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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
Print version ISSN 1516-3717On-line version ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. vol.9 no.1 São Paulo June 2006
ARTIGOS
O juiz de água: uma forma tradicional de organização de trabalhadores agrícolas para a distribuição de água de irrigação1
The judge of water: a tradicional way of rural workers’ organization for the distribution of water
Jesús Eduardo Canelón Pérez2
Universidad Centroccidental Lisandro Alvarado, Barquisimeto, Venezuela
RESUMO
O trabalho tenta mostrar como as pessoas têm se organizado para a distribuição de água de irrigação numa região do semi-árido ocidental da Venezuela. Apresenta parte da história da legislação na área e particularmente como, por meio da eleição de um juiz de água, com uma tradição de mais de 150 anos, distribui-se a água no Vale de Quíbor. Como arcabouço teórico e metodológico, utilizo várias noções (todas elas baseadas na perspectiva do construcionismo social) – campo-tema, matriz, interface social e práticas discursivas – para a compreensão, por meio do discurso, de formas não institucionalizadas de organização da irrigação de água. O trabalho visa contribuir com os estudos da psicologia social sobre problemas localizados em zonas rurais.
Palavras-chave: Juiz de água, Água de irrigação, Organização tradicional, Interfaces sociais, Construcionismo social.
ABSTRACT
This paper explores the ways in wich rural workers get organized in order to distribute water irrigation in a semi arid region of Venezuela. It is based on a theoretical as well as a methodological social constructionist aproach. To do so it presents a historical review of water legislation and aparticularly dicusses the rol of water juris figure, elected by agricultural workers, as part of a 150 year tradition in the Quibor’s Valley of Venezuela. This work aims to constribute to the studies in social psychology within rural areas.
Keywords: Water juri, Water irrigation, Traditional organization, Social interfaces, Social constructionism.
Introdução
O Vale de Quíbor é uma das regiões agrícolas mais produtivas da Venezuela. São inúmeros os estudos feitos sobre o cotidiano do Vale, entre eles, trabalhos sobre a produção agrícola, seus solos, seu clima, sua fauna e flora, seus habitantes e, muito especialmente, seus problemas com o uso e distribuição da água de irrigação nessa região semi-árida. Há mais de trinta anos iniciou-se a construção de uma represa para aliviar essa problemática e aumentar a capacidade produtiva de seus solos. Porém, poucos são os estudos que a partir da psicologia social, ou de outras ciências sociais, têm tentado dar voz às pessoas que vivem nesse Vale. O que pretendo neste artigo é apresentar uma das versões possíveis sobre a gestão da água de irrigação na região, focando uma das fontes de água mais importantes, o riacho Atarigua, especialmente no que diz respeito à figura do juiz de água na dinâmica produtiva do lugar.
Faço um pouco de história sobre as características do Vale para nos localizarmos nesse espaço. Continuo com uma apresentação sobre as leis e regulamentos que desde Espanha vieram com os “colonizadores” e que foram e são a base para o que hoje temos como leis (municipais e nacionais), regulamentos e normas para o manejo das águas no Vale, entre elas as do riacho Atarigua, com uma tradição de mais de 150 anos. Em seguida, faço alguns comentários sobre a gestão de água, sua significação como problema e as bases teóricas e metodológicas com os quais sustento minha pesquisa.
Escolhi para este texto as práticas discursivas (M. J. Spink, 1999) de duas pessoas que têm a ver com o uso da água do riacho. Um juiz de água e um agricultor com muitos anos de trabalho e usuário dessa água. Por meio dos diálogos que mantive com eles, vou construindo os sentidos atribuídos, tanto à gestão da água de irrigação, como aos conflitos que surgiram na distribuição e no uso coletivo do riacho. Como arcabouço teórico e metodológico, utilizo também três noções – todas elas baseadas na perspectiva do construcionismo social: campo-tema (Spink, 2003a), matriz (Hacking, 1999) e interface social (Long, 2001) – para a compreensão, por meio do discurso, de formas não institucionalizadas de organização da irrigação de água. O trabalho visa contribuir com os estudos da psicologia social sobre problemas localizados em zonas rurais.
Mostro que a gestão tradicional da água é uma forma “não formal” de distribuição de água, de uso coletivo que existe desde tempos imemoriais. Além disso, mostro que, utilizando algumas estratégias metodológicas da psicologia social, pode-se compreender como as pessoas dão sentidos ao cotidiano, negociando esses sentidos como uma forma de chegar a acordos que lhes permitam sobreviver em condições problemáticas, como a da escassez de água.
Concluo também que as pessoas no Vale de Quíbor preferem, quase sempre, resolver de boa maneira seus problemas, apesar de existirem conflitos com graves conseqüências.
Por outro lado, é importante reconhecer que a simples escassez de água não é geradora de conflitos e que a presença de uma figura como a do juiz pode contribuir, e muito, para que os desacordos se resolvam, utilizando tanto antigas e novas leis, como a capacidade e habilidade do juiz, e que é fundamental, aliás, tomar em conta esse tipo de gestão tradicional na implantação de novas formas de distribuição de água, a partir do funcionamento da represa Yacambú-Quíbor e seu futuro sistema de irrigação.
Sobre o Vale de Quíbor
Segundo o historiador Cañizales (1996), a ocupação das terras hoje conhecidas como Vale de Quíbor, no ocidente da Venezuela, foi empreendida pelos espanhóis em meados do século XVI, iniciando-se, assim, a conformação do que veio a ser uma das áreas mais produtivas para a agricultura na Venezuela.
O Vale de Quíbor ou Quibure, como também é mencionado nas antigas escrituras, foi ocupado pelos conquistadores espanhóis entre 1548 e 1560. Constitui um amplo espaço, não muito complexo, entre as montanhas andinas e a meseta de Barquisimeto. É sulcado por vários riachos que afluem no riacho Las Raíces e este último no Río Tocuyo (Cañizales, 1996, p. 100).
Porém, esse Vale já era habitado por grupos indígenas há centenas de anos, uma amostra disto pode-se apreciar no Museu Arqueológico de Quíbor, onde são estudados e preservados alguns dos restos dos antigos habitantes dessas terras. Como comenta Barreto (1996), sobre a variedade de culturas indígenas na região:
Os cronistas que têm-se ocupado em indagar parte da história da população da era pré-colombina, no que se refere ao Vale de Quíbor, especialmente Frey Francisco de Villafaña, dão ênfase à existência de seis gêneros de línguas: “Caquetios, Camagos, Gayones, Bichites, Agaguas e Cayones” (p. 17).
A cidade principal do Vale chama-se Quíbor, é a capital do município Florencio Jiménez, e sua fundação, feita pelo Governador Francisco de la Hoz Berrio, remonta ao mês de maio de 1620 (Cañizales, 1996). É uma região localizada a 30 km ao sudoeste da cidade de Barquisimeto, capital do estado Lara. Geograficamente limita-se entre os 9° 50’ e 10° 05’ de latitude norte e 69° 30’ e 69° 45’ de longitude oeste (Dugarte, 1998). É caracterizada como zona semi-árida, com pouca nebulosidade e muito pouca chuva. A precipitação média anual oscila entre 400 e 500 mm, com chuvas curtas e concentradas, que lhe conferem caráter torrencial (Sandia & cols.). A estação de estiagem ocorre principalmente entre os meses de janeiro e abril, quando se apresentam as menores precipitações do ano. A partir das cifras do censo de 1990, a projeção sobre a população do município Jiménez para o ano 2000 era estimada em aproximadamente 76.450 habitantes, 38.868 (50,84%) desses habitantes moravam em casarios ou disseminados em áreas de cultivo que servem também como moradias, os outros 37.582 (49,16%) habitavam o único centro urbano do Vale, a capital do município (SHYQ, 1998)3.
