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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
Print version ISSN 1516-3717On-line version ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. vol.8 São Paulo Dec. 2005
ARTIGOS
O desemprego do tempo: narrativas de trabalhadores desempregados em diferentes ambientes sociais1
The unemployment of time: tales of unemployed workers in different social environments
Katia Ackermann; Mariana Almeida do Amaral; Janaína Corazza Barreto Silva; Antônio Leopoldo Geraldes; Tiago Novaes Lima; Márcio Lombardi Júnior; André Mendes; Guilherme Scandiucci
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
RESUMO
O artigo apresenta alguns modos pelos quais pessoas desempregadas lidam com sua situação. Partiu da hipótese de que diferentes contextos e locais possibilitariam a expressão de distintos modos de lidar com o desemprego. Para tanto, realizamos entrevistas semi-dirigidas em locais onde o desemprego é um tema institucional – serviços de recolocação profissional – e em lugares onde não há essa preocupação mas onde seria provável encontrar pessoas sem emprego – bares e igrejas. As entrevistas procuraram tematizar o desemprego vivido em várias dimensões, a partir do relato da experiência dos trabalhadores desempregados, passando pelas diferentes representações do desemprego na sociedade. Entre as categorias de análise que estabelecemos, o tempo, sob vários aspectos, apareceu sempre de forma marcante e consolidou-se como categoria central, que pôde sintetizar bem o que encontramos. Consideramos que realmente surgiram diferentes manifestações do desemprego em locais com diferentes funções sociais e que essas funções, somadas às representações dos indivíduos sobre o desemprego, eram os eixos que norteavam a forma e o conteúdo das entrevistas, apontando tanto semelhanças quanto diferenças. Dentro disso, houve três dimensões que identificamos nos discursos de todos os entrevistados como fundamentais nos seus modos de lidar com o desemprego: causas do desemprego, vivência afetiva e críticas à situação.
Palavras-chave: Psicologia do trabalho, Psicologia social, Relações de trabalho, Desemprego, Tempo e desemprego, Tempo.
ABSTRACT
The article intends to show some ways the unemployed deal with their own conditions. It assume that different contexts and places would allow different ways to deal with unemployment to develop. Therefore, we had semi-prepared interviews in localities where unemployment is an institutional theme professional – employment services – as much as localities where there wasn’t this kind of concern, although there were unemployed people – such as taverns and churches. The interviews intended to establish themes on experienced unemployment through varied dimensions, from the speech of the experience of the unemployed workers, passing through different representations of unemployment in the society. Amongst the established categories of analysis, time emerged remarkably, in several ways, and became consolidated as the main category, making a synthesis of what we found. We considered that, in fact, different expressions about unemployment surfaced at places with different social functions and those activities, together with the individuals’ representations on unemployment, were the axis that shaped the form and subject of the interviews, pointing both similarities and dissimilarities. In this context, we identified three dimensions on the subjects’ speeches as fundamental on their ways of dealing with unemployment: causes of unemployment, emotional existence and critique about the situation.
Keywords: Work psychology, Social psychology, Work relations, Unemployment, Time and unemployment, Time.
Primeiros Passos
Este artigo tem por objetivo apresentar alguns modos através dos quais pessoas desempregadas lidam com o desemprego. Partimos da hipótese de que diferentes locais possibilitariam a expressão de distintos modos de lidar com o desemprego. Era de nosso interesse observar como a pesquisa poderia se desdobrar em diferentes contextos e locais de São Paulo. Assim, interviemos, por meio de entrevistas, criando uma oportunidade para que diversas pessoas, em diferentes contextos, passassem pela experiência de narrar o desemprego vivido, tematizando o modo como lidam com essa experiência. Para tanto, escolhemos lugares nos quais “emprego” e “desemprego” eram objeto de atuação institucional por intermédio de serviços de recolocação profissional (agências do Poupatempo2 e de um órgão sindical) e lugares nos quais esses temas não fossem, necessariamente, objeto a ser abrigado (templos da Igreja Universal e da Basílica de Nossa Senhora, em Aparecida do Norte, São Paulo, e alguns bares situados na região da Baixada do Glicério no centro da cidade de São Paulo).
Após a aproximação com leituras que configuravam o desemprego na perspectiva econômica (Mattoso, 1994), social (Forrester, 1997) e psicossocial (Jahoda, 1987), definimos alguns eixos a partir dos quais as entrevistas individuais e em grupo foram feitas.
Nas nossas primeiras aproximações da pesquisa vivemos, em muitas ocasiões, a dificuldade de estabelecer um critério para situar “quem poderia ser considerado um desempregado”, “como o desemprego poderia ser definido” (portanto, limitado e limitando quem seria entrevistado)3. Foram nossos entrevistados que contribuíram para redimensionar essa questão.
E foi assim, por meio do tema do emprego/desemprego, que nossos entrevistados desenvolveram perspectivas singulares tematizando o que, de fato, era o desemprego vivido, o modo como suas vidas se enquadravam nesse sentido; portanto, como lidavam com a experiência do desemprego. Foi dessa forma que ao longo das entrevistas pudemos observar que “o desempregado” não era apenas o sujeito que estava excluído do “sistema formal de ocupações” no Brasil. Isso foi possível à medida que observávamos não só que alguns de nossos entrevistados – que se consideravam como trabalhadores desempregados ou que “consentiram narrar sua condição atual de vida a partir de tal foco” – ocupavam-se aleatoriamente com “bicos” ou mesmo com algum “subemprego”, mas também à medida que passamos a compreender, pela narração do desemprego vivido, que havia mais do que um “critério formal” para reconhecer o “desempregado”. Essas perspectivas nos permitiram transitar pela possibilidade de reconhecer algo próximo à “condição do desemprego” nas entrevistas: fenômeno que abarca uma série de outras experiências que não se explicitam nos critérios utilizados para compor as estatísticas oficiais (e por extensão, o “pensamento oficial”). Nossos entrevistados nos ajudaram a reconhecer a existência de muitas outras pessoas ainda à margem dos discursos oficiais. Eles nos alertaram que essa condição parece estar mais relacionada, entre outras possibilidades, a uma “instabilidade (e invisibilidade) na sobrevivência e na convivência social”, do que à simples ausência de contrato formal ou registro na carteira de trabalho.
A vulnerabilidade aberta por essa condição de instabilidade (material e simbólica) associada ao desemprego revelou-nos algo bastante surpreendente: o modo como o desemprego foi assumindo diversas perspectivas na medida da interação com um dado ambiente. Aos poucos, fomos transitando do reconhecimento da condição singular de cada pessoa desempregada para um “olhar” sobre o ambiente em que estávamos – entrevistados e entrevistadores – situados. Reconhecer a dimensão da ambiência como campo e continente das interações sociais foi uma das nossas surpresas: não sua constatação, pois a ambiência estava contida no nosso ponto de partida, mas enquanto atuante, estruturando o modo como habitamos determinada situação, como nos organizamos (pensamentos, interações, comportamentos etc.) em função disso. Assim, fomos tentando atravessar a difícil tarefa de conduzir análises de um mesmo fenômeno – o desemprego vivido –, que se mostrou plural no sentido singular da vida de cada entrevistado e que, por intermédio desse “testemunho situado”, possibilitou-nos encontrar marcas (índices) ou representações de outras “coisas” (ou outra ordem de fenômenos), que iam além do testemunho singular. Estranhamento que se ressaltou entre as semelhanças e as diferenças tanto no confronto das entrevistas realizadas num mesmo contexto ou local, quanto no confronto dessas entrevistas quando comparadas em termos dos diversos contextos ou locais.
A perspectiva de se incluir e pensar a ambiência4 como esse fluxo de um “olhar” do ambiente que se interpenetra e acaba por mesclar-se com o nosso próprio “olhar” a ponto de uma fusão de perspectiva, que pode ser apreendida no modo como a experiência se apresenta (em como o discurso se dá, no que pode ser dito), tornou-se um ponto central no nosso esforço de pesquisar certos modos de lidar com o fenômeno do desemprego. Assim, optamos por apresentar os quatro estudos para que o leitor pudesse tomar contato com as diferenças de estilo, com o tom próprio da situação do desemprego e do desempregado nos diferentes ambientes sociais. A manutenção da heterogeneidade de estilos que compõem este artigo visa preservar a singularidade da experiência dos pesquisadores em campo. Diferentes pesquisadores, diferentes entrevistados, diferentes ambientes, um mesmo tema, uma mesma perspectiva de atuação e um trabalho em comum de análise.
Nesse percurso, começamos a perceber em nossas primeiras análises e discussões dos dados que o desemprego era tematizado de forma plural. Havia tantos modos de se “traduzir” o desemprego, que os desempregos revelaram diversas facetas e compreensões da experiência: a singularidade das pessoas entrevistadas (a identidade, o estilo); algumas interações em termos de adaptações e reações com os locais situados (o que situamos como ambiência); os modos de lidar com o tempo, com as necessidades imperativas, com os desejos (por vezes adiados), com as dificuldades sociais, econômicas e pessoais (família, amigos, comunidade etc.), com as expectativas de solução dos conflitos vividos, das frustrações etc. Ou seja, os sujeitos, o interfluxo entre os ambientes (ambiências) e as relações possíveis nessas interações, todas essas facetas nos levaram a refletir sobre diferentes representações do desemprego na sociedade a partir da experiência dos trabalhadores desempregados.
Assim, nesse percurso, defrontamo-nos com o tênue limite que constitui, na manifestação de uma pessoa, aquilo que revela e confunde paradoxalmente nossas observações da realidade: permitimo-nos situar nossa presença (em entrevistas e análises) entre os modos e os discursos sociais instituídos e reproduzidos e a perspectiva singular das pessoas, suas apropriações “antropofágicas”, suas memórias narradas. Foi nesse trânsito de experiências, sob o pretexto de reconhecer e tematizar as vivências de um lidar com o desemprego, que nos deparamos com universos de informações, denúncias várias e surpresas de muitas ordens. Houve tanto o que dizer a partir dos relatos e interações vividos durante a pesquisa (sobre o tempo, sobre valores éticos, morais, sobre a remuneração e sobrevivência, sobre a identidade do trabalhador, sobre a ordem social e o cotidiano) que acabamos por focalizar nossos objetivos, circunscrevendo-os aos limites da análise do tempo. Do mesmo modo, para analisar a ambiência, também optamos pelo eixo do tempo como meio para tentar representar os sentidos que se impunham como significativos para a experiência.
O tempo, em suas várias dimensões, emergiu das entrevistas como característica comum e recorrente em todos os lugares visitados. Durante a análise dos dados, o tempo foi se consolidando como categoria de análise que possibilitaria uma síntese surgindo das diferentes experiências encontradas.
As semelhanças e as diferenças observadas nas entrevistas, expressadas pelos entrevistados e no relato posterior dos entrevistadores, denunciavam diversas relações com o tempo e possibilitavam apontar diferenças claras entre as entrevistas: algumas muito longas, outras limitadas, interrompidas pelo tempo do lugar, falas pontuais, sem qualquer abertura para a expressão pessoal.
Dessa forma, pensar a análise dos fatos e dos fenômenos vividos de modo a ressaltar uma análise do tempo exigiu-nos um novo diálogo teórico para delinear as perspectivas do que poderia representar uma compreensão da realidade, aberta pela pesquisa, sob a ótica do tempo. Nosso objetivo demandou revisitar nossas análises e discussões à luz do tempo. O que aparentemente parecia uma estratégia de seleção e redução das perspectivas pesquisadas5 constituiu-se em um enquadre para a interpretação e o diálogo com os dados da pesquisa que demandou pensar sobre o que era tempo, sobre o lugar das relações temporais vividas no cotidiano (tempo representado nos modos instituídos), sobre a experiência do senso de temporalidade (na apreensão das vivências); enfim, como o tempo poderia apresentar e representar certas dimensões elaboradas (e desdobradas) para integrar a(s) realidade(s) encontrada(s) num corpo textual coeso que constituísse a síntese de nossa pesquisa?
