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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
Print version ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.16 no.spe São Paulo 2013
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
A linguagem na análise da atividade: formas de realização e funções psicológicas
The language in the analysis of clinic of activity: modes of accomplishment and psychological functions
Katia Kostulski1
Conservatoire National des Arts et Métiers (Paris, França)
RESUMO
Essa contribuição busca circunscrever o estatuto e as funções da linguagem nas metodologias de análise em clínica da atividade. Trata-se, no primeiro momento, de definir a linguagem numa conceituação que permite considerá-la em suas dimensões de instrumento, atividade e produto empírico de uma atividade humana passível de análise. Depois, convocando a psicologia de Vygotsky e seu ponto de vista acerca da diversidade funcional da linguagem na vida psicológica, examinamos como as formas de realização linguageira promovidas pelas metodologias em clínica da atividade são suscetíveis de sustentar processos de desenvolvimento. Terminamos com uma breve ilustração, a partir de uma intervenção realizada na França com procuradores da República.
Palavras-chave: Linguagem, Diálogo, Interlocução, Desenvolvimento, Clínica da atividade.
ABSTRACT
This text aims to define the statute and the functions of language in methodologies of analysis in a clinic of activity. Initially, we define the language in a conceptualization that allows us to consider it as an instrument, as an activity but also as an empirically analyzable product of human activity. Then, using Vygotsky's psychology and his views on the functional diversity of language in psychological life, we examine how the various forms of language, promoted by the methodologies of the clinic of activity, are likely to support developmental processes. We end with a brief illustration, taken from an intervention carried out with French public prosecutors.
Keywords: Language, Dialogue, Interlocution, Development, Clinic of activity.
Introdução
Essa contribuição responde a uma solicitação específica: a de discutir o lugar da linguagem nas metodologias de análise na clínica da atividade. A tarefa é imensa, e não é fácil, principalmente porque as vias para isso são muito diferentes, segundo nos situemos no campo da linguística bakhtiniana, da psicologia vygotskyana ou da pragmática, diferentes correntes que atravessam a clínica da atividade. Essa questão é parte integrante de um campo de pesquisa que problematiza as relações da linguagem com o pensamento, de modo a melhor compreender a função da linguagem nas atividades (Moro, Schneuwly & Brossard, 1997; Clot & Kostulski, 2007; Filliettaz & Bronckart, 2005), sobretudo no que nos concerne, quando fazemos uma intervenção em clínica da atividade (Scheller, 2003; Kloetzer, 2008; Kostulski, 2004; Kostulski & Clot, 2007; Henry & Bournel Bosson, 2008).
É desde os trabalhos de Vygotsky e da pragmática que podemos compreender as funções da linguagem na vida psicológica e no desenvolvimento, e por essas duas vias, tentamos precisar o valor instrumental da linguagem na diversidade das realizações nas quais ela intervém: trocas verbais, confrontações, controvérsias, mas também deliberações silenciosas, atividades cujas formas de realização estudamos para melhor compreender as funções do pensamento e suas transformações. Trata-se de identificar as atividades linguageiras engajadas em certos enquadramentos, sua dinâmica intersubjetiva e suas realizações no pensamento dos sujeitos, para melhor compreender como nossos métodos de análise são suscetíveis de favorecer os desenvolvimentos individuais e coletivos das maneiras de fazer no trabalho.
