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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.19 no.1 São Paulo Apr. 2017
https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n1p33-43
ARTIGOS
PSICOLOGIA CLÍNICA
Recriando a vida: o luto das mães e a experiência materna
Recreando la vida: la pérdida de un niño y la experiencia materna
Marcela Lança de AndradeI; Fernanda Kimie Tavares Mishima-GomesII; Valéria BarbieriIII
IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
IIIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
RESUMO
A perda de um filho rompe com o equilíbrio familiar. Para retomar a vida após a perda, as mães precisam expressar seus sentimentos e agir de forma espontânea. Neste estudo, foi investigada a experiência materna de mulheres que perderam seus filhos ainda crianças. Foram utilizados uma entrevista semiestruturada e o Procedimento de Desenhos de Famílias com Estórias (DF-E). A análise dos dados foi feita de acordo com o método da livre inspeção do material clínico-qualitativo. As mães demonstraram dificuldades na expressão de seus sentimentos, o que agravou a vivência da perda e a elaboração do luto, tornando difícil o exercício da maternagem com os filhos sobreviventes. O apoio do ambiente mostrou-se essencial para que as mães possam elaborar os sentimentos derivados do luto e assim, acreditar na sua capacidade de agir de forma espontânea para auxiliar e cuidar dos seus filhos, ressignificando a vida após a perda.
Palavras-chave: luto; família; psicanálise; maternidade; crianças.
RESUMEN
La pérdida de un hijo rompe el equilibrio familiar. Para reanudar la vida después de la pérdida, las madres necesitan expresar sus sentimientos y ser espontáneas. Este estudio investigó la experiencia materna de mujeres que perdieran sus hijos cuando pequeños. Para esta investigación, se ha utilizado una entrevista semiestructurada y el Procedimiento de Dibujos de Familias con Historias. El análisis de datos se ha realizado acuerdo con el método de libre inspección del material clínico cualitativo. Las madres han demostrado dificultades en la expresión de sus sentimientos, lo que perjudicó la experiencia de la pérdida y de la elaboración del duelo, lo que dificulta el ejercicio de la maternidad con los niños sobrevivientes. El apoyo del ambiente fue esencial para que las madres pudieran elaborar los sentimientos derivados del duelo, y agir espontáneamente para auxiliar y cuidar de sus hijos, dando un nuevo significado a la vida después de la pérdida.
Palabras clave: duelo; familia; psicoanálisis; maternidad; niños.
Introdução
Vivenciar a perda de um ente querido pode significar o enfrentamento de muitas dificuldades. O conjunto de reações diante de uma perda e a tentativa de reconstruir e organizar a vida são parte do trabalho de luto (Mazorra, 2009). Aceitar a realidade da morte, experimentar a dor por completo, procurar se ajustar à nova vida, integrar aspectos do ente querido falecido em sua própria identidade e encontrar significado na perda para iniciar novas relações são tarefas que podem ajudar o enlutado a reconciliar-se com a vida após a perda (Cohen, Mannarino, & Knudsen, 2004). Sendo o luto o resultado de reações individuais, ele ocorrerá sempre de forma diferente de pessoa para pessoa. A dor poderá reaparecer ao surgirem lembranças da pessoa que se foi, dependendo do relacionamento que havia entre o enlutado e o falecido (Webb, 2011).
No caso da perda de um filho, é necessário que os pais possam construir uma nova realidade sem a criança, desconstruindo todas as expectativas em relação a seu desenvolvimento e crescimento. O luto parental é complexo, não linear e contínuo, pois a perda rompe com o equilíbrio familiar e compromete a qualidade do ambiente (Carter & McGoldrick, 2001).
Muitas consequências negativas podem ser geradas na vida dos pais, em seu trabalho, no relacionamento conjugal e social. Eles precisam se sentir apoiados e seguros para não compreender a perda como um fracasso em sua função (Bittencourt, Quintana, & Velho, 2011).
A família exerce importante influência na vivência do processo de luto e em sua compreensão. Seu apoio é essencial para os pais, bem como a existência de programas que ofereçam auxílio profissional para que eles possam se sentir amparados e compreendidos. Os enlutados devem ser encorajados a comunicar os próprios sentimentos (Parkes et al., 2011). A confiança no ambiente permite que eles tenham condições de agir de forma criativa e espontânea, conseguindo vivenciar o luto e dar continuidade ao seu desenvolvimento emocional (Winnicott, 2012).
