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Psicologia: teoria e prática
Print version ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.26 no.2 São Paulo 2024 Epub Dec 02, 2024
https://doi.org/10.5935/1980-6906/eptpcp15111.pt
Psicologia Clínica
Mapeamento de Intervenções para redução do estigma da obesidade: avaliação de necessidades
O estigma da obesidade é definido como a desvalorização moral de pessoas com excesso de peso e acarreta prejuízos à saúde. O objetivo do artigo foi apresentar as primeiras etapas do Mapeamento de Intervenções, que consistem na criação do modelo lógico do problema e da mudança, para subsidiar o planejamento de intervenções para reduzir o estigma da obesidade em profissionais de saúde. Realizaram-se uma revisão narrativa da literatura e análise temática de entrevistas com quatro gestores de saúde do Distrito Federal e duas especialistas no tema. A revisão explorou o objeto nos contextos macro, meso e microssociais. Os gestores enfatizaram aspectos relacionados à viabilidade de implementação de intervenções, e as especialistas contribuíram com conteúdos para o projeto. A integração dos dados da literatura com as contribuições dos entrevistados aumenta as chances de que intervenções, desenvolvidas a partir dos resultados deste trabalho, tenham maior eficácia e viabilidade de implementação.
Palavras-chave: estigma social; obesidade; preconceito de peso; mapeamento de intervenções; modelo lógico do problema
Obesity stigma is defined as the social devaluation of people with overweight and damages health. This article presents the first two steps of an Intervention Mapping process, consisting of the creation of a logic model of the problem and a logic model of change to support the planning of interventions to reduce obesity stigma among health professionals. We conducted a narrative literature review and thematic analysis of interviews with four health managers from the Federal District Department of Health and two experts on the topic. The review explored obesity stigma at the macro, meso and micro levels. The managers emphasized aspects related to intervention feasibility and the experts contributed to project content. The integration of research evidence and the contributions of interviewees increases the chances of feasibility and effectiveness of interventions developed based on the results of this study.
Keywords: social stigma; obesity; weight bias; intervention mapping; logic model of the problem
El estigma de la obesidad se define como la devaluación moral de las personas con sobrepeso y provoca daños a la salud. El objetivo del artículo fue presentar los primeros pasos del Mapeo de Intervenciones, que consisten en crear un modelo lógico del problema y el cambio, para apoyar la planificación de intervenciones para reducir este estigma en los profesionales de la salud. Se realizó una revisión narrativa de la literatura y análisis temático de entrevistas a cuatro gestores de salud del Distrito Federal y dos expertos en el tema. La revisión exploró el objeto en contextos macro, meso y microsocial. Los gestores enfatizaron aspectos relacionados con la viabilidad de implementar intervenciones y los expertos aportaron contenido al proyecto. La integración de los datos de la literatura con las contribuciones de los entrevistados aumenta las posibilidades de que las intervenciones sean más efectivas y viables para su implementación.
Palabras-clave: estigma social; obesidad; sesgo de peso; mapeo de intervención; modelo lógico del problema
O estigma da obesidade, também chamado na literatura internacional de gordofobia, pode ser definido como a rejeição e a desvalorização àquelas pessoas que não cumprem as normas sociais vigentes de peso e forma corporal (Tomiyama et al., 2018). Apesar de a literatura evidenciar que a etiologia da obesidade é complexa e multifatorial, envolvendo um conjunto complexo de fatores comportamentais, ambientais, biológicos e sociais, a ideia errônea de que a obesidade é uma escolha individual facilmente revertida com prática de dieta e atividade física ocasiona maior culpabilização e estigmatização dos indivíduos com excesso de peso (Rubino et al., 2020).
Esse preconceito tem um impacto negativo na saúde de indivíduos com obesidade, uma vez que o estresse da estigmatização pode suscitar respostas fisiológicas, psicológicas e comportamentais que prejudicam a saúde, como a redução no controle inibitório da fome, aumentando a ingestão calórica, além de favorecer mecanismos de enfrentamento desadaptativos, como isolamento, menor busca de cuidados de saúde, redução da atividade física e comportamentos alimentares desordenados (Tomiyama et al., 2018; Talumaa et al., 2022).
O estigma da obesidade está relacionado com o aumento de diversas condições crônicas, além de, ironicamente, aumentar o risco de obesidade por meio de múltiplas vias obesogênicas. Como resultado, o preconceito social pode ser mais prejudicial para saúde que a obesidade em si, além de causar prejuízos à dignidade, aos direitos humanos e à qualidade de vida dos indivíduos, o que justifica o desenvolvimento de ações para o seu combate (Puhl & Heuer, 2010; Tomiyama et al., 2018).
Apesar do enquadramento da obesidade em um conceito biomédico e das evidências acerca das consequências do estigma para a saúde de indivíduos com obesidade, ainda existe alta prevalência de viés relacionado ao peso entre os próprios profissionais de saúde. Estudos apontam que as percepções e experiências de preconceito relacionado ao peso influenciam, negativamente, o envolvimento e a utilização dos serviços de saúde por indivíduos com obesidade, devido a comportamentos dos profissionais como tratamento desrespeitoso, atribuição de todos os problemas de saúde ao excesso de peso, suposições sobre o ganho de peso, baixa confiança e má comunicação, o que leva a uma assistência deficitária e um afastamento dos pacientes com obesidade do sistema de saúde (Alberga et al., 2019).
Na tentativa de reduzir o preconceito relacionado ao peso entre profissionais de saúde e em outros diferentes contextos, um grupo de especialistas internacionais e representantes de organizações científicas publicaram um consenso, baseado em evidências científicas recentes, de forma a atualizar os profissionais de saúde, formuladores de políticas e o público sobre diversas questões envolvidas no estigma e na etiologia da obesidade. Esse documento recomendou maior esforço na promoção de iniciativas educacionais, regulamentares e legais destinadas a prevenir o estigma e a discriminação relacionada ao peso (Rubino et al., 2020).
Apesar do crescimento de estudos relativos ao estigma da obesidade nos últimos anos, uma revisão sistemática da literatura realizada por Duarte e Queiroz (2022) que objetivou conhecer as principais metodologias e eficácia das estratégias propostas em intervenções para redução do estigma relacionado ao peso apontou lacunas nesse campo de estudo como a escassez de trabalhos longitudinais, bem como o baixo número de sessões de intervenção e poucos estudos com follow-up. As autoras sugerem que sejam desenvolvidas intervenções que abarquem as múltiplas causas relacionadas ao estigma, que envolvam o púbico-alvo de forma mais ativa e com diversificação dos métodos para avaliação de resultados.
