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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.21 no.1 São Paulo Jan./June 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v21i1p17-31 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v21i1p17-31

ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

 

Concepções e práticas de procuradores do trabalho sobre a relação entre saúde mental e trabalho

 

Concepts and practices of labor prosecutors on the relationship between mental health and work

 

 

Natasha Contro de SouzaI,1; Marcia Hespanhol BernardoI,2

IPontifícia Universidade Católica de Campinas (Campinas, São Paulo, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata uma pesquisa que teve por objetivo analisar como procuradores do trabalho compreendem a relação entre o processo saúde-doença mental e o trabalho, bem como identificar suas práticas sobre tal tema. Foram realizadas entrevistas abertas em profundidade com quatro procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT). Os resultados indicam que os entrevistados apresentam uma análise conceitual muito crítica quanto à noção de precarização do trabalho e sua relação com os prejuízos à saúde mental. Todavia, apesar da familiaridade com as discussões teóricas, em suas práticas, tendem a restringir o foco de suas ações em saúde mental às situações de assédio moral, apoiados no argumento de que estas possibilitariam avaliações mais objetivas. Isso interfere no acolhimento do trabalhador e na possibilidade de propor ações preventivas focalizadas nas políticas de gestão empresarial que afetam a saúde mental dos trabalhadores. O MPT tem muito a contribuir com a luta pela garantia dos direitos à saúde mental do trabalhador, mas, para isso, é importante que se amplie sua atuação para além do assédio moral. Este artigo pretende oferecer uma discussão sobre esse tema, de modo a amparar as práticas desses atores sociais.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador, Saúde mental, Saúde mental relacionada ao trabalho, Direito do trabalho, Procurador do trabalho.


ABSTRACT

This article reports a research that aimed to analyze how labor prosecutors understand the relationship between mental health-illness process and work, as well as to identify their practices on this topic. Open interviews were conducted in-depth with four prosecutors of Minister of Labor (MPT). The results indicate that respondents have a very critical conceptual analysis about the notion of precariousness of work and its relations with the damages to mental health. However, despite their familiarity with the theoretical discussions, in their practices, they tend to restrict the focus of their actions in mental health to situations of moral harassment, supported by the argument that they would enable more objective assessments. This interferes in the reception of the worker and in the possibility of proposing preventive actions that focus in the policies of business management that affect the workers' mental health. MPT has much to contribute to the struggle for the guarantee of the right of worker's mental health but for that, it is important it to extend beyond the point of moral harassment. This article intends to offer a discussion on this theme, in order to contribute to the practices of these social actors.

Keywords: Worker's health, Mental health, Mental health related to work, Labor law, Labor prosecutor.


 

 

Introdução

O direito do trabalhador à saúde

Estudos recentes apontam que os problemas de saúde mental relacionados ao trabalho são cada vez mais recorrentes, fato confirmado pelo Ministério da Previdência e Assistência Social no Brasil (MPAS), que revela os transtornos mentais como a terceira maior causa de afastamento do trabalho (Brasil, 2012). Tais dados ainda não englobam inúmeros casos de trabalho informal e outros que não foram notificados devido à dificuldade em se estabelecer o nexo com o trabalho. Muitos sequer chegam ao conhecimento dos órgãos responsáveis pelas notificações.

O enfrentamento de problemas voltados especialmente à prevenção do adoecimento e a promoção de saúde nos locais de trabalho depende de que os direitos dos trabalhadores sejam assegurados também no âmbito legal. Devemos lembrar que a legislação é sempre um campo de disputa inserido em determinados contextos sócio-históricos e, no caso dos direitos do trabalho, as leis conquistadas são um importante instrumento para coibir práticas, situações e condições de trabalho que atentem contra a saúde e vida dos trabalhadores, embora não dê conta de todos os problemas. Vale dizer que, na configuração atual do mundo do trabalho no Brasil e em diversos outros países, tal disputa está, inclusive, bastante desfavorável aos trabalhadores.

Diversos casos relacionados à saúde do trabalhador, incluindo a saúde mental, são judicializados e chegam às mãos de procuradores e juízes, que se defrontam com muitas ocorrências envolvendo as violações dos direitos fundamentais de trabalhadores (Lira, 2015). Tal fato torna relevante a compreensão de como os operadores do direito – advogados, juízes, procuradores – concebem a relação entre a saúde mental e o trabalho. É, portanto, relevante compreender a visão desses atores, bem como as práticas que eles têm desenvolvido a esse respeito.