O problema da escassez de água no Vale de Quíbor é relatado pelos colonizadores espanhóis. Já nas primeiras descrições dos viajantes pode-se ler acerca das situações problemáticas, especialmente na época da estiagem (Salazar, 1996). Essa crônica escassez de água, que desde muito tempo castiga sem parar o Vale de Quíbor, e a imperiosa necessidade de dispensar adequada irrigação a grandes extensões de cultivos de trigo, que se produziam dentro de ótimas condições, foram as razões que levaram à construção do açude, primeira obra de engenharia de irrigação construída na região, com uma finalidade específica, que se conhece pelo nome de Calicanto de Poa Poa. Dessa obra hidráulica, que tem como data de construção o ano de 1750, só resta seu muro principal coberto de mata.
A condição de semi-árido do Vale de Quíbor determina a impossibilidade de realizar atividades agrícolas intensivas sem um sistema de irrigação integral. Por isso, o desenvolvimento agrícola do Vale está associado diretamente às possibilidades de irrigação.
Dadas as condições agroclimáticas do Vale, a atividade agrícola se realiza exclusivamente sob irrigação e se desenvolve em aproximadamente umas 1.500 unidades de produção de vários tipos: pequenas, médias e grandes. As grandes unidades produtivas superiores a 200 hectares são as que aportam os maiores volumes de produção aos mercados, devido a disporem de grandes reservatórios de água, equipamentos para irrigação, além de outros recursos. Os grandes produtores se localizam fundamentalmente na zona norte do Vale, onde, nas décadas de 50 e 60, iniciou-se a atividade agrícola intensiva, juntamente com a exploração das águas subterrâneas. Ao sul do Vale localiza-se a maior parte dos proprietários das pequenas e médias unidades de produção, formadas por terrenos herdados de antigos agricultores da região que baseavam seus cultivos na irrigação feita a partir da água disponível no local. Grande parte da produção agrícola do vale realiza-se mediante a intervenção de colonos que são arrendatários de terrenos. Eles têm capital, mas carecem de terra para produzir, ou dispõem de alguma terra, mas não contam com a água suficiente para sua produção (Dugarte, 2002).
Hoje, os agricultores têm três fontes principais de água para irrigação na estiagem e várias alternativas menores de abastecimento: o riacho Atarigua; a água proveniente da represa Dos Cerritos, através de canais e tubulações; e as águas subterrâneas. Os produtores do Vale têm também outras fontes menores de água para irrigação: a água que escorre pelo Portal de Saída do túnel de vasão da represa Yacambú-Quíbor; a água que sobra da limpeza de filtros da estação de tratamento da cidade de Quíbor; e as lagoas artificiais de águas residuais. Este trabalho concentra-se na zona sul do Vale, sobretudo nos povoados de Cuara, El Hato, Los Ortices, Campo Lindo, La Vigia e áreas que ficam nos arredores, lugares onde os agricultores utilizam várias dessas fontes de água para irrigação.
Apesar da escassez, os produtores do Vale (principalmente os grandes produtores) têm desenvolvido tecnologias de aproveitamento da água para fins produtivos, tornando a região um dos principais pólos de produção de alimento do país. O Vale de Quíbor tem uma grande quantidade de terra produtiva que, sob condições de irrigação apropriadas, pode gerar produtos agrícolas de excelente qualidade.
Outra questão importante é que os produtores espanhóis (originários das Ilhas Canárias), que chegaram à região a partir de meados de 1940, levaram vantagens em relação aos produtores tradicionais, ao pôr em prática tecnologias e sistemas de irrigação agrícolas mais modernos e produtivos que os usados no Vale, entre eles as lagoas para armazenamento de água na época de estiagem. Isso tem propiciado a concentração produtiva em grandes fazendas controladas por esses imigrantes, pois essas inovações têm-lhes permitido uma maior quantidade de colheitas ao ano e a introdução de culturas não tradicionais na Venezuela antes dos anos 1940, como o tomate e a cebola, de rápida aceitação nos costumes gastronômicos do venezuelano. Aos poucos, os produtores tradicionais do Vale foram sendo deslocados, tendo de vender suas terras, ou tornando-se assalariados dos grandes produtores.
Na atualidade, a cena produtiva apresenta uma diversidade de produtores que convivem na mesma região, predominando a concentração de terra em grandes fazendas. Apesar de terem surgido diversos tipos de organizações de pequenos, médios e grandes produtores, alguns dos diagnósticos realizados no Vale se referem à existência de maiores dificuldades para se associar, de maneira formal, entre os pequenos produtores, o que tem motivado o estabelecimento de algumas estratégias por parte da empresa Sistema Hidráulico Yacambú-Quíbor (SHYQ) para propiciar a organização desses produtores como pré-requisito fundamental para as negociações na distribuição, na comercialização e no uso da água após a construção da represa.
Segundo a classificação elaborada pela empresa SHYQ, os pequenos produtores são aqueles que possuem propriedades com até 50 hectares de terra, e representam 81,2% do total de produtores. Os produtores médios constituem 5% do total e possuem entre 50 e 200 hectares. Os grandes, somam 3,8% do total e se caracterizam por possuir mais de 200 hectares por produtor (SHYQ, 1998). Além disso, existem agricultores que alugam pedaços de terra para plantar, sobretudo na época de chuvas, e outros que vendem sua mão-de-obra, cobrando geralmente uns 3 mil bolívares4 por dia de trabalho.
A legislação venezuelana sobre o uso da água na agricultura
Na América Latina, a legislação sobre o uso da água tem uma grande influência das legislações trazidas da Europa pelos colonizadores. Valderrama (1997) destaca que na Espanha a definição do caráter da água como bem público é uma problemática de longa data. O autor aponta que desde a Idade Média, produto das lacunas na legislação dos Códigos Castelhanos, era necessário recorrer ao Direito Romano. Isso produziu uma mistura de leis, herdadas pelas leis que se implantaram na América Latina. Essa situação fez com que o Código das Sete Partidas5 viesse a preencher um vazio deixado por tal confusão e que por meio dele se fizesse o “ordenamento espanhol a respeito das águas, tanto na Península como na sua posterior influência sobre as Índias” (Valderrama, 1997, p. 1). Hoje em dia ainda se pode notar a influência de algumas das antigas leis nas novas leis municipais e nos regulamentos de gestão das fontes de água em Quíbor.
O Tribunal das Águas de Valença, na Espanha, é reconhecido como a instituição de justiça mais antiga da Europa. Sua origem remonta pelo menos ao ano 1238 e, apesar de se reconhecer sua influência romana, seu estado atual, segundo alguns historiadores, deve-se aos árabes.
... tal e como chegou para nós foi um legado do povo árabe, e, se seguimos aos melhores tratadistas, foi nos dias gloriosos dos califas de Córdoba, Abderramán III e Alhakem II, por volta do ano 960 da era Cristã, que ficou organizado na forma que tem até hoje, e sem variação alguma tem estado funcionando (Giner, 1969, p. 8).
Muitos dos elementos presentes em Quíbor no manejo da água são encontrados na Espanha, que, por sua vez, recebeu a influência de romanos e árabes no decorrer das invasões no que hoje conhecemos como Península Ibérica. É certo que há desacordos entre historiadores sobre quem teve a maior influência, romanos ou árabes. Também é certo que depois de oito séculos de sua presença na Espanha, os aportes da cultura árabe, provenientes de diversos povos (sírios, marroquinos etc.), são uma realidade que se manifesta não só na construção de sistemas de irrigação, como nas toponímias, nas formas de administração de tais sistemas e nas leis que os sustentam.
