education can be crossed by great emotional pressure and suffering, which in most cases are not shared due to high demands present throughout the academic environment. In this context, Educational Psychology is summoned to develop strategies that contribute to improving the quality of medical academic permanency. This article evaluates a psychological practice, conducted with a group of eight medical students through conversation circles based on dialogism and exotopy, Bakhtinian assumptions. The assessment carried out by the participants themselves, pointed out that the conversation circles contributed to the change of the meanings attributed to the group's high demands and the way they respond to them. The shift from individual self-analyses to institutional analysis was enabled contributing to the reduction of tension and high self-expectation. Collective actions also resulted from student engagement.
Keywords: educational psychology; medicine; suffering; student engagement; conversation circles.
RESUMEN
La formación médica pude ser atravesada por grandes cargas emocionales y sufrimiento, las cuales en la mayoría de las veces no son compartidas debido a las exigencias presentes en el ambiente académico. En este contexto, la Psicología Educativa es convocada a desarrolar estrategias que mejoren la calidad de la permanencia del estudiante de medicina. Este artículo evalúa una práctica psicológica, realizada con un grupo de ocho estudiantes de medicina a través de Ruedas de Conversación, basadas en el dialogismo y exotopia, presupuestos bajtinianos. La evaluación, realizada por los propios participantes, apuntó que las ruedas contribuyeron para la transformación de los sentidos atribuidos a las exigencias del grupo y a la forma de responderlas; trasladó el eje de análisis de la esfera individual para la institucional, disminuyendo la tensión y la autoexigencia; favoreció la desculpabilización además de promover el involucramiento de los estudiantes, por el desarrollo de acciones colectivas.
Palabras clave: psicología educativa; medicina; sufrimiento; involucramiento de estudiantes; ruedas de conversación.
Rodas de conversa: uma avaliação
Ao ingressar na universidade muitos estudantes enfrentam obstáculos próprios desse nível de ensino. A formação médica, repleta de particularidades, configura-se período de adaptações e dificuldades que, na maioria das vezes, não podem ser socializadas devido às exigências por um desempenho ótimo, presentes no ambiente acadêmico. São muitos os fatores de tensão aos quais os estudantes podem ser expostos ao longo da permanência na escola médica, fatores que podem gerar grande sofrimento psíquico, que tende a aumentar com o avanço do curso (Andrade et al., 2014).
A literatura especializada aponta que há entre os estudantes de medicina maior prevalência de depressão e de Transtornos Mentais Comuns (TMC), em comparação às taxas observadas na população em geral (Silva, Cerqueira, & Lima, 2014). Além disso, o consumo de drogas lícitas e ilícitas entre o referido público constitui-se um problema alarmante (Machado, Moura, & Almeida, 2015; Martinez et al., 2016). O consumo abusivo de entorpecentes, assim como a prática de automedicação, pode estar relacionado à procura de alívio para o sofrimento físico e psíquico experimentado pelos estudantes ao longo da formação médica (Andrade et al., 2014).
Diversas pesquisas, realizadas em diferentes partes do mundo, indicam que as taxas de suicídio verificadas entre estudantes de medicina e também entre os médicos são muito mais elevadas do que as existentes entre a população em geral, caracterizando-os como população de risco (Downs et al., 2014; Miletic, Lukovik, Ratkovik, Aleksic, & Grgurevic, 2015; Millan & Arruda, 2008).
A evasão, fenômeno preocupante no ensino superior brasileiro, não se constitui problema nas escolas médicas, pois o percentual de alunos evadidos, principalmente em universidades federais, é muito pequeno (Martins, Silveira & Silvestre, 2013). Se esse dado, aparentemente animador, pode ser lido favoravelmente ao curso e à instituição, o que justificam os elevados índices de suicídio, sofrimento e uso abusivo de drogas, apontados pela literatura? É necessário compreender os processos de tensão intersubjetiva existentes em cursos de alta adesão/baixa evasão, assim como os sentidos atribuídos à permanência e à superação de dificuldades e pressões.
O estudante de medicina mesmo quando percebe que necessita de apoio psicológico hesita muito em buscá-lo (Andrade et al., 2014), talvez em decorrência dos sentidos atribuídos a esse tipo de serviço: doença, anormalidade, adaptação, fracasso (De Marco, 2009). Como os problemas muitas vezes são entendidos como elementos indesejáveis e que, portanto, devem ser escondidos, a questão da procura de ajuda psicológica torna-se polêmica e revestida de alguns preconceitos (De Marco, 2009).