Optou-se aqui por focalizar procuradores que atuam no Ministério Público do Trabalho (MPT). Eles são profissionais vinculados ao Ministério Público (MP), sendo esta a instituição que mais tem se destacado na defesa dos direitos coletivos no âmbito judicial e pela luta por uma construção da cidadania (Arantes, 1999). O órgão tem a função de fiscalizar o cumprimento das leis e, quando necessário, titular a ação penal pública, ou seja, deve atuar ao lado do juiz verificando se a lei tem sido aplicada. Nesse caso, não é parte do processo, mas atua como representante do Estado. Também é responsável por acionar o Judiciário quando for necessária a aplicação de pena a crimes codificados pelas leis e cabe-lhe a elaboração de acusações em processos criminais.

O MP atua em diversas frentes, tais como área civil, criminal, direitos humanos, educação, saúde pública, entre outros. Dentre estes, o trabalho recebe um destaque especial, sendo relevante evidenciar tanto a existência como a importância do MPT.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) é o ramo do MPU que tem como atribuição fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista quando houver interesse público, procurando regularizar e mediar as relações entre empregados e empregadores. Cabe ao MPT promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados direitos sociais constitucionalmente garantidos aos trabalhadores. Também pode manifestar-se em qualquer fase do processo trabalhista, quando entender existente interesse público que justifique. O MPT pode ser árbitro ou mediador em dissídios coletivos e pode fiscalizar o direito de greve nas atividades essenciais (Brasil, 2016).

O MPT objetiva a promoção dos direitos sociais dos trabalhadores, garantindo a igualdade de oportunidades, como também o combate à discriminação nas relações de trabalho. Sua missão está alicerçada nos ideais de democracia e de cidadania, sendo sua atuação dada por procedimentos administrativos, como os inquéritos civis e as audiências públicas, por exemplo (Brasil, 2016).

Ressalta-se que os procuradores têm parceiros que colaboram e são peças-chave na fundamentação técnica da sua atuação. Entre outros, são os auditores fiscais do trabalho, a Polícia Federal e a Vigilância em Saúde do Trabalhador do Sistema Único de Saúde. Eles contribuem com a fiscalização das condições de trabalho e também averiguam se a proteção ao trabalhador está sendo garantida pelos empregadores (Brasil, 2016).

Ainda assim, a realidade vivenciada por muitos trabalhadores demonstra ser incompatível com os princípios básicos que envolvem a dignidade da pessoa humana. Vale lembrar que a própria Constituição estabelece prioridade do trabalhador sobre o sistema econômico, sendo mais relevante a pessoa do que sua função, cargo ou atividade. Ou seja, o trabalhar transcende o capital (Oliveira, 1998) e a proteção e cuidados para com a saúde do trabalhador são direitos inegociáveis:

Para compreender e avaliar a extensão do direito à saúde do trabalhador é importante registrar uma questão antecedente: a valorização do trabalho, como objeto da tutela jurídica. O florescimento do direito à saúde do trabalhador é consequência desse enfoque mais dignificante do trabalho. A lei reflete o senso moral médio da sociedade e evolui em harmonia com as mudanças dos valores sociais, numa incessante e renovada procura da Justiça. O aprimoramento ético influência, de imediato, no comportamento social, na produção legislativa, na interpretação das leis, tudo para não divorciar o mundo do Direito da realidade fática que lhe dá sustentação (Oliveira, 1998, p. 114).

Sabe-se, todavia, que tais fundamentos constitucionais não são coerentes com as demandas do capitalismo, pois, de forma majoritária, o capital antecede o indivíduo. Por mais que a saúde do trabalhador, um meio ambiente de trabalho saudável e a busca pela diminuição de riscos laborais sejam premissas da dignificação do trabalho, infelizmente tais aspectos não se mostram presentes no contexto atual brasileiro. Isso pode ser exemplificado com a chamada "Reforma Trabalhista" (Brasil, 2017), que efetivou uma alteração na legislação bastante desfavorável aos trabalhadores.