Para Winnicott (2012), o desenvolvimento emocional ocorre a partir da interação contínua e criativa do indivíduo com o outro. Todo indivíduo possui uma tendência inata ao amadurecimento, que, junto com a presença de um ambiente suficientemente bom, proporciona a conquista da autonomia e da independência. Winnicott (2012) explorou as relações da criança com sua família, especialmente com sua mãe (o primeiro ambiente do bebê). A mãe pode ser capaz de suprir as necessidades do filho, oferecer-lhe suporte físico e emocional (holding) e apresentar o mundo gradativamente, de forma que ele possa suportar conhecer esse mundo, sem prejuízo ao seu desenvolvimento emocional. Por meio desse cuidado (inicialmente oferecido pela mãe, depois estendido a outras pessoas), a criança é capaz de amadurecer, expressando seu potencial criativo.
A criatividade é essencial na elaboração das vivências da perda, pois, por meio dela, a realidade pode coexistir e ser suportada, sem prejuízos ao desenvolvimento emocional. Dessa forma, além do apoio familiar e social, para elaborar o luto é necessário que o enlutado possa utilizar da própria capacidade criativa para reparar a perda sofrida. O uso da criatividade possibilita que o indivíduo possa ressignificar a perda e elaborar seus sentimentos, para que a dor não comprometa a sua capacidade de dar continuidade à vida.
Nesse sentido, a presença de um ambiente suficientemente bom permite ao enlutado a continuação do vir a ser, já que pode se expressar de forma criativa e espontânea. O trabalho do luto acontece quando o indivíduo consegue voltar a ser criativo, mesmo na dor da perda, e sentir que a vida vale a pena (Barone, 2004).
Diante dos apontamentos realizados pela literatura, este estudo objetivou investigar a experiência materna de mulheres que perderam seus filhos enquanto estes ainda eram crianças. Pretende-se, dessa maneira, compreender os aspectos relacionados ao luto das mães e à possibilidade de elaboração das perdas e da continuidade da maternagem.
Método
Esse trabalho é parte da Dissertação de Mestrado intitulada Depois do temporal: um estudo psicodinâmico sobre a criança enlutada e seus pais, cujo objetivo foi compreender a vivência da criança que perdeu um irmão, considerando a experiência do luto vivida pelos pais. No presente trabalho, serão apresentados os resultados dos encontros com as mães.
Participantes
Três mães com idade de 38 (Helena), 39 (Rosário) e 41 anos (Regina), que tinham perdido um filho criança de alguma doença crônica, e que possuíam outro filho criança vivo. Todas as participantes tiveram conhecimento da pesquisa após a busca por atendimento psicológico para um dos seus filhos sobreviventes.
Instrumentos
Entrevista semiestruturada e o Procedimento de Desenhos de Famílias com Estórias (DF-E).
Procedimentos
Foi feita uma entrevista psicológica com a pergunta norteadora "Fale-me da sua família" e "Conte-me um dia típico da família", em que as participantes relataram o que desejaram livremente. Depois, realizou-se o DF-E, em que a participante fazia quatro desenhos com os temas: "Desenhe uma família qualquer", "Desenhe uma família que gostaria de ter", "Desenhe uma família em que alguém não está bem" e "Desenhe a sua família", finalizando-os com uma história sobre a produção e dando um título a ela. Todos os encontros foram individuais.
A análise dos dados foi feita de acordo com o método da livre inspeção do material clínico-qualitativo (Trinca, 1984), considerando o referencial teórico psicanalítico. Na entrevista com as mães, houve especial atenção às questões relacionadas ao luto, aos sentimentos, às angústias e aos desejos gerados na experiência de perda e à tentativa de reconstrução familiar, especialmente no que tange ao relacionamento da mãe com o filho vivo. Quanto aos desenhos, foram feitas análises interpretativas de cada produção.