Propomos aqui um conjunto de questões – e algumas respostas – que definem nossos trabalhos sobre essa discussão da linguagem nas metodologias em clínica da atividade, inicialmente interrogando a relação entre a linguagem e a atividade, as atividades linguageiras que nós realizamos e suas especificidades. Sustentaremos aqui que a linguagem não é apenas um instrumento, mas é, ao mesmo tempo, um instrumento, um produto das atividades humanas e uma atividade "como as outras". Ou quase. Esse triplo estatuto nos levará a definir a relação complexa que liga as atividades linguageiras às atividades de análise nas autoconfrontações cruzadas. A seguir, retomamos uma questão esboçada por Vygotsky, e que concerne às funções da linguagem no pensamento, e enfocaremos da mesma maneira essa declinação de funções nas metodologias de análise nas autoconfrontações cruzadas. Nosso horizonte é mostrar que as escolhas metodológicas feitas na clínica da atividade organizam os usos da linguagem suscetíveis de ter efeitos psicológicos nos sujeitos engajados conosco nas análises. Assim, concluiremos com um pequeno exemplo tirado de uma intervenção no trabalho de magistrados.
A linguagem como atividade, produto e instrumento da atividade
A dificuldade para compreender a relação da linguagem com a atividade está parcialmente relacionada à seguinte constatação: a linguagem é, ao mesmo tempo, um produto da atividade humana, uma atividade humana e um instrumento das atividades humanas.
É a partir do campo da pragmática e da psicologia histórico-cultural que interrogamos essa relação: desde o campo da pragmática conversacional – já que essa relação pode se realizar numa forma linguageira natural que é a da interlocução (Trognon, 1991, 1995) – à psicologia histórico-cultural (Clot, 1999; Vygotsky, 1934/1997, 1925/2003), enquanto relação mediatizante das atividades e das relações interpessoais complexas.
A linguagem parece exercer diferentes funções na atividade de trabalho. De fato, ela não tem o mesmo lugar numa reunião de serviço ou numa co-ação. Certas distinções já foram identificadas (Grosjean & Lacoste, 1999; Filliettaz, 2002). Destacamos uma, operante em nossas pesquisas: a do nível de implicação das atividades linguageiras na realização da atividade em si mesma. Certas interlocuções servem para realizar a própria atividade: a homília da missa dominical (Kloetzer, 2008), uma audiência de reclamante-réu com um procurador da República (Kostulski, 2011), uma confrontação diante de um juiz de instrução (Kostulski, 2011), a tutoria de um jovem carteiro (Kostulski & Mayen, 2002), as entrevistas de aconselhamento, as análises em autoconfrontação cruzada ou instruções ao sósia, as psicoterapias (Blanchet, 1998). Claro que mesmo nesses casos a linguagem pode assumir diferentes funções de acordo com a atividade, seus objetos, seus momentos. Essas são atividades realizadas na e por meio da linguagem, que parecem, a nosso ver, portar a chave de um modelo que daria conta da relação entre a linguagem e as atividades humanas. Ou, dizendo de outro modo, da função e do lugar que a linguagem tem na estrutura das atividades, sejam sociais, sejam psicológicas.
Qualquer que seja o tipo de atividade posto em análise, a linguagem tem uma estranha regularidade: sua inconstância, sua mobilidade, sua característica nômade, necessária e constitutiva de nossas atividades cotidianas. Segundo o momento ou o ponto de vista, ela pode ligar-se: a uma atividade (por exemplo, conversar ou debater); ao produto observável de uma atividade conjunta (essa troca particular, matéria primeira da linguagem); ou, por fim, ao instrumento, psicológico e simbólico, dessa atividade. Nossa hipótese, já desenvolvida anteriormente (Kostulski, 2005; Kostulski & Clot, 2007), é que os objetos linguageiros "navegam" nas atividades e mudam de estatuto por processos de migração funcional (Clot, 2003), impulsionando, nesses deslocamentos, as transformações necessárias à dinâmica das atividades em curso.
As atividades linguageiras: atividades como outras?