Nesse sentido, Baruki (2015) demonstra que o sofrimento psíquico do trabalhador não é tratado com o devido cuidado e considerado "merecedor da tutela jurídica" (p. 111). Maranhão (2011) reforça esse ponto ao mencionar a presença de um viés patrimonialista apresentado nas universidades, quando a disciplina "Direito do Trabalho" é lecionada. O autor indica a existência de um reducionismo do direito trabalhista à busca pelo ressarcimento monetário dos prejuízos à saúde do trabalhador. Todavia, ele refuta a ideia de que esse campo se limita apenas aos pagamentos e reembolsos ao indivíduo adoecido pelo trabalho e insiste na aplicação concreta da Constituição para garantia da proteção à saúde física e mental, como um direito fundamental do trabalhador. Para tal, é necessário o retorno ao caráter de proteção e promoção da saúde do trabalhador ao invés de mercantilizá-la.

Por isso, é essencial um conhecimento aprofundado sobre a saúde do trabalhador por parte dos operadores do Direito, uma vez que apresentam maior familiaridade com as legislações e podem contribuir de forma significativa com os cuidados e proteção dos trabalhadores. O direito à saúde mental está inserido na Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990 e propõe a garantia tanto às pessoas quanto à coletividade de um bem-estar físico, mental e social (Oliveira, 1998).

Mas como o trabalho pode se relacionar ao adoecimento mental?

Muitas doenças se desenvolvem ou são potencializadas por condições precárias de trabalho, como identificado na obra clássica de Le Guillant et al. (1984). Apesar da revolução tecnológica e das transformações nos modelos de gestão, os trabalhadores continuam sofrendo e as políticas empresariais afetam não apenas sua saúde física, mas também a saúde mental.

Conforme mostram autores, entre os quais, Alves (2011), Antunes, (2015) e Bernardo (2009), os modelos predominantes na atualidade, baseado no Toyotismo, têm como premissa a incorporação da subjetividade do trabalhador no processo de trabalho de forma a subordiná-la às necessidades dos empregadores. Esse movimento, que faz com que os trabalhadores sejam tragados pelo envolvimento com a "missão" da empresa, relaciona-se, entre outros aspectos, à necessidade de incorporação do saber do sujeito, buscando eliminar erros e favorecer o aumento da produtividade, ritmo e intensidade do trabalho. Essa lógica, para Alves (2011), tem como uma das principais características o intuito de dominar a subjetividade.

Para Linhart (2009), tais condições causam no trabalhador um estado de tensão permanente. Isso porque os discursos e as estratégias gerenciais se reconfiguram em forma de insegurança. Cria-se um ambiente de maior competitividade entre os colegas e consigo mesmo em busca de resultados cada vez mais favoráveis à organização, devido a ameaças constantes – seja de demissão ou a restrição na ascensão na carreira – àqueles que não atenderem o que é esperado. Inevitavelmente, as vivências no trabalho afetam o cotidiano do indivíduo e geram prejuízos em suas relações até mesmo fora desse ambiente.

Seligmann-Silva (2011) oferece uma perspectiva interessante para entender como a saúde mental dos trabalhadores é afetada. A autora compreende a Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) como um campo integrador e a sua leitura multidisciplinar permite a compreensão da relação entre trabalho e saúde mental a partir de um conceito denominado "desgaste mental". Este pode ser entendido como o " . . . produto de uma correlação desigual de poderes impostos sobre o trabalho e sobre o trabalhador, acionando forças que incidem no processo biopsicossocial saúde-doença." (p. 135).

Tal concepção toma como referência os postulados de Laurell e Noriega (1989), que apresentam uma leitura do processo saúde-doença estabelecida em diálogo com a perspectiva do materialismo histórico. Para eles, trata-se de um processo biopsíquico determinado por um contexto sócio-histórico que inclui o trabalho. Esses aspectos sócio-históricos são determinantes do estabelecimento de padrões de desgaste, que, segundo os autores, são "a perda de capacidade efetiva e/ou potencial, biológica e psíquica. Ou seja, não se refere a algum processo particular isolado, mas sim ao conjunto de processos biopsíquicos" (p. 115). Com isto, os autores puderam confrontar a visão médica predominante ao lidar com a saúde do trabalhador, compreendendo que o desgaste seria ocasionado pelas cargas de trabalho e voltam o olhar para a organização do trabalho e seus reflexos na vida dos indivíduos.