Glick (1970) mostra a diversidade de elementos que, no período medieval, tinham suas raízes na dominação árabe sobre a Espanha. As diversas formas de organização social que existiam em Valença, durante esse período, são tanto um reflexo dessa influência, como sua posterior incorporação aos sistemas construídos na América Latina, e, no caso específico, da Venezuela. Isso se pode verificar, também, no uso de palavras de origem árabe, como acequia6, ainda usada tanto na Espanha como na Venezuela, e que significa canal de irrigação.
A existência de comunidades de irrigadores, de sistemas de turnos na distribuição da água, da existência da figura dos juízes de água para obter acordos e dirimir conflitos (aporte romano)7, entre muitas outras coisas, disse-nos muito das semelhanças entre formas de gestão na Espanha e na Venezuela, sem esquecer da permanência de formas provenientes das culturas indígenas da região.
Na Venezuela, a lei mais antiga que regulamenta o uso das águas, ainda vigente, é a Ley Forestal de Suelos y Aguas, de 1966. Nela, declara-se de utilidade pública “a proteção das bacias hidrográficas e das correntes e quedas-d'água que pudessem gerar força hidráulica” (Marnr, 1966). Na lei, determina-se que suas disposições se aplicam às águas públicas e privadas, e apresentam-se algumas normas para dar concessões ao aproveitamento das águas de domínio público. No artigo 93, decreta-se que “o Executivo Nacional poderá criar, com caráter permanente ou temporário, tribunais de águas nos rios que achar conveniente” (Marnr, 1966). A lei também estabelece que serão criadas as normas que guiarão os tribunais.
O Código Civil (1982) estabelece as normas para a administração das águas de irrigação. A partir do artigo 647, e até o 666, faz-se referência aos direitos dos proprietários de terras agrícolas de usarem as águas de corredeiras e os rios que passam pelas suas terras. O artigo 682 regulamenta o referente às concessões que o Estado pode fazer para o aproveitamento das águas públicas.
A Constitución de la República Bolivariana de Venezuela, em seu Artigo 304, declara que:
Todas as águas são bens de domínio público da nação, insubstituíveis para a vida e o desenvolvimento. A lei estabelecerá as disposições necessárias com a finalidade de garantir sua proteção, aproveitamento e recuperação, respeitando as fases do ciclo hidrológico e os critérios de ordenação do território (Asamblea Nacional de la República Bolivariana de Venezuela, 2000).
Na Ley de Tierras y Desarrollo Agrário, no seu capítulo II, de 2001, sobre o Regime de Uso de Águas (Asamblea Nacional de la República Bolivariana de Venezuela, 2001a), legisla-se em relação às águas suscetíveis de serem usadas para fins de irrigação agrícola, mas deixa-se para o Regulamento do Decreto Lei a criação, a forma e o funcionamento dos tipos de organização locais que deverão ser estabelecidos para a utilização comum das águas.
Formas de regulamentar o uso da água para irrigação em Quíbor
No Vale de Quíbor, conforme o que ocorre em todo o país, comprova-se a influência dos princípios compartilhados tanto pelos espanhóis, nas suas normas e regulamentações medievais, como pelos árabes, nas suas leis, o Código de Hamurabi (Glick, 1970). Entre esses princípios temos: 1) o conceito de distribuição proporcional da irrigação conforme as terras que o agricultor trabalha, que tem se modificado no Vale de Quíbor pela construção de lagoas, a partir da migração oriunda das Ilhas Canárias; 2) o conceito de responsabilidade individual, que requer a participação e o compromisso de todos os envolvidos na manutenção do sistema de irrigação; e 3) a idéia de que a partilha da água e as políticas sobre a organização da irrigação, dentro de um dado sistema, são responsabilidade do coletivo dos irrigadores é fundamental no Vale, pois os juízes e distribuidores são eleitos por votação popular, com a participação de todos os agricultores que compartilham do sistema de irrigação.
No Vale existe uma legislação municipal que regulamenta o uso da água do riacho Atarigua8, tendo sido modificada ao longo da história. Antigamente, a água desse riacho era dividida entre o consumo humano e a agricultura, mas nas últimas décadas passou a ser utilizada apenas para uso agrícola. As antigas leis municipais consideravam águas públicas todas aquelas “que pertencem a todos em comum” (Pérez, s. d., p. 593), também reconhecem a existência de águas privadas ou particulares, mas não esclarecem as características de cada uma.
A primeira regulamentação do uso da água do riacho Atarigua da qual se tem documentação, é datada de 1852. Nela se decreta o fim da lei de 13 de maio de 1850, por isso é possível que seja esta última a de maior antiguidade registrada, mas sem descartar que possa haver leis municipais anteriores das quais não se tem o registro escrito.
A lei municipal foi promulgada devido a uma situação histórica de falta de chuva durante a estiagem e de pouca quantidade de água que flui dos riachos da região:
Que pela freqüente falta de chuvas e pela pouca quantidade de águas dos riachos Acarigua e Maguace, a extensa vizinhança da vila de Quíbor sofre atrasos e calamidades nas grandes secas, sendo algumas famílias obrigadas a abandonar suas casas e indústrias (Pérez, s. d., 640).
A lei cria normas para a distribuição das águas, estabelecendo a figura dos juízes de água para exercer sua administração. Os juízes deviam ser eleitos pelos agricultores e sua função principal era administrar a pouca água existente para os diversos usos, servindo de mediador entre os vários usuários. Por outro lado, a lei determinava os direitos e deveres dos cidadãos e os castigos e punições estabelecidos para quem desobedecesse a sua normativa, assim como estabelecia o pagamento pelo uso da água.
1º) Para a distribuição das águas da vila de Quíbor haverá dois juízes de água que serão nomeados pelos próprios lavradores vizinhos interessados na irrigação. Um desses juízes distribuirá as águas do riacho Acarigua, e o outro, as do riacho Maguace, sendo que ambos prestarão contas ante o chefe político e sob juramento de cumprir fielmente seus deveres (Pérez, s. d., 640).
Alguns dos antigos deveres dos juízes ainda se conservam na região, por exemplo:
2º) Não permitir que pessoa alguma aumente ou diminua a porção de água que tem destinada à irrigação ou ao enchimento de poços em cada lugar.
3º) Zelar e fazer com que os leitos dos canais principais, pontes e tampas se conservem em bom estado.
4º) Impedir e denunciar ao chefe político, ou juiz de paz, conforme o caso, os abusos, fraudes ou faltas dos lavradores, contrárias ao regulamento (Pérez, s. d., 641).
Estava previsto na lei que o juiz cobraria aos agricultores pelos serviços realizados, mas também teria uma série de deveres que, se não forem cumpridos, implicariam o pagamento de multas e até a perda do emprego. “Art. 9º) O chefe político da região conhecerá os abusos que cometam os juízes de água no exercício das suas funções e determinará a responsabilidade devida” (Pérez, s. d., 642).
A lei também determinava formas de distribuição da água para os vizinhos da região, como a seguir: “ordem de cima para baixo e encher os poços a cada 12 dias” (Pérez, s. d., 641). “O juiz de água criará um registro, no dia 2 de janeiro de cada ano, das culturas que tenham direito à irrigação em cada canal principal e segundo esse registro fará a distribuição das águas” (Pérez, s. d., 643).