A pragmática mostrou bem: a conversação é sempre uma atividade a serviço de outra atividade. Falar é um meio e não um fim (Clark, 1999). No plano psicológico e pragmático, por exemplo, a interlocução organiza um sistema de atividade que desdobra relações fim-meio complexas que já foram comparadas às matrioskas, as bonecas russas de tamanhos tais que cabem umas dentro das outras. Exliquemo-nos. Para sustentar uma conversação, é preciso, inicialmente, mobilizar as regras da conversação, aquelas que os etnometodólogos ou os pragmatistas puderam estudar: a sequencialidade, o funcionamento de pares adjacentes como as saudações/saudações, perguntas/respostas, as propriedades de sucesso e de satisfação dos atos de linguagem. Esse primeiro nível de "funcionamento" da interlocução é o que chamamos (Kostulski, 2005) de atividade conversacional. Essa atividade conversacional é a que permite uma gestão proximal da conversação, ou seja, no plano micro uma possibilidade de "locuções entre", uma possibilidade de agir no encadeamento conversacional: para responder, retorquir, invalidar, confirmar, argumentar, contra-argumentar... Essa atividade conversacional é uma atividade em si mesma, mas ela não conduz apenas às realizações linguageiras possíveis em uma troca. Essa atividade conversacional irá ter na atividade uma função cuja unidade é maior: a função de permitir debater, negociar, discutir ou sustentar controvérsias. Esse nível mezzo da troca, que se liga, a nosso ver, a uma atividade discursiva, é aquela onde se organiza o espaço discursivo da troca, seus jogos e, sem dúvida também, seu tema. Essa atividade é a responsável pela clareza de uma troca, ou ainda de seu "tom"2 (Clot et al., 2000). Esse nível mezzo da troca é o que é mais frequentemente analisado na clínica da atividade, uma vez que o gérmen de análise que ele porta é o das atividades de confrontação e de controvérsias que tentamos promover em nossos métodos.
Mas as atividades linguageiras, seguindo Clark (1999), têm finalidades. É, então, em referência às atividades sociais que elas tomam sentido, e não pelo simples uso da linguagem. Devemos, assim, levar em conta na análise um nível macro, o de uma atividade não linguageira, mas ao qual as atividades discursivas contribuem: debater, discutir (controvérsias), se enfrentar, estão a serviço da realização de uma atividade social: para resolver um problema, fazer avançar sua compreensão da situação, para avaliar um candidato...
Numa troca, as atividades conversacionais e discursivas dos participantes são frequentemente coordenadas e recíprocas, mas elas não são por isso idênticas (por exemplo, questionador – questionado), nem orientadas para uma atividade comum (como é o caso de um quiproquó), nem voltadas para o mesmo objeto (como no caso do mal-entendido) ou para a mesma atividade social. Por exemplo, se um juiz de instrução coloca questões com o objetivo de "chegar à verdade" em um caso, um interrogado poderá responder de modo a mascarar essa verdade. Aqui, se as trocas parecem recíprocas e coordenadas, elas não visam à realização do mesmo objetivo. É o jogo das atividades recíprocas que permitirá fazer as atividades conversacionais penderem para um ou outro dos horizontes presentes.
Assim, a densidade da troca não está somente nas matrioskas. Ela está também nas possibilidades efetivas de realização, entre real e realizado. Isso nos remete ao trabalho de Vygotsky (1925/2003), retomado e desenvolvido na clínica da atividade (Clot, 1999, 2003): o ser humano é pleno, a cada instante, de possibilidades não realizadas que, se não são facilmente observáveis, não são por isso menos operantes na vida psicológica e sobre a atividade em curso.
Devemos, então, voltar nossa atenção à densidade psicológica ligada às atividades engajadas na troca. Essa densidade é aquela dos conflitos entre atividades realizáveis, densidade conceituada pela clínica da atividade como o real da atividade (Clot, 1999). Ela pode ser mais ou menos densa. Ela remete para além do que se diz, e do que compreendemos como atividade realizada. Para além, ou seja, ao que não se diz, ao que tentamos dizer, invalidar, atestar, sem conseguir, ao que poderíamos querer ou não dizer, ao que se poderia preferir não dizer, mas escapou, ao que se pensa que se poderia dizer em outro momento ou em outro lugar, o que se diz para não dizer, o que se deveria dizer...