Esse panorama nos leva a questionar se apenas o bom rendimento acadêmico deve ser entendido como sucesso escolar, já que a qualidade da permanência no curso, durante a formação universitária, não se limita apenas a resultados quantitativos como o baixo índice de evasão, por exemplo, mas deve considerar também aspectos emocionais do corpo discente que têm ingressado nas universidades públicas brasileiras (Felicetti & Morosini, 2009).
Apesar de todas as singularidades da formação médica, a atuação da Psicologia junto às escolas de medicina ainda é tímida. A despeito da presença da psicologia escolar em algumas instituições de ensino superior (IES), suas atividades são, majoritariamente, direcionadas às ações individualizadas e a um modelo clínico de atenção ao estudante, os quais não repercutem nas práticas institucionais, responsáveis por grande parte do sofrimento vivenciado pelos estudantes; além de assemelharem-se ao tipo de intervenção desenvolvida pelo psicólogo escolar nos segmentos da educação básica, muito criticada há algumas décadas (Marinho-Araújo, 2015; Sampaio, 2010).
O modelo clínico tem se mostrado problemático para contextos educacionais por várias razões: não atende à demanda, já que o número de alunos que buscam o serviço é maior do que a capacidade de atendimento, formando longas filas de espera; devido aos sentidos de normal/anormal, atribuídos aos que buscam tal atendimento e, por fim, por corroborar com a individualização do problema apresentado, culpabilizando o aluno (Pan & Zugman, 2015).
Poucas intervenções debruçam-se sobre questões envolvendo variáveis institucionais, sociais, políticas e econômicas, as quais contribuem para a constituição subjetiva dos alunos (Bisinoto & Marinho-Araújo, 2011). Diversos discursos, além do científico, povoam o interior das universidades e, mesmo não legitimados, acabam por influenciar não apenas a trajetória profissional, mas a própria constituição dos sujeitos (Marinho-Araújo, 2015).
Nesse contexto, buscando confrontar práticas individualizantes através de ações que abarquem a dimensão político-institucional e coletiva que considerem as questões pessoais dos estudantes, desenvolveu-se na Universidade Federal do Paraná (UFPR) um modelo de atuação da psicologia educacional no ensino superior, através de um projeto que reúne ensino, pesquisa e extensão. O projeto tem como um de seus objetivos auxiliar no acolhimento do corpo discente universitário, por meio de ações da psicologia que abarquem esferas institucionais e coletivas, de modo a promover o engajamento dos estudantes (Pan et al., 2013).
Além disso, organizou-se a criação de espaços, no interior da UFPR, nos quais é possível aos estudantes falar sobre seus desafios, sofrimentos, vitórias e superações, aspectos que usualmente não podem ser compartilhados no âmbito da universidade (Pan et al., 2013). As rodas de conversa constituíram-se para esse fim. Por meio delas os alunos podem perceber que não são os únicos a enfrentar dificuldades no decurso de sua formação e, ao compreender quais os fatores que mais produzem tensão podem, conjuntamente com outros estudantes, refletir acerca de ações interventivas que permitam uma permanência com qualidade ao longo da formação universitária (Pan et al., 2013).
Dentre os cursos que participaram do projeto nos anos de 2013 e 2014 está o curso de medicina, que por meio de sua coordenação e em conjunto com a Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) solicitou a ação do projeto. Considerando as especificidades que configuram a formação médica e as demandas apresentadas à Psicologia delineou-se um trabalho que envolveu a realização das Rodas de Conversa, durante o ano de 2013.
Este artigo tem por objetivo avaliar os sentidos atribuídos, pelos participantes, à prática psicológica realizada com um grupo de estudantes do curso de medicina da UFPR.
Método
Participantes
Participaram do projeto de extensão oito estudantes de medicina da UFPR, (A1, A2, A3, A4, A5, A6, A7 e A8), sendo três homens e cinco mulheres, com idade entre 21 e 24 anos, periodizados entre o 4º e o 8º períodos. Todos os participantes assinaram termo de consentimento, permitindo a gravação da avaliação e a divulgação dos resultados. O Quadro 1 foi construída a partir do preenchimento, por parte dos participantes, de um questionário socioeconômico. Nela os participantes são identificados por letras e números.