Determina-se que, em casos de emergência pela perda de uma cultura, o juiz decida distribuir água para um agricultor sem ter que seguir a ordem estabelecida, sempre que isso não gerar danos ao outro produtor.
Art. 39º) O juiz de água, com prévia avaliação de técnicos, pode pular de um ponto de irrigação a outro, sempre que possa fazê-lo sem danos para quem perde o seu turno, sabendo da urgência de quem que vai ser beneficiado, já que sua cultura corre perigo. (Pérez, s. d., 646).
Os agricultores também tinham deveres e penas estabelecidos na lei, dentre eles:
1º) Pagar sem demora ao juiz de água a quantidade que se aponta neste regulamento.
2º) Ter limpado seus canais particulares e disposto o pessoal para receber a água na hora que o juiz tenha determinado (Pérez, s. d., 643).
O juiz devia informar sobre as faltas cometidas pelos lavradores ao chefe político e aos juízes de paz, para que esses agissem na imposição e execução das penas respectivas.
Ainda que a figura do juiz esteja institucionalizada pelas leis, as pessoas que cumprem essa função no Vale geralmente não agem da forma como mandam as normas e os regulamentos. O cotidiano da irrigação em Quíbor não está condicionado por essa institucionalização; embora os juízes ou distribuidores usem as leis e regulamentos para se orientar na tomada de decisões, a experiência e conhecimento do lugar e a tradição de usos e costumes pesam muito, tanto nas questões da distribuição da água, quanto para exercer a pouca autoridade que têm para resolver algum problema.
Em março de 1996, foi feita uma reforma parcial da lei municipal de 1984, em vigência atualmente, que regula o uso para irrigação das águas do riacho Atarigua. No artigo segundo dessa lei declara-se que “as águas mencionadas no artigo anterior9 pertencem em comum, desde tempo imemorial, aos habitantes deste município capital” (Concejo Municipal del Distrito Jiménez, 1996, p. 1). Dita lei trata da administração e da distribuição das águas e mantém a figura tradicional do juiz de águas e seus ajudantes, chamados de distribuidores e encarregados. Todos eles devem ser eleitos pelos agricultores, cadastrados como usuários do riacho. No artigo terceiro, decreta-se que “para atender à administração e ao serviço das águas do riacho Acarigua [Atarigua]10, haverá um juiz de águas com seus respectivos suplentes” (p. 1). A reforma parcial só modifica o artigo quarto do regulamento, que se refere aos detalhes da eleição do juiz de águas. A lei, como instrumento jurídico, mantém o espírito das leis de anos anteriores através de 9 seções e 44 artigos que dão conta de como devem ser distribuídas ditas águas, dos deveres e direitos do juiz e dos usuários, dos pagamentos e das multas e sanções a que podem ser submetidos os infratores da lei.
Ao estudar, portanto, a gestão da água de irrigação na Venezuela, tem-se que reconhecer suas raízes tanto nos sistemas indígenas como nas técnicas levadas pelos espanhóis ao longo da colonização e, posteriormente, com as migrações acontecidas no século XX. Portanto, as leis, regulamentos e os usos e costumes convivem em Quíbor na hora de administrar de forma tradicional a distribuição para irrigação do líquido fundamental para a vida, a água.
Foi a partir de conversas com uma funcionária da Gerencia de Desarrollo y Conservación da empresa Sistema Hidráulico Yacambú-Quíbor (SHYQ) que o problema da falta de água e as expectativas sobre o que aconteceria quando a represa começasse a funcionar, introduzindo novas formas de gestão da água, que tive uma visão mais clara dos atores que poderiam participar da pesquisa. Surgiram questões acerca dos modos de organização dos agricultores. No discurso de funcionários do SHYQ, dizia-se que as pessoas, e especialmente os agricultores do Vale, têm problemas para se organizar em associações para “lutar” pelos seus direitos ou para coordenar suas atividades, porém reconheciam que há formas organizativas tradicionais no manejo da água que consideram elemento importante para o futuro sistema de irrigação que a empresa construirá. Isso não me parecia lógico e sim contraditório, pois, como era então que essas pessoas tinham feito para lidar com a estiagem e com a distribuição da água por tantos anos se não tivessem tido uma organização efetiva nas suas relações cotidianas?
De modo geral, no Vale de Quíbor não existe um sistema organizativo dos produtores que lhes permita abordar coletivamente a busca de soluções aos problemas que os afetam, assim como a coesão necessária para se relacionar vantajosamente com os outros setores da economia. O sistema de produção tem se conformado sobre a base da individualidade-autonomia do sítio; cada produtor se propõe, e de fato consegue, em graus maiores ou menores, a alcançar suas aspirações econômicas e produtivas sem recorrer a uma organização que o apóie (SHYQ, 1998, p. 50).
Foram essas questões que me levaram a buscar informação sobre as formas de obtenção, distribuição e controle da água para irrigação utilizadas no Vale. Os funcionários do SHYQ apresentaram-me a alguns usuários das várias fontes de água no Vale, que me contaram sobre as diversas formas de distribuir as águas e a forma tradicional de gestão, e comecei a estabelecer um diálogo com eles sobre diferentes aspectos do cotidiano do trabalho na agricultura e da falta de água durante a estiagem.
Para realizar a pesquisa original utilizei como referencial epistemológico e metodológico as noções de: campo-tema11 de Peter Spink e a sua proposta de “lugar”, assim como seu trabalho sobre documentos de domínio público (1999, 2003a, 2003b, 2003c, 2004), localizando este estudo como parte de uma temática que ocorre em lugares determinados, nos quais eu me situo, mesmo não estando fisicamente presente; de matriz12 de Ian Hacking (1999), que me subsidia na compreensão de situações complexas como a da água de irrigação; a de análise de interface centrada no ator13, de Norman Long (1997, 1999, 2001), que me permite compreender como e onde se entrecruzam, ou não, os diferentes sentidos atribuídos à água (de irrigação) e sua gestão; e de práticas discursivas14, consideradas linguagem em uso (ação), na proposta de Mary Jane Spink (1999, 2002, 2003a, 2003b). Utilizando essas noções, analizo a organização tradicional para a distribuição da água de irrigação no Vale de Quíbor. Neste trabalho só discuto a distribuição tradicional da água do riacho Atarigua.
Situando os atores
A associação Aproagro V. Q., integrada por trinta produtores que, juntamente com outros usuários, utiliza como fonte a Quebrada Atarigua, um riacho cujas águas fluem de forma quase permanente a partir das montanhas de Sanare, seguem em direção ao Vale e são desviadas do percurso por meio de bucos (canais maiores) e acequias (canais menores), feitos de forma natural ou construídos pelos agricultores. Na época de chuvas esse riacho fornece água de irrigação para mais ou menos três mil usuários em todo o Vale mas, na área em questão, só ficam os trinta pequenos produtores já mencionados, além de alguns outros agricultores não associados. A distribuição e a administração da água dependem da abundância ou da escassez do recurso. As pessoas entrevistadas foram: o juiz de água do riacho Atarigua e um membro fundador da Aproagro V. Q.