Nesse aspecto, Murta e Santos (2015) ressaltam que, dada a complexidade envolvida no desenvolvimento de uma intervenção preventiva, é importante que tal iniciativa seja realizada de forma sistemática para que os resultados tenham maior potencial de eficácia e sustentabilidade, além de aumentar as chances de ter uma implementação viável, que seja sensível ao contexto em que será realizada, além de atrativa para seu público-alvo.
Para tanto, a literatura proporciona alguns modelos de desenvolvimento de intervenções preventivas em saúde. Um deles é o Mapeamento de Intervenções (MI), do inglês Intervention Mapping (Bartholomew Eldredge et al., 2016), que é conhecido como protocolo de planejamento de intervenções para promoção da saúde, mas que pode ser aplicado a qualquer situação em que a mudança de comportamento seja desejável. Esse protocolo possibilita mapear o caminho do desenvolvimento da intervenção, desde o reconhecimento de um problema até a identificação e teste de soluções potenciais. Tem como objetivo fornecer aos planejadores de programas de promoção da saúde uma estrutura para a tomada de decisões eficaz em cada etapa do planejamento, implementação e avaliação de intervenções (Kok et al., 2017).
O MI descreve o processo de planejamento de uma intervenção em seis etapas: (1) Análise do problema a partir de uma avaliação de necessidades e criação do modelo lógico do problema; (2) Definição das matrizes de objetivos de mudança com base nos determinantes do comportamento e das condições ambientais decorrentes da criação do modelo lógico da mudança; (3) Desenho do programa selecionando métodos de intervenção baseados em teoria e estratégias práticas; (4) Produção do programa, com a tradução dos métodos e estratégias em um trabalho organizado; (5) Realização do plano para adoção, implementação e sustentabilidade do programa e (6) Avaliação do programa.
Considerando a problemática da estigmatização da obesidade e a necessidade de intervenções empiricamente embasadas para prevenir e combater este problema, o presente artigo tem o objetivo de apresentar o desenvolvimento das duas primeiras etapas do protocolo MI, que consiste na avaliação de necessidades para criação do modelo lógico do problema e do modelo lógico da mudança, como passos iniciais do planejamento de intervenção que visa a reduzir o preconceito relacionado à obesidade em profissionais de saúde.
Cabe ressaltar que dada a dimensão do problema, uma única intervenção dificilmente conseguirá abarcar todos os públicos necessários. Assim, o presente trabalho tem o intuito de contribuir com a literatura acerca do tema ao explorar todas as dimensões relacionadas ao estigma da obesidade em seus contextos macro, meso e microssociais, apontando os diferentes públicos-alvo potenciais para pesquisas futuras e focando nos aspectos operacionais de um projeto de intervenção a ser desenvolvido para redução do estigma da obesidade em profissionais de saúde.
Método
Delineamento do estudo
O presente estudo realizou as Etapas 1 e 2 do protocolo MI por meio de uma revisão narrativa da literatura e realização de entrevistas semiestruturadas com gestores da área de saúde e especialistas sobre o tema.
Local do estudo
As entrevistas aconteceram entre agosto e novembro de 2021, com gestores da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), em Brasília, devido ao planejamento de um estudo-piloto da intervenção voltado para profissionais de saúde que atuem com obesidade no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) no Distrito Federal (DF). Com os gestores, as entrevistas foram presenciais, nas dependências da SES-DF, e tiveram duração aproximada de 60 minutos cada. As entrevistas com especialistas na temática de estigma e obesidade realizaram-se por meio de plataformas virtuais, uma vez que as participantes não residem no local do estudo, e tiveram duração aproximada de 45 minutos cada.
Participantes
Para entrevista com os gestores adotaram-se os seguintes critérios de inclusão para participação no estudo: (1) ser gestor da SES-DF; (2) ter experiência com implementação de cursos ou programas educacionais; e (3) ter experiência no atendimento de pessoas com obesidade. Para seleção de especialistas no tema para entrevista, os critérios de inclusão foram: (1) ser brasileiro (a), e (2) estar envolvido (a) com pesquisas científicas acerca do tema estigma da obesidade, conforme avaliação na Plataforma Lattes; (3) ter interesse e disponibilidade para participar da pesquisa, após convite realizado por e-mail. Ao final, a avaliação de necessidades aconteceu com quatro gestores da SES-DF, de diferentes especialidades na área de saúde, que estiveram envolvidos com a implementação da linha de cuidado do sobrepeso e obesidade no DF, e duas renomadas nutricionistas especialistas no campo da obesidade e estigma.
Instrumentos
Para realização da entrevista de avaliação de necessidades com os gestores da SES-DF utilizou-se um modelo de entrevista semiestruturada com questões referentes à identificação da necessidade de uma capacitação voltada para o tema, experiência em cursos prévios de capacitação profissional, interesse dos gestores na realização do curso proposto, barreiras e facilitadores para adesão do servidor em um curso de capacitação profissional, estratégias para a divulgação e certificação do curso, identificação do melhor público-alvo dentro da SES-DF para oferecimento do curso, além de espaço para que os gestores expusessem ideias acerca do curso proposto.
As entrevistas com as especialistas de saúde no campo da obesidade e estigma seguiram modelo semiestruturado que explicava às entrevistadas a proposta do projeto e solicitava que realizassem considerações sobre o que deveria ser abordado no curso proposto, como aspectos relacionados ao conteúdo, metodologia e formas de avaliação, bem como abertura de espaço para que discutissem outros aspectos sobre o tema.
Procedimentos
A revisão de literatura teve como intuito identificar os principais determinantes envolvidos no estigma da obesidade em seus contextos macrossociais, mesossociais e microssociais, respectivamente, para compor o modelo lógico do problema (Etapa 1). Para tanto, efetuou-se uma pesquisa bibliográfica, com estudo descritivo, que analisou artigos produzidos sobre a temática “estigma” e “obesidade” nas bases de dados SciELO, LILACS e PubMed, no período de 2010 a 2021.