Resultados
Caso 1 - Regina
Regina possui três filhos vivos: a mais velha, Jane, de 22 anos, do primeiro casamento, que atualmente mora com a avó materna, e os outros dois são do casamento atual (Julia, de 14 anos, e Rodrigo, de 12 anos), cujo marido estava internado para tratamento de dependência química. Ela buscou por atendimento psicológico para o filho Rodrigo, por sugestão da escola, que alegou dificuldades de aprendizagem.
Em seu segundo casamento, Regina perdeu dois filhos, quando a filha mais velha estava com dois anos de idade: uma menina, que nasceu prematura e faleceu após contrair uma infecção hospitalar, e um menino que faleceu aos seis meses de idade, vítima de meningite. Regina não disse os nomes dos filhos falecidos e se referia a eles como "a menininha" e "o menininho". Ao relatar sua história de vida, o fez de forma muito breve, com falas curtas e diretas, dizendo: "A minha vida é normal... típico da família brasileira". Relatou que sempre tivera o desejo de ser mãe, que gostaria de ter mais filhos, mas teve receio de concretizar esse desejo após o falecimento dos bebês.
Em seus desenhos, demonstrou necessidade de manter a família unida, sem diferenciação (os membros da família são desenhados como parte de um só bloco). As dificuldades são sentidas como possíveis desintegradoras do núcleo familiar, por isso é necessário investir nessa união (na história, ela alega que a família faz um esforço para estar junto, apesar das dificuldades). Entretanto, essa tarefa demanda muito de sua parte, aparecendo consequentemente, a necessidade de ser cuidada e amparada, em especial pelas figuras da mãe e da filha (as quais recebem destaque em seus desenhos). Ao desenhar a própria família, ela preenche toda a folha de papel e se mostra perdida quanto ao número de pessoas que deve desenhar. Por fim, desenha ela própria, o marido, a mãe e todos os filhos (vivos), incluindo mais duas pessoas que "não sabe bem quem são".
Caso 2 - Rosário
Rosário possui quatro filhos vivos e três que faleceram. Em seu primeiro casamento, o primogênito, Lucas, faleceu com oito meses de gestação, logo após nascer, por uma parada cardíaca. Ela teve, então, mais três filhos dessa união: Sílvio (19 anos), Leandro (17 anos) e Ana, que faleceu aos 14 anos de idade após adoecer em decorrência de um câncer. Depois, de seu segundo casamento, Rosário teve mais duas gestações: Edgar (14 anos) e Leonardo (11 anos); a gravidez desse último seria de gêmeos, mas um deles faleceu antes de nascer, tendo ela descoberto sua morte no momento do parto. Atualmente, Rosário está no terceiro relacionamento, com quem não possui filhos.
Rosário fez um longo relato sobre a morte de Ana: como a menina ficou doente por alguns meses, a família sofreu muitas mudanças em seu cotidiano, "uma barra muito grande que precisamos passar". Como consequência desse fato, ela relatou o quanto as crianças sentiam a sua falta, pois tiveram que se instalar na casa da avó materna enquanto a mãe cuidava de Ana. Após a morte de Ana, os dois filhos mais velhos continuaram a morar na casa da avó e se distanciaram muito da família, demonstrando dificuldade em permanecer na casa da mãe, como disse Rosário: "Você percebe que eles... se trancaram".
Os filhos mais novos também apresentaram dificuldades após a morte da irmã. Edgar foi considerado um possível doador de medula para a irmã, mas Ana faleceu antes da cirurgia, o que fez com que ele se sentisse culpado e deprimido, alegando ver a irmã em seu quarto e na escola. Leonardo foi diagnosticado como hiperativo, recusava-se a ir à escola, apresentava dificuldades de aprendizagem e episódios de desmaios frequentes sem causa diagnosticada. Como consequência da recusa a ir à escola, ele iniciou atendimento psicológico por ordem do conselho tutelar. Rosário ressaltou que esses dois filhos faziam questão de se lembrar da irmã e insistiam que a mãe mantivesse dentro de casa objetos que pertenceram a ela, bem como fizessem visitas regulares ao cemitério, para levar flores e cuidar do túmulo de Ana. Ela alegou que essa era a forma de os filhos "adorarem a irmã" e que não poderia privá-los desses desejos, pois eles sofreriam com a interrupção dos rituais.