A proposta de Seligmann-Silva (2011) preserva essas bases epistemológicas, porém, focaliza em maior profundidade a noção de desgaste mental, que seria o "consumo do substrato e das energias vitais do trabalhador pelos processos de trabalho" (Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno & Kato, 2010, p. 189). O desgaste mental se desenvolve por meio das experiências vividas dentro e fora do contexto laboral, podendo desencadear sofrimento e até adoecimento psíquico ao trabalhador, além de afetar sua vida social. A autora afirma ser necessário considerar alguns patamares para se realizar uma análise mais ampla que contemple os processos de desgaste mental. Assim, é essencial considerar a influência da economia internacional e nacional, dos modelos específicos de organização do trabalho e dos aspectos históricos e pessoais do trabalhador. Ao compreender a saúde como um processo e não como um estado, considera-se a saúde física e mental como indissociáveis.

Essa proposta busca, então, compreender os múltiplos elementos que envolvem o processo saúde-doença mental, que devem ser compreendidos em sua complexidade, incluindo aspectos objetivos dos contextos macro e microssociais, bem como aqueles relacionados à subjetividade do trabalhador. Isso possibilita uma leitura menos estereotipada e culpabilizante, capaz de acolher os trabalhadores em suas reais demandas e intervir de forma realmente adequada.

Devido à importância dos meios jurídicos no que tange à saúde mental, compreende-se que há uma necessidade de contribuir com subsídios teóricos às práticas desses atores sociais. Esse é um assunto de extrema complexidade e que requer suporte de outras áreas, dentre elas, a Psicologia. Desse modo, é interessante compreender as concepções e as atuações de procuradores do trabalho que revelam envolvimento com essa temática. Com este artigo, espera-se contribuir para discussão das dificuldades e das possibilidades de enfrentamento para, então, colaborar com a efetivação dos direitos dos trabalhadores garantidos pela Constituição Federal de 1988 e que correm o risco de serem subtraídos.

 

Considerações sobre o método da pesquisa

A pesquisa apresentada aqui teve caráter qualitativo, que envolveu a realização de entrevistas abertas em profundidade com quatro procuradores do MPT de uma região específica do país. Segundo Cruz Neto (2007), é necessário estar claro tanto para o pesquisador como para o participante da pesquisa que a busca por informação refira-se a um "jogo cooperativo" (p. 55). Trata-se de uma relação de troca que apresenta objetivos bem claros. Para Hammersley e Atkinson (2001), esse tipo de entrevista apresenta como característica uma natureza mais reflexiva e menos padronizada. Assim, a forma de entrevistar cada participante pode ser diferenciada e específica frente à elaboração da fala do sujeito. Ao pesquisador cabe manter um roteiro com temas que pretende abordar no decorrer do diálogo, buscando facilitar para que o entrevistado fique à vontade para falar.

Sendo assim, as entrevistas realizadas não tiveram questões previamente estabelecidas, sendo que os procuradores foram convidados a expor livremente suas ideias, concepções e práticas referentes à temática em foco e, na medida em que transcorria o diálogo, algumas questões foram sendo colocadas de modo a esclarecer aspectos de interesse para a pesquisa.

A seleção dos participantes se deu por meio de um contato anterior já estabelecido entre o primeiro procurador entrevistado e a orientadora responsável pela pesquisa, sendo que esse indicou os outros três entrevistados. Ressalta-se que a escolha desse primeiro participante ocorreu devido ao seu engajamento com a defesa dos direitos dos trabalhadores, bem como com os aspectos voltados à saúde do trabalhador. Trata-se, assim, daquilo que se pode chamar de amostra intencional (Duarte, 2006, para a qual se buscou sujeitos que apresentassem um olhar crítico e reflexivo a respeito das questões voltadas à saúde do trabalhador. A ideia que guiou essa escolha era a de compreender como procuradores que já estão engajados na defesa dos direitos dos trabalhadores à saúde lidam com questões específicas de saúde mental relacionada ao trabalho.

As entrevistas foram realizadas em locais e horários estabelecidos pelos entrevistados, sendo que todos preferiram realizá-las em suas salas no MPT. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas com o consentimento dos entrevistados, sendo submetidas posteriormente à análise na qual se buscou interpretar o discurso dos sujeitos entrevistados atribuindo sentido às informações por eles trazidas, considerando o contexto mais amplo em que estão inseridos. Esse tipo de análise é identificada por Minayo (2012) como hermenêutica dialética.