Esse real, em grande parte não observável,3 não é menos ativo no plano psicológico e na própria atividade.
O lugar das atividades linguageiras nas metodologias de análise
Todo uso da linguagem convoca uma relação com o mundo, uma relação com o outro e, de acordo com a proposição de Vygotsky (1925/2003, p. 91), uma relação consigo. Desse ponto de vista, a interlocução é uma atividade "como as outras", prova subjetiva pela qual nos confrontamos a nós mesmos e aos outros, sempre nos confrontando com o real, para ter uma chance de chegar a fazer o que se tem a fazer. A subjetividade é o "propulsor interno"4 (Clot, 1999). A interlocução não é um fenômeno superposto no qual os interlocutores podem participar, mas é, tomada de fala uma após outra, um produto das atividades dos interlocutores e "um recurso local em curso" (Clot, 1999) para manter ou desenvolver suas atividades.
O uso que o sujeito faz da interlocução depende da atividade que ele busca realizar, e nós nos aproximamos nesse ponto do trabalho de Rabardel (1999) sobre a gênese instrumental. Mas "a atividade que o sujeito busca realizar" durante as análises que ele realiza conosco já é uma relação entre diversas atividades: as atividades linguageiras, na forma de troca, são um dos meios para as atividades de análise. Assim, um sujeito implicado em um enquadramento de autoconfrontação cruzada busca realizar uma atividade de análise. O que percebemos dessa atividade corresponde principalmente à sua atividade de interlocução (de questionamento, de explicação, de invalidação...) dirigida a um colega e posta a serviço de sua atividade de análise. A interlocução é aí um meio de análise. Mas, por outro lado, a atividade de análise do sujeito é também posta a serviço da atividade de interlocução que se dá em direção a seu colega. Nesse ponto, a análise é posta a serviço da controvérsia profissional. Assim, as produções de cada uma dessas atividades se constituem como recursos para tentar realizar a outra atividade A atividade que o sujeito busca realizar se situa bem na relação entre essas atividades, entre fonte e recurso (em francês, entre source et ressource). De fato, a troca verbal surge como um lugar privilegiado de migração funcional entre linguagem e pensamento (Kostulski & Clot, 2007), no qual – voltaremos a esse ponto – uma atividade discursiva de controvérsia com um colega pode migrar na linguagem interior e se inscrever como um diálogo silencioso consigo mesmo (Fernyhough, 2008), aqui como uma controvérsia interior.
A diversidade funcional da linguagem e suas possibilidades de desenvolvimento
A diversidade de funções da linguagem em Vygotsky
Em Vygotsky (1934/1997), a diversidade funcional da linguagem não aparece como questão primeira em seu debate sobre as relações entre pensamento e palavra. O que vem primeiro é a significação da palavra enquanto unidade fundamental, como "microcosmo da consciência humana" (Vygotsky, 1934/1997, p. 500). Nesse sentido, Vygotsky não situa a fronteira da linguagem na palavra ou na sua significação: a linguagem não é uma forma única de atividade verbal, ele diz, mas um conjunto variado de funções verbais. Ele desenvolve a ideia dessa "diversidade funcional da linguagem" (Vygotsky, 1934/1997, p. 468) e vai definir as oposições polares que a organizam (Vygotsky, 1934/1997, p. 472).
O monólogo se opõe ao diálogo, o oral se opõe ao escrito. Vygotsky mostra como uma diversidade de funções se desenha na declinação de oposições.
- De um lado, a linguagem predicativa, sintética e espontânea, característica da linguagem oral, mas de outro lado a linguagem construída, precisa e formalmente desenvolvida, essencialmente característica da linguagem escrita;
- Entre monólogo e diálogo;
- Entre a linguagem para si, característica do diálogo interior e a linguagem para o outro, essa última ligada às formas linguageiras dedicadas à comunicação.