Em resumo, tivemos a oportunidade de fazer diferentes aproximações com leituras que configuravam diversas perspectivas para abordar o tempo. Caminhamos no percurso de textos que lidavam com a perspectiva filosófica fenomenológica do Tempo e da Temporalidade6, articulando distinções entre a visão ontológica de tempo e os tempos representados tal como sentidos pragmáticos, compreendidos como tempos externos, por isso ambiente, como o “tempo serial” (Merleau-Ponty, 1945; Garcia-Morente, 1930); do tempo como construção histórica (Elias, 1998); do tempo como realidade objetiva e quantificável como o “tempo do relógio” (Adam, 1990 e 1995); ainda outras perspectivas filosóficas que abordavam algumas relações entre o tempo profano e o tempo sagrado (Elíade, 1996). Enfim, tempos que sob diversas leituras (psicológicas, sociológicas etc.) apresentam modos de organizar as atividades humanas, os quais passam a ser reconhecidos e reproduzidos tal como uma instituição. Apresentam-se mesmo como se fossem “esqueletos” das diversas instituições sociais. Trata-se de abordar a experiência do tempo objetivo que se vive e, dessa forma, reconhecer as possibilidades de organizar os fatos históricos, a sociedade construída: instrumento de organização e integração social. Tempos que disciplinam e engendram os comportamentos (Foucault, 2002) como um dos sentidos produzidos pelo homem que orientam suas ações. Em outros casos, à crítica e moralização do ócio (Lafargue, 1999).
Foi nessa segunda tentativa – de compreender um lugar articulado para as nossas experiências da pesquisa frente ao desdobramento de como apreender o lidar com o desemprego na perspectiva do tempo através das leituras sobre “tempo” – que optamos por focalizar três aspectos da pesquisa nos estudos: a) a ambiência e tempo; b) o tempo de narrativa: duração (o modo como o tempo global da experiência se apresentou quantitativamente); c) a narrativa do tempo: o(s) modo(s) como o tempo aparece representado nos discursos.
I – O bar: a rede de relações e a solidariedade
“Eu vou inventar uma religião, a religião da pinga: chegue bêbado e saia bom”
(Viana, um dos entrevistados).
Ambiência
Ponto de desembarque de ônibus que chegavam do Norte e Nordeste carregados de mão-de-obra para o desenvolvimento urbano e industrial de São Paulo. A Baixada do Glicério, bairro localizado na região central da cidade, hoje parece esquecido pelas autoridades: sobrados descascados, poeira, pedaços de sucata à venda nas calçadas, postes repletos de fios, muros preenchidos de pichações e homens que, se antes construíam a cidade, hoje se acumulam nas dezenas de botecos espalhados pela região. O tempo parece haver parado tanto para o lugar, quanto para os seus moradores, deixando no ar uma espécie de abandono.
Observávamos uma discreta divisão entre os passantes. De um lado, uns homens perdidos, dormindo recostados nos portões metálicos. Não iam a lugar algum, não tinham pressa, conversavam consigo mesmos. De outro, uma classe de privilegiados – premiados pelo cansaço, pelos uniformes e chinelos de pedreiro, pelas mãos sujas de graxa –, os quais, nem que por aquele dia, tinham uma ocupação, uma renda no bairro dos desempregados.
Em uma das entrevistas7, os amigos se encontravam à tarde, segunda-feira, comendo um amendoim torrado e bebericando uma cerveja. O relógio na parede era de uma famosa dançarina de biquine, de um grupo de música popular. Sobre o forninho, uma bola de cristal com a bandeira do Palmeiras. Ao fundo, a máquina de caça-níqueis. Dentro de grandes potes, mergulhados numa água amarelada, queijo mussarela e cebolas. Numa outra extremidade, um quadrozinho com São Francisco de Assis carregando o menino Jesus. Cachaça, Xiboquinha, todo tipo de bebida barata que se pode conseguir. Do lado de fora, um carrinho cheio de tranqueiras e, em cima, uma caixa de leite. Um homem que não reconhecemos como estando presente na primeira entrevista nos lembrou de que ficamos ali conversando com Alvarenga. O dono do bar, o Zezinho, sentia-se à vontade para falar do preço dos botijões de gás, das contas que não pagara ainda. Entrava em cena um homem que conversou conosco na segunda incursão. Todo mundo que passava na rua cumprimentava os desocupados, um vendedor vinha oferecer qualquer coisa e acabava se detendo para justificar o porquê de não votar no Lula8.
Cada um que entrasse, saísse ou simplesmente passasse por ali ia em um tempo diferente e todos se intercruzavam, como se diversas formas do tempo transcorrer pudessem se apresentar simultaneamente sem que isso representasse um problema. Não havia encadeamento lógico, seqüência ou algum tipo de ordenação segundo um padrão qualquer; havia apenas uma convivência pacífica entre esses muitos tempos.
A subordinação já é demais fora das áreas de lazer, é preciso que haja um espaço para falar abertamente, para a expressão dos tesouros do passado, dos descontentamentos do presente e das esperanças do futuro. São locais de vizinhança, onde se dispensa o trabalho custoso – e para os desempregados do Glicério, impossível – de se deslocar para outras regiões em busca de lazer. Assim, o modo de apropriação do espaço do bar pelos moradores da Baixada do Glicério é de natureza muito distinta daquele que se utilizam a classe média e a classe alta: de hierarquia, onde se busca um certo anonimato, onde se paga estacionamento, chapelaria, couvert artístico e consumação mínima. Pica-Pau9 simplesmente atravessa a rua e caminha uma quadra ou duas para encontrar os seus. O mundo já é cheio de impessoalidade para que o lazer também seja marcado por ela.
O bar é o ponto intermediário entre a esfera pública e a privada. Une o convívio social à familiaridade. É um espaço onde as hierarquias se dissolvem ou se dinamizam – o próprio dono do bar, que é ao mesmo tempo seu único empregado, localiza-se no mesmo estrato e tem a mesma origem dos demais. “Agora, hoje, olha aí, dono de bar lavando copo!” (Pica-Pau).
Todos os nossos entrevistados dessa região possuíam o Nordeste como ponto de origem e, algumas vezes, de fim. Por vezes, o que traduzimos como uma rede de sociabilidade (a amizade, o pagar a conta e o conseguir um pequeno serviço) surgia no discurso como “solidariedade”. É essa solidariedade que preserva o desempregado da fome e da miséria absolutas, além do preconceito dirigido a eles nesse centro urbano. “Isso é amizade, agora se nós mora fora daqui. Eu duvido de pedir uma cerveja que nem você, você está pagando tudo. Ele e eu não estamos pagando nada. Amanhã nós paga. Eu duvido ele estar em Santo André e eu pedir uma cerveja, ‘Ô, vê uma cerveja aí para mim...’” (Ernesto) “Nós somos brasileiros, não tem lugar longe. Brasileiro é muito ajudar o outro, como que fala? (...) Solidário. Não tem lugar longe, lugar perto. Não é porque você está longe e está chovendo. Todo mundo, um ajuda o outro. Nós estamos no mesmo barco” (Pica-Pau).
E se o lazer, para o desempregado, converte-se num ócio indevido, cumpre todavia a função de exercício e revigoramento, espaço político de reflexão e espaço de descanso. Reverte-se, também, a noção de que o bar é o reduto único do lazer e que isso consiste em “afogar as mágoas” na bebida, embriagar-se para se esquecer dos problemas cotidianos. Pelo contrário, segundo a fala dos entrevistados, o bar surge como um sítio de recolocação do desempregado nos bicos e empregos. É o ponto onde se poderá encontrar aquele amigo que sabe de tal ou qual oportunidade. É a partir da rede de sociabilidade que se pode garantir a subsistência. Como afirma Magnani e Lucca (1996):
Analisando mais de perto as regras que presidem o uso do tempo livre por intermédio dessas formas de lazer, verifica-se que sua dinâmica ia muito além da mera necessidade de reposição das forças despendidas durante a jornada de trabalho: representava, antes, uma oportunidade, através de antigas e novas formas de entretenimento e encontro, de estabelecer, revigorar e exercitar aquelas regras de reconhecimento e lealdade que garantem a rede básica de sociabilidade. O que não é de pouca importância para uma população cujo cotidiano não se caracteriza exatamente pelo gozo pleno dos direitos de cidadania.
Lugar para estabelecer e reconhecer as raízes do Nordeste, ponto de encontro de amigos, mesa redonda sobre a política e o futuro da nação, depositário das mágoas e dores da vida, quartel general de subversão ao sistema vigente, passatempos, recolocação no mercado de trabalho: tudo isso são os modos identificados de apropriação da instituição do bar cuja riqueza e complexidade só pudemos de relance vislumbrar.
O tempo da narrativa
O balcão prateado, retangular, comportava um grupo de “conhecidos”, parceiros, que nos falavam e falavam para o alto, um mais alto que o outro, um a não escutar o outro. Uns saíam e voltavam. Outros preferiam somente escrutinar nossa conversa, pinçando ora ou outra qualquer frase com um sorriso de concordância. Outros ainda, quando respondíamos sobre o que se tratava a pesquisa, franziam o rosto para espantar o mau agouro e se afastavam. E não era somente nos freqüentadores que entrevistamos que sentíamos como se estivessem sempre de saída, com pressa, um pé dentro e outro fora da entrevista. As pessoas sempre mudavam de assunto, ora puxando um fumo na porta do estabelecimento, ora nos perguntando sobre as eleições, que estavam próximas, zombando e defendendo os diferentes candidatos, sempre de maneira brincalhona e jocosa.
O espaço não se abria para muitas perguntas. Quando conseguíamos formulá-las, facilmente viravam ganchos para outros assuntos (que não os propostos pela entrevista) ou mesmo eram ignoradas por completo. Chamar um de nós para conversar, deixando o outro com outro grupo de prosadores, era tão espontâneo quanto pegar o gravador do balcão e sair perguntando sobre desemprego para um passante. Por um lado, era como se estivéssemos sendo convidados por eles a entrar em um bate-papo que já estava acontecendo e, por outro, não sabíamos se o que fazíamos era mesmo uma entrevista – não sabíamos se estávamos como convidados ou se havíamos convidado. Pudemos mais tarde concluir que era mesmo uma entrevista: a entrevista possível no bar. Os tempos eram, no bar, os tempos deles.
Essa maneira particular como éramos tratados ao abordarmos as pessoas e ao entrevistá-las contrastava com o papel de entrevistadores que esperávamos desempenhar. Essa dualidade era transmitida na forma como éramos denunciados como público não-habitual dos freqüentadores, como serviam-nos de bebidas e tira-gostos e faziam questão de pagar a conta: “Vocês têm uma puta duma diferença. Vocês é até corajoso de sair na rua entrevistando. Vai sair tipo um Tim Lopes”10 (Pica-Pau).
Pica-Pau e seus amigos pareciam felizes, em boa companhia. Faziam piadas uns com os outros. O deboche e a precariedade eram tema das brincadeiras, motivo das risadas. De repente, quase como continuação da piada, falava-se dos jovens que se tornam assaltantes, da falta de condições nas escolas, de como a Rua São Paulo é “repleta de bandidos” e de como somos corajosos por aparecer ali fazendo perguntas. O sorriso que até então nos contagiava com bom humor agora silenciava, fazia despertar o medo. Não se sabe se Pica-Pau brinca ou fala sério. O mais provável é que esteja fazendo as duas coisas ao mesmo tempo e isso é possível, pois o bar é uma instituição suficientemente aberta para que cada pessoa possa apropriar-se dela de um jeito plural e livre e que daí possam surgir diferentes temas e diversos tempos, quase simultaneamente.
O tempo na narrativa
Podíamos sentir uma enorme disponibilidade no andamento da entrevista e também nas falas dos entrevistados, traduzindo-se na forma e no conteúdo da conversa uma flexibilidade na organização do tempo como um aspecto altamente positivo do estar desempregado, ao contrário da época em que possuíam vínculo empregatício e as horas do dia eram rigidamente ordenadas: “Quando existe trabalho, existe preocupação. Você tem a preocupação, você esquece tudo...”(Alvarenga). “Aí você diz, vamos para a igreja, vamos! Não importa que não seja a igreja que eu queira, por que não? (...) Vamos tomar uma cachaça? Vamos. Vamos para a praia? Vamos. Vamos para o campo de futebol? Vamos. Não tem problema. (...) Vamos no campo? Vamos. Vamos jogar sinuca? Vamos...”(Alvarenga).