Com exceção de dois participantes, todos os outros necessitaram deixar suas cidades natais e respectivas famílias para estudar medicina. Nenhum dos integrantes possui histórico de reprovação em disciplinas ao longo de sua formação acadêmica.
Rodas de Conversa: um procedimento em avaliação
O projeto de extensão PermaneSENDO orienta-se por uma metodologia de pesquisa de caráter interventivo (Jobim e Souza & Albuquerque, 2012; Pan et al., 2013). Estudantes do último ano de Psicologia atuando sob supervisão, conjuntamente com alunos do mestrado, trabalham na criação de metodologias e técnicas inovadoras de intervenção com a comunidade acadêmica.
A implantação do PermaneSENDO, dentre outras ações, efetuou-se a partir de abril de 2013, com a realização de rodas de conversa junto a um grupo de estudantes do curso de medicina da UFPR. A roda de conversa é uma das metodologias de intervenção em contextos institucionais proposta pelo projeto e constituem-se espaços nos quais os estudantes podem compartilhar, entre os pares, o que pensam e sentem sobre suas experiências acadêmicas, de forma a propiciar maior compreensão a respeito das demandas apontadas pelos participantes, no tocante às suas relações com a universidade (Pan et al., 2013). Desse modo, torna-se possível fomentar a reflexão acerca das possibilidades de atuação frente a tais necessidades por parte da instituição e do corpo docente (Pan, Zonta, Tovar, Mallmann, & Cruz, 2014, p. 7).
Por intermédio das Rodas pretende-se ressignificar a experiência acadêmica e, para isso, torna-se necessário trabalhar não apenas pelo viés pedagógico ou clínico, mas por intermédio de ações da psicologia escolar cujo objetivo não seja simplesmente a tentativa de adequação do estudante ao meio acadêmico e às suas regras (Pan et al., 2014). A proposta das Rodas é promover a reflexão a respeito das relações institucionais, as quais muitas vezes produzem sofrimento, promovem a desumanização nos cursos e atuam nos modos como se configuram as relações e os sentidos produzidos na universidade.
A intervenção é atravessada por uma dimensão política, no sentido de levar os estudantes a perceberem e buscarem ferramentas para lidar com as necessidades existentes em seus cursos, possibilitando o desenvolvimento de ações coletivas e o engajamento dos estudantes. As Rodas de Conversa, utilizadas como estratégias de leitura e intervenção no processo grupal, estão baseadas em conceitos bakhtinianos como exotopia, compreendido como o excedente de visão que se tem em relação ao outro e dialogismo, embate de forças entre as diferentes vozes sociais (Pan et al., 2014; Pan & Zugman, 2015). Trabalha-se, por meio das Rodas, com os discursos, entendidos como simultaneamente individuais e sociais, e com as possibilidades de ressignificá-los, produzindo múltiplos sentidos que permitam outra leitura das experiências que os acadêmicos têm do mundo e de si mesmos na universidade (Pan et al., 2014).
Procedimentos
Entre os meses de julho a dezembro de 2013 ocorreram 16 rodas de conversa, realizadas no período da noite, cada uma com duração de uma hora e meia e frequência semanal. Todas as rodas realizaram-se no Centro de Assessoria e Pesquisa em Psicologia e Educação (Ceappe), unidade integrante do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, na qual docentes e discentes do curso de psicologia e áreas afins desenvolvem projetos de ensino, pesquisa e extensão, direcionados à área educacional.
As intervenções foram realizadas por duas estagiárias do último ano do curso de Psicologia, que atuaram como mediadoras do processo, apresentando os objetivos de cada encontro. A proposta de programação das Rodas foi construída e aprimorada ao longo dos diálogos ocorridos em cada encontro.
No mês de março de 2014 os estudantes avaliaram, por meio de uma roda de conversa, o impacto da intervenção em suas experiências acadêmicas e a metodologia adotada, apontando os principais aspectos necessários ao aprimoramento do projeto de extensão. A avaliação foi gravada em áudio e os dados transcritos. A partir disso, a avaliação foi sistematizada, de modo a apresentar os pontos positivos, negativos e sugestões apontadas pelos participantes.