Concomitantemente à revisão de literatura, foram realizadas as entrevistas, individualmente, com os quatro gestores de políticas públicas relacionadas à saúde e as duas especialistas na temática de estigmatização da obesidade, com o objetivo de aperfeiçoar o delineamento tanto do planejamento quanto de estratégias de execução de uma futura intervenção, que visa a reduzir o viés relacionado ao peso em profissionais de saúde.
Após a conclusão da primeira etapa do protocolo, identificaram-se as matrizes de objetivos de mudança (Etapa 2), que delineiam as mudanças a serem abordadas pela intervenção que será desenvolvida e fornecem a base para a seleção de métodos teóricos e aplicações práticas para as próximas etapas do protocolo. Como produto da segunda etapa, criou-se o modelo lógico da mudança.
Assim, os resultados do presente estudo advêm da integração de uma revisão de literatura que identificou importantes fatores relacionados ao estigma da obesidade, associada à opinião de renomadas especialistas no tema sobre estratégias importantes para solução do problema, e gestores de saúde que emitiram suas sugestões para otimizar a viabilidade e adesão do público-alvo no projeto em planejamento.
Análise dos dados
Os artigos selecionados para revisão narrativa foram categorizados, de acordo com sua temática, nos contextos macro, meso e microssocial para compor o modelo lógico do problema. As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas utilizando-se os seis passos da metodologia de análise temática proposta por Braun e Clarke (2006), que identifica, analisa e relata padrões (temas) no conjunto de dados.
Resultados
Os resultados integram as informações advindas da revisão de literatura e das entrevistas realizadas com especialistas na temática estigma da obesidade e gestores na área de saúde pública.
Revisão narrativa da literatura
Os aspectos determinantes envolvidos no estigma da obesidade abarcam uma complexa interação de fatores presentes nos contextos macrossociais, mesossociais e microssociais. No que diz respeito à conjuntura macrossocial, o estigma relacionado ao peso pertence a uma rede complexa de normas morais e é criado e incorporado na sociedade de forma histórica, cultural e política (Setchell et al., 2017). Esse estigma agrega diversas narrativas que convergem para práticas e discursos como: (1) o contexto social, que envolve a produção de verdades sobre o que é considerado normal e anormal; (2) a mídia, que exerce influência sobre as opiniões do contexto social; (3) o discurso científico e a suposição da controlabilidade do peso corporal; (4) o contexto político que negligencia a influência negativa do estigma nos esforços para lidar com a obesidade; e (5) a ausência de leis que proíbam a discriminação relacionada ao peso.
Em relação ao contexto social, existe um envolvimento de poder no estigma, em que as pessoas (ou instituições) produzem padrões sobre o que é considerado normal e utilizam-se desse discurso para empregar práticas disciplinadoras para aqueles considerados anormais (Setchell et al., 2017). No campo da saúde, tais práticas são evidenciadas a partir da difusão sobre estilos de vida saudáveis, que constrói um imaginário coletivo a partir do que é normal e aceito, ao mesmo tempo que posições são instituídas sobre o que é patológico e culpável (Rojas-Rajs & Soto, 2013).
Tais aspectos trazem à tona o papel que a mídia e os meios de comunicação de massa exercem na criação e reforço dos estereótipos acerca da obesidade. A discriminação social do excesso de peso é promovida de diversas formas pelos meios de comunicação, que centram as mensagens em comportamentos individuais, sem abordar a complexidade envolvida na gênese da obesidade, além de estimularem o consumo de produtos para emagrecimento e definirem um padrão estético corporal (Stanford et al., 2018).
No consenso com recomendações para eliminar o viés relacionado ao peso, Rubino et al. (2020) afirmam que a mídia é uma fonte generalizada de preconceito relacionado ao peso e que o enquadramento impreciso da obesidade por meio de imagens, linguagem e terminologia inadequadas result na atribuição da obesidade inteiramente a uma responsabilidade pessoal, e aumenta o estigma relacionado ao peso. Assim, a suposição generalizada, mas não comprovada, de que o peso corporal é totalmente controlável por escolhas relacionadas ao estilo de vida pode explicar o baixo nível de apoio público à cobertura de intervenções antiobesidade que proponham estratégias que vão além da realização de dietas e incrementos na atividade física, independentemente de sua base de evidências (Puhl & Heuer, 2010; Rubino et al., 2020).
Do ponto de vista científico, Paim e Kovaleskib (2020), ao realizarem uma análise das Diretrizes Brasileiras de Obesidade, evidenciaram que o discurso presente nesse importante documento científico reforça a saúde dos corpos magros de forma inquestionável - associando diretamente a perda de peso com melhor nível de saúde - e reproduz estereótipos sociais ligados ao corpo gordo, contribuindo para o aumento e perpetuação da gordofobia. As conclusões advindas dessas análises são preocupantes, pois as recomendações presentes nas diretrizes de saúde são utilizadas como referência tanto no planejamento das políticas públicas como nas práticas profissionais e serviços de saúde (Paim & Kovaleskib, 2020). Desse modo, o que se observa é que os esforços na área da saúde pública têm negligenciado o fato de que o estigma se situa como barreira no tratamento da obesidade, uma vez que simplificam a etiologia da obesidade ao binômio dieta e atividade física, desconsiderando outros importantes aspectos envolvidos, bem como o impacto negativo que a estigmatização causa na saúde (Paim & Kovaleskib, 2020; Rubino et al., 2020).
No que diz respeito à forma como a obesidade vem sendo abordada na legislação brasileira, Rigo e Santolin (2012) verificaram que a maior parte das leis que versam sobre o tema tendem a avaliar a obesidade como problema individual, sem considerar seus aspectos sociais, conjecturais e histórico-culturais, predominando a preocupação em diagnosticar, recomendar e prescrever tratamentos médicos como estratégia para o seu combate, com escassez de leis que visem à garantia dos direitos sociais e constitucionais dos cidadãos classificados com obesidade.
As questões de ordem mesossocial na estigmatização da obesidade incluem os fatores ambientais e organizacionais que envolvem os contextos escolares, profissionais e de saúde em que o estigma ocorre.
O estigma é documentado no contexto escolar e acadêmico por pesquisas sobre preconceito e/ou bullying sofrido por estudantes com obesidade. Pesquisas na área revelam que, em comparação a alunos de baixo peso corporal, estudantes com sobrepeso ou obesidade são mais propensos a experimentar isolamento social e estão em maior risco de vitimização relacional, verbal, cibernética e física, além de mais susceptíveis ao desenvolvimento de transtornos como ansiedade e depressão (Rubino et al., 2020).