Sanare é a capital do município Andrés Eloy Blanco e é nas suas montanhas que está o manancial do riacho. Antigamente pertencia ao município Florencio Jiménez, cuja capital é Quíbor. Uma vez separada e convertida em capital do município Andrés Eloy Blanco, passou a gerar novas formas de relacionamento entre os agricultores de ambas as populações a respeito dessa água. Isso significou o estabelecimento de turnos de água para cada povoado na época da estiagem. Assim, de janeiro a abril, os vinte agricultores de Sanare, registrados pelo Ministério do Ambiente como usuários do riacho, compartilham da água com os agricultores de Quíbor em turnos de doze horas diárias, de dia ou de noite, e três vezes por semana. Como exemplo temos que no mês de janeiro, entre segunda e quarta, os agricultores de Sanare recebem a água, em grupos de quatro, por doze horas contínuas, e quinta, sexta e sábado, a água é disponibilizada para os agricultores de Quíbor. Aos domingos não se distribui a água, e só a utiliza quem quer. Esses turnos são determinados pelos próprios agricultores no mês de dezembro de comum acordo e o chefe do Ministério é o responsável pela realização do quadro de turnos e de sua distribuição entre todos os agricultores
Pode-se dizer que Isidro, o atual juiz do riacho, quase herdou essa função do seu pai, que se chamava Periples. O pai foi muito famoso e respeitado por ter organizado a distribuição da água e ter controlado a maioria das brigas causadas pelos roubos de água entre os produtores vizinhos. Após mais de vinte e cinco anos como juiz, aposentou-se e deixou a atividade para o filho, que ocupa o cargo atualmente. Sua eleição teve um importante apoio, baseado na conduta correta do pai por tantos anos. Como já vimos, a figura do juiz está estabelecida nas leis municipais do Vale, conhecidas pelo menos desde meados do século XIX.
Isidro apresentou-se como uma pessoa justa e compreensiva nos casos em que teve de decidir a quem distribuir a água, principalmente quando se tratou de risco de perda da colheita. Ele afirma fazer o possível para levar a água aos que mais precisam, mesmo tendo de descumprir os turnos. Percorre o riacho várias vezes durante o dia procurando desvios ilegais e dialogando com os produtores de Sanare para tentar evitar os conflitos. Conversamos duas vezes: a primeira, num terreno que ele havia alugado para cultivar e, a outra, durante um percurso que fizemos juntos por sete quilômetros ao longo do riacho Atarigua. O riacho é a fonte de água mais importante da região devido ao volume de água que corre pelo leito e ao número de agricultores que se beneficiam dele.
Uma outra pessoa indicada pelo pessoal do SHYQ como conhecedor da gestão de água do riacho foi o Andrés, com quem me encontrei à beira de uma estrada, onde ele estava descascando feijão preto com mais dois empregados. Definiu-se como agricultor, beneficiário das águas do riacho e comentou que trabalhava na agricultura desde os treze anos. Foi fundador e líder da associação Aproagro V. Q., criada em fins da década de oitenta, para organizar a distribuição da água do riacho, devido a uma série de conflitos ocorridos entre os produtores do Vale e os de Sanare.
Segundo Andrés, o processo de formação da associação Aproagro V. Q. foi produto do interesse de mais de oitenta produtores em solucionar as pendências acerca da distribuição da água entre os agricultores do Vale e os de Sanare,. Para isso, reuniu-se com pessoas do Ministério do Ambiente e da Guarda Nacional, com as quais foi estabelecido um acordo de distribuição da água pelo sistema de turnos.
O riacho Atarigua: as terras que ele percorre e as pessoas que podem usá-lo
Na parte superior do riacho Atarigua ou Acarigua como também é conhecido, origina-se uma corredeira importante (quase permanente) durante o ano todo, utilizada, junto com as águas que afluem de outros riachos da região, para irrigação, tanto na zona alta (arredores de Sanare) como na zona baixa (Vale de Quíbor), mediante irrigação direta ou pela armazenagem de água em lagoas de diferentes tamanhos (SHYQ, 1995).
Quando as águas não são permanentes, como no caso de riacho Atarigua, existe a tradição de irrigar primeiro quem está mais perto das nascentes, e na seqüência, conforme a organização dos usuários água abaixo, isso se conhece no lugar como “ordem de tapas15” (Esteves, 1999, p. 28).
A limitação do uso dessa importante fonte de aproveitamento reside no fato de que ela não ocorre de forma permanente, já que a água dos leitos utilizada após as chuvas se esgota durante o período da seca. Devido aos custos e ao tipo de tecnologia requerida para a armazenagem da água, as lagoas construídas pelos pequenos produtores não apresentam boas condições técnicas e não contribuem para boa qualidade da água armazenada. No Vale de Quíbor as lagoas têm se tornado um investimento próprio da atividade produtiva de grandes fazendas, incrementando-se, nos últimos anos, a ocupação da área com lagoas de grande porte, passando de 450 hectares em 1972 para 1.933 hectares em 1990 (SHYQ, 1998).
Isidro, o juiz de água do riacho na região do Vale, é a pessoa encarregada pela distribuição regulamentada da água de irrigação no riacho Atarigua, mas também toma decisões no local seguindo a sua experiência de muitos anos quando necessário. A presença da figura do juiz no Vale está prevista nas leis municipais que ditam as normativas desde pelo menos 1850. O juiz não julga nem penaliza, mas informa às autoridades competentes, à polícia, à guarda nacional, à prefeitura, ao Ministério do Ambiente etc., sobre as violações dessas normativas e resolve os problemas cotidianos através do diálogo com os envolvidos nos desacordos. Sua escolha é feita pelos próprios agricultores em eleições que se realizam a cada um ou dois anos, ou dependendo da dinâmica do lugar; por exemplo, quando há uma estação muito chuvosa ou o trabalho do juiz é considerado muito bom ou não há candidatos para o cargo, as eleições não são realizadas e o juiz atual se mantém no cargo. Ele é considerado uma pessoa muito importante para falar sobre os direitos e o gerenciamento das águas do riacho, pela sua importância no cotidiano da distribuição da água nesse lugar.
Isidro menciona os principais canais que levam a água do riacho e os direitos que alguns dos agricultores têm sobre essa água. Ele faz questão de dizer que esses direitos são legítimos, mostrando seu respeito pelas leis e pela tradição. Ele diz que os produtores do Vale têm que lutar pelo que é, e sempre tem sido, deles: uma parte da água do riacho, contrapondo-se à idéia sustentada pelos agricultores de Sanare de que como o riacho nasce nos cumes de suas montanhas, no seu município, a água é deles:
Ellos están arriba, se atienen a eso “nosotros estamos arriba y no podemos perder, el agua es de nosotros” (…) ellos son ya municipio y el agua ‘y que es de ellos’, dicen ellos, hasta ahí nosotros peleamos por lo que nos toca y siempre nos toca algo (Isidro).
Esteves (1999) confirma a prioridade que teriam os agricultores localizados nas zonas altas para desviar a água para suas terras:
Ao passar do tempo o riacho Atarigua diminui seu caudal como conseqüência das prolongadas secas, o desmatamento indiscriminado na sua bacia e o incremento considerável de irrigadores nas zonas altas de El Molino, Quebrada Seca e Cuara, que têm prioridade para derivar a água para os seus sítios por estarem mais pertos da ladeira da montanha, águas acima nas tomadas de água (p. 63).
Logo, Isidro refere-se aos direitos que têm os produtores de Sanare sobre as águas do riacho, os quais foram adquiridos pela tradição de usos e costumes e conhecidos no jargão do direito como consuetudinários e, a partir do uso que os agricultores fazem de canais, geralmente naturais16, legalmente estabelecidos, e que descem seguindo o fluxo da gravidade da água. Ele também justifica o uso atual de bombas de motor para a coleta de água e seu armazenamento em lagoas para sua utilização em um grande número de áreas de cultivo e que tem aumentado nos últimos anos nessa região. O juiz faz uma descrição dos principais canais por onde passa a água e algumas das separações construídas, até chegar ao lugar chamado de Quebrada Seca. Por fim, Isidro argumenta sobre os direitos dos agricultores do Vale e menciona os canais principais de água na região.