Resultados e discussão
O projeto de extensão foi avaliado positivamente por contribuir para a retomada de atividades prazerosas da vida dos estudantes, as quais haviam sido abandonadas em decorrência das grandes exigências da formação acadêmica. O abandono de tais práticas, segundo Benevides-Pereira e Gonçalves (2009), agrava ainda mais o impacto sofrido pelos estudantes nos primeiros anos de formação médica.
[...] o mais legal do projeto é que eu redescobri coisas fora da medicina. Depois de eu ter começado aqui, eu me soltei. Tipo, no semestre passado não peguei nenhuma final e eu me comprometi com mais atividades. Eu voltei a fazer dança e a levar mais à sério a academia e esse semestre de agora eu coloquei violão e voltei a estudar inglês. E mantendo a dança e a academia. Eu tô com todas as noites preenchidas, e eu tô me sentido melhor, sabe. Foi coisas que eu me desprendi através do projeto (A2).
A metodologia adotada também foi avaliada positivamente pelos participantes, em seu caráter de prática institucional. A3 (assim como A6) ressaltou a pertinência das Rodas de Conversa, em função de seu sentido institucional. Para ela, a metodologia é
[...] muito indicada, porque se, por exemplo, a gente vai lá falar com o psicólogo e fica aquele negócio, a mulher não fala nada e daí você tem que falar sozinho, fica um caráter de consulta, e pra gente, se tiver que se colocar no papel de paciente e se sentir numa consulta já inverte o papel, entendeu? A gente não tá se preparando pra ser paciente, a gente tá se preparando pra ficar do outro lado. (A3)
O sentido atribuído à clínica e ao ser paciente está relacionado à doença, anormalidade, adaptação, fracasso (De Marco, 2009; Pan & Zugman, 2015), fazendo com que o estudante evite procurar ajuda (Andrade et al., 2014), pois, ao fazê-lo, o acadêmico de medicina sente-se em uma posição desconfortável, distante daquela para qual está se preparando. No entanto, à abordagem coletiva, na qual as relações são horizontalizadas e o caráter político-institucional é valorizado, o estudante atribui outro sentido: "Então eu acho que uma abordagem diferente, como essa que a gente vem fazendo, pro estudante de medicina tem mais valor do que outras, por causa dessa questão de papel" (A3, assentida por A6).
O manejo grupal e o lugar ocupado pelos mediadores, promovendo a circulação da palavra para além das relações hierárquicas da instituição, foi considerado fundamental para que o grupo pudesse compartilhar suas experiências. Para A7, com a concordância de A6, a atuação dos mediadores desenvolveu-se no sentido de "[...]dar corda, entendeu? Preparar a gente pra iniciar. Isso aconteceu desde o primeiro dia, tipo... porque eu não teria coragem de falar tudo que eu falei, no primeiro dia assim, eu nem conhecia vocês nem nada." Os mediadores, percebidos numa relação de horizontalidade, facilitaram a construção de espaços nos quais os estudantes foram convidados a falar e a ouvir a respeito dos sentidos envolvidos na experiência de tornar-se médico.
Passar pelas dificuldades de forma solitária, acreditando ser o único a experimentá-las, produz emoções que dificultam o enfrentamento dos desafios presentes na graduação.
Eu ficava desesperada e daí desesperada você não estuda, e daí você não estuda e se desespera, e assim vai. (A4)
Pra mim que todo mundo cumpria aquele ideal de estudante de medicina que a gente comentou, e feliz da vida. Eu pensava que só eu passava por essas coisas. (A1)
As Rodas de Conversa, ao evidenciar que as dificuldades enfrentadas durante a formação médica não são experiências individuais, mas também são vivenciadas por outros estudantes, corroboraram com a desculpabilização do aluno (Pan & Zugman, 2015), contribuindo, inclusive, para um melhor desempenho acadêmico: "[...]o último período pra mim foi o mais fácil, porque todo mundo fala: oh, horrível. Pra mim foi o período que eu levei mais na boa. E eu não peguei nenhuma final também, e isso foi inédito" (A4, com a concordância de A2).