Bandeira e Hutz (2012) afirmam que ações de prevenção contra o bullying escolar devem incluir o conhecimento e sensibilização da comunidade escolar (que envolve funcionários, pais, professores, alunos e dirigentes) acerca desse fenômeno, mediada por uma sensibilização que favoreça a cultura do acolhimento e respeito no convívio com as diferenças. Além disso, é importante que políticas públicas que priorizem a redução e prevenção do bullying nas escolas sejam instituídas, bem como investimento e treinamento de profissionais da área da educação para seu combate.
Outro contexto importante a ser discutido é o preconceito e a discriminação com base no peso em ambientes de trabalho. A literatura aponta que trabalhadores com sobrepeso e obesidade enfrentam, além de atitudes estereotipadas dos empregadores, desvantagens na contratação, nos salários, nas promoções e nas rescisões de empregos por causa de seu peso (Puhl & Heuer, 2010). Como já discutido, também são escassas as leis que garantam isonomia nos direitos sociais e constitucionais de pessoas com obesidade (Rigo & Santolin, 2012).
No que diz respeito à abordagem da obesidade pelos profissionais de saúde, o estigma correlato ao peso tem sido documentado em pesquisas nacionais e internacionais e se mostra presente com alta prevalência entre esse público (Tomiyama et al., 2018). As concepções negativas de diversas categorias profissionais na área da saúde com pessoas com obesidade atrapalham na assistência prestada e afasta esses indivíduos do sistema de saúde, prejudicando ainda mais a saúde física e emocional de tais pacientes (Alberga et al., 2019).
Os fatores microssociais envolvidos na problemática da estigmatização da obesidade dizem respeito às questões individuais (como o estigma individual sentido em relação às pessoas com obesidade e o autoestigma) e como esses sentimentos se manifestam nos relacionamentos interpessoais, pois acabam por mediar as atitudes e os comportamentos quanto às pessoas com obesidade.
Assim como acontece com outros tipos de estigma, o da obesidade pode resultar em indivíduos que internalizam essa maneira prejudicial de pensar sobre si mesmos. O autoestigma relacionado ao peso pode ser definido como um processo em que indivíduos com excesso de peso endossam os estereótipos negativos sobre a gordura e passam a aplicá-los em si mesmos, antecipando a rejeição social e acreditando que possuem menor valor na sociedade. O autoestigma tem vários efeitos adversos físicos, psicológicos e comportamentais. Esses efeitos podem se traduzir em comportamentos alimentares pouco saudáveis, baixa motivação para perder peso, além de redução na autoconfiança e aumento da autoculpa (Lippa & Sanderson, 2013).
Análise das entrevistas com gestores de saúde
Os quatro gestores da SES-DF entrevistados relataram sobre experiências prévias de cursos de formação profissional com os servidores, uma vez que uma intervenção com profissionais de saúde com o intuito de reduzir o estigma da obesidade na assistência prestada aos usuários do SUS pode ser realizada no formato de educação continuada aos profissionais que atuam nessa área.
Os gestores entrevistados se mostraram receptivos à ideia de um curso de formação continuada e aperfeiçoamento com o tema relacionado aos aspectos psicológicos e sociais da obesidade para profissionais de saúde e apresentaram diversas possibilidades relacionadas à execução desse projeto, como mostra a Tabela 1, que apresenta a análise temática das entrevistas realizadas com esses gestores.
Tabela 1 Análise temática das entrevistas com gestores
| Tema principal | Descrição do tema |
|---|---|
| Linhas de Cuidado na SES-DF |
Importância da criação de centros especializados (atenção secundária) como estratégia operacional da linha de cuidado de sobrepeso e obesidade. Relatos sobre a experiência da capacitação profissional realizada em 2016, quando essa linha de cuidado foi criada. |
| Interesse na realização do curso proposto | Criação da linha de cuidado de sobrepeso e obesidade como importante justificativa para realização de novos cursos de capacitação para continuidade do trabalho executado nessa política e a necessidade de manter a formação continuada dos servidores. Importância de uma equipe motivada para um bom funcionamento dos centros especializados. Importância do atendimento acolhedor e respeitoso do paciente com obesidade. |
| Barreiras e facilitadores para adesão do servidor em um curso de formação | Barreiras: sobrecarga de trabalho dos servidores da atenção primária. Facilitadores: sensibilização dos gestores locais em relação à importância da capacitação profissional, para que consigam reservar uma carga horária do servidor para participação na formação continuada; maior adesão a um curso promovido pela SES-DF que a um curso promovido por uma servidora; importância de estabelecer um diálogo com os servidores da atenção primária em como eles desejam que seja o curso e de produzir um bom material para o curso para aumentar a adesão. |
| Divulgação e certificação do curso | Sugestão de divulgação do curso por meio dos gestores das regionais e execução do curso em canais educativos da Secretaria de Saúde que podem promover a certificação aos participantes, além da necessidade de sensibilização dos gestores para auxiliar no recrutamento dos servidores. |
| Interesse do público em cursos de formação continuada | Boa procura nos cursos de formação continuada oferecidos pela Secretaria de Saúde, especialmente se incentivados pela chefia do local de trabalho do servidor. Importância da sensibilização da chefia para ceder uma carga horária de parte da equipe para participação. Importância de realizar o recrutamento de profissionais com perfil de multiplicadores nas unidades. |
| Público-alvo do curso | Importância de trabalhar com servidores da atenção primária, para que o paciente seja bem acolhido desde sua entrada no sistema de saúde. Ênfase em que o curso deve envolver toda a equipe multiprofissional que atende o paciente com obesidade, uma vez que obesidade exige cuidados de diferentes especialidades. Discussão sobre se o curso será oferecido apenas para profissionais de nível superior ou se envolverá também o nível técnico. Sugestão de o curso-piloto ser realizado em centros especializados (atenção secundária). |
| Formato do curso (on-line, presencial ou híbrido) | Ponderada a flexibilidade de realização de um curso on-line, mas com contrapartida de que muitos servidores já estão cansados desse formato devido ao excesso de compromissos virtuais ao longo da pandemia, além da dificuldade de abordar um tema tão complexo em um curso on-line, visto que não se trata de uma questão conteudista, e, nesse sentido, uma metodologia crítico-reflexiva e participativa (menos expositiva) seria mais adequada. Consenso de que o formato híbrido é o mais adequado considerando o objetivo do curso. Importância de um curso com carga horária acima de 20 horas para a certificação do servidor, bem como a oferta em locais em que o servidor possa bater o ponto (eletrônico). Citadas atividades para promover maior engajamento durante o curso, como as atividades de expressão, discussão de casos clínicos, espaço para trocas de experiências e a importância da formação de multiplicadores. |
Análise das entrevistas com especialistas no estudo do estigma da obesidade
As entrevistas com as duas nutricionistas, especialistas de saúde no campo da obesidade e estigma, contribuíram com aspectos relacionados aos conteúdos que a intervenção deve abordar, cuidados necessários ao trabalhar com o tema do estigma da obesidade, bem como formato do curso e outras pontuações importantes de serem investigadas no desenvolvimento da intervenção. Os temas discutidos nessas entrevistas são apresentados na Tabela 2.