Sanare tiene dos derechos ahí que son: uno es de Hugo, creo que ese lo tiene Abilio, que ese se murió, que esos son bucos legales, bucos que están de gravedad, que esos no bombean con bomba de achique, bueno, ahorita sí porque están sembrando más pero tienen su derecho y el otro es Diogo, que ese lo tiene el otro Patricio que es Armando, de ahí viene Majá Vieja que es de Livio, después viene el Buco de La Caja, que llaman, que se llama el buco de El Totumo que es de Henrique, de ahí sigue El Hiscanero, a mano izquierda bajando, tiene sus ramales, eso tiene bastante tierras para regar, después viene El Rafaelero, que es uno que atraviesa Cuara, pero arriba, o sea de Quebrada Seca ahí se ve donde pasa él, eso riega por ahí legalmente, de ahí pasa son cuarenta tareas que riega nada más, ese es el derecho (Isidro).
A distribuição das águas do riacho se realiza baseada nas leis nacionais e municipais, as quais estabelecem turnos para a distribuição de mútuo acordo entre os agricultores de Sanare e de Quíbor. No início do período da estiagem, geralmente durante o mês de janeiro, o Ministério do Ambiente entrega aos agricultores um impresso que estabelece a forma como deverá ser organizada a distribuição desses turnos entre os meses de janeiro e abril17. O sistema de irrigação do riacho abrange grande parte das áreas de plantio ao redor dos povoados de Cuara, El Molino, San Antonio, El Tunal, Morón, El Hato, El Cerro, Chaimare, El Jagüey e outros menores (Esteves, 1999, p. 64).
No terreno, Isidro organiza o trabalho com seus ajudantes18, quando os tem, e o faz orientando-se pelos turnos, e não pela antiga lei municipal como era o costume, porque agora existem as lagoas e alguns dos agricultores podem armazenar água. Isso modifica as decisões que o juiz deve tomar de acordo com as circunstâncias do dia-a-dia. Por exemplo, quando Isidro comenta que tem de levar água para quem tenha mais necessidade, mesmo que esteja localizado mais abaixo que aquele que tem o turno nesse momento.
Bueno, el trabajo es, mira, distribuirles a los agricultores, o sea que se va llevando, cuando la Ordenanza vieja era tapa por tapa, pero, eso se eliminó porque eso era cuando no había lagunas, no había depósitos, ahora con esto no. Usted por lo menos está del lado abajo, yo estoy regando aquí por lo menos, y usted está seco, yo tengo una cuestión, uno o dos riegos yo el agua se la llevo a usted, porque usted está más necesitado que yo, así esté yo arriba, esa es la cuestión aquí, el trabajo (Isidro).
Seu serviço começa todos os dias num lugar chamado Vila Rosa. Ali, todos os agricultores, que nesse momento têm plantações, reúnem-se e, tomando em conta os direitos de água que possuem pela tradição ou pela compra de alguma terra e dos turnos, negociam a entrega da água e tomam decisões sobre a distribuição, baseadas na quantidade de produtores com cultivos, os tipos e tamanhos dos cultivos, a quantidade de água disponível e outras situações que ele destaca. Geralmente a água é levada de cima para baixo, mas pode haver exceções.
Bueno mira, el reparto se hace ahí de Villa Rosa para abajo [Ajá]. Ahí la gente, ellos agarran una porción de agua todos los días y yo los turneo, cuando está el agua poca, yo los turneo, les doy dos días tres días, a que Helcio, de ahí vengo trayendo el agua de pa´bajo (Isidro).
Nas suas palavras, temos a descrição de como ele faz o trabalho e as diferentes decisões que toma, dependendo da situação: excesso de água, escassez extrema, perda de uma cultura ou possibilidade de morte de animais, não cumprimento do turno por algum agricultor ou o roubo de água. Para isso ele tem a ajuda de distribuidores e encarregados que o acompanham nessa vigília, fazendo percursos várias vezes ao dia na época da estiagem. De acordo com seu relato, existem épocas nas quais ele tem de trabalhar sem ajuda nenhuma, porque ninguém quer trabalhar pela falta de pagamento ou pelo pouco que podem ganhar com esse trabalho.
Sobre a quantidade de dinheiro que recolhe e a falta de pagamento de um salário por parte da Prefeitura, ele afirma que tem de dar 50% do valor cobrado aos agricultores para a Prefeitura, os 50% restantes ele divide com os ajudantes. Segundo Isidro, ele não tem salário, sustentando-se com o que recebe dos agricultores, e o juiz não ganha nada quando não há água.
[Cuánto les pagan a ustedes por eso?] Mire aquí no le pagan, el Concejo Municipal no le paga a nadie, siempre, el Concejo Municipal hay que, yo recojo tanto, pongámosle 100 mil bolívares en el mes y yo tengo que darle 50% a ellos. Ellos no le tienen sueldo a nadie, o sea que uno se mantiene de los agricultores, ahí cuando no hay agua el juez de agua no gana nada, es así de simple (Isidro).
Continuando com o tema do pagamento, as normativas estabelecem que os produtores que recebem água do riacho devem pagar ao juiz uma quantidade já acordada e que ele deve repartir esse dinheiro com seus empregados e entregar uma parte à Prefeitura. Porém, segundo ele, e após uma experiência de doze anos no cargo, aponta que a maior parte dos agricultores não paga, ou paga menos do que deve ou com retardo, mas ele não deixa de distribuir-lhes água por isso. Umas das razões que apresenta para continuar distribuindo-lhes água, ainda que não paguem por ela, é a necessidade que existe da passagem da água pelas terras desses agricultores. Por isso, nesse caso, o pagamento é um poder do produtor que contribui para a continuidade do trabalho do juiz e da tradição.
Mire aquí hay personas, ya yo voy para doce años ya, ahorita los cumplo en enero, bueno, aquí hay tipos que no me han dado ni medio, en doce años de trabajo, pero bueno, yo tampoco estoy con eso [¿Y usted le da el agua?] Sí, de todas maneras le doy su turno normal y... [¿Por qué le dicen que no le van a pagar?] Son carajos que los primeros días, “no, yo estoy quebrado, yo no tengo”, y yo no, para sacarlos, porque siempre hay alguna persona más abajo que ellos, hay que darle a ellos, para pasar el agua para abajo (Isidro).
Sobre os conflitos
Isidro dá sua versão dos conflitos que ocorrem na distribuição da água. Ele é quem realiza a maioria das interfaces entre os produtores de Sanare e de Quíbor, sendo essas, aliás, as mais problemáticas, por envolverem agricultores que dividem o riacho, ficando um grupo deles na parte de cima, o que lhes dá uma certa vantagem, e os outros, na parte de baixo. Em primeiro lugar, fala do descumprimento de turnos estabelecidos pelo Ministério do Ambiente. Argumenta que a Guarda Nacional tenta controlar um pouco os roubos e a falta de cumprimento dos turnos. No entanto, os agricultores de Sanare, pelo fato de estarem riacho acima, afirmam ser os donos da água, embora as pessoas do Vale continuem a lutar pelo que consideram seu direito. Ele utiliza a expressão, “sempre a gente recebe algo” para se referir ao fato de que, ainda que pouca, eles sempre recebem água, resignado a que os de cima “tenham mais direito” do que ele, que faz parte do grupo dos que estão riacho abaixo.