Segundo Andrade et al. (2014) os diversos conflitos vivenciados pelos estudantes de medicina produzem muitas angústias que podem prejudicar o bem-estar dos acadêmicos. Para os estudantes, as rodas de conversa desempenharam um papel fundamental ao possibilitar o diálogo acerca do conteúdo emocional vivido na universidade. Nas Rodas é possível "[...] falar sobre isso, que até então era uma coisa que me trazia sofrimento, por que você achava que não podia sentir" (A1), ou ainda, segundo A6 "[...] se você achasse que podia sentir, você não poderia comentar sobre". Dispor de um espaço no qual é permitido expressar, sem censura, as emoções contraditórias produzidas ao longo da formação médica possibilitou aos alunos perceberem, inclusive, que tais sentimentos são vivenciados por diversos estudantes, em várias etapas do curso. Isso foi avaliado como um grande benefício proporcionado pelas rodas de conversa. A atuação do projeto com os acadêmicos de medicina, de acordo com A6, é extremamente relevante: "Eu não sei se vocês acreditam nisso, que alguém não vai se matar porque existe esse projeto. Eu acredito, entendeu?"
Com a possibilidade de expressar seus sentimentos, frustrações e medos, os estudantes sentem-se mais tranquilos e com a autocobrança diminuída: "Meu senso crítico diminuiu bastante, eu me cobrei muito menos durante a faculdade depois que a gente começou aqui." (A1) e " [...] eu fiz o meu ritmo, sem aquela coisa estressante." (A4 e A2).
O contínuo impulso ao empreendedorismo e à disputa afetam a identidade coletiva da comunidade acadêmica, permeada pelo individualismo e pela naturalização da competição (Mancebo, 2010). O discurso de identidade, os processos de subjetivação e as relações presentes na formação médica são, muitas vezes, mediados por esses valores, que podem produzir nos participantes sentimentos de que são sempre devedores, mesmo quando as médias mínimas são alcançadas. Na percepção de A6 "[...] um dos maiores problemas do curso é esse, é a competitividade". A experiência subjetiva dos estudantes reflete e refrata, portanto, a universidade, o curso de medicina e os valores que os sustentam. Todavia, a oportunidade de refletir acerca de aspectos constitutivos da formação universitária possibilitou a ressignificação da experiência acadêmica desses estudantes; os quais afirmaram ter alterado não apenas o sentido atribuído a si mesmos, mas inclusive ao modo como percebiam seus pares, modificando, assim, o sentido das relações que se desenvolvem dentro do curso. Segundo A1, com concordância de A4, "[...] o pessoal meio que desceu do pedestal, meio que igualou o nível, e daí eu me senti mais confortável em compartilhar esse tipo de coisa, e melhorou certas coisas também em relação ao grupo" (A1).
Pensar, de forma coletiva, a respeito das transformações que podem ser implementadas pelos próprios estudantes, contribuindo para a qualidade da permanência na escola médica da UFPR, foi considerada uma atividade altamente significativa. De acordo com A7, consonante com A2, o projeto "[...] foi a única atividade que eu fiz por não ter obrigação, e ao mesmo tempo me senti mais... deixa eu ver... instigado a agir". Para ele, foi importante sentir-se novamente capaz de revolucionar o mundo. O sofrimento ético-político, produto das relações nas quais os sujeitos sentem-se percebidos como inferiores, desvalorizados ou servis (Sawaia, 2012) que afligia o grupo nas primeiras Rodas de Conversa foi substituído por certa potência de ação, na qual o fortalecimento de concepções éticas, atravessadas por afetos, vontades e necessidades, alavancou ações coletivas para a transformação (Sawaia, 2012).
Uma das atividades realizadas pelo grupo foi o planejamento de uma sala de lazer, onde os estudantes disporiam de um espaço para descansar entre os intervalos das aulas; interagir com os colegas de maneira descontraída, além de contar com uma máquina para venda de café. O setor de saúde, no qual os estudantes de medicina da UFPR realizam grande parte de sua formação, não possui um ambiente onde tais práticas possam ocorrer. Tal atividade, relacionada à construção de ações políticas, foi avaliada positivamente, pois contribuiu para a reflexão coletiva acerca do engajamento do estudante (Pan et al., 2013), por meio de ações que dificilmente seriam pensadas apenas por um indivíduo: "Nunca o conjunto todo da ideia que foi formada ia sair, assim, no individual" (A1). Ser protagonista de ações que possam propiciar benefícios aos futuros calouros foi gratificante, e segundo A4: "Eu gostei de pensar nisso, gostaria que desse certo, não sei se eu vou chegar a ver isso até eu me formar [...]".