Tabela 2 Análise temática das entrevistas com especialistas
| Tema | Descrição da categoria |
|---|---|
| Poder de voz e militância antigordofobia | Importância e desafio de ouvir e incluir a perspectiva de pessoas com obesidade em ações para redução da sua estigmatização. Os profissionais de saúde têm poder de voz, pois a sociedade legitima o poder biomédico, e por isso a importância de que esses profissionais se responsabilizem por incluir pessoas com obesidade na discussão sobre o combate ao estigma relacionado ao peso. |
| Importância de iniciativas para o combate à gordofobia |
Discussão de como os profissionais não se percebem como preconceituosos e quanto a prática profissional diária pode estar equivocada. Importância da conscientização dos profissionais de saúde sobre o estigma e a importância de mudar a abordagem dada à obesidade já na universidade. Necessidade de discutir sobre a questão política envolvida na medicalização da obesidade com estudantes e profissionais. |
| Formas de avaliar o preconceito explícito e implícito relacionado ao peso na intervenção |
Importância de discutir as medidas de avaliação do preconceito e sugestão de uso de escalas que avaliam o preconceito antigordura explícito e implícito, além do cuidado em avaliar a desejabilidade social. |
| Representação social estigmatizada do profissional de nutrição | Discussão da representação social estigmatizada do nutricionista, que é visto como alguém que pune aqueles que não comem alimentos saudáveis, e importância de abordar tal questão no curso. |
| Formato do curso | Sugestão de que uma intervenção no formato híbrido pode ser mais enriquecedora que uma intervenção exclusivamente on-line, pois o encontro presencial favorece a socialização, a discussão de ideias e a troca de opiniões. |
| Promover o encontro de profissionais com o paciente gordo para reduzir a gordofobia | Importância de promover um maior contato do profissional de saúde com pacientes com obesidade para naturalizar o atendimento, para que o contato físico necessário no exame clínico não seja evitado e que o profissional não se sinta tão incomodado com a presença do paciente com obesidade. |
| Questão política da responsabilização do indivíduo e patologização da obesidade |
Importância de atualizar os profissionais sobre os multideterminantes envolvidos na etiologia da obesidade como principal estratégia para redução da culpabilização individual da obesidade e consequente redução do estigma. Importância da discussão sobre fatores sociais e coletivos da etiologia da obesidade, que envolvem o poder aquisitivo, o grau de instrução, a convivência familiar, moradia e cultura. |
| Alinhamento das expectativas do profissional |
Necessidade de alinhar as expectativas do profissional de saúde à adesão do paciente, e discutir outros parâmetros de saúde e de comportamentos que devem ser considerados na avaliação do resultado, que não estão relacionados diretamente com a perda de peso. |
| Cuidado nas prescrições de emagrecimento | Importância do cuidado com as prescrições de emagrecimento que podem influenciar negativamente a saúde do paciente, bem como a atenção ao risco de desenvolvimento de transtornos alimentares advindos dessa prática. |
| Cuidado com o nome dado ao curso para não afastar os profissionais | Sugestão de não colocar o nome do curso relacionado ao preconceito, pois muitos profissionais podem não ter interesse em participar por não se acharem preconceituosos. Sugestão de um título mais genérico para intervenção, como “atualizações sobre a obesidade para a saúde pública”. |
| Fluxo dos conteúdos abordados no curso |
Importância de detalhar os mecanismos das múltiplas causas envolvidas na etiologia da obesidade. Discutir sobre a necessidade de mudança de foco do tratamento da obesidade antes de discutir sobre a problemática da estigmatização, já que os estudos apontam ausência de resultados positivos com dietas restritivas. |
| Discussão sobre critérios diagnósticos da obesidade | Importância de discutir sobre os critérios diagnósticos da obesidade, que ainda são pautados no Índice de Massa Corporal (IMC), e atualizar os profissionais sobre as novas evidências nesse sentido. |
| Conflito nos conceitos associados aos “aspectos psicológicos da obesidade” | Necessidade de esclarecer as diferenças entre aspectos psicológicos que podem ser fatores de risco para obesidade e aspectos psicológicos que são consequências da obesidade. |
| Sugestões de vídeos para serem apresentados no curso | Sugestão de apresentação de vídeos sobre o tema já testados previamente e que trouxeram bons resultados na sensibilização de profissionais. |
| Sugestões de diferentes formas de abordagem do tema no curso |
Sugestão sobre formas de abordar o tema no curso como dinâmicas sensibilizadoras com fotos e associações positivas e negativas e discussão após a dinâmica. |
Modelo lógico do problema
A Figura 1 apresenta, de forma resumida, o modelo lógico do problema, como resultado da integração das entrevistas realizadas com a revisão narrativa da literatura. Ambos investigaram os fatores determinantes envolvidos no estigma da obesidade associado a estratégias necessárias para modificá-los em seus contextos macrossociais, mesossociais e microssociais, respectivamente.
Modelo lógico da mudança
O segundo passo do MI constitui a criação do modelo lógico da mudança, que, a partir da análise dos determinantes do problema, descreve os objetivos de mudança a serem abordados pela intervenção e os desfechos esperados para o comportamento e para o ambiente. O modelo lógico da mudança estruturado após exame minucioso dos componentes da Figura 1 é apresentado na Tabela 3.