Durante a produção dos desenhos, Rosário incluiu pessoas da família de origem (como seus pais e irmão). Há sinais de dificuldade no relacionamento com a figura materna (a mãe é a única desenhada com uma boca triste). Suas histórias são confusas e de difícil compreensão, especialmente quando quer explicar quem é cada filho (eles não são desenhados com nenhuma diferenciação entre si). O desenho da "família que não está bem" se confunde com o número de filhos que deve desenhar, diz que falta um deles, o mais velho, que está preso, e, por isso, a família precisa se organizar para "levar coisas pra ele" (sic). Ela relatou a sensação de descontinuidade na família quando alguém está distante (por morte ou prisão). Mobilizada por essa reflexão, em seu último desenho, Rosário desenha seus filhos vivos e finaliza com um desenho de Ana. Perceber que a ausência da filha pode ser um fator importante de desintegração da união familiar faz com que ela fique paralisada diante de uma situação que é "muito difícil", sem conseguir elaborar uma história.
Caso 3 - Helena
Helena teve dois filhos do seu primeiro casamento: Paula (20 anos), que mora sozinha na cidade natal da mãe, e Davi, que faleceu aos 14 anos de idade de forma súbita, após apresentar sintomas comuns de gripe. Um ano após o falecimento dele, Helena teve Isabela (8 anos), fruto do seu segundo casamento. Na ocasião da morte do filho, Helena havia saído para passear com o atual marido e, quando retornou, precisou levar o filho rapidamente ao hospital: "Aí levou o falecimento dele... pra mim, acabou tudo, sabe? Não tinha vontade de fazer nada". Davi faleceu sem que fosse possível verificar o motivo de sua morte.
Helena ficou muito deprimida com a morte do filho, mas recebeu ajuda de outras pessoas, o que fez com que se sentisse melhor. Assim, após um mês de intenso sofrimento, ela retomou suas atividades, apoiando-se no trabalho, nos amigos e em um cachorrinho, que ganhou do marido. Por meio do relacionamento com esse cachorro, Helena sentiu-se amparada em sua perda. Ao precisar mudar de cidade, ela deixou esse animal aos cuidados da filha Paula, porém, alguns meses depois, ele faleceu, o que a deixou culpada, acreditando que a morte ocorreu em razão de o cachorro se sentir abandonado por ela.
Após o falecimento de Davi, a filha Paula passou a se autoagredir, alegando escutar vozes. Esses sintomas melhoraram com o tempo, mas apareceram outros, como sentimentos de revolta e comportamentos rebeldes, especialmente de oposição à mãe, intensificados com o nascimento de Isabela. Helena não procurou ajuda profissional para essa filha e, de acordo com seu relato, esses comportamentos opositores reduziram com o tempo. Para Isabela, Helena buscou atendimento psicológico, com as queixas de que a menina sentia taquicardia, ânsias de vômito, cãibras na barriga, medo, dificuldade para dormir e pensamentos recorrentes sobre morte, acompanhados de "vozes" em sua cabeça.
Durante a aplicação dos desenhos, Helena incluiu as figuras que perdeu (o filho Davi e o cachorro), colocando sua filha Paula mais distante do restante da família. A figura de Isabela é a única desenhada com os pés próximos ao chão (possivelmente representando o fato de que, por meio dos seus sintomas, ela demonstra que algo não está bem). Além disso, as figuras de Davi e de Isabela são as únicas que parecem estar com os olhos abertos, como se representassem o contato com o mundo exterior. No segundo desenho ("família que gostaria de ter"), Helena inseriu a figura do próprio pai (representando a função de cuidado e proteção) e de Davi. Esse desenho sinaliza a perda das figuras masculinas e consequentemente a perda dos limites, de proteção e cuidado. Por fim, ao realizar o desenho "a sua família", Helena não fez o filho Davi (como se retomasse a compreensão de que a ausência do filho é irreparável) e acrescentou: "eu acho que é a família de verdade".
Discussão
O processo de luto é compreendido como uma experiência subjetiva, sendo difícil estabelecer um período de finalização, pois alguns sentimentos e aspectos da perda sempre acompanharão o enlutado (Hangman, 2001). Considera-se que o luto é realizado quando o pesar deixa de ser frequente e intenso, derivando em uma espécie de reconciliação com a vida após a perda (Franco, 2002). Entretanto, conseguir ressignificar a vida não representa esquecer o ente querido ou, necessariamente, finalizar o luto (Rangel, 2008).