O grupo foi unânime ao pontuar falhas na divulgação do projeto ao curso de medicina e ao respectivo corpo discente. De acordo com eles, deveria ter ocorrido melhor comunicação com representantes de turmas, avisos nas salas e contato com professores do setor. Para A4, não ter conseguido avançar na implantação do projeto referente à sala de lazer foi apontado como um dos aspectos negativos do projeto: "A gente tava superempolgado e começou a ter um monte de problema. [...] deu um desânimo total. Poxa, a gente ficou um tempão discutindo aqui!". Na opinião da mesma participante, o projeto estava pouco conectado com a coordenação, dificultando a execução da ação.
Segundo Benevides-Pereira e Gonçalves (2009), há um afastamento dos acadêmicos de medicina em relação aos outros cursos de graduação, o que dificulta a convivência e integração com o restante da população universitária. Nesse sentido, promover relações intersubjetivas com estudantes de outros cursos, que também participavam do projeto de extensão, foi apontado por A3, consoante com A2, A6 e A7, como uma sugestão que pode aprimorar a intervenção: "Acho que uma coisa que faltou no desenvolvimento do nosso grupo, é a gente, vocês convidarem a gente pra ir em uma roda de conversa de outro lugar". Na opinião dos participantes, a participação do grupo em Rodas de Conversas realizadas em outros cursos "talvez tirasse essa ideia que medicina é gente metida, que não se mistura" (A4 e A1), além de ajudar o grupo "a perceber que todo mundo sofre também. A gente tem muita mania de ai... a gente tem a maior carga horária, a gente tem a maior pressão, a gente que vai lidar com vida e morte" (A6, A3 e A1). Além disso, seria uma possibilidade de relacionar-se com pessoas cujos interesses não estão relacionados à medicina, aumentando as possibilidades de "ter um amigo de fora da medicina" (A6, consoante com A1 e A2), o que segundo A4 "é muito saudável!".
As principais categorias apresentadas em relação às Rodas de Conversa foram: contribuir para a mudança dos sentidos atribuídos às exigências do grupo e às maneiras de respondê-las; deslocar o eixo de análise da esfera individual para a institucional, consequentemente diminuir a tensão e a autocobrança; favorecer a desculpabilização; promover o engajamento dos estudantes pelo desenvolvimento de ações coletivas.
Por meio das Rodas de Conversa foram criados, com os acadêmicos de medicina, espaços nos quais foi possível refletir coletivamente sobre os sentidos das práticas formativas do curso e seus efeitos na subjetividade dos estudantes, nas diversas relações intersubjetivas e sobre os discursos institucionais. O processo de subjetivação do estudante de medicina, configurado pelos sentidos da identidade médica, historicamente construído por valores como individualismo e competitividade, produzem uma experiência de assujeitamento e sofrimento, para a qual o estudante, sozinho, não vê saída.
Com a avaliação das Rodas de Conversa foi possível perceber a relevância da intervenção para os estudantes. Nesse sentido, verificou-se que as ações empreendidas provocaram um impacto positivo nas experiências acadêmicas dos participantes, que passaram a olhar de forma mais reflexiva às exigências impostas pelo grupo. Isso produziu transformações nas experiências cotidianas dos participantes, que redefiniram a maneira de enfrentar e responder às pressões e desafios presentes ao longo da formação médica. Por meio da avaliação coletiva realizada pelos participantes, que apontaram aspectos positivos e negativos da ação, procurou-se refletir a respeito de uma prática interventiva, realizada por meio de um projeto de extensão aplicado a um grupo de estudantes de medicina, de maneira a contribuir com as discussões acerca das possibilidades de intervenção da psicologia educacional, no âmbito do ensino superior.
O resultado da avaliação aponta que a psicologia educacional pode desenvolver metodologias que possibilitem a circulação da palavra, modifiquem as relações e possibilitem a formação de espaços coletivos que contribuam para ao engajamento dos estudantes e a transformação dos espaços institucionais.
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Endereço para correspondência:
Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan
Universidade Federal do Paraná, setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Departamento de Psicologia
Praça Santos Andrade, 2º andar, sala 216, Centro
Curitiba - PR - Brasil. CEP 80060-000
E-mail: miriamagspan@yahoo.com.br
Submissão: 21.8.2015
Aceitação: 14.9.2016