Sobre essas modalidades de linguagem e suas oposições, Vygotsky apoia as funções. A escrita, diz ele, é produto de um "ato voluntário complexo", tem a tendência a ser formalmente desenvolvida, ajudaria no desenvolvimento da atividade complexa. O oral, ao contrário, é um "encadeamento de reações", tem tendência ao caráter predicativo. Na linguagem interior, essa forma predicativa sempre aparece: "o predicado é a forma fundamental e única da linguagem interior" (p. 473). Vygotsky avançará dizendo que "se a linguagem escrita é o polo oposto à linguagem oral por seu desenvolvimento maximal, "a linguagem interior é igualmente o polo oposto à linguagem oral". Do ponto de vista da forma predicativa ou desenvolvida da linguagem, o oral ocupa, então, uma posição "intermediária entra a linguagem escrita e a linguagem interior". As forças de oposição não são, assim, bilaterais, mas multilaterais: o escrito se opõe ao oral de um certo ponto de vista, se opõe à linguagem interior de outro etc.
Essas oposições permitem desenhar a diversidade funcional da linguagem, mas essas funções são, num olhar mais fino, relativamente independentes das modalidades de realização tomadas nas atividades verbais. Eu posso enunciar um discurso em voz alta para falar a mim mesmo, posso falar a outro e neste momento tomar consciência de meu próprio pensamento ou usar o outro como destinatário parcial para falar a mim mesmo (Von Kleist, 2003). Um escrito pode ser um monólogo ou um diálogo (as formas dialogadas de escrita, ligadas às novas tecnologias mostram bem isso), assim como um escrito pode ser dirigido a outro numa função de comunicação, ou a seu autor como meio de elaboração do pensamento.
Formas de realização e funções psicológicas da linguagem nas metodologias em clínica da atividade
Nas intervenções em clínica da atividade nos apoiamos em metodologias que desdobram a linguagem em diferentes modalidades e diferentes atividades linguageiras. Guiadas pelas proposições acima, essas metodologias podem ser analisadas do ponto de vista das atividades e funcionalidades linguageiras que convocam. Na verdade, examinamos o devir da linguagem usando os métodos de instrução ao sósia e das autoconfrontações cruzadas.5
No método da instrução ao sósia, o sujeito que analisa sua própria atividade deverá se dedicar, na presença do coletivo de pares, a uma atividade discursiva pouco habitual. Diante do psicólogo e em acordo com o coletivo de pares, ele escolhe uma situação de trabalho real com a qual deverá se confrontar nos próximos dias. Trata-se, então, de interrogar e levar ao diálogo uma situação real que se tornará mais familiar, como no caso do procurador da República, cujo interrogatório que dará em uma audiência correcional, um processo que o procurador conhece bem e sobre o qual já pode, uma vez que a enquete já foi feita, "ter uma ideia" e para a qual ele poderá enunciar o que irá ocorrer, fazer antecipações. O psicólogo inicia, diante do grupo silencioso, a entrevista que será gravada: "Nesse interrogatório eu o substituirei. Para isso o senhor deve me explicar o que eu devo fazer e como eu devo me comportar, de modo que ninguém possa se dar conta da substituição entre nós". Quando o profissional faz suas recomendações ao sósia ("é preciso que o senhor passe para vestir sua beca, pegue o dossiê e código do processo penal na sua sala"), este questiona detalhes da atividade que em geral não são discutidos ("o senhor diz que eu devo pegar o dossiê, onde eu encontro o dossiê? eu devo levar tudo comigo para a audiência?"), assim como as antecipações, as motivações do profissional diante dessa situação. O coletivo silencioso escuta a entrevista e cada um dos profissionais é levado a repensar a situação desse colega e as situações que ele enfrenta e os meios de que ele lança mão para isso. Após a entrevista, inicia-se uma discussão em que cada um pode inserir sua própria experiência. Os subentendidos do ofício podem então ser enunciados e debatidos; as dificuldades que um profissional acreditava serem pessoais se revelam como armadilhas do ofício ao qual todos se confrontam; as saídas possíveis podem ser partilhadas. Nesse exercício, trata-se inicialmente dos gestos possíveis definidos coletiva e individualmente e, ao mesmo tempo, da função psicológica do coletivo. O profissional que se entrega a essa experiência retorna a sua atividade cotidiana com a recomendação de escutar e transcrever a gravação da instrução ao sósia. Propõe-se a ele se deixar surpreender com relação a sua própria maneira de dizer as coisas, sobre suas omissões, sobre as palavras que escolheu na entrevista e que lhe parecem estranhas no momento da escuta. Na sessão coletiva seguinte, a palavra lhe será dada para que ele possa apresentar como se deu a tarefa de transcrição, fazendo assim ecoar as questões na continuidade da análise.