Segundo Stedeford (1986), quando há dificuldades no processo de luto, o enlutado pode conformar-se com a perda sem, no entanto, elaborar seus sentimentos. Defesas como a negação, o distanciamento afetivo e a banalização dos acontecimentos seriam uma maneira de garantir que a vida possa continuar apesar do sofrimento.
As mães deste estudo demonstravam envolvimento afetivo especialmente em conflitos que não estavam diretamente relacionados à perda de seus filhos; é como se essas situações as ocupassem e fizessem com que elas se distanciassem um pouco da dor da perda. Constatou-se a tentativa de banalizar os problemas, fazendo com que eles fossem sentidos como menos dolorosos e causadores de ansiedade, como no relato de Regina, que alegou que sua família era "típica da família brasileira" (sic). A postura dessas mães foi de passividade e de pouco envolvimento afetivo, defendendo-se de uma possível desintegração que as impossibilitariam de cuidar da família. Entre outros sentimentos envolvidos na perda, destacou-se uma profunda tristeza, a sensação de paralisação e a culpa. Regina, Rosário e Helena demonstraram sinais de que se sentiam responsáveis pela morte de seus filhos, seja por sentirem que transmitiram algo nocivo a eles, seja por acreditarem que não puderam oferecer holding suficiente, cuidando de sua doença ou estando presentes quando necessitaram.
As mães utilizaram da racionalização como forma de defesa, explicando os acontecimentos que as preocupavam, atribuindo motivos concretos aos sentimentos que expressaram (relacionados principalmente a sua rotina, trabalho ou convívio familiar), evitando relacioná-los às perdas dos filhos e às inseguranças surgidas a partir dessa experiência. Na dificuldade em expressar-se e na falta de confiança no ambiente, a mente assume o controle, assim, em uma situação de desorganização, o indivíduo busca pela ajuda do funcionamento mental para conter-se (Winnicott, 1958; 2012).
Para evitar os sentimentos da perda e as recordações advindas dela, as mães também fizeram uso da projeção e do deslocamento, especialmente dos sentimentos ligados ao ódio e à tristeza. Helena parece ter deslocado os sentimentos e as lembranças do luto por Davi para a perda do seu cachorro. Rosário projetou nos filhos suas dificuldades com o luto e as crianças se responsabilizaram por representar os sentimentos maternos. Todas essas defesas se fizeram necessárias, pois, ao perderem seus filhos, os pais sentem a confiança na própria capacidade criativa abalada e têm dificuldade em trabalhar os próprios sentimentos (Rangel, 2008).
Schoen, Burgoyne e Schoen (2004) descreveram a comunicação como uma das formas de ajuda ao processo de elaboração do luto, para relembrar o falecido e expressar-se. Helena e Regina apresentaram dificuldade em falar sobre os filhos falecidos, pela ausência de um espaço e um lugar ocupado por eles, como se fosse preciso não se lembrar da morte para não a sentir. Regina não se referiu aos filhos por seus nomes e demonstrou o desejo de distanciar-se dos sentimentos da perda deles. Já Helena discorreu brevemente sobre a história do falecimento do filho, voltando-se mais para sua vida atual, a perda do cachorro e as recordações sobre as reações de sua filha Paula após o falecimento do irmão. Rosário foi a única que falou demoradamente sobre a filha falecida, apresentando, no entanto, dificuldades em relatar a morte de seus outros filhos. Para Rangel (2008), a lembrança do filho falecido continua para os pais sem que isso represente uma patologia, entretanto, a rigidez dessas lembranças pode representar um congelamento patológico. Miller (2002) afirma que esse congelamento pode prejudicar a elaboração dos sentimentos do luto. Nesse sentido, Rosário demonstrou certa rigidez com as recordações de Ana, ao discorrer sobre a necessidade de que toda família sempre se lembre dela, por meio do cuidado de seus objetos e dos rituais. Para ela, essas ações representam seu amor pela filha e a certeza de que Ana nunca será esquecida.