Tabela 3 Modelo lógico da mudança para intervenções para redução do estigma da obesidade
| Contexto mesossocial | |||
|---|---|---|---|
| Determinante do problema | Crença, percepção e comportamentos a serem modificados | Objetivo de mudança | Desfecho esperado para o comportamento e para o ambiente |
| Narrativa pública da obesidade é inconsistente com o conhecimento científico atual: o emagrecimento é prescrito por profissionais de saúde e pela mídia e sociedade, irrestritamente. | Crença de que o emagrecimento em si é a solução para todos os problemas de saúde apresentados por pessoas com obesidade e de que todos os corpos gordos são doentes. Crença de que o emagrecimento melhora a saúde de todos os corpos. Comportamento: prescrição indiscriminada de emagrecimento e discurso e práticas disciplinadoras que visam ao emagrecimento de corpos gordos de forma irrestrita. | Aprimorar os conhecimentos de profissionais de saúde sobre as consequências de dietas restritivas. Propagar em diversos meios as consequências da prescrição indiscriminada de emagrecimento. Promover uma nova narrativa pública sobre a obesidade, coerente com o conhecimento científico atual. | Prescrição de emagrecimento por parte dos profissionais, somente para pessoas que possam ter sua saúde favorecida com essa orientação. Coibição da prescrição de dietas restritivas pela mídia. Aumento do conhecimento sobre métodos de emagrecimento que não utilizam a dieta restritiva como principal premissa. Mudança da crença generalizada de que corpo magro é sinônimo de saúde; e fim dos discursos e práticas disciplinadoras sobre os corpos gordos. |
| Enquadramento impreciso da obesidade na mídia por meio de imagens, linguagem e terminologia inadequadas, o que torna a mídia fonte generalizada de preconceito relacionado ao peso. | Forma como a mídia propaga as mensagens relacionadas ao corpo gordo, e como associa os corpos magros à saúde e os corpos gordos a doenças e outras características pejorativas como preguiça, pessoa desajeitada, gulosa, mau-caráter, dentre outros. | Regulamentar e proibir as relações pejorativas sobre os corpos gordos presentes na mídia. Incluir pessoas com obesidade em imagens e mensagens relacionadas a comportamentos saudáveis nos meios midiáticos. Conscientizar os consumidores sobre as representações estereotipadas contidas nas propagandas. | Regulamentação sobre o conteúdo pejorativo divulgado pela mídia. Inclusão de pessoas com obesidade em propagandas e produtos diversos. Normalização dos corpos gordos nas divulgações midiáticas, sem prerrogativas pejorativas associadas. Conscientização de consumidores sobre os estereótipos contidos nas propagandas. Controle midiático acerca de mensagens disciplinadoras relacionadas a dieta e exercício. |
| Responsabilização da obesidade no nível individual. | Crença de que o excesso de peso é uma responsabilidade individual e desconsideração da etiologia multifatorial da obesidade. Desconsideração dos aspectos biossocioambientais envolvidos na etiologia da obesidade. Falta de habilidade dos profissionais em realizar aconselhamento nutricional integral. | Promover a compreensão da obesidade em sua dimensão multifatorial por meio da educação profissional sobre os diversos aspectos envolvidos na etiologia da obesidade. | Maior disseminação da complexidade ambiental e social envolvida na etiologia da obesidade nos meios acadêmicos e midiáticos. Oferta de assistência mais acolhedora e livre de julgamentos por parte dos profissionais de saúde. |
| Desconhecimento do impacto negativo que a estigmatização da obesidade causa na saúde de indivíduos com excesso de peso. | Crença de que a estigmatização do peso influencia positivamente as pessoas com excesso de peso para seu emagrecimento. Estigmatização relacionada ao peso exercida por diversos atores sociais. | Reconhecer que a estigmatização da obesidade interfere negativamente na saúde física, emocional e social dos indivíduos com obesidade. | Conscientização sobre as consequências do estigma do peso e redução do discurso e de práticas estigmatizantes por diversos atores sociais. Melhora da saúde mental e da qualidade de vida. Maior foco nos esforços de combate à estigmatização da obesidade como prioridade para a saúde pública. |
| Escassez de leis que visam à garantia dos direitos sociais e constitucionais de pessoas com obesidade. | Compreensão da obesidade como uma responsabilidade individual, retira a responsabilidade do Estado na garantia dos direitos dos indivíduos com obesidade. Formulação de leis e políticas que visem coibir as desigualdades sociais enfrentadas pelas pessoas com excesso de peso. | Aprovar leis e implementar políticas que visem coibir as desigualdades sociais enfrentadas pelas pessoas com excesso de peso. | Reconhecimento e garantia dos direitos sociais de indivíduos com obesidade na legislação. |
| Desconhecimento e/ou negligência dos casos de estigmatização relacionada ao peso que ocorre nos ambientes educacionais por parte dos pais, professores, funcionários e dirigentes. | Reconhecimento da presença do estigma do peso nos ambientes educacionais. Mudança da postura passiva para uma postura ativa de combate ao bullying nos ambientes educacionais. |
Sensibilizar a comunidade escolar (funcionários, pais, professores, alunos e dirigentes) acerca do preconceito relacionado ao peso e casos de bullying, com a cultura do acolhimento e respeito no convívio com as diferenças. | Atitudes de prevenção e combate ao bullying nas escolas a partir de políticas públicas, investimento e treinamento de profissionais da área da educação para o combate à estigmatização do peso no ambiente escolar por diversos atores. Ambiente educacional acolhedor, com cultura institucional de combate ao preconceito e ao bullying. |
| Atitudes estereotipadas e desiguais de empregadores nos ambientes de trabalho. | Crença de que a obesidade atrapalha o desempenho profissional e gera maiores custos empregatícios. Tratamento desigual dado a pessoas com excesso de peso nos ambientes de trabalho. |
Incentivar pesquisas de intervenção para reduzir o estigma da obesidade em ambientes de trabalho e definir as estratégias mais eficazes para coibir essas desigualdades. | Igualdade nas oportunidades de contratação e salários de pessoas com obesidade. Ambientes de trabalho com diversidade de empregados, com cultura institucional de igualdade de oportunidades e contratações. |
| Contexto microssocial | |||
| Determinante do problema | Crença, percepção e comportamentos a serem modificados | Objetivo de mudança | Desfecho esperado para o comportamento e para o ambiente |
| Internalização dos estereótipos negativos sobre a gordura sobre si mesmo (nos casos dos indivíduos com excesso de peso). | Autoestigma, autoestima, autocompaixão, autocuidado. |
Tratar o autoestigma. Realizar a reestruturação cognitiva. Promover a aceitação do corpo. | Melhora da autoestima, do autocuidado e da autoaceitação corporal. |
| Estigma da obesidade nos relacionamentos interpessoais. | Negação em se relacionar com pessoas com obesidade em contextos românticos e/ou sexuais. | Reduzir o preconceito relacionado à gordura. | Maior diversidade de relacionamentos em diferentes contextos sociais. Aceitação de relacionamentos românticos, sexuais e de amizade com pessoas com obesidade. |
Discussão
O presente trabalho desenvolveu as duas primeiras etapas do protocolo MI referentes à criação do modelo lógico do problema e do modelo lógico da mudança, como etapas iniciais do planejamento de uma intervenção que tem como intuito reduzir o preconceito relacionado ao peso em profissionais de saúde, a partir da integração de uma revisão de literatura e entrevistas com gestores de saúde, que enfatizaram aspectos relacionados à viabilidade e execução de uma futura intervenção, e especialistas no estudo do estigma da obesidade, que contribuíram com conteúdos a serem incluídos no projeto.