…eso es una cuestión que la ha turneado el ambiente, pero eso en veces no se respeta, esa es una de las cuestiones [¿O sea que ustedes a veces tienen problemas con el agua porque los de arriba no les paran?] Sí los tenemos, vamos a la Guardia y la Guardia medio controla pero no es igual, ellos están arriba, se atienen a eso “nosotros estamos arriba y no podemos perder, el agua es de nosotros”, eso era cuando Quíbor pertenecía a... Andrés Eloy pertenecía a Jiménez, era más distinto, pero ahorita no, porque ellos son ya municipio y el agua y que es de ellos, dicen ellos, hasta ahí nosotros, peleamos los que nos toca y siempre nos toca algo (Isidro).
Nas interfaces com pessoas que não são usuárias da água, mas que tiram areia do riacho para vender nas construções de prédios e casas, ele conta que apenas alguns deles se juntam a ele para fazer o trabalho. Comenta um episódio em que quase teve de brigar com vários operários de Barquisimeto (que afirmou estarem drogados) porque não gostaram que lhes dissessem o que tinham que fazer para não prejudicar a passagem da água pelo riacho. Os trabalhadores o chamaram para se bater com as mãos, mas ele respondeu que não estava ali para brigar e sim para trabalhar e organizar a extração da areia. Porém, menciona que, se tivesse um revólver, ele o teria usado. Comenta que teve de ir à procura da polícia, que os obrigou a esvaziar os caminhões. No final, disse a eles que isso havia ocorrido por não terem seguido suas instruções e que perderam o trabalho.
Hay unos que son muy buenos y otros que se pasan de vivos, como hay gente que, yo el otro día a unos carajos de Barquisimeto, llegaron allí, si he tenido un revólver te digo que lo fuera cargado, palabra chico, les digo “aquí no vayan a acabar con esto, por esto”, unos carajos endrogados ahí, andaban como cinco, “ah, vamos pa allí, para que nos echemos”, (sonríe nervioso), “yo no ando, yo ando es trabajando, yo no ando peleando”, les dije, “los estoy es ubicando para que no, ni ustedes sean molestados ni yo tampoco, los que llevan el agua y tal”, entonces tuve que venirme, tuve que buscar a la Policía, después que habían hecho el trabajo completo, llenado los volteos, tuvieron que vaciar la arena otra vez, perdieron el trabajo, “eso pasa por ustedes, por que yo los estoy es ubicando para que hagan su trabajo”, les dije, “entonces, ustedes a cuenta de guapos”, no, la cosa aquí se ha trabajado más o menos (Isidro).
Ele aponta que antigamente surgiam mais conflitos e com conseqüências muito piores. Acrescenta não “ter colocado ninguém para brigar”, o que quer dizer que suas decisões na distribuição da água não têm levado a brigas nem confusões, porque, aliás, as pessoas têm melhorado seu comportamento. Refere-se, também, ao homicídio de um agricultor pelo roubo do turno de água. Isidro vai-se posicionando e mostrando as diversas arenas de encontros nas quais as interfaces sociais têm resultados diversos, entre eles, a morte, ferimentos com armas de fogo, facão ou discussões agressivas, todos causados, entre outras razões, pela má distribuição da água.
No diálogo que mantive com Isidro aparecem várias questões interessantes sobre os conflitos pelo uso da água. Ele parte da idéia de que as pessoas têm de ter palavra e manter as decisões que foram tomadas. No conflito narrado abaixo, a partir da minha pergunta sobre se as pessoas brigavam antigamente pela água, ele comenta que acha que um agricultor, Carlos, agiu legalmente quando matou um tio de Isidro, Antonio, com um facão, pois este sempre tirava o turno de água daquele, até que Antonio se cansou e botou o corpo, atravessado, no canal, tingindo-o de sangue.
Hasta hoy no he tenido problema que no he echado a pelear a nadie, porque aquí la gente se han acomodado, aquí lo que hay que tener es palabra [¿Antes se peleaban?] Sí, aquí han matado gente por cuestiones del agua [¿A quién por ejemplo?] Aquí mataron a un carajo que era hasta tío mío, se llamaba Antonio, el papá de Alberto y todos esos carajos, lo mató un señor que él era, por cierto de El Hato era ese carajo, Carlos, pero te digo, él lo mató legalmente porque el hombre se la tenía aplicada, él tenía su, le daban su turno a él y el hombre, el otro se burlaba de él, se la quitaba y el hombre se obstinó, lo mató, lo mató en el buco (Isidro).
Isidro conta outro conflito pela água quando Amado (que tinha assasinado Mario) esfaqueou Cristiano por problemas de água. Ele não explica como não houve conseqüências fatais. Ambas as pessoas envolvidas nessa briga já morreram.
…en El Molino hubo otro carajo, Cristiano, los dos están muertos ya, un tipo que lo mató un carajo de Playa Bonita, que mató a Mario, en esa curvita que está jodida ahí, ese lo mató, cómo se llama él, Amado, debe ser ese carajo, ese carajo macheteó, por un agua también a Cristiano, le cruzó el machete, yo no sé como no lo mató (Isidro).
Segundo Isidro, o último conflito aconteceu há quinze anos. Foi quando Luciano e Pedro brigaram por uma água mal distribuída, pois, Cirilo, o distribuidor, deu o turno a Luciano, e Hernam, o encarregado, deu o mesmo para Pedro, que, por sua vez, atirou em Luciano, achando que o turno fosse dele. Isidro comenta que Pedro é muito bravo e que embora o turno não fosse dele e que o encarregado tenha cometido um erro, pois Luciano estava antes na distribuição, sacou o revólver e atirou. Para ele, os dois homens não quiseram ceder e por isso começaram a briga.
…y el lío que hubo últimamente ahí, que fue allí por el buco este, Luciano con el Pedro, por cuestiones de un agua, mal repartida porque Cirilo le dio el agua a uno y Hernam se la dio al otro y después no se entendieron ninguno y ellos en la tabla, Luciano está primero y Pedro no quería que se la quitara y le dio un tiro al otro, por agua [¿Hace cuánto fue eso?] No, eso fue hacen ya creo, más de 15 años, fue por eso, por esa agua que se la dieron a los dos, entonces, ninguno se querían dejar y se vinieron a discusiones [¿Eran dos repartidores?] No, había el juez de agua y un repartidor, el juez dijo uno y el repartidor dijo otro, entonces los muchachos se entendieron mal ahí, que no era porque si tú estás primero yo tengo que respetarte que tú estás primero, pero ellos no, porque Pedro se la da de más jodido, peló por el revólver y le dio un tiro al otro.
Considerações gerais
O roubo de água do riacho é uma das problemáticas que mais aparecem nas narrativas e conversas dos juízes e agricultores do Vale e é a situação que tem causado os maiores conflitos entre eles e os produtores de Sanare. Por outro lado, parece ser uma das principais razões para que pagarem o juiz que controla a distribuição, apoiando-se, é claro, nas normas e regulamentos estabelecidos.
Os turnos de distribuição são elaborados pelo Ministério do Ambiente e se baseiam na tradição e nos conhecimentos acumulados pelos produtores sobre a melhor forma de se organizar a respeito. Ambos os grupos se comprometem a respeitar o que é decidido a cada ano, durante as épocas de estiagem e o verão.
Os sentidos negociados podem mudar, e de fato mudam ao longo do tempo, e as práticas discursivas dos atores do Vale mostram essas modificações, ao se posicionarem uns com os outros e em suas diversas formas de reagir. Embora existindo leis, ordenanças e normas escritas e mantidas por tradição, essas pessoas evidenciam, nas suas falas, formas próprias de se relacionar não estabelecidas nesses documentos, negociando cotidianamente e se organizando para o manejo da água de irrigação.