Manter a memória dos filhos falecidos por meio das lembranças é um comportamento comum aos pais enlutados (Rangel, 2008). Entretanto, para que a elaboração do luto ocorra, as mães devem ser capazes de interiorizar o objeto perdido, para que as recordações do filho aconteçam sem prejuízo às mudanças necessárias para continuar a vida. Essa situação não parece ser possível para Rosário, pois a filha precisa existir concretamente (pelos objetos e rituais) para também existir em seu mundo psíquico; deixar de ir ao cemitério significa deixar a filha esquecida.
Deparar-se com a realidade gerada na perda de um filho faz com que essas mães se sintam debilitadas diante da dor, além do receio de lidar com tudo aquilo que possa representar um fim. Nesse sentido, as mães podem apresentar dificuldade em oferecer holding e cuidar dos filhos sobreviventes (Alam, Barrera, D'Agostino, Nicholas, & Schneiderman, 2012). Para as mães deste estudo, o relacionamento com os filhos foi dificultado após a vivência da perda, diante da dúvida materna sobre a própria capacidade de exercer sua função.
Diante desse intenso sofrimento, o apoio e o cuidado da família é essencial para que essas mães possam se restabelecer e exercer a maternagem (Heath & Cole, 2011). O luto pode estar relacionado à forma como as famílias de origem das mães viveram seus lutos e como as auxiliaram nas primeiras perdas, desde o início de suas vidas (Pincus, 1989). Assim, as participantes relataram a história de suas famílias de origem, demonstrando que o relacionamento entre elas e seus pais influenciou e se assemelha ao relacionamento que elas têm com seus filhos. Ao serem questionadas sobre suas famílias, elas relataram a infância e as lembranças de como foram criadas (disseram ter morado com os avôs, ter rivalidade entre irmãos e outras questões que dificultavam a oferta de holding por parte de seus pais), destacando-se a importância do ambiente familiar no desenvolvimento emocional (Winnicott, 1958; 2012). Tratando-se da perda de um ente querido, essa importância é ainda mais evidente, pois a elaboração dos sentimentos do luto só pode ser bem-sucedida se o enlutado tiver apoio durante todo o tempo que necessitar.
A morte de um filho abala a família constituída, que necessita de acolhimento, geralmente buscados na família de origem (Parkes et al., 2011). As participantes demonstraram sentir não possuir esse apoio, evidenciando a necessidade de serem cuidadas e protegidas, para que possam sobreviver às condições difíceis da realidade da perda.
A percepção de que ainda necessitam do cuidado da família coloca essas mães em uma situação de fragilidade, dificultando o exercício da maternagem. Assim, elas demonstraram necessidade de manter suas famílias unidas, percebendo essa união como uma proteção às dificuldades. Entretanto, para manter a união, os sentimentos negativos, que poderiam causar desestabilização da estrutura familiar, precisam ser contornados.
Dessa forma, para auxiliar no desenvolvimento dos filhos, as mães concluíram que precisavam se mostrar fortes, evitando e negando os próprios sentimentos. Porém, esse esforço as faz sentir sobrecarregadas e cansadas com os próprios recursos limitados para voltar-se para si. Nesse contexto, o relacionamento com o filho, apesar de apresentar muita proximidade, torna-se conflituoso, pois, a fim de evitar sentir impotência diante das situações que possam comprovar a (in)eficácia da sua função na vida do filho, as mães acabam por distanciar-se afetivamente deles (Alam et al., 2012).
As participantes demonstraram preocupação em reafirmar seu esforço em prol de seu papel materno. Buscaram sentir-se bem-sucedidas como mães, para acreditarem em sua competência como cuidadoras, que parece ter sido questionada pela morte de seus filhos, inconscientemente ou não, ao sentirem que não foram capazes de exercer sua função de protegê-los. Rosário, por exemplo, relatou as dificuldades pelas quais passou durante o período em que sua filha ficou internada no hospital, enfatizando o seu esforço para estar com ela, mesmo que isso significasse distanciar-se dos seus outros filhos. Além disso, ela evidenciou suas atitudes como as responsáveis pela manutenção da saúde e bem-estar familiar, ao falar sobre os seus filhos vivos: "Tenho que ser forte senão o mundo desaba para eles", demonstrando, assim, que o luto não pode ser vivido plenamente, pois é preciso estar inteira e disposta para oferecer o que seus filhos precisam.