Os resultados apontaram para um posicionamento similar quanto aos dados encontrados na literatura com as recomendações dos temas a serem abordados pelas especialistas. Um dos principais destaques foi a questão relacionada à suposição da controlabilidade do peso corporal e a necessidade de esclarecer para os profissionais de saúde e para sociedade a relevância dos múltiplos fatores (sociais, econômicos, culturais, políticos e biológicos) envolvidos na etiologia da obesidade. Esse ponto é importante para que a culpabilização individual da obesidade, fator intrinsecamente relacionado a seu estigma, seja suprimida, reduzindo assim as atitudes estigmatizantes dos profissionais e concentrando-se em outros fatores não relacionados ao binômio dieta x atividade física no tratamento da obesidade, como apontado pelas especialistas:
Esse curso precisaria perguntar “o que é a obesidade pra você, o que você sabe sobre as causas?”. Porque as pessoas podem ter respostas prontas [...], mas no final das contas elas não sabem nem explicar e nem entendem os mecanismos (E1).
Nas Universidades, nas aulas sobre obesidade, ficam muitas peças faltando [...], ninguém fala da questão psicológica, emocional, social, de todo o contexto, dificilmente isso acontece (E2).
Nesse contexto, Rubino et al. (2020) advertem que as pesquisas destinadas a elucidar os mecanismos etiológicos da obesidade podem não ser percebidas como prioridade, uma vez que os financiamentos são destinados, prioritariamente, a projetos que focam intervenções comportamentais relacionadas ao estilo de vida, reduzindo o suporte para investigação de novos métodos de prevenção e tratamento da obesidade, bem como o investimento em esforços que visem a coibir a estigmatização relacionada ao peso.
Outra questão exposta pelas especialistas diz respeito à maneira como o foco nos aspectos individuais e comportamentais relacionados à obesidade está relacionado ao discurso disciplinador exercido por profissionais de saúde, que possuem importante poder de voz na sociedade, bem como a importância da conscientização deles sobre a responsabilidade que envolve tal poder e a necessidade de modificar a forma como a prática profissional vem sendo exercida, já nas universidades, como exemplificado a seguir:
A gente vê que a sociedade legitima o poder biomédico [...]. E sabendo disso, a gente pode ser mais responsável e fazer o melhor possível, levantar as discussões e estar nesse lugar de quem tem responsabilidade pelo que faz, que não vai reproduzir um desafio verão (E1).
Aquelas aulas de dietoterapia que a gente tem não dá! É muito assim: “a pessoa é obesa, a pessoa tem IMC não sei quanto, ela precisa de dieta hipocalórica, ela precisa fazer exercício, ela vai perder peso em não sei quantas semanas” [...] tem que aprofundar (E2).
Em consonância com as falas dos entrevistados, Alberga et al. (2019) encontraram a presença de atitudes estigmatizantes com pessoas com obesidade em diversas profissões da área da saúde, bem como entre alunos de graduação desses cursos. As autoras reforçam que tais práticas prejudicam a assistência prestada por esses profissionais e acarretam o sentimento de marginalização dos pacientes, propiciando um menor cuidado preventivo. Tais constatações apontam para a necessidade de intervenções voltadas tanto para profissionais de saúde como para estudantes das áreas de saúde.
As especialistas também enfatizaram a necessidade de debater sobre os aspectos envolvidos na medicalização da obesidade com estudantes e profissionais. Discutiu-se nas entrevistas que o processo de medicalização da obesidade transferiu a responsabilidade do Estado para os profissionais de saúde, que se sentem frustrados com os resultados pouco expressivos apresentados por seus pacientes, uma vez que os aspectos comportamentais por si só não conseguem abarcar toda a complexidade envolvida na etiologia da obesidade, como mostra o exemplo:
Tem que falar da questão política da responsabilização do indivíduo, porque muitas vezes os profissionais caem nessa ideia de que a pessoa é totalmente responsável pela situação que ela está vivendo, que só é gordo quem quer, porque não tem disciplina [...]. E a gente sabe que muitas vezes, quando a gente não consegue controlar um parâmetro social, a gente medicaliza, porque quando a gente faz isso a responsabilidade é de cada um. Então é importante que os profissionais comecem a pensar nos fatores sociais e coletivos, até para não se sentirem tão frustrados (E1).
Sobre essa questão, Francisco e Diez-Garcia (2015) afirmam que a medicalização da obesidade contribui para a visão dessa condição como uma escolha individual, associada à preguiça, à falta de força de vontade pessoal, entre outros atributos que contribuem para sua rejeição. Os autores recomendam que a compreensão dos mecanismos envolvidos na expressão do estigma da obesidade deve ser incluída na formação dos profissionais de saúde e deve ser uma prática exercida no cotidiano profissional.
Uma das especialistas comentou sobre a importância de promover um maior contato do profissional de saúde com pacientes com obesidade, especialmente no que diz respeito ao exame físico, que é frequentemente evitado pelos profissionais e já descrito na literatura por Rubino et al. (2020).