Na igreja, no campo de futebol, nos bares, nas casas de amigos e parentes, quase sempre à procura de algum serviço. A divisão do tempo nessa situação, diferentemente da regulação mensal dada pela carteira assinada, ia sendo estabelecida no dia-a-dia, conforme aparecesse um bico, um convite para um passeio, um parceiro para uma partida de sinuca. A remuneração e a sobrevivência eram pensadas em termos pontuais, a partir dos serviços que se conseguia em um dia ou no outro, e não em longo prazo, em meses ou semanas. Na mesma medida iam sendo orientados os momentos de descanso e de diversão, sem planejamento prévio. Não existia uma rotina que ordenasse de forma rigorosa as horas, os dias, as semanas; o tempo do cotidiano era reduzido da divisão mensal de planejamento orçamentário e empregatício para uma divisão diária de sobrevivência a um tal ponto que poderíamos chamar de “extrativista”. Eram o acaso e a imprevisibilidade que iam dando os contornos das horas do dia.
Não fazer nada possuía uma função positiva: a de ficar na área. Fazer-se ver, deixar-se observar. Correr atrás não valia a pena, mas estabelecer contatos de amizade – a amizade era fonte de renda, era a rede de solidariedade. Nessa medida, estar no bar era estar de prontidão para um trabalho que não se sabe quando vem ou de onde vem. Parecia ter a mesma função dos classificados nos jornais. Nisso, o bar era a vitrine, era aberto para o bairro. Teoria essa que contradiz o movimento de cisão entre a hora de trabalhar e a hora de descansar, a hora de brincar e a hora de estudar, cisão essa que nos é tão culturalmente arraigada e que dispensa maiores esclarecimentos. Observamos também que mesmo o trabalho que esses homens conseguiam eram do tipo dos serviços, tarefas e não o emprego de oito horas diárias como também é próprio desta sociedade industrial. “Aí, dependendo do conserto, eu tiro cento e cinqüenta reais. Se eu pego dois, são trezentos reais por dia. No outro, não ganho nada. No outro também não ganho nada. No quarto dia, ganho mais trezentos, são seiscentos” (Alvarenga). “Você tem que matar um leão por dia. Tipo assim, eu tenho uma criança e eu tenho que levar o leite todo dia para ela. É tanto que tem até uma caixa de leite ali” (Pica-Pau).
Apesar de apresentada como uma tranqüilidade de não estar atrelado a um expediente, a um horário preestabelecido e a um vínculo empregatício humilhante e apesar de ser tido como possibilidade de realizar atividades prazerosas, o descompromisso com o mundo do trabalho formal e regularizado, como regulador e norteador do cotidiano, era revelado no discurso também pela sua precariedade e sua repulsa. Essa ausência de divisão do tempo parecia por vezes arremessar os sujeitos aos acasos da vida e ao léu de não saber e não poder nunca planejar o dia de amanhã. Planejava-se o tempo, mas não o futuro. “Ah, a vida é essa, um dia come, outro dia não come, porque a vida é dura, né?”. “Eu tô ganhando meu dia-a-dia, aos trancos e barrancos, eu tô” (Pica-Pau).
A saída surgia muitas vezes como uma repetição do ritmo e do cotidiano do trabalho: sair pela manhã, quedar-se na rua o dia todo e retornar à noite. Mesmo que não estando empregado, o sujeito nessa condição parecia não ser bem visto pela família quando, ao invés de descansar na rua, abandona-se no conforto e no comodismo de um lar. Muitas vezes o tempo regularmente preenchido com o emprego era substituído por horas à procura do trabalho, em busca dos amigos como contatos sobre o que se passava nas redondezas.
Apesar da flexibilidade para usar seu tempo ter um lado positivo, afinal “Nós não trabalha segunda-feira que é feriado”, era preciso temperá-lo com o sentimento de que há uma obrigação a cumprir, “Nós somos freqüentadores daqui (...) não, todo dia não, que nós não pode. Nós temos nossos bicos, nossas mulheres”, “nós trabalha, né, meu?”. Pois o fundo do poço não era estar sem emprego – situação, aliás, que nem é chamada de desemprego – e sim ter desistido da vida e passar os dias largado em casa. Segundo Viana: “Desempregado é aquele que se entrega à vida, não tá nem aí, a mulher vai trabalhar, o cara fica em casa. Esse, para mim, é o desempregado. Não tem nem um sentimento por ele mesmo. Se sai dois dias na rua para arrumar emprego, chega em casa revoltado, então, eu já sou diferente, chego em casa alegre, sossegado, ligo o som, vou ouvir uma música, tomar uma cerveja”.
Essa necessidade de se sentir trabalhando de alguma forma, mesmo que o “emprego” fosse “sair para procurar trabalho”, dialogava com uma ética do trabalho e respondia às críticas a quem “se entregava à vida” e não estava procurando manter alguma atividade que ocupasse o tempo livre e o ajudasse a conseguir remuneração de algum jeito.
Essa divisão do tempo em curto prazo, em termos tão pontuais, poderia explicar por que era tão importante o papel da memória, do passado, enquanto o futuro era sempre colocado no âmbito dos desejos e das esperanças. Poderia, assim, estar relacionada ao tempo em longo prazo, em que o presente é sempre visto à luz de um passado, ao mesmo tempo próximo e distante. Próximo por estar tão freqüentemente presentificado no discurso de quem o viveu e distante pela diferença abismal de recursos e cidades. Por mais que o passado não seja mostrado como exemplo de perfeição a ser seguido, ele aparecia, em resumo, como algo melhor do que o presente: um presente sem futuro só poderia reivindicar a substância de um passado. E esse futuro desaparecia entre a esperança e a resignação, como becos sem saída nos quatro candidatos majoritários que concorriam à presidência. O passado era estável, no passado residiam com segurança as glórias e as vitórias que justificavam a dignidade que garante ao Alvarenga, por exemplo, pedir um trocado nos semáforos sem que com isso deixasse de dizer: “Eu saio de São Paulo, mas saio de cabeça aberta. Saio de cabeça erguida. Nunca fui preso. Nunca bati em ninguém. Nunca roubei” (Alvarenga).
O passado surgia, inclusive, como explicação possível da crise do presente. Era no passado que o homem pobre de recursos se manifestava como rico de experiências e aventuras, feitos heróicos e sabedoria. Nesse aposento resguardado encontravam-se as lembranças da cidade natal no Nordeste, da família que foi deixada a esperar. Num bairro feito de obras e mãos-de-obra arruinadas e sucateadas, os alicerces mais resistentes permaneciam sendo a nostalgia etérea e incorpórea.
O tempo ali se dilatava. Assim como as lojas revendiam pedaços de carros usados, objetos roubados, plásticos sucateados e roupas remendadas, nos homens, quase nada era novo. Como a máquina, a mão-de-obra ficava encostada à disposição de quem precisasse de seus serviços, ao lado das caçambas e da sucata. Alvarenga mostrava seu corpo como quem tenta vender a durabilidade de um carro usado. Mostrava todas as marcas, todos os acidentes, e cada um o lembrava de uma data, de uma história e de uma pessoa. Os homens eram velhos, seu passado era ressuscitado aos pedaços, o distante tornava-se materialidade incorpórea no clima poeirento, sobre o balcão. E fazia-se notar que nada do que era trazido de volta à ativa podia ser negociado – o passado continuava sempre uma referência ao presente, um motivo de orgulho e de importância. Não se o trocava por nada. Nele residia um orgulho, uma dignidade que impedia que esses homens fizessem qualquer coisa por dinheiro. Quem já teve uma vida proveitosa não aceitava trabalhar na contramão dessa história pessoal. O que sobrara intacta (ou quase), a identidade, nessa história se ancorava. “O principiante com quinhentos reais ele gasta aí... Eu já estou no teto. Abaixo do engenheiro sou eu. Eu não vou admitir um salário de quinhentos reais. O que eu vou fazer com quinhentos reais? Nada” (Alvarenga). “O senhor vê, como quando tinha o metrô de São Paulo, tinha emprego! Andava caminhões e caminhões procurando peão. Peões para trabalhar em obra. Hoje em dia não existe mais. Hoje tem profissional procurando emprego. Onde está o emprego? Não existe” (Alvarenga).
Nesse ínterim, é possível encontrar elementos que ajudam a pensar nas diferenças do mundo do trabalho de alguns anos atrás e de hoje. Os relatos dessas pessoas falam de como a “evolução” do Brasil acarretou a falta de solidariedade e a inversão da procura entre trabalhadores e empregadores. Era uma vez em que os trabalhadores é que ofereciam as concessões para trabalhar para um empregador. As garantias de um serviço estavam asseguradas pela diferença entre a grande demanda de mão-de-obra e a menor quantidade de trabalhadores. Por essa razão, a urbanização de uma cidade do porte de São Paulo atraiu o contingente de migrantes que hoje engorda as periferias do capitalismo neoliberal. Tudo estava em construção, muitas empresas e indústrias floresciam com prosperidade, as quais, hoje, desapareceram no universo da competitividade. E, conforme dizem nossos entrevistados, por meio de um discurso com alta dose de culpabilização dos indivíduos, há ainda os trabalhadores que, atraídos pelo seguro-desemprego e pelas reivindicações trabalhistas dos sindicatos, foram arremessados para uma situação aventurosa e irreversível de marginalidade. “[Estar empregado] era bom. Para mim não faltava nada na minha casa, eu passeava todo fim de semana, eu minha esposa mais meninas. Eu já passei quatro carros já. Hoje em dia eu não tenho nem um carrinho de mão” (Ernesto).
Hoje, a alternativa que surgia na fala dos entrevistados era se desdobrar. Era abandonar a segurança de um emprego fixo, de uma única função possível e aceitar cada vez mais as exigências dos patrões, que passaram, a partir de determinada época, a selecionar quem ia ou não ia trabalhar para eles, exigindo proficiências inócuas e exageradas demais para a profissão.
II – A Igreja
a) A Basílica de Nossa Senhora de Aparecida: o relato de carioca
“Diz que deu, diz que dá. Diz que Deus dará. Não vou duvidar, oh, nega. E se Deus não dá. Como que vai ficar, oh, nega? Diz que deu, diz que dá. E se Deus negar, oh, nega. Eu vou me indignar e chega. Deus dará, Deus dará. Deus é um cara gozador adora brincadeira. Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro. Mas achou muito engraçado me botar cabreiro. Na barriga da miséria, eu nasci brasileiro. Eu sou do Rio de Janeiro”
(Chico Buarque – Partido Alto).
Ambiência
Ao chegarmos próximos ao “complexo” da basílica, deparamo-nos com uma enorme fila de carros, de modo que levamos cerca de quinze minutos para entrar no local. Logo avistamos e nos dirigimos ao Shopping do Romeiro, localizado ao lado da basílica e junto ao estacionamento, a fim de conhecê-lo, comprar uma fita para nosso gravador e comer algo em sua praça de alimentação. Ele aparece descrito desta forma em nosso diário de campo: “Copo de plástico, barulho, tudo cheio, McDonald’s, outros fast food, gente almoçando espeto de carne com farofa às dez e meia. Uma mistura de Rua 25 de março11, stands de coisas eletrônicas, com essa praça de alimentação tipo shopping center mesmo, mais popular que os altamente opressores, tipo Iguatemi12. Como o André comentou, de religioso não tinha nada aquele ambiente, oposto a um clima introspectivo, meditativo ou de contemplação”.
O local em que foram realizadas as entrevistas parecia ter relação direta com os conteúdos verbalizados. No caso de Aparecida, chama a atenção, em primeiro lugar, o fato de as dimensões arquitetônicas da basílica serem desproporcionais às dimensões humanas ou mesmo às dimensões de uma catedral comum. A igreja parecia ter sido criada para acomodar não apenas as pessoas, mas talvez Deus também. Pode-se dizer que aquele espaço, construído de forma a “acolher” multidões, não oferecia condições para o sujeito encontrar uma abordagem para o problema específico que pudesse levar o fiel até lá (desemprego, saúde, família, relacionamento amoroso etc.).
Observando-se o complexo de Aparecida, percebe-se que há uma diferença crucial entre o espaço comercial e a basílica em si. O primeiro institui um objetivo claro e definido: a venda de determinados produtos, sejam eles alimentícios, religiosos, de vestuário ou eletrônicos. Já na basílica13, como dissemos, o espaço não se oferece à atividade, mas sim à possibilidade de reflexão.