Cabe ressaltar que a proposta de estudar as concepções dos procuradores do trabalho a respeito da saúde mental relacionada ao trabalho exigiu da pesquisadora, que é psicóloga, uma adequada apropriação da linguagem do campo do Direito. Ainda que essa seja uma pesquisa do campo da Psicologia, foi necessário também haver certa compreensão de alguns conceitos do Direito a fim de que houvesse maior propriedade e consistência na realização das entrevistas e na própria análise. Identifica-se a possibilidade dessa pesquisa ser de interesse de trabalhadores do sistema judiciário que estejam envolvidos com as questões do trabalho partindo de uma perspectiva mais crítica e integradora.

 

Resultados

Por meio das entrevistas, foi possível analisar as concepções dos quatro procuradores do trabalho sobre a relação entre saúde mental e trabalho. Suas falas apresentam semelhanças e diferenças em relação ao embasamento teórico desta pesquisa. Fragmentos retirados das conversas enriquecem e promovem reflexões sobre a SMRT, uma vez que este é um campo multidisciplinar e demanda a articulação dos mais diversos saberes, entre eles a Psicologia e o Direito.

Optou-se por organizar a apresentação dos resultados da pesquisa a partir dos temas que surgiram nas falas e que apresentaram relação direta com os objetivos propostos pela pesquisa. O primeiro tema discutido refere-se às concepções dos procuradores sobre o trabalho e a saúde mental e, para tal, foi necessário discutir e analisar as formas atuais de organização do trabalho. Já o segundo tema focaliza a atuação prática que os entrevistados afirmam realizar.

A análise da relação entre trabalho e saúde mental na fala dos entrevistados

De modo geral, todos os procuradores identificam o ritmo de trabalho, a imposição de metas, a competitividade – ou seja, as características dos modelos de organização do trabalho predominantes na atualidade – como os grandes responsáveis pelos danos à saúde mental do trabalhador. Sem exceção, os entrevistados discutiram a influência dos modelos de gestão nas práticas organizacionais abusivas. Estas seriam uma expressão do trabalho precarizado instaurado em um ambiente permeado por condições transgressoras da dignidade humana. Isto condiz com os postulados de Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010), que discorrem a respeito da incompatibilidade entre o ritmo do trabalho, a intensidade, as longas jornadas e horas extras e os "biorritmos dos indivíduos" (p. 232). Tais fatores geram ainda mais acidentes e adoecimentos no trabalho, como as lesões por esforço repetitivo (LER/DORT) e também as doenças mentais.

Os procuradores são unânimes ao afirmarem que as mudanças na organização do trabalho têm levado demasiada pressão sobre os indivíduos. Tal perspectiva é próxima à afirmação de Antunes (2015) de que, na atualidade, o mundo do trabalho vem sofrendo diversas transformações que afetam a vida material e subjetiva daqueles que vivem do trabalho. Atingi, então, não apenas o "trabalhador", mas o indivíduo em sua complexidade, em seu modo de ser e de agir. Sennett (1999) acrescenta que os modelos atuais de organização do trabalho estão vinculados ao chamado "capitalismo flexível" (p. 9) e essa ideia de flexibilidade chega às organizações como uma condição e não uma possibilidade.

Para Bernardo (2009), a noção de flexibilidade, apontada por muitos empregadores como algo positivo ao trabalhador, pode ser identificada nos discursos da gestão, mas não nas práticas empresariais. Tais discursos servem, assim, apenas para legitimar práticas que visam ampliar a exploração sobre os trabalhadores. A percepção dos procuradores sobre o impacto destas transformações pode ser exemplificada pela seguinte fala:

O que o Ministério Público enxerga hoje é o seguinte: nós temos um mercado extremamente competitivo. Todo empresário tem que reduzir seu custo para ter um preço, para que possa competir e entrar no mercado. Para que isso aconteça, ele acaba fazendo muita pressão nos trabalhadores, exigindo metas, exigindo um trabalho mais perfeito, trabalho de qualidade a um custo baixo. Então, todo mundo sonha em ter um trabalhador que vai ter um trabalho regular, com incidência de erro pequena e pagar um baixo salário (Rogério3).