Confrontar os sentimentos derivados da perda dos seus filhos e criar soluções satisfatórias para a dor e todos os outros sentimentos que necessitam de elaboração é um processo difícil. Alguns pais vivenciam a perda constantemente, mesmo com o passar do tempo e com os sentimentos mais intensos atenuados, pois a conexão com o filho nunca será desfeita (Rangel, 2008). Assim, percebeu-se nas mães que a vivência da perda é constante, ainda que não assumida. A elaboração do luto, portanto, só é possível a partir da compreensão da realidade e da vivência dos sentimentos despertados na perda, como possibilidade de uma atuação espontânea no mundo. Viver os sentimentos da perda, respeitando o próprio ritmo, possibilita recriar a realidade por meio do entendimento de que o filho falecido estará sempre, de alguma maneira, conectado aos seus pais.
Para que isso seja possível, entretanto, torna-se essencial que o enlutado possa fazer uso de sua capacidade de criar (Barone, 2004). As mães participantes demonstraram prejuízo em relação a essa capacidade, com dificuldade em fazer uso da própria criatividade, tornando o processo de luto mais duradouro e complicado e dificultando a retomada da vida após a perda. Os afetos precisam ser contidos e a interação entre mundo interno e externo ocorre de maneira pouco eficaz; o objeto concreto ainda é muito importante, não há simbolização da perda. Dessa maneira, a vivência da função materna torna-se difícil para uma mãe que, ao não conseguir se expressar de forma espontânea, dificulta a elaboração do luto para si e para os filhos, por não acolher a espontaneidade deles (Musachio & Daudt, 2003).
Sem a possibilidade de recriar a realidade por meio do impulso criativo e espontâneo, não é possível a vivência de um luto que permita uma relação saudável com a realidade. Mais uma vez, a experiência da maternagem das mães fica prejudicada diante da dificuldade em elaborar o luto de seus filhos, advindo da dificuldade de elaboração do próprio luto.
Conclusão
A morte de um filho é uma dura situação que interfere em diversos aspectos na vida das mães. Neste estudo, as mães procuraram negar as questões relacionadas ao luto, pois tiveram receio de se deparar com a morte, com a própria fragilidade e com novas possibilidades de perda. O conhecimento total da realidade pode fazer com que elas não se reergam. Apropriar-se afetivamente das situações significa deprimir, por isso, faz-se necessário se distanciar dos sentimentos difíceis para continuar a viver, mesmo que de maneira pouco espontânea. A possibilidade de elaboração do luto fica, então, prejudicada.
Sobreviver torna-se necessário e o cuidado com os outros filhos ocorre com muito esforço. A vivência da maternagem se apresenta dificultada diante da impossibilidade de viver seus sentimentos plenamente e agir de forma espontânea. Para essas mães, a ajuda e o apoio de suas famílias, amigos e de profissionais de saúde, são essenciais para que elas, ao se sentirem encontradas pelo outro, possam adquirir confiança de serem capazes de oferecer para seus filhos o cuidado de que necessitam, enfrentando as dificuldades e transformando a mais dolorosa das perdas.
É importante ressaltar que, sendo o luto uma experiência subjetiva, as famílias enlutadas precisam ser acolhidas e cuidadas com respeito e atenção às suas particularidades. Quanto à experiência materna, acrescentamos a necessidade de que os filhos também sejam ouvidos para que a reflexão dessa relação, que é afinal composta por pelo menos duas pessoas, também possa ser considerada. O luto nas mães é um tema complexo, que precisa ser discutido a fim de aprimorar o apoio oferecido a essa população que se encontra fragilizada diante de uma das mais difíceis perdas.
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Endereço para correspondência:
Marcela Lança de Andrade
Rua Batatais, 654, Casa 10, Parque do Bandeirante
CEP: 14090-425. Ribeirão Preto - SP
E-mail: marcela.andrade@usp.br; marcela.ldandrade@gmail.com
Submissão: 28.5.2015
Aceitação: 18.12.2016