Esta pesquisa permite-nos refletir sobre os diferentes tipos de agência (Long, 2001) dos atores do Vale: as habilidades e capacidades para negociar seus pontos de vista, os vários jeitos de olhar o mundo e dar sentidos a um cotidiano em que a violência é uma das alternativas possíveis, mas em que negociações e acordos também são perfeitamente viáveis como resposta às interfaces complexas. Do mesmo modo, mostra como, a partir da psicologia social, podemos entender alguns dos processos e mecanismos que se estabelecem na co-construção de “mundos de vida”19 ou projetos pessoais, às vezes confluentes entre as várias pessoas, mas contraditórios em outros casos, em situações como a da gestão de água de irrigação no semi-árido venezuelano.
Apesar da generalizada crença de que as pessoas no Vale de Quíbor apresentam dificuldades de pensar e agir de forma coletiva, entendo que a sua real dificuldade é de se organizar seguindo padrões externos e pré-estabelecidos de organização, baseados no pressuposto de alguns funcionários ou especialistas que acreditam que essas formas são as únicas ou as válidas para que se consiga o entendimento e a ação conjunta de pessoas num lugar determinado, no que se refere a um bem como a água. Há muitas experiências de negociações e acordos entre os produtores do Vale que podem servir para orientar questões novas que surgem, como, por exemplo, a venda de uma fazenda a um produtor externo, não acostumado com as normas e procedimentos estabelecidos e aceitos pelo grupo de usuários de determinada fonte de água, o que contribuiu para gerar conflitos e alterações na dinâmica cotidiana.
Neste estudo, pode-se observar que existe organização, que as pessoas conversam, negociam, chegam a acordos e que também, às vezes, brigam. Mas que elas podem fazê-lo, e geralmente o fazem, sem a tutela de pessoas ou entidades externas às suas comunidades. Essa tutela pode muito bem ajudar, mas não condicionar a forma de lidar com o cotidiano da distribuição da água.
Personagem central nesse mundo da gestão tradicional da água é o juiz de água. É ele que tem de negociar no dia-a-dia, em primeira instância, como vai ser distribuída a água entre os agricultores. Ele tem, também, nas interfaces com as autoridades, o poder de agir (tomando decisões muitas vezes não estabelecidas nos regulamentos e nas leis) pela agência, o conhecimento e o poder que lhe é dado, na sua condição de eleito pelos próprios produtores, ainda que isso não garanta que ele represente a todos. Mais ainda, os juízes ou distribuidores têm de tentar resolver os conflitos que surgem constantemente, ainda que em menor quantidade em comparação com épocas passadas, em meio a uma questão tão delicada como a distribuição eqüitativa da água em situações de escassez.
A gestão de água do riacho Atarigua serve de exemplo, como forma tradicional de gestão, para as outras fontes coletivas de água de irrigação no Vale. A figura do juiz, sustentada nas antigas leis, constitui na região uma experiência fundamental, valorizada por todos os interlocutores. O sistema de distribuição por turnos é utilizado para estabelecer acordos e evitar que surjam conflitos ou que esses tragam conseqüências graves para os agricultores. O juiz do riacho deve se relacionar com todos os usuários dessa água, mas, também, com os funcionários do Ministério do Ambiente, da empresa SHYQ, quando é preciso, e com pessoas alheias ao sistema de irrigação. Nessas interfaces ele tem de demonstrar capacidade para negociar e chegar a acordos ou utilizar sua autoridade e poder para fazer cumprir as normativas que ele conhece muito bem (Long, 2001). Nas suas práticas discursivas, ele utiliza argumentos sobre a importância do papel do juiz na distribuição da água para justificar e dar sentido ao cotidiano que compartilha com todos esses outros atores do Vale, principalmente na época de estiagem, quando os interesses particulares entram em conflito com os interesses coletivos. Embora não pareça existir nos agricultores uma idéia de trabalho coletivo, como alguns funcionários e técnicos apontaram, fica muitas vezes evidente que quando se fala sobre qual é o interesse maior, a idéia do coletivo prevalece sobre o individual, o que mostra um certo senso de união entre os usuários dessa água.
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Endereço para correspondência
E-mail: jcanelon@yahoo.com
Recebido em: 02/05/2005
Pareceres enviados em: 04/07/2005
Aprovado em: 26/07/2005
1 O artigo é produto de minha tese de doutorado em psicologia social na PUC-SP. Foi possível graças ao financiamento de uma bolsa de estudo pela Universidad Centroccidental Lisandro Alvarado, de Barquisimeto, Venezuela.
2 Antropólogo. Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP.
3 A sigla SHYQ é utilizada várias vezes neste trabalho em subtituição de Sistema Hidráulico Yacambú-Quíbor.
4 Hoje o tipo de câmbio na Venezuela está controlado e o bolívar é cotado em 1.920 por dólar.
5 Série de leis compiladas por Alfonso X (o Sábio) no fim do século XIII, e que entraram em vigor na Espanha em meados do século XIV.
6 Do árabe hispânico assáqya, e este do árabe clássico sãqiyah (Diccionário de la Real Academia Española).
7 Segundo Glick (1970), não existe no mundo islâmico forma de justiça comparável aos “tribunais de água”, que têm se mantido na Espanha para agir em situações de disputas pela água de irrigação.
8 O riacho Atarigua (ou Acarigua) é uma das fontes de águas constantes mais importantes do Vale e forma parte de um complexo de riachos que descem das montanhas e que em época de seca são aproveitados ao máximo pelos agricultores.
9 Inclui as águas do riacho Atarigua.
10 Correção do autor.
11 “o campo é o método e não o lugar; o foco está na compreensão da construção de sentidos no espaço de vida do indivíduo, grupo, instituição e comunidade” (Spink, 2003a, p. 35).
12 Quanto à noção de matriz, Ian Hacking (1999) a utiliza para nomear o cenário social em que as idéias, as noções e os sentidos são socialmente construídos. Assim, os sentidos atribuídos à água são construídos numa matriz de relações muito complexa que é constituída por instituições, agricultores, mediadores (como os distribuidores e os juízes de água), leis sobre uso e distribuição da água e também pelas materialidades, represas, lagoas, canais, etc., que ora possibilitam, ora obstaculizam determinadas relações sociais no campo-tema da gestão da água de irrigação, das diversas fontes, no Vale de Quíbor.
13 Long (2001) define a interface como: um ponto crítico de interseção entre os mundos de vida, entre os campos sociais ou entre os níveis de organização social no qual as descontinuidades sociais, baseadas em discrepâncias de valores, interesses, conhecimento e poder, têm maior chance de ser localizadas (p. 243).
14 M. J. Spink (1999), na sua proposta teórico-metodológica que considera as práticas discursivas como linguagem em uso, ou em ação, e as define como “as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas” (p. 45).
15 A “tapa” é uma medida usada na região para saber a quantidade de água que flui por um determinado canal.
16 A maior parte das águas do riacho flui por canais naturais, mas os agricultores também fazem canais artificiais para levar a água até seus plantios.
17 Isso vai depender da quantidade de chuva nesse período, pois se houver água suficiente, os turnos não são mantidos.
18 Os ajudantes podem ser dois distribuidores e mais alguns encarregados, que devem percorrer todo o riacho e ficar atentos ao cumprimento dos turnos ou aos problemas que possam ocorrer.
19 Segundo Long (2001), os “Mundos de vida é o termo usado por Schutz, para descrever os mundos “vivenciados” (lived-in) e “tidos como óbvios” (take it for granted) dos atores sociais. Eles envolvem a moldagem da ação prática que passa pelas intencionalidades e pelos valores e são essencialmente definidos pelo ator” (p. 54).