Foi possível identificar que algumas categorias de trabalhadores são identificadas pelos procuradores como mais vulneráveis. Em consonância com Laurell e Noriega (1989), eles associam que o processo saúde-doença do trabalhador está relacionado a alguns padrões precarizados de trabalho já identificados em determinadas categorias profissionais. Entre elas, foram destacados os bancários, os operadores de telemarketing, os caminhoneiros, os policiais militares, os cortadores de cana e os trabalhadores de frigoríficos. Para eles, as atividades que os profissionais dessas áreas executam são ainda mais precárias e nocivas à dignidade humana. Vale ressaltar que muitas foram, inclusive, objetos de pesquisa de outras investigações. Glina, Rocha, Barista e Mendonça (2001), por exemplo, elaboraram um estudo de caso com bancários, e Silva (2015) estudou as vivências de caminhoneiros, analisando o cotidiano e o sofrimento decorrente do contexto do trabalho. Souza (2012) também realizou um estudo visando compreender os desafios diários de transexuais operadoras de call centers. Esses autores mostram que, de fato, a preocupação dos procuradores com as condições de trabalho de tais categorias tem fundamento.

Um dos procuradores avalia que o tipo de pressão sofrida nessas atividades é diferente daquela sofrida por quem trabalha em esteira de produção, uma vez que a pressão seria mais "psicológica". Diz ele: "este é outro tipo de aceleração do processo produtivo, porque o banco exige metas, o call center exige metas . . . . O trabalhador se sente psicologicamente pressionado para produzir de outra forma." (Evandro).

Isto revela seu entendimento de que as condições de trabalho são potencializadoras dos processos de sofrimento e adoecimento psíquico. Tal perspectiva foi observada também na fala dos outros procuradores entrevistados, que entendem a precarização e os abusos do trabalho como aspectos associados a agravos psíquicos. Identifica-se um olhar mais crítico e sensível por parte dos entrevistados sobre as vivências dos trabalhadores:

Eu tenho exemplos na literatura de casos que nós atuamos que são escabrosos, de consequências para quem não conseguiu atingir uma meta. Como vestir saia, rodar a baiana, sair rebolando, ficar de quatro, o homem ser obrigado a passar batom . . . . Uma série de situações contra a vontade do trabalhador . . . . A empresa tem por obrigação tornar seu meio ambiente de trabalho sadio. Então, se ela tem conhecimento, em regra, que uma prática tentatória à saúde mental está acontecendo e ela é omissa em relação a isso, então, ela também está colaborando para que o meio ambiente de trabalho seja danoso (Fernando).

Esse tipo de análise parece distinguir os entrevistados desta pesquisa de muitos de seus pares dentro do judiciário, pois, como observado por Baruki (2015), grande parte dos atores do Direito revelam preconceitos em relação à saúde mental. A fala predominante no meio jurídico, segundo a autora, tende a atribuir culpa ao trabalhador, relacionando seu adoecimento a um fracasso que ele mesmo resistiria em admitir.

Para os entrevistados, as condições de trabalho atuais são o ponto central do alto índice de padecimento mental. Então, qual seria o entendimento deles no que diz respeito ao conceito de saúde mental? Novamente, Fernando argumenta com fluidez quando indagado:

Saúde em geral não é só ausência de doença, você já sabe, né? É estar numa situação de bem-estar. Existem trabalhos que, pela própria natureza, já levam a pessoa ao adoecimento com o tempo, porque é um trabalho em que o profissional às vezes é muito exigido. Existem muitas metas, as responsabilidades são muito grandes, a jornada de trabalho é muito elevada e isso leva a problemas não só de desgaste físico, mas de desgaste mental, puramente emocional e psíquico. Além disso, existem as lesões materiais no corpo da pessoa que também acabam refletindo na sua saúde mental.

Essa fala demonstra sua proximidade com a noção de que o desgaste mental ocorre processualmente e não se refere apenas a um estado no qual o trabalhador se encontra. Além disso, fica claro que o adoecimento pode ocorrer por múltiplos fatores, como também por uma comorbidade de aspectos físicos e mentais. Tal proposição articula-se à perspectiva teórica de Seligmann-Silva (2011), que considera o desgaste mental como um consumidor das energias vitais do indivíduo, que ocorre por meio dos processos de trabalho. Essas experiências são capazes de provocar um nível de adoecimento psíquico que afeta inclusive a vida social.