Nesse método, em referência às proposições de Vygotsky, a diversidade de funções da linguagem parece ser massivamente convocada na viagem que o discurso do sujeito realiza nas diversas modalidades linguageiras: a estranha atividade discursiva da entrevista, de instruções dadas a um sósia sobre detalhes de sua atividade de trabalho, realiza-se em um diálogo, como uma conversação endereçada a outro. As questões do entrevistador, o enquadramento e as finalidades dessa troca convocam, sobretudo, a linguagem interior do sujeito sobre os objetos de trabalho, as maneiras de fazer, os implícitos, as falsas evidências. Essa linguagem interior terá outros apoios, uma vez que o método prevê que o sujeito produza um texto escrito como suporte para essas improváveis instruções, instruções que ele irá sucessivamente enunciar, escutar, transcrever e reler, e sobre as quais lhe será pedido que fale, escreva e depois fale ainda mais, relatando sua reflexões, como solicitações funcionais dirigidas ao pensamento e suas possíveis elaborações.
Nas entrevistas de autoconfrontação cruzada, outras vias induzem os usos do desenvolvimento das funções da linguagem. Trata-se de criar um enquadramento que permita dialogar sobre os detalhes dos gestos de trabalho. Esse método parte do registro em vídeo da atividade de trabalho, uma vez que a filmagem nos dá os detalhes do trabalho realizado, os caminhos que o profissional tomou em sua atividade e aqueles que, querendo ou não, abandonou. Assim, depois de ter escolhido as situações em que a atividade seria filmada, nós filmamos a atividade de ao menos dois participantes voluntários, para discutir, no coletivo, suas maneiras de fazer nessas situações. Durante a mesma intervenção com procuradores da República (Kostulski, 2011; Milburn, Kostulski & Salas, 2010), filmamos dois voluntários em diferentes atividades escolhidas pelo coletivo. A análise foi feita com a ajuda desses filmes da seguinte maneira: depois de ter feito o filme dessas situações, propusemos a cada magistrado filmado que assistisse, sozinho, ao filme conosco, tomando como objeto de análise os detalhes de seus gestos: o que ele havia feito, como, o que o surpreendia ao se ver fazer, o que parece pesar na situação e os recursos disponíveis para agir. Propusemos, em seguida, aos dois voluntários, que assistissem juntos aos filmes de suas respectivas atividades. Claro está que a justaposição de dois filmes que focam a mesma tarefa faz aparecerem diferentes maneiras de fazer, de interpretar os processos, de fazer a organização interna do tribunal, de se relacionar com os acusados, os advogados e outros destinatários. Em nossa metodologia, consideramos o que o sujeito faz efetivamente, mas também a dinâmica dos possíveis e das impossibilidades – objetivas e subjetivas, individuais e coletivas –, que levarão ao resultado observável do trabalho. Os profissionais munidos dessas questões se engajam em um diálogo sobre as maneiras de fazer e seus pressupostos. Nós filmamos os diálogos entre os profissionais no momento em que assistem a esses filmes, suas surpresas, as questões que eles se colocam, suas hesitações, suas controvérsias e, por vezes, seu silêncio. Enfim, para abrir nossa análise, nos propomos a examinar, em cada sessão de trabalho coletivo com o conjunto de procuradores, as montagens em vídeo, retomando os momentos da atividade de trabalho e os momentos de discussão entre profissionais. Diferentes enquadramentos de diálogo permitem assim o desenvolvimento da análise: só, com um colega confrontando as suas próprias imagens, com o coletivo associado à intervenção. Os processos linguageiros em uso nas autoconfrontações cruzadas parecem