Inúmeras pessoas gordas no Brasil podem morrer porque o médico não fez um exame físico, não quis. Chega pra pessoa e fala assim: “Vai lá, emagrece e é isso”, eu tive a mãe de uma paciente minha que morreu de câncer do intestino, perfeitamente detectável, porque ela foi na atenção básica e falaram assim: “Ó, vai emagrecer” (E2).
Ao estudar as raízes sociais e psicodinâmicas do preconceito, Oliva (2016) afirma que a hipótese do contato para redução do preconceito parte do pressuposto de que aproximação do sujeito preconceituoso do seu alvo poderia trazer à tona a percepção de similaridades que auxiliariam na desconstrução da realidade distorcida envolvida na gênese do preconceito. No entanto, a autora ressalta que em casos de preconceitos extremos, enraizados em fontes inconscientes, apenas o contato não é o suficiente para a sua redução. No que diz respeito à gordofobia, mais estudos relacionados a essa hipótese precisam ser realizados para esclarecimento de seus efeitos.
Outro ponto importante abordado na presente pesquisa foi a visão estratégica de gestores da SES-DF em relação às questões relacionadas à viabilidade de execução do projeto e fatores para aumentar a adesão do público-alvo. Os gestores ressaltaram alguns aspectos como a importância da sensibilização das chefias e gestores locais para que eles consigam reservar uma carga horária semanal do profissional para participação na formação continuada, bem como ajudar na divulgação e no incentivo à participação e sugestão de um curso com carga horária mínima de 20 horas, para certificação do profissional. Também se observou uma complementaridade entre as sugestões dos gestores e das especialistas, especialmente no que diz respeito à importância de que o curso envolva diferentes categorias profissionais, consenso de que o formato híbrido (on-line e presencial) é o mais adequado para a proposta e sugestão de metodologias ativas que promovam discussão sobre os temas.
Nesse aspecto, Moran (2017) afirma que a integração de metodologias ativas com modelos híbridos tem importante contribuição para a solução de questões educativas atuais, pois a aprendizagem ativa enfatiza o papel protagonista e participativo do aprendiz, além de aumentar sua flexibilidade cognitiva, auxiliando na superação de modelos mentais rígidos e automatismos. Adicionalmente, a perspectiva de ensino híbrido promove maior flexibilidade em relação aos horários e à administração do tempo.
Outros aspectos, como a provável resistência dos profissionais quanto ao tema abordado no curso, também foram debatidos. Assim, sugeriu-se a realização de ampla discussão sobre diferentes aspectos acerca da obesidade para depois tratar da questão do viés relacionado ao peso:
Como o assunto é delicado, eu acho que não dá pra entrar logo de cara com: “Nosso objetivo aqui vai ser discutir o preconceito que muitas vezes nós temos”, pode gerar resistência. Eu acho que esse curso precisaria englobar uma atualização sobre as causas da obesidade, o quanto é difícil tratar, o quanto os estudos mostram que os resultados são muito ruins mesmo quando o paciente consegue fazer uma restrição [...] pra depois disso fazer uma discussão mais aprofundada dos aspectos sociais e do estigma (E1).
Considerando a questão da estigmatização e sua relação com a prática profissional, Araújo et al. (2015) afirmam que a formação dos profissionais de saúde pauta-se por conteúdos essencialmente biológicos e advertem para a necessidade de incluir conhecimentos relacionados às ciências sociais e humanas, com o intuito de promover um debate maior sobre a dicotomia existente nas ciências naturais.
O presente trabalho também explorou outros fatores nos âmbitos macro, meso e microssociais envolvidos no estigma da obesidade. Um ponto de ordem macrossocial que merece destaque diz respeito ao papel da mídia no preconceito relacionado à gordura. Rojas-Rajs e Soto (2013) discutem que o modelo hegemônico da Comunicação em Saúde tem uma concepção enraizada na visão biomédica e positivista, que identifica as causas diretas ou etiologia das doenças, desvinculadas de sua dimensão social. Essa perspectiva é construída na ideia de que a saúde depende da prevenção de fatores destrutivos (comportamentos de risco) e a adesão aos fatores de proteção. Dessa forma, as discussões acerca da temática enfocam a Comunicação em Saúde para mudança de comportamento, considerando que tal estratégia é eficaz na promoção de estilos de vida saudáveis e que apenas possuindo informações corretas as pessoas podem tomar decisões diferentes sobre seu estilo de vida. Os autores defendem que o campo da Comunicação em Saúde precisa evoluir para uma perspectiva mais abrangente, especialmente no que diz respeito à informação sobre os determinantes sociais da saúde, para ter maior efeito sobre a população a quem se propõe comunicar.
Cabe destacar que apesar da ênfase dada aos fatores relacionados a uma intervenção com profissionais de saúde, a presente pesquisa explorou múltiplos aspectos envolvidos no desenvolvimento do estigma social da obesidade, apresentados nos modelos lógicos do problema e da mudança, indicados na Figura 1 e na Tabela 3, respectivamente. Tais achados oferecem subsídios para o desenvolvimento de diversas intervenções concernentes à redução do estigma, voltadas para diferentes contextos e diferentes públicos-alvo. Nesse aspecto, ressalta-se que o presente trabalho enfatizou aspectos relacionados à intervenção para redução do estigma da obesidade em profissionais de saúde. No entanto, ainda existe uma lacuna de pesquisa relacionada a intervenções para redução do preconceito em outros contextos, como em ambientes de trabalho e educacionais e em relacionamentos interpessoais, bem como outros públicos-alvo, como crianças e adolescentes, na sociedade de forma geral, além de intervenções voltadas para a redução do autoestigma. Adicionalmente, destaca-se a necessidade de iniciativas nos contextos político, midiático e legislativo para coibir as desigualdades baseadas no peso.
Ao considerar a complexidade envolvida na gênese do estigma da obesidade, a presente pesquisa buscou explorar o tema de forma sistemática, à luz do protocolo de Mapeamento de Intervenções, para auxiliar pesquisadores no desenvolvimento de intervenções eficazes para reduzir este preconceito social, com ênfase nos profissionais de saúde como público-alvo. A integração de evidências descritas na literatura com as contribuições de gestores de saúde e especialistas no tema - que são as premissas do protocolo adotado - aumenta as chances de que as intervenções, desenvolvidas a partir das contribuições deste trabalho, tenham maior eficácia, bem como maior viabilidade de implementação.
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Recebido: 22 de Janeiro de 2022; Aceito: 27 de Maio de 2024










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