Apesar de concepções como essas revelarem um olhar crítico, sabe-se que a legislação brasileira, no que se refere à saúde, enfatiza prioritariamente os aspectos físicos, como afirma Oliveira (1998). Algumas falas dos procuradores corroboram essa afirmação. Para Daniel, por exemplo, a saúde mental é deixada em segundo plano devido à alta demanda de casos envolvendo acidentes e problemas físicos ocasionados pelo trabalho. Ele assume que acaba dando maior atenção aos danos físicos que aos psíquicos e ressalta a dificuldade em intervir nos casos de saúde mental, principalmente em "provar" que o adoecimento mental está relacionado ao trabalho. E esse, de fato, é um grande desafio para eles, uma vez que o Direito se fundamenta numa perspectiva positivista que se baseia em provas objetivas, enquanto a relação entre saúde mental e trabalho é essencialmente subjetiva e complexa.

A prova é muito difícil. É difícil provar! Sem entender a prova para se colocar no inquérito para fazer uma ação civil pública, é muito difícil. Primeiro porque os trabalhadores têm medo, os trabalhadores da iniciativa privada, diante da primeira oportunidade que tem de fazer uma denúncia, vão embora. Não há garantia por lei, por mais que alguém venha reclamar no Ministério Público (Daniel).

As provas para o Direito têm um papel importante, Arenhart (2005) aponta que "pela prova se busca investigar a verdade dos fatos ocorridos, sobre os quais se aporá a regra jurídica abstrata, que deverá reger certa situação" (p. 1). Ou seja, de modo geral, a prova é um valoroso instrumento para constatação ou não da verdade. O autor continua dizendo que "a descoberta da verdade sempre foi indispensável para o processo. Na realidade, este é tido como um dos objetivos, senão o principal, do processo" (p. 2). No entanto, todo fato é submetido à interpretação, o que provoca muitas discussões no campo do Direito e também apresenta um caráter menos objetivo do que o esperado, como argumenta Rabenhorst (2003). Diante disso, é possível refletir que, frequentemente, há arbitrariedade na interpretação de um fato, quanto mais em casos envolvendo a saúde mental, em que não há um "medidor" de sofrimento, tampouco exames que indicam com assertividade o tipo de dano.

Mais especificamente, no ramo do Direito do Trabalho, a comprovação do dano à saúde mental do trabalhador é ainda mais complexa, uma vez que, de um modo geral, as únicas provas disponíveis ao trabalhador são testemunhas, documentos, perícias, entre outros recursos. Tais provas apenas indicam a existência de uma condição para o agravo à saúde mental, mas não oferece subsídios para estabelecer um nexo direto, como ocorre com relação a outros agravos, como em casos de acidentes de trabalho ou alguns tipos de intoxicação, por exemplo. Além disso, nem sempre tais provas são de fácil acesso ou estão disponíveis ao trabalhador, o que reforça ainda mais o fato de que o estabelecimento de nexo entre o trabalho e o agravo à saúde mental tem necessariamente um caráter subjetivo (Sako, 2006).

Vale apontar que mesmo para as áreas da saúde, olhar para a SMRT não é algo simples. Para Lima (2005), ainda é um desafio conseguir realizar o estabelecimento do nexo causal entre transtornos psíquicos e o trabalho. Destaca-se entre as dificuldades a existência de diferentes teorias e concepções a respeito das doenças mentais. Nesse ponto, Jacques (2007) defende que a inserção do profissional de Psicologia no campo da saúde do trabalhador pode minimizar as complicações encontradas no estabelecimento da relação entre o adoecimento mental e o trabalho. Isso porque essa ciência tende a valorizar o indivíduo em suas variadas e complexas dimensões.

Os procuradores entrevistados reconhecem também que, mesmo nos casos de acidentes ou adoecimento físico, quando o trabalhador precisa de uma readaptação funcional, é comum a prática de realocação para uma função ou cargo de status inferior àquele que ele se encontrava anteriormente, podendo levá-lo ao sofrimento psíquico.

Esse é um fator que acaba estimulando o trabalhador a ter problemas de saúde mental, quando ele sofre um acidente e sofre de uma doença que o impede, ainda que temporariamente, de trabalhar, mas, que depois possibilita o retorno àquele trabalho. Como a capacidade parcial com restrições no trabalho, ele passa por um processo de reabilitação profissional que normalmente é feito pelo INSS [Instituto Nacional do Seguro Social]. Quando ele volta para o trabalho, em muitos ambientes do trabalho, ele vai voltar segregado, volta como um trabalhador lesionado. Tem muitos nomes para o lesionado, como reabilitado, por exemplo. Fora algumas outras expressões que o hostiliza (Fernando