ter contornos mais largos que aqueles engajados nas instruções ao sósia. De fato, bem mais que nas instruções ao sósia, as autoconfrontações cruzadas organizam uma sucessão de enquadramentos dialógicos sobre a interlocução. A repetição desses diálogos em diferentes contextos já teria uma função de desenvolvimento gradual (Clot, 1999, 2004). O método convoca fortemente a diversidade funcional da linguagem e suas funções nessa diversidade. Se observarmos as migrações funcionais (Clot, 2003; Kostulski & Clot, 2007), elas sem dúvida são possíveis por suas oposições polares. A linguagem interior do sujeito é solicitada desde a realização do filme, quando o sujeito se serve da observação do psicólogo e da câmera como meios de observar a si mesmo. Essa linguagem interior será desenvolvida nas autoconfrontações simples, quando o psicólogo, sozinho com o profissional, solicita explicações, análises, surpresas do sujeito diante do filme de sua própria atividade. É, então, tanto o "difícil de dizer" (François, 1998) quanto a possibilidade de se olhar com os olhos de um outro (Vygotsky, 1925/2003) que conduzirão o sujeito a interrogar suas próprias maneiras de fazer e a construir um ponto de vista, uma postura enunciativa, que lhe permitirá entrar em diálogo com seu colega em autoconfrontações cruzadas. Aqui a linguagem entra em cena, mas por outras vias: a da controvérsia com um par sobre os detalhes da atividade de trabalho. Do ponto de vista da atividade que essa análise provoca, pode-se definir a controvérsia como uma forma de atividade discursiva, a saber: uma atividade deliberativa e recíproca que desdobra argumentos opostos no diálogo, esses argumentos tendo a particularidade de serem voltados para temas genéricos e históricos do ofício. Pela mediação dessa relação entre source e ressource que liga as atividades linguageiras e reflexivas, essa controvérsia realizada com um par seria a ocasião de instalar, para o profissional, essa forma dialógica na sua linguagem interior: uma controvérsia interior consigo mesmo, ou, melhor dizendo, entre si e as formas genéricas do meio profissional em si.
O lapso do procurador
Para deixar mais claros esses processos, vamos fazer um breve resumo de um exemplo longamente analisado em outro artigo (Kostulski, 2011). Uma das situações escolhidas pelo coletivo de procuradores foi a Comparação com Reconhecimento Prévio de Culpabilidade (Comparution sur Reconnaissance Préalable de Culpabilité, CRPC), que é uma forma "francesa" de o acusado reconhecer-se culpado. Como é um procedimento novo, os procuradores quiseram analisá-lo. Mas havia outro motivo: o dispositivo faz aparecerem novos problemas com relação à sua fonte histórica, a audiência correcional. Essa CRPC permite conduzir um processo legal respondendo, como na audiência correcional, a um "pequeno" delito (roubo, tráfico, ameaça, delinquência no trânsito sem vítima), mas de uma maneira mais leve, oferecendo maior clemência ao acusado, na medida em que esse se reconheça culpado. Assim, o acusado não se apresenta em audiência pública no tribunal de audiência correcional, mas no gabinete do procurador, que estabelecerá com o advogado uma proposta de pena. Essa proposta será, mais adiante, homologada ou não por um juiz. Um dos procuradores filmados nessa situação comete o que será identificado como um lapso de linguagem: em vez de falar da pena que ele teria proposto, ele diz pronunciado e as análises em autoconfrontação cruzada e no coletivo serão dirigidas sobre esse deslocamento e suas fontes. Esse lapso passou despercebido na autoconfrontação simples e foi depois identificado por seu colega; no momento da análise pelo coletivo de