O afastamento geográfico (Aparecida do Norte não é próxima de alguma cidade grande e a maioria das pessoas que a visitam vem de lugares distantes dali) faz com que os visitantes que viajam até lá passem o dia na cidade. As pessoas que abordamos estavam de certa forma esperando ou desfrutando o passar do tempo, já que haviam cumprido parte dos objetivos que as levaram até lá: participar da missa e realizar alguma outra atividade religiosa – ver a imagem da Santa, sobretudo.
A Igreja Católica oferecia espaços oficiais para essas pessoas exercitarem sua crença: a missa, a sala de ofertas, a de infindáveis pedidos já feitos à Santa etc. As questões específicas, isto é, os casos particulares como o dos desempregados, deviam ser tratadas “pessoalmente” com Deus.
À margem do espaço comercial e do interior da basílica, porém, ainda inseridos no terreno pertencente a ela, encontravam-se dispostos fiéis entregues às mais diversas atividades, tais como: conversar sob as árvores ou nas escadarias, admirar a paisagem, pensar sobre a vida, tomar sorvete etc. Tanto a Igreja, quanto seus visitantes pareciam conviver bem com essa situação.
As pessoas, ao menos aquelas com quem conversamos, passavam o dia nesses lugares, sem se preocupar rigorosamente com as atividades que desempenhariam. A única atividade marcada pelo tempo, com começo, meio e fim pré-determinados, era a missa (há um quadro com seus horários). O resto do tempo, as pessoas usavam livremente. As outras ocupações que a igreja oferecia aos fiéis não estavam demarcadas pelo tempo regulado, como a sala de milagres, de ofertas e, é claro, a própria imagem da Santa, que ficava à disposição, no mesmo lugar, ininterruptamente14 – como se realmente o tempo não passasse. A Santa, ao menos pela ótica dos católicos, não seria humana, portanto estaria fora do ciclo temporal a que somos submetidos. Afirma Elíade (1996, p. 82):
(...) o homem religioso vive em duas espécies de tempo, a mais importante das quais, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Este comportamento para com o tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não-religioso: o primeiro recusa-se a viver unicamente no que, em termos modernos, se chama “o presente histórico”; esforça-se por tornar a unir-se a um tempo sagrado que, de um certo ponto de vista, pode ser homologado à Eternidade.
Talvez a imagem atemporal por si mesma da Santa seja uma espécie de evocação ao paraíso perdido. Teríamos ali no altar a idéia da transcendência da matéria, por sua vez impregnada de “interferências” mundanas como a temporal. Isto é, os homens poderiam, no contato com a Santa, experimentar a sensação do não-tempo, ou de Tempo Sagrado.
Nos espaços que chamamos de extra-oficiais, tentávamos reconhecer aqueles que poderiam estar desempregados, mas sem saber exatamente como, sem adotar um critério seletivo (Como deveria se portar um desempregado?) Assim, abordamos pessoas as mais variadas, das aparentemente mais descontraídas às mais compenetradas em seus problemas. E na escadaria da basílica realizamos a entrevista.
Após algumas horas de trabalho na basílica, à procura de um sujeito na situação de desemprego, vimos uma pessoa que nos chamou a atenção, por sugerir essa condição: como outros que entrevistamos ou conversamos brevemente nesse dia, ele estava só, com um olhar vazio “para o nada”.
Era jovem (tinha 34 anos, como descobriríamos depois), apesar de aparentar ter mais de quarenta. Olhou rapidamente para nossa carta de apresentação do CPAT15, logo concordou em ser entrevistado e não fez qualquer objeção ao gravador. Apenas nos alertou que era do Rio de Janeiro, não de São Paulo (o que nos levou a chamá-lo de Carioca neste texto). Dissemos que não havia problema, e logo a entrevista formalmente iniciou-se. Tratava-se de uma pessoa muito solícita. Antes que pudéssemos concluir a apresentação do objetivo de nossa entrevista, Carioca mesmo completou: “É pra saber como a gente [que está desempregado] se sente, né?”.
Tempo da narrativa
A entrevista teve uma duração de aproximadamente quarenta minutos. Carioca não disparou a falar o tempo todo; contudo, suas falas e o silêncio, que freqüentemente as seguiam, fazendo com que as primeiras aparecessem em intervalos, “preenchiam” a entrevista com densidade. O silêncio não aparecia como um vazio à espera de uma próxima fala: parecia ser o único desfecho possível após o conteúdo narrado. Era uma expressão tão importante quanto a fala.
A entrevista encerrou-se “naturalmente”: após ouvirmos as histórias de Carioca e fazermos as (poucas) perguntas que nos pareciam pertinentes, ela se encaminhou para o seu fim. Não foi interrompida bruscamente, como iremos ver no caso do Poupatempo. Aliás, quando julgávamos que ela chegara ao final e decidimos por fazer o questionário sócio-econômico, a entrevista se prolongou, isto é, a “conversa” continuou a acontecer espontaneamente por mais alguns minutos, sendo finalizada (e não interrompida) com a chegada da família do entrevistado. Carioca ainda nos apresentou sua mãe e irmã, e por fim nos despedimos.
Tempo na narrativa
Na época em que foi entrevistado, Carioca não possuía uma rotina, uma atividade reguladora do tempo ao longo do dia. Ele parecia “organizar” seu dia tendo como referência a procura por um trabalho, fosse qual fosse, embora não estabelecesse horários fixos para essa tarefa. Além de não ter horários fixos, procurar emprego não era algo realizado cotidianamente, isto é, “todo santo dia”.
Assim, Carioca não procurava emprego de manhã à noite, de segunda a sexta-feira, como fazem alguns desempregados. Pelo que nos contou na entrevista, ele corria atrás de um serviço e depois aguardava; ou seja, existiam dois momentos distintos, o de busca e o de espera, e não uma procura constante.
Ao que nos pareceu, a atividade central que regulava o cotidiano de Carioca era a procura por emprego. Toda a descrição do tempo passava pelo trabalho. Tempo sem trabalho era um uso indevido do tempo, pelo menos quando não se tinha um trabalho regular. Você podia não estar trabalhando, mas deveria estar; portanto, o tempo disponível devia ser utilizado na busca do trabalho.16
A situação de desemprego foi o motivo que levou o entrevistado à cidade de Aparecida do Norte. Afinal, tal situação parecia desestruturar, tornar sem sentido, monótona e até mesmo inútil a vida de Carioca.
A falta de trabalho de Carioca era um problema a ser solucionado em sua vida. No mínimo, gerava um conflito de valores. Trabalhar era um valor tão importante quanto apoiar a mãe ou não roubar. Não trabalhar parecia gerar uma imagem de indolência: “Ficar parado dentro de casa, coçando barba, pra não dizer outra palavra... ficar coçando barba... porque, pô, não dá, não, cara. Todo dia tua mãe chegar e ficar chamando a atenção, pô, fica chato, mas eu vou fazer o quê? Ela tá vendo que eu tô correndo atrás, não tô conseguindo... vou roubar? Mais adiante: Cara, minha vida tá chata. Minha vida tá muito grave (ou brava) mesmo. Ficar em casa, ficar parado, ver os outros trabalhar quando quem tem que trabalhar é você...”.
Havia uma certa culpa, identificada pela mãe quando chamava a atenção do filho; mas também era sentida por ele mesmo. O curioso (e cruel) era que, embora Carioca estivesse “correndo atrás” de serviço, isto é, fazendo uso do tempo e aquilo que julgava ser o possível, essa culpa, por não estar trabalhando, perdurava.
Assim, pensamos que as atividades que não pertenciam à busca de emprego assumiam um tom de ociosidade que, por sua vez, gerava vergonha pelo próprio fato de não conseguir trabalhar e pela conseqüente dependência financeira em relação à mãe. O que não pertencia ao correr atrás – de trabalho –, que por sua vez estava intimamente ligado à idéia de tempo perdido, era sentido como um mal-estar, algo quase proibitivo.
Nos momentos da vida em que Carioca não tinha um emprego regular, como na época em que o entrevistamos, arrumava “biscates”. Quando estava envolvido em um “biscate”, por definição temporário e indeterminado quanto à duração, o entrevistado passava a ter uma outra organização do tempo. Ele nos deu um exemplo atual disso: “Perto da minha casa tem uma vizinha minha que tá trabalhando num negócio de obra lá; chega material, ela me chama pra carregar pra dentro. Eu vou e faço, pra não ficar parado, entendeu? Mas quando acaba aquilo, não tem mais nada, a gente fica parado”. Ao terminar esse tipo de serviço, Carioca voltava à situação acima descrita, de “corre atrás-aguarda”.
Pudemos notar que a referência à situação de estar aguardando aparecia repetidas vezes ao longo da entrevista. Exemplos: “Tem uns colega que corre atrás o dia todo aí, atrás de serviço, (...) faz tudo, fica aguardando e não chama”. “Tá ruim de arrumar. Eu mesmo já fiz três provas aí, tô aguardando e até agora nada”. “Tô aguardando a carta, não mandam a carta, tô aguardando até hoje, não resolve nada... tô aqui parado até arrumar outro, já corri atrás de outro, mas não consegui nada ainda”. “Mas até agora, nada. Tem que ir aguardando, esperando. Um dia eles chamam”. “Mesma parada: ‘vocês aguardem que a gente vai mandar carta, pra chamar, pra chamar a diretora pra gente conversar, pra ver o que vai resolver’. Até hoje. Tô aqui esperando até hoje”.
O relato de Carioca era de um sofrimento intenso, beirando o desumano. Para além disso, no momento em que transcrevíamos a fita, exaustos do calvário, relatado e sentido por nós e por ele, percebemos que ao fundo da gravação, na basílica, havia um coro de vozes cantando: “parabéns a você...”, provavelmente em homenagem à Santa. Toda a experiência vivida e revivida durante a transcrição ganhou um tom de absurdo: como alguém podia estar comemorando o que quer que fosse? Será que a festa era pelo sofrimento, força e fé de Carioca? Como seria possível que experiências tão antagônicas, mesmo que por um momento mínimo como o que durou a música, ocupassem aquele mesmo espaço?
Parecia haver uma constelação de diversas situações que encontravam naquele ambiente continência para emergir simultaneamente: alegria, tristeza, proteção, indiferença, esperança, resignação, entre outras coisas.
b) Os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus
Ambiência
Catedral da Fé. Assim como a catedral de Aparecida do Norte, a construção era grandiosa; no entanto, bastante diferente em termos de arquitetura. A principal diferença, do nosso ponto de vista, estava no próprio caráter funcional da construção em questão: tratava-se de um espaço arquitetado para acomodar milhares de pessoas (ou espectadores). A quase totalidade do terreno que abrigava o galpão estava ocupada por ele, ou seja, os espaços externos eram de passagem. Assim, toda a construção assumia a funcionalidade como traço distintivo: escadas que davam acesso à Catedral e, internamente, passagens levavam invariavelmente às cadeiras ou ao altar (que se assemelhava a um palco). Internamente, a igreja revelava um aspecto despojado, isto é, não havia imagens ou objetos decorativos.
Nas dependências da Catedral, encontramos muitas pessoas ligadas à igreja, os obreiros ou aspirantes a pastores, pessoas que auxiliavam nos cultos e que se diferenciavam por usarem a mesma roupa: camisa e calça social de cores iguais. Eram como monitores da igreja: observavam tudo, mas raramente interferiam diretamente no comportamento dos freqüentadores.
Chegamos à igreja cerca de meia hora antes do culto e, seguindo a orientação de alguns dos obreiros, esperamos o início do culto, para então realizarmos a entrevista. Aliás, não houve qualquer objeção com relação à realização da pesquisa, não houve a necessidade de esclarecimentos de qualquer natureza a nenhum membro da igreja. Durante toda a entrevista, não fomos interpelados em nenhum momento, embora os membros da igreja olhassem para nós quando passavam por perto. Éramos, juntamente com nossos entrevistados, praticamente os únicos ali presentes que não trabalhavam na igreja, neste momento de intervalo entre um culto e outro.
Aquele que nos informou o horário do culto disse que se quiséssemos encontrar pessoas para entrevistar, bastava assistir o que aconteceria naquela noite, o “culto dos empresários”, no qual estariam presentes centenas de fiéis. Ao que parece, as segundas-feiras são dedicadas a tal culto. Naquela tarde, o tema era a prosperidade material e o trabalho.