pares foi analisado como uma transgressão importante. Profundamente afetado pelas controvérsias quanto à natureza transgressiva desse ato, o procurador se sentirá, então, chamado a trabalhar sobre esse lapso e suas causas, consigo mesmo, nas trocas com seus pares ou conosco, psicólogos. A questão o afeta sobretudo porque ele acredita que o dispositivo da CRPC parece-lhe mais propício a promover essas derrapagens, que a promover justiça de qualidade. Os diálogos com seus pares e com as formas genéricas nele presentes se repetem nele mesmo, buscando retomar a situação para interrogá-la. Essa mobilização subjetiva permitirá que surjam muitos conhecimentos novos sobre a situação dessa atividade: conhecimentos relativos à organização do trabalho, às relações históricas e de gênero, com suas ambivalências, entre procuradores e juízes, ou ainda, o deslocamento, a necessária migração de um trio histórico de processos legais. Historicamente, na audiência correcional, o processo é constituído por um trio: procurador–advogado–juiz, correspondente ao trio de funções principais do processo legal, acusação–defesa–sentença. Do diálogo entre essas três instâncias nasce a realização da audiência e o veredicto vem como resultado. Nossas análises do lapso permitiram trazer à cena a reorganização da atividade, que se torna necessária no novo dispositivo. Na ausência do juiz, que não é mais participante ou destinatário das trocas sobre o processo, a atividade judiciária não pode mais se apoiar na realização efetiva e concreta do diálogo histórico do trio. No entanto, esse diálogo histórico não desaparece, ele muda de estatuto. Ele se torna uma modalidade da atividade do próprio procurador, que interioriza o diálogo do trio como um meio de fazer o que deve ser feito na situação: propor uma pena, que ele tentará avaliar como será recebida pelo ponto de vista do juiz. A atividade do procurador está assim sujeita ao risco do lapso.
Concluindo
O estudo da linguagem em clínica da atividade nos permite reafirmar os princípios vygotskyanos que vão bem além da linguagem: em nossas metodologias, como nesse exemplo do lapso do procurador, o interpsicológico é um meio para o desenvolvimento intrapsicológico. Mas o interpsicológico também tem suas vias, dialógicas, linguageiras e interacionais, que participam das transformações do pensamento sobre o trabalho, cada um à sua maneira. Nossa hipótese é principalmente procurar, na espessura desse trio, linguagem, diálogo e interação, a origem dos processos interfuncionais que acompanham e sustentam as análises da atividade.
Referências
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Endereço para correspondência:
katia.kostulski@cnam.fr
Recebido em: 21/08/2012
Aprovado em: 11/03/2013
1 Centre de Recherche sur le Travail et le Développement. Equipe Psychologie du Travail et Clinique de l'Activité.
2 Em francês tournure.
3 Ainda em uma sequência de auto-confrontação cruzada (Kostulski, 2004), conseguimos realçar este aspecto do relatório sobre o diálogo real: um profissional, em primeiro lugar muito avaliativo e constrangido pelo pesquisador para transformar sua atividade durante a análise, apreendeu possíveis realizações interlocutórias e as alternativas, oferecidas por seu colega, dessa atividade e para entrar na análise.
4 Em francês ressort interne.
5 Para uma apresentação do método das instruções ao sósia, cf. Clot (2001) ou Scheller (2001, 2003); com referência ao método das autoconfrontações cruzadas, o leitor poderá recorrer a Clot et al. (2000), para uma exposição de seus princípios, e a Clot (2005) e Kostulski (2005), para uma análise dos processos dialógicos e interacionais que ele provoca.