Resolvemos então aguardar dentro da igreja. Conosco estavam algumas poucas pessoas também sentadas nas poltronas. Não esperamos muito até o início do culto, anunciado pela música tocada por um órgão. Durante a celebração chamavam a atenção algumas frases ditas pelo pastor: “A religião não resolve nada. O que resolve é a fé”, ou “Você não é obrigado a dar nada. Mas se você tiver algum dinheiro, dê a maior nota que você tiver na carteira, porque Deus tem muito mais reservado para você”, entre outras.
O culto durou cerca de uma hora. Antes de seu final, o pastor avisou que haveria um “mural” com ofertas de emprego no acesso à saída da catedral. Assim que terminou, fomos cada um de um lado do “mural”, como que cercando as saídas, tentar encontrar pessoas para participarem da entrevista. Essa parecia uma tarefa fácil, comparativamente à experiência de Aparecida, já que todos ali, quase sem exceção, estavam no culto pela questão do desemprego.
O tempo da narrativa
A entrevista teve duração de aproximadamente uma hora. Diferentemente do relato de Carioca, as falas dos entrevistados (no total foram quatro: três homens e uma mulher) se davam de maneira quase ininterrupta. Contudo, um deles, Clinton, destacou-se em relação à quantidade de vezes e de tempo que falava. Assim, as falas se dividiram entre as de Clinton e as do restante do grupo. Em geral, o grupo tendia a concordar com suas idéias e ficava boa parte do tempo em silêncio. Outro entrevistado, Mário, manifestava-se um pouco mais que os outros, mas freqüentemente endossava as opiniões de Clinton.
Um outro entrevistado, Túlio, após cerca de quarenta minutos, demonstrava claramente seu cansaço (ou era uma maneira de dizer que gostaria de ir embora) apoiando a cabeça no encosto do banco da frente. Isso, além das próprias falas, pareceu-nos um dos indicativos de que a entrevista chegara ao final. Embora Clinton ainda parecesse disposto a continuar, os outros três entrevistados permaneciam praticamente calados nos minutos finais. Solicitamos os dados do questionário sócio-econômico e encerramos a entrevista.
O tempo na narrativa
O tempo na narrativa não aparecia dividido cronologicamente, não havia uma rotina que regulava o dia, mesmo que fosse pela busca do emprego, como ocorria com os entrevistados no órgão sindical, conforme veremos mais adiante. Os eventos ocorriam ao sabor do vento (ou melhor, de Deus): não havia planejamento. Constatava-se que aquelas pessoas eram desempregadas por desalento17; duas delas, a rigor, nunca foram desempregadas (pois nunca foram empregadas). As demais tinham esperança, mas não demonstravam buscar emprego de forma obstinada. Precisavam sobreviver mais do que procurar emprego fixo. Assim, a “regulação” era dada pelas necessidades do aqui-agora. Já não havia mais tempo nem dinheiro a perder na busca de um emprego que se mostrava inexistente. “São poucas as vezes que eu saio pra procurar emprego, né? Mas sempre que eu tenho um tempo, aí eu procuro, porque eu faço outras coisa, né? Trabalho por conta própria, às vezes vendendo bala na rua... ganhando a vida, né? Tem família pra sustentar, tem tudo, né?” (Clinton).
Nossos entrevistados freqüentavam a igreja de forma bem distinta daqueles que iam a Aparecida. Ir ao culto fazia parte do roteiro do dia, assim como vender balas, eventualmente procurar emprego, comprar alimentos para casa etc. Além disso, a Catedral aparecia como espaço de acolhimento físico, por assim dizer, tão ou mais importante que o espiritual. Tratava-se de um lugar protegido da violência das ruas, que podia oferecer uma espécie de refúgio (gratuito): “Já até desanimei de ficar andando aí, perdendo tempo na rua. Eu já saio, venho pra Santo Amaro, passo, vejo que não tem nada e já venho pra igreja. É melhor vir pra igreja do que ficar andando a toa aí, na rua. Vou arriscar de tomar um tiro e no fim não achar nada. Não é verdade? Então é melhor sair já de uma vez e ir direto pra igreja, que você tá ganhando muita fé, mais ainda” (Mário).
O passado, o presente e o futuro apareciam narrados da seguinte forma: o passado devia ser esquecido, ou servir de mau exemplo, devido aos infortúnios que passaram a ocupar o lugar da prosperidade, perdida pelo desprezo à fé18. Isso levava a pessoa à igreja; o presente, portanto, era a tentativa constante, reconhecidamente árdua e demorada de se atingir uma bênção. O futuro, ao menos para aqueles que provarem ter a verdadeira fé, por conseguinte, era o alcance desta bênção. Era fundamental ainda a manutenção, a boa administração da fé, para que não se caísse novamente na desgraça. Desgraça que, por sinal, era manifestação do diabo, que estava sempre à espreita, aguardando um vacilo.
Pudemos observar que na entrevista feita em Aparecida do Norte havia oportunidade para emergência de uma ampla gama de explicações e saídas para o desemprego. Além disso, não havia nada que pudesse garantir ao fiel uma resolução dessa situação (nem mesmo a Santa). Na Igreja Universal do Reino de Deus, o leque de possibilidades era menor: a conseqüência da fé é a bênção, que mais cedo ou mais tarde tornaria a vida do fiel melhor, inclusive em termos materiais. Aliás, a prosperidade nesse caso era uma coisa só: o bem-estar espiritual e a tranqüilidade financeira andavam juntas.
A diversidade era mais presente em Aparecida. O espaço era multifuncional, as atividades dos visitantes, descentralizadas, como frisamos anteriormente. Porém, uma vez dentro da Catedral da Fé, o fiel cumpriria um ritual mais “focalizado”, a começar pela própria configuração do espaço e da ordenação dos horários de cultos.
III – A organização sindical: o grande “mercado” de trabalho
“A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas”
(Foucault, 1987, p. 166).
Ambiência
A construção do órgão sindical visitado – que funciona a partir da verba recolhida do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)19 – era bastante imponente, um prédio alto e arrojado. Logo na entrada havia uma enorme fila de pessoas com senhas seguindo as instruções do porteiro: “Vamos lá! Todo mundo com a senha na mão, rápido! Agilizando! Isso! Vamos, rápido!”. Ele conferia rapidamente as senhas e liberava a passagem, sem quebrar o ritmo de andamento da fila em direção à primeira das três salas de espera pelas quais os trabalhadores passariam antes de serem recebidos no guichê. A cena da entrada nos remeteu à imagem de uma fila de gado ou de uma linha de produção, ambas situações destinadas a otimizar resultados e a empregar a menor quantidade possível de recursos, seja de tempo, seja de capital, lançando mão de uma estratégia que confere a cada parte do processo organizativo seu devido lugar no quadro geral da produção – no caso, a ordem na fila e as devidas senhas.20
As atividades no órgão sindical seguiam um rígido sistema de organização e vigilância permanentes sobre a movimentação de quaisquer pessoas que entrassem no prédio. Ninguém andaria desacompanhado de um funcionário, que era incumbido de encaminhar o estranho pessoalmente ao seu destino, sem erros ou atrasos. Esse era o caso de Castro, o funcionário responsável por nos guiar em nossas visitas que, por andar sempre apressado e não ter “tempo a perder”, deixava-nos sempre atrás de si e tentando acompanhar seus passos rápidos.
Ao explicar aos vários funcionários o que pretendíamos com as entrevistas, ficamos com a impressão de que eles rapidamente inferiam os objetivos da pesquisa com base nas palavras-chave “estudantes de psicologia”, “USP” e “entrevistas”. Na dinâmica do lugar não havia espaço para comunicação, pois tudo deveria ser rapidamente transformado em ação. Ninguém parecia interessado em nos ouvir, a aflição era tanta em realizar as tarefas que não havia sequer interesse pela sua compreensão. Isso resultou num encaminhamento precipitado da nossa primeira entrevista que talvez tenha prejudicado seu desenrolar. Em nossa segunda visita, quando realizamos a entrevista em grupo, tentamos tomar um pouco mais as rédeas da situação, já que nos sentíamos empurradas por uma corrente tão forte que nos impedia de pensar, uma vez que, antes que pudéssemos minimamente entender o lugar em que nos encontrávamos, a instituição já havia decidido e encaminhado nossos próximos passos e ritmo.
No primeiro dia, quando chegamos à sala em que ficavam as pessoas com as senhas mais distantes – e que teriam assim mais tempo disponível antes de serem chamadas –, encontramos uma multidão. Enquanto ainda nos preparávamos para uma abordagem, Castro, com “pinta” de vendedor, iniciou a apresentação da “mercadoria”, orgulhoso do contingente que se apresentava à nossa frente, e nos oferecia de bandeja qualquer “perfil” – uma das palavras mais ouvidas por lá –, “homens, mulheres, pessoas de todas as idades, com todos os níveis de qualificação para executar os mais variados serviços”.
Enquanto pensávamos em quem abordar, Castro já falava com uma jovem. Surpreendemo-nos com seu dinamismo e passivamente assistimos e nos submetemos à sua iniciativa.
A abordagem feita pelo funcionário do lugar onde a entrevistada (Patrícia) procurava emprego talvez a tenha levado a associar a entrevista a essa busca. Possivelmente, sem a interferência da instituição e sabendo como seria a entrevista, ela se sentiria mais à vontade para recusar-se a participar.
Patrícia ficou sem-graça e bastante apreensiva desde o momento em que iniciamos a travessia do imenso local para chegar onde se realizaria a conversa – observadas por inúmeros engravatados – até o final da entrevista. A conversa foi realizada em três cadeiras alinhadas, em um corredor, com Patrícia no meio das duas entrevistadoras ouvindo o som do programa televisivo que distraía as pessoas que aguardavam sua vez na sala ao lado. Ainda mais inadequada foi a presença de Castro, que, argumentando que estávamos sob sua responsabilidade, aparecia por vezes para conferir o andamento da conversa.
Na segunda visita ao órgão, Selma (uma psicóloga) levou-nos a um enorme auditório em que se encontravam centenas de pessoas que provavelmente esperariam o dia todo até serem atendidas. Eram aquelas que possuíam as senhas mais distantes. Tais pessoas dispunham, portanto, de tempo suficiente para o trabalho que propúnhamos, sendo possível garantir o tempo do grupo sem o risco de haver uma quebra brusca em decorrência da chegada de sua vez na fila.
Entediadas e acima de tudo ansiosas, essas pessoas apesar de encontrarem-se muito próximas umas das outras não conversavam entre si, liam o jornal distribuído na entrada e outros panfletos contendo informações a respeito de empregos e recomendações de como se comportar em entrevistas de emprego. Ao invés de tranqüilizar os candidatos às vagas, o lugar parecia ser um potencializador de ansiedade e de um sentimento de inadequação às “exigências do mercado”. Aquelas pessoas que teoricamente não estavam fazendo nada, não estavam com tempo livre. Estavam tensas, nervosas esperando ser atendidas. Enfim, pré-ocupadas. Dessa forma, não é difícil imaginar como foi custoso encontrar pessoas dispostas a participar.
Apesar de, desta vez, termos conseguido maior autonomia para abordar as pessoas (tomamos muito cuidado para tentar garantir que as pessoas se sentissem à vontade para se recusar a participar), a vigilância também se fez presente. Selma esteve por perto tanto na abordagem, quanto na entrevista, mas, dentro do possível, conseguimos estabelecer um ambiente minimamente protegido, pois ela, de longe, não podia ouvir o que estava sendo dito.
Tanto Castro, como Selma sugeriram que disséssemos claramente aos nossos entrevistados que furariam fila, ou seja, que seriam atendidos logo após o término da entrevista. Afirmavam que ninguém aceitaria participar das entrevistas se não oferecêssemos algo em troca. E a moeda de troca era o tempo – que, se aceitassem participar, poderiam economizar bastante. Como nossa proposta era de que as pessoas participassem apenas se estivessem dispostas a discorrer a respeito de sua condição de desemprego (o que não aconteceu com Patrícia), não acolhemos a sugestão.
As pessoas eram vigiadas em suas mínimas ações: havia câmeras filmadoras em todos os ambientes, além do sem-número de funcionários, o que indicava que o início do processo seletivo se dava já a partir da entrada no prédio. Assim, havia preocupação de todos em manter uma postura perfeita – no sentido da “empregabilidade dos comportamentos” – para não correrem o risco de “perder pontos” na avaliação a que estariam permanentemente submetidos.
Note-se que a observância absoluta às regras impostas acontece, por vezes, tanto nos contextos do trabalhador empregado, quanto no do desempregado21, pois, em ambos, qualquer fuga do modelo disciplinar pode resultar em grandes perdas. Segundo Foucault (1987), o poder disciplinar é forte porque é “leve”, mal se nota porque o trabalhador, sabendo-se vigiado, nem ao menos chega a cometer a falta. O poder se torna quase “automático”.
O órgão visitado oferecia, entre outros cursos de qualificação, um de preparação para a entrevista de emprego, com dicas de como se comportar em situações profissionais. Interessante notar que as pessoas pareciam estar no lugar de maneira homogênea, moldadas de acordo com o perfil do “profissional perfeito” exemplificado nos manuais distribuídos no local, alguns publicados pelo próprio órgão.
O conteúdo dos manuais e dos cursos de preparação oferecidos visava à adequação do indivíduo às normas estabelecidas pelo mercado de trabalho. Mais que isso, eximia-se de qualquer problematização dessa realidade, que era naturalizada: “é preciso perceber que as vagas serão ocupadas por aqueles que estiverem melhor preparados, melhor qualificados e melhor adaptados a essas novas exigências de um mercado que evolui e se transforma rapidamente”. A responsabilidade sobre a conquista do emprego cabia totalmente ao trabalhador, estando atrelada à forma individual de encarar a situação de desemprego – se era persistente ou não –, devendo ele tratar de se qualificar adequadamente de modo a tornar-se “empregável”, tanto que ao final da cartilha, quando o trabalhador já estaria suficientemente instrumentalizado, a idéia colocada resume-se à seguinte frase: “agora depende de você”.22
O tempo da narrativa
A entrevista individual teve duração de aproximadamente quinze minutos e seguiu repleta de momentos de silêncio e de falas breves e objetivas. A dificuldade de pensar a respeito da situação de desemprego, relatada pela entrevistada, apareceu também no uso dado a esse espaço oferecido para reflexão. As frases a seguir dão a idéia de como o manejo do tempo estava sendo visto por Patrícia na situação de desemprego: “Não fico pensando o tempo todo nas dificuldades, aí eu me distraio bastante. Mas quando pára para pensar é horrível”. “Eu tento não parar para pensar... Ai, estou com vontade de chorar, melhor parar (ela chora)”. (Patrícia).
O tempo despendido na narrativa foi responsável por um maior contato com seus sentimentos a respeito do assunto, o que suscitou, como ela nos disse, uma explosão de angústias que tentava controlar. Em muitos momentos, Patrícia falou sobre a necessidade de pensar positivamente para não desabar, achando impossível parar para pensar e não desabar totalmente, pois não ter emprego parecia equivaler a não ter nada.
Já a entrevista em grupo teve duração de aproximadamente uma hora e quinze minutos e a distribuição das falas entre os participantes foi relativamente equilibrada, tendo sido possível que todos emitissem opiniões sobre o tema proposto.
O tempo na narrativa
Em ambas entrevistas, pudemos perceber que as pessoas acabavam preenchendo todo o dia como se estivessem trabalhando, saíam cedo para só retornar no fim da tarde. As diversas atividades eram, geralmente, ligadas ao trabalho: busca de emprego (distribuir currículos), de trabalho não-registrado (os “bicos”) que pudesse garantir alguma renda ou a de qualificação visando à inserção no mercado de trabalho. “O que eu faço? No momento, eu tenho uma tia que tem uma mercearia e eu ajudo e à noite eu faço curso de assistente de gestão empresarial. Até uns quinze dias atrás eu estava fazendo um curso de telemarketing aqui de manhã, à tarde eu ia para casa e à noite eu fazia outro curso. Então, ocupa a mente, não fica tanto pensando estou desempregada, estou desempregada...” (Patrícia). “E quem não tem isso aí tem que batalhar de outro jeito. Um dia sai para procurar serviço, outro dia sai para fazer um bico, tentar fazer um bico” (Nestor).
Ocupar o dia todo com atividades, além de possibilitar a busca do tão desejado emprego, evitava que se deparassem com sua dependência financeira, com a impossibilidade de fazer o que gostariam e com as situações de humilhação a que estavam expostos. O empenho nas atividades ligadas à busca de emprego parecia ser uma tentativa de se afastar do rótulo de vagabundo. Outras atividades não eram sequer mencionadas. Não se podia nem pensar no ócio, imbuído de valor negativo e associado à vadiagem23. O tempo tinha que servir ao trabalho. Dessa maneira, os valores morais implicavam uma organização específica do tempo, totalmente direcionado ao trabalho: “Quanto mais tempo fica desempregado, pior é para conseguir serviço (...) Porque aí eles não querem saber o tempo que você ficou trabalhando, querem saber o tempo que você ficou parado. O que você ficou fazendo neste tempo que ficou parado. Então, geralmente, como não tem nenhum emprego, eles pensam que você está vadiando. Geralmente não é vadiação, é que não tem outra opção, você tem que trabalhar (e de bico) sem registro para manter o lar, entendeu?” (Nestor).
Contavam que muitas vezes eram obrigados a ficar em casa ao invés de procurar emprego. Uma das razões apresentadas era a necessidade de buscar trabalhos ocasionais – “bicos” – para garantir o suprimento de necessidades imediatas e até mesmo para conseguir pagar condução para procurar emprego. Outra era a espera de resposta das empresas às quais entregaram currículo. Surgia assim o dilema: ficavam em casa esperando uma resposta, que muitas vezes não vinha, e perdiam um dia de procura de trabalho, ou saíam para procurar emprego e corriam o risco de perder uma vaga.
Dessa forma, precisavam organizar o tempo de modo a, além de procurar emprego e esperar possíveis retornos das empresas, conseguir executar trabalhos ocasionais que suprissem suas necessidades imediatas.
IV – Poupatempo: um serviço público que também opera a recolocação de mão-de-obra
Ambiência
A primeira observação a ser feita sobre a interação social que ocorreu entre nós, a instituição e os entrevistados está encarnada explicitamente no próprio nome da instituição: “Poupatempo”. O objetivo pelo qual a organização existe é o de “poupar o tempo” das pessoas na prestação de alguns serviços públicos essenciais, como a obtenção de documentos, a recolocação profissional e o pagamento do seguro desemprego. Assim, os usuários tendem a permanecer o menor espaço de tempo possível no local. Isto se refletiu diretamente no modo pelo qual as entrevistas foram conduzidas, em como a “escassez de tempo” limitou a possibilidade de contato com os entrevistados. Outro fator que se ressaltou foi a relação de recepção da instituição com seus usuários: de nossa parte, fomos sempre bem atendidos. E isto parecia pairar como o “espírito geral”, a norma da casa. De fato, o tratamento dos funcionários da instituição poderia ser resumido em uma palavra: “eficiência”. O que não implica uma eficácia das ações institucionais. Tal eficiência podia ser notada tanto no rápido atendimento, quanto no extremo respeito que os funcionários dedicavam aos usuários.
Dois grandes prédios públicos alojando diversos serviços, equipes grandes articulando e orientando a passagem, a permanência e o destino das pessoas dentro da instituição, as placas e o comércio paralelo que se desenvolve nas vizinhanças do lugar, tudo isso se apresentava como elementos que nos davam alguma margem de contorno da própria dinâmica de funcionamento institucional. De fato, há um alto volume de pessoas circulando pelo Poupatempo diariamente, mas a permanência tende a ser curta. Todos os serviços contam com um procedimento de realização que familiariza o usuário com a proposta da instituição, “operacionalizando de modo eficiente” a possibilidade de satisfazer sua demanda em curto prazo.
Dessa forma, nas agências da instituição em que realizamos a pesquisa (os postos de atendimento da Sé e de Santo Amaro), as interações observadas pareciam se restringir mesmo ao contato com a senha, ao tilintar intermitente das campainhas, ao piscar dos números das senhas nas tevês, ao chamado insistente dos funcionários para os distraídos, ao contato direto nas orientações de serviço e na sua prestação. As pessoas – sempre em grande número – eram reunidas e permaneciam todas juntas, em geral em silêncio, acompanhando o ritual, esperando a sua vez de participar. Elas tendiam a permanecer sentadas juntas, mas em isolamento umas das outras. As poucas conversas restringiam-se aos amigos e aos familiares. Toda a atenção era dirigida e canalizada para o funcionamento da instituição, para o manejo ritualístico do tempo em função da expectativa de ser o próximo a ser atendido. Uma dinâmica de funcionamento bastante clara e objetiva, de fácil assimilação, eficazmente funcional ao menos no que se referia ao atendimento, o que não implicava a obtenção de uma nova vaga de trabalho. Carla: “Por isso que tem vezes que você vai e não consegue nada. Como a gente foi na terça-feira... e hoje, né?”, Paula: “Sexta”, Carla: “...então, e não consegue nada, fica o tempo todo lá e não tem nada onde você se encaixe”.
Tivemos a necessidade de nos “adaptar”, em certa medida, a essa dinâmica do lugar. Abordar aqueles que acabavam de pegar a senha, pois eram os que potencialmente permaneceriam mais tempo aguardando o atendimento, foi nosso meio de encontrar um maior grau de liberdade e espaço de tempo para a realização das entrevistas. Realizamos, ao todo, seis entrevistas, sendo cinco individuais e uma em grupo.24
O tempo da narrativa
Assim, é fundamental considerar, na instituição, o manejo do tempo como fator central de influência na organização e expressão das condutas. Em geral, nossas entrevistas aconteceram frente a esta dinâmica: o contínuo soar das senhas, dividindo a atenção, marcando a contagem regressiva para um fim súbito da conversa. Algumas duraram pouco menos de dez minutos, algumas chegaram a quarenta minutos. Foram poucas as oportunidades em que uma entrevista pôde se realizar até seu término espontâneo, sem essa presença paralela e definitiva.
O tempo na narrativa
Constatamos que nossos entrevistados abordavam o desemprego como uma situação angustiante. Experiência que era vivida como uma realidade social de difícil resolução, que se articulava frente a “regras” condicionadas pela sociedade de mercado que “não estão diretamente” sob o controle das pessoas. A impotência dos entrevistados diante de tais “regras do mercado” parecia ser um dos elementos que mais os incomodava e os deixava vulneráveis, pois eram essas “barreiras” que paralisavam o presente e prolongavam as incertezas quanto ao futuro. Em geral, reconheciam sua situação como, no mínimo, preocupante devido à possível falta de recursos para a sobrevivência no futuro; reconheciam o papel da família como célula de sobrevivência e apoio, mas também como exigência, na forma daqueles que dependem do dinheiro gerado por seus empregos para prover o sustento; reconheciam, também, que seus esforços presentes não eram garantia de sucesso nem de construção de um futuro diferente. Bem como presentificavam a insegurança, a ansiedade, o medo de “corromper-se em atitudes ilícitas” ou em ações de violência, caso se encontrassem em extrema necessidade. De forma geral, todos estavam comprometidos com a idéia de “reinserção econômica” por alguma via de ocupação, fosse trabalho formal ou informal, fosse um vínculo permanente ou breve – o “bico”. Nessa medida, percebemos que lançavam mão de certos recursos em tal empreendimento, como formas de suportar e resistir diante do peso das situações vividas: calma, perseverança, persistência, espera resignada, “correr atrás [de emprego]” eram algumas das formas identificadas de lidar e suportar o desemprego vivido. “Ah..., é aquela vida, né? A gente vai tocando, vai... enquanto conseguir a gente vai se mantendo, né? Fazer o quê? Só não pode é, es... esquentar a cabeça, fazer besteira e se preocupar, né? Igual a muitos fazem, né? Parte pro lado errado, pro lado... então, isso é que é complicado, né?” (Pedro). “Eu não sou pessoa de ficar parada, de ficar, e depois eu falo assim: eu tô desempregada, sabe? Não dá! Não dá, porque você correndo atrás, entendeu? De semana em semana, que nem todo dia...” (Luciana).
Nesse contexto, observamos que a maioria dos entrevistados dizia dedicar grande parte de seu tempo à busca de um emprego. Em geral, falavam de sua rotina como “uma procura de emprego”. Eles descreveram seu dia-a-dia afirmando, principalmente, detalhes sobre onde procuram emprego, como acontece essa procura e como “gerenciam” seu tempo “livre” na procura do emprego. Era dessa forma que o desemprego aparecia como “um penoso trabalho de procurar emprego”, uma ocupação não-remunerada, mas com exigências comparáveis à de diversos empregos: “Olha, a minha rotina tá sendo a casa e procurar emprego. Todo dia eu saio, hoje mesmo eu vim aqui (...) e amanhã eu vou voltar de novo para procurar emprego” (Josué).
A rotina, construída pelos próprios desempregados, não chegava a ser “fixa”, mas apresentava uma certa periodicidade: “[A senhora tem assim, um dia específico para procurar emprego?] Não (...) segunda a sexta, qualquer dia eu saio. Não todos os dias seguidos, mas sempre duas ou três vezes na semana (...) segunda, quarta e sexta são os dias que eu venho mais” (Benedita).
No entanto, às vezes, a procura de emprego não era reconhecida como uma ocupação legítima, mas sim como falta de ocupação. Passa desapercebida: “[E o dia da senhora, como normalmente é?] Se é assim, movimentado, agitado ou calmo? Calmo (...) por enquanto estou, em casa, sem fazer, nada. Só à procura de algum trabalho, assim” (Benedita).
Ainda pesavam nessa realidade uma série de restrições e exigências relativas aos discursos de “empregabilidade”: “E isso tá complicado e... cada vez pior, né? Eles tão exigindo muito. Se tem menos que dezeseis anos, fala que não tem experiência, se tem mais de trinta, fala que a idade tá avançada” (Pedro). “Tem, entendeu, umas qualificações que eles pedem, que na área mesmo ali, no serviço dia a dia que não tem necessidade, não tem precisão, né? Então, fazer o quê?” (Carla). “Ah, tem dificuldade assim mais na idade, né? Às vezes eu passo da idade, eles querem menos, né? Eu já tenho quarenta e quatro, aí, isso dificulta mais, entendeu?”; “[A senhora coloca essa coisa da idade como uma coisa que...] que pesa bastante, porque... eu já coloquei currículo em vários hospitais também, me chamaram, mais... eu e outras candidatas, né? Eles olharam, experiência é importante, mas eles olharam a idade também, mais... não vou desanimar não. É assim mesmo. Um dia eu vou encontra um” (Benedita). À pergunta “Como é que vocês se sentem?”, Carla responde: “Um pouco humilhada”, Paula: “É preciso, num preciso mais fazer? Nada! E pra que exigir tanto? Pra quê?! Puxa, dá uma chance, uma oportunidade. Porque igual fala ‘precisa de experiência’, põe ali pra fazer o serviço, vê se a pessoa é capaz ou não”, Luciana: “Isso!”, Paula: “Não fica com esse negócio de ver se tem experiência em carteira, deixa a pessoa, dá uma oportunidade pra ela, mais nada! Fica esperando, experiência, experiência pra quê? Me sinto só... um pouco humilhada”.
O que encontramos nesse campo foi a recorrência de uma série de fatores, fragmentos de um “discurso de empregabilidade” que indicava aquele que potencialmente seria o “candidato contratável”. Discurso que inclinava para a esfera da competência, particularmente da sua exploração estritamente no âmbito individual de “qualidades estéticas”, “competências múltiplas” e “responsabilidades individuais”. Exigências que eram mediadas por uma determinada expectativa de uso (útil) do tempo dos trabalhadores pelas empresas. Ser “novo” conotava inexperiência, ser “velho” desvalorizava a experiência, não cumprir os “requisitos da empregabilidade” conotava que o uso que o trabalhador fazia de seu tempo não se adaptava às necessidades imperativas do mercado. Todos esses preconceitos passavam a ser tratados como fatos, naturalizados como requisitos necessários, contingentes para a contratação. Exigências às vezes contraditórias que extrapolavam os limites de todos os possíveis candidatos presentes.
Além da humilhação, essas entrevistadas falavam de outras experiências e sentimentos que se instauravam com o tempo de espera: a frustração, o pessimismo, o desânimo. “Meu, sempre é aquela mesma desculpa, ‘a gente vai te chamar, espera que a gente vai te ligar’, sempre assim... chega lá, faz a entrevista: ‘ó, aguarda que a gente vai chamar’. Você aguarda... e é isso, fica lá na expectativa... Outra hora, vai chamar, você espera uns dias, o cara falou que ia chamar e não chama, aí você começa a ficar meio pessimista. Fica meio desanimado mesmo” (Josué).
Em alguns momentos das entrevistas, deparamo-nos com uma atenção dirigida ao papel do poder público em agir diante da situação do desemprego. Em geral, um descontentamento com os rumos e a realidade da política atual, um desgosto frente a uma realidade apresentada na imagem da “especulação financeira” e da exigência opressiva e nem sempre racional quanto ao fator estético da imagem pessoal/profissional – o que aparecia mesmo como um fator base, conforme Josué, para se pensar a crise da empregabilidade. Assim, também aparecia uma esperança em mudanças significativas que refletissem diretamente na situação econômica e na oferta de empregos, depositada na figura do próximo governo. Os entrevistados também sempre reiteravam a frustração com a organização da sociedade de mercado, a dificuldade de sobrevivência material, a necessidade de restringir o uso das condições objetivas de infra-estrutura, as formas de marginalização social, a humilhação, a anulação do sentido de vida, de um projeto de futuro ou continuidade no crescimento pessoal: “Olha, hoje a política do país, do Brasil, é muito mais especulativa, como se falam (...) hoje as empresas vêem na pessoa muito a aparência, a pessoa como ela é... não olha a capacidade, o outro lado da pessoa. Muitas pessoas têm capacidade, mas pra isso você tem que dar oportunidade pra ela mostrar. Senão não tem como ela mostrar” (Josué).
É interessante ressaltar que houve uma situação singular no conjunto das entrevistas: o caso de Marta, agente de turismo que perdera o emprego há um mês. Ela falou de sua experiência de desemprego também como um “período de férias entre empregos”. Sua entrevista, por meio do que foi observado, soou como uma situação diferente dos outros entrevistados, pois ela não estava em dificuldades financeiras.
Marta mencionava duas organizações de tempo. Uma delas era a atual, na qual ela tinha bastante tempo disponível para, além de procurar emprego, organizar sua vida pessoal, aspecto de sua vida que ficou negligenciado enquanto trabalhava. Colocava sua falta de trabalho, inclusive, como um período de férias: “Eu estou achando ótimo, eu estava tão estressada (...) eu estava para tirar férias”.
A outra organização do tempo colocada por Marta foi a de seu último emprego, narrada em detalhes para demonstrar seu ponto de vista, de que necessitava de tempo para descansar e para colocar sua vida pessoal em ordem: “Como era? Ah, era totalmente estressante.... Então é assim: todo mundo liga lá e quer tudo pra ontem...”.
Aparecem aí as duas organizações do tempo mencionadas por Marta e seus contrapontos – a rotina estressante do serviço versus a tranqüilidade do desemprego. Tranqüilidade que também denotava insegurança: “É óbvio, né, isso aqui eu espero que não se estenda por muito mais tempo”.
Por fim, nota-se que o depoimento de Marta demonstra o quanto a percepção de fatores como a necessidade de descanso, refletida diretamente nas rotinas dos entrevistados (seja no emprego, seja procurando por ele), só era passível de ser percebida à medida que não existissem outros fatores predominantes, como a necessidade financeira. Era esse “grau de liberdade” que permitia que se apropriasse de um novo e diferente projeto de trabalho que redimensionasse sua experiência com o manejo do tempo pensando a qualidade de vida. “Em São Paulo, é uma loucura, né? Então... mas assim, você tem que ter tempo para você, e eu tenho duas filhas, o pai não tá perto, não tá nada, e eu tenho a obrigação de ficar com elas. E cuidar de mim, né? Então a minha proposta agora também é essa, (...) trabalhar menos, assim, mas pelo menos que eu trabalhe bastante durante o dia, mas que eu faça o meu horário, sabe?” (Marta).
Num aspecto mais amplo das entrevistas, no entanto, a realidade do desemprego era algo que devia ser evitado, pois a necessidade da remuneração se fazia presente: “Por enquanto eu quero é trabalhar (...) o meu objetivo é arrumar um trabalho, porque sem trabalhar hoje tá tudo muito caro, fica difícil a gente se manter...” (Benedita). “O desemprego hoje é uma coisa, como eu posso dizer... a pessoa é... ‘excluição’, você se sente excluído da sociedade. Uma pessoa sem valor, pessoa sem... objetivo, sem nada. Ou seja, é um nada, a pessoa é nada. Desemprego, a pessoa se sente nada”, “(...) meu, é coisa horrível, porque você fica sem expectativa, ontem eu tinha projetado um futuro totalmente diferente, né, trabalhar, fazer a faculdade, depois arrumar um bom emprego, abrir um próprio consultório pra mim, depois que eu fiquei desempregado eu vi tudo isso acabar (...) você não pode projetar nada, você fica como uma pessoa inválida, o tempo todo sem valor” (Josué).
Tal condição de desempregado sujeita o trabalhador à desilusão e à perda de seu valor como cidadão. Nessa perspectiva, o emprego é central porque permite à pessoa participar da sociedade, ele oferece acesso às condições materiais necessárias para garantir a sobrevivência e para projetar uma perspectiva de futuro a ser construído. Privar uma pessoa dessas condições diretamente associadas ao trabalho é relegá-las ao plano da exclusão social, da marginalização tanto material, quanto subjetiva, uma vez que não só há o empobrecimento material, como também há a marginalização da participação social. A crise do desemprego passa a refletir a crise no suporte social da existência humana. Esse conflito manifesta, entre outras coisas, que um trabalhador desempregado tem como “opção” apenas a marginalização destinando-o à miséria total, ao desamparo. O Homem sob a identidade de “trabalhador desempregado” vê-se imobilizado diante das amarras atuais da ordem econômica, às margens de uma sociedade cada vez mais dita “de mercado”.
Um comentário resume a opinião sobre esta “vida de desempregado” em que se vive todo tempo “livre” estruturado pela procura de um emprego e das incertezas e angústias decorrentes desta procura: “[E a rotina, como tá sendo?] Cruel” (Amélia).
Enfim, em todos os sentidos apresentados pelos entrevistados do Poupatempo, o tempo sempre aparece condicionado ao uso produtivo, a uma ação que validaria não só a experiência, mas que a tornaria útil. É o que essas entrevistas nos apresentam na forma como os conteúdos estão organizados em termos de protestos, desabafos, de omissões políticas, de frustrações sociais, de experiências de exclusão, marginalização, anulação da identidade, da cidadania e além. Assim, a maneira encontrada por nós de como os entrevistados lidam com o desemprego faz jus ao próprio nome da instituição: eles buscam uma rápida recolocação no mercado de trabalho. Eles estão poupando seu tempo de desemprego, assim poupando-se da angústia gerada por essa espera, pretendem poupar-se de um sofrimento real ou potencial que se impõe numa contagem regressiva contra sua própria sobrevivência, contra a paralisação de suas vidas.
Considerações finais
Conforme hipótese levantada no início do estudo, vimos que, em diferentes espaços, o modo como o desemprego é verbalizado – e comunicado de forma mais geral – é também diferente.
Além das distinções observadas referentes ao tempo da narrativa e ao tempo na narrativa, pudemos apreender como os diferentes ambientes se expressaram nos tipos de conteúdos verbalizados: monotemáticos (focados no desemprego) ou pluritemáticos (o desemprego emerge ao lado de outros temas). Assim, observou-se uma dualidade: nos serviços de recolocação de mão-de-obra, de modo geral, o desemprego emerge como tema único. No bar e nas igrejas o assunto do desemprego convive com outros.
Em todos os locais, o tema do desemprego é abordado em três dimensões: as explicações sobre o desemprego, a verbalização da vivência pessoal do desemprego e as críticas à lógica ou às exigências do mercado de trabalho. Deve-se notar que, sem exceção, todos os entrevistados dedicaram tempo da entrevista para explicar as causas do desemprego, demonstrando que há uma necessidade de organizar discursivamente a situação vivida. Essas narrativas estavam articuladas aos locais nos quais foram feitas as entrevistas. Por exemplo: sendo o desemprego explicado pela falta de qualificação, o desempregado tenderia a “resolver” esse problema procurando uma instituição na qual são oferecidos cursos de requalificação; por outro lado, se essa explicação repousa na fé, a tendência seria buscar uma instituição religiosa. Evidentemente em todos os casos não há uma única explicação para o desemprego e, em decorrência, não há uma forma única de lidar com ele. Ou seja, a relação entre causas e efeitos não se dá de maneira mecânica ou totalizante: o “religioso” que procura na igreja um caminho para seu sofrimento frente ao desemprego poderá também visitar um órgão sindical e assim por diante.
Observa-se que as explicações para o desemprego recaem sobre a falta de empenho individual/discurso da empregabilidade (todos com exceção da Basílica de Aparecida) e de oportunidades de qualificação (órgãos de recolocação profissional), bem como sobre a consideração do ponto de vista dos empresários – que promoveriam a rotatividade dos empregados (órgão sindical e Basílica de Aparecida) – e como sendo uma punição pelos erros cometidos no passado (bar e Igreja Universal do Reino de Deus).
A fé, embora apareça como explicação nas entrevistas realizadas nas igrejas, apresenta distinções. No caso da Igreja Universal ela assume posição central, embora não única, para explicar o desemprego e a obtenção de emprego, ou seja: é condição necessária, mas não suficiente para sair da situação de desemprego. No caso da Basílica de Aparecida do Norte, a fé pode ajudar na obtenção de um emprego, mas não dá conta de explicar o desemprego.
A religiosidade também surgiu em algumas das entrevistas realizadas no bar para explicar o desemprego, porém aqui era fruto de uma punição pelos erros que se acredita ter cometido no passado. O passado também apareceu entre os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus com bastante relevância, mas está mais atrelado ao desprezo à fé do que a qualquer outro fator.
No caso do bar, a polifonia apresenta-se em frases intercaladas por meio de ditados populares, citações da bíblia, as eleições presidenciais que se aproximavam, as explicações para o desemprego. Também, em consonância com o local e com a pluralidade de temas, é aqui que oposições diversas se apresentam: passado/presente, miséria/cerveja, dignidade/humilhação. Nesse contexto, a polifonia não necessariamente se encaminha para uma síntese.
A polifonia dos discursos encontrada no bar assemelha-se a uma outra pluralidade de experiências observada em Aparecida do Norte: dentro do mesmo espaço geográfico pudemos observar diversas atividades religiosas, comerciais, de lazer e sociais. Plurais se comparadas umas às outras e plurais quanto à singularidade de cada uma dessas experiências tomadas individualmente.
Outro aspecto comum à maioria das entrevistas é o das críticas às exigências do “mercado de trabalho” que apontam para o exagero das qualificações impostas pelos empregadores (discurso da empregabilidade). Muito freqüente foi também a desaprovação ao governo, que não garantiria níveis adequados de qualificação e muito menos ofereceria uma política de geração de emprego e de estabilidade social.
Há uma diferença na representação frente às exigências do mercado entre os lugares em que o desemprego é objeto. No órgão sindical, a causa do desemprego aparece mais associada à falta de qualificação, ou seja, a uma espécie de inadequação presente, por exemplo, nas lágrimas da entrevistada Patrícia e vistas como inconvenientes no momento em que relatava seu cotidiano; o trabalhador passa a ser responsabilizado e a se responsabilizar por sua situação de desemprego. No Poupatempo, a reinserção no mercado de trabalho é mais enfatizada do que a (re)qualificação. Há uma noção de que certas exigências para obtenção de emprego são absurdas, a indignação é mais ressaltada do que a tentativa de adequação às “imposições” dos empregadores.
Podemos afirmar que em alguns lugares encontramos maiores facilidades de comunicação do que em outros. As condições que favoreceram esse contato foram dadas pela organização do tempo e do espaço. Houve casos em que as condições arquitetônicas dificultaram a comunicação, como no caso de cadeiras enfileiradas e fixadas ao chão (Igreja Universal, Poupatempo e órgão sindical). Em outras ocasiões, as condições do ambiente se tornavam o fator limitante para as interações, como a necessidade de atenção ao chamado externo e a imposição de rotinas de uso do tempo (Poupatempo e órgão sindical). As condições ambientais sugerem e conformam o comportamento esperado das pessoas nesses locais.
Dessa maneira, constatamos que as semelhanças, e mais notadamente as diferenças, dão-se fundamentalmente pela “função” social de cada local estudado e das representações de desemprego das quais essas pessoas são portadoras. É evidente o fato das instituições em que estavam presentes nossos entrevistados aparecerem claramente nas falas e, por vezes, na própria feição da entrevista (o tempo da e na narrativa). Temos claro que, por este ser um estudo qualitativo baseado em entrevistas semi-estruturadas, cada entrevista é única, exclusiva daquele momento e local. Assim, embora não se trate de uma análise institucional, como já ressaltamos, isso não nos impede de afirmar o peso do caráter da instituição entrelaçado à subjetividade do indivíduo ou do grupo que relata suas experiências frente ao desemprego.
Por fim, vale frisar que em algumas vezes os depoimentos trouxeram lembranças tristes e “forçaram” os entrevistados a entrar em contato com o sofrimento, além de expô-lo a nós, o que nos deixou em situações desconfortáveis. Contudo, paralelamente a isso, observamos que, além de constatar as diferenças acima mencionadas, nossa pesquisa por vezes promoveu a emergência de experiências dissonantes em relação ás expectativas de cada lugar. Isto é, nossos entrevistados contaram com um tempo para relatar suas experiências e refletir, em maior ou menor grau, sobre os determinantes do desemprego em suas vidas e no país, de maneira geral.
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Endereço para correspondência
E-mail: katiacker@hotmail.com / maamarien@yahoo.com.br
Recebido em: 01/11/2003
Envio de pareceres em: 15/03/2004
Aprovado em: 07/04/2004
1 Pesquisa realizada como estágio obrigatório das disciplinas Seleção Profissional I e II do curso de psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 2002. A supervisão ficou a cargo de Leny Sato e a proposta de pesquisa foi elaborada pelas professoras Maria Luísa Sandoval Schmidt, Leny Sato e pela psicóloga Tatiana Freitas Stockler das Neves.
2 O Poupatempo é um programa criado pelo Governo do Estado de São Paulo. Os postos do Poupatempo reúnem vários órgãos e empresas prestadoras de serviços de natureza pública e serviços de apoio num único espaço. Alguns dos serviços oferecidos são: obtenção de documentos, primeiro emprego, pagamento do seguro desemprego, recolocação profissional, dentre outros.
3 Tínhamos como critério o definido formal e objetivamente: desempregado como a condição de ausência de um vínculo de trabalho assalariado.
4 É preciso ressaltar que o estudo da ambiência refere-se à identificação dos elementos e contingências que condicionam a nossa interação com um dado ambiente. Nosso estudo não abrange qualquer proposta de análise institucional das instituições mencionadas. Distintamente de propostas de análise institucional, não se trata de reconhecer se há coerência entre as ações institucionais concretas perante a identidade e os objetivos pré-estabelecidos na formação da instituição. Sendo assim, não se trata de analisar a coerência do caráter institucional, mas sim de identificar e analisar sua ação e influências na nossa interação com tais ambientes enquanto campo social.
5 Vide Jahoda (1987).
6 Segundo Merleau-Ponty (1945), a “Temporalidade” é apresentada como um fenômeno vital contíguo à síntese da experiência pessoal articulada no presente, que não se impõe por uma unidade temporal formal previamente estabelecida, mas sim por uma “pulsação singular do coração humano”, atravessada por sentidos temporais diferentes – presente, passado e futuro – dada a consciência no sentido da realização de um projeto. Trata-se de reconhecer a dimensão da subjetividade para acessar esse senso da temporalidade das experiências: uma presente passagem da vida por intermédio dos sentidos compreendidos pela consciência.
7 Foram realizadas três entrevistas com homens desempregados (uma individual e duas em grupo).
8 As entrevistas foram realizadas no período de campanha para eleição presidencial de 2002, quando os principais candidatos eram Lula e José Serra.
9 Os nomes são fictícios e este, excepcionalmente, foi escolhido pelo próprio entrevistado.
10 Jornalista da Rede Globo de Telecomunicações assassinado em 2002 em favela do Rio de Janeiro, enquanto realizava uma matéria.
11 Rua de comércio atacadista e popular no centro da cidade de São Paulo.
12 Shopping Center de São Paulo.
13 É interessante apontar que essas atividades que descrevemos, dispostas no espaço da basílica de Aparecida, encontram precedentes históricos, conforme atesta Houaiss (2001), no verbete basílica: “Entre os romanos, edifício público, coberto e retangular, com três naves separadas por colunas, que abrigava mercados, tribunais ou onde se reuniam comerciantes e pessoas ociosas, e no qual, mais tarde, se congregaram os primeiros cristãos”.
14 Neste momento, gostaríamos de citar parte da letra da canção “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, que nos pareceu bastante pertinente: “Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei / Transformai as velhas formas do viver / Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei / Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei”.
15 Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho, serviço através do qual a pesquisa foi realizada.
16 Essas noções, ligadas a aspectos da moral e da ética do trabalho, são bastante comuns em nossa sociedade. Foram exploradas por diversos autores, em diferentes épocas. Cf. Forrester (1997), Krisis (2003) e Lafargue (1999).
17 O desemprego por desalento (DIEESE/SEADE) refere-se às pessoas que, desencorajadas pelas condições adversas do mercado de trabalho, interromperam a procura por emprego, embora continuem querendo trabalhar.
18 A “fé” não aparecia como decorrência direta da religião na opinião dos entrevistados. Era possível, e mesmo freqüente, ter religião e não ter fé. Tal idéia havia sido defendida com bastante ênfase pelo bispo no culto, que assistimos antes da entrevista. Observemos o seguinte diálogo. Clinton diz: “A igreja... que nem o próprio bispo tava falando: a igreja, não [pode mudar a situação de passar por dificuldades]; a religião, não. A religião não muda...”, ao que Mário responde: “É a fé da pessoa”.
19 O FAT é um fundo especial vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), destinado ao custeio do Programa do Seguro-Desemprego (em que se incluem os serviços oferecidos pelo órgão sindical que visitamos), do Abono Salarial e ao financiamento de Programas de Desenvolvimento Econômico por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Foi instituído em 1990 como um fundo destinado a custear as políticas de mercado de trabalho no Brasil e sua receita provém quase totalmente das contribuições do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP). O Programa do Seguro-Desemprego é responsável pelo tripé básico das políticas de emprego: Benefício do seguro-desemprego; Intermediação de mão-de-obra; Qualificação profissional.
20 Segundo Foucault, em Vigiar e punir, a divisão das atividades, que são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente, resulta na utilização disciplinar do tempo.
21 É importante lembrar que não há muitas diferenças nas condições de submissão a que estão expostos, pois o trabalhador pode perder seu emprego ao menor deslize e o desempregado pode não ser contratado por um motivo banal ao qual não deu atenção ou deixou de cuidar ou corrigir.
22 A população de entrevistados na organização sindical ia de 20 a 44 anos, casados, solteiros, viúvo e divorciado, com tempo de desemprego variando entre meses e 5 anos e escolaridade entre ensino fundamental incompleto e ensino médio completo.
23 Vadiagem constitui crime, de acordo com o artigo 59 do código penal, que diz: “Vadiagem: entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita: pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”.
24 Pedro, 39 anos, confeiteiro, desempregado há 1 ano e 8 meses; Benedita, 44 anos, enfermeira, desempregada há 1 ano; Marta, 32 anos, agente de turismo, desempregada a cerca de 1 mês; Josué, 26 anos, auxiliar de vendas e operador de telemarketing, desempregado a 4 meses; e o grupo de amigas: Amélia, 28 anos, auxiliar de produção, desempregada há 4 meses; Patrícia, 25 anos, auxiliar de produção, desempregada há 1 ano e Carla, 21 anos, desempregada há 1 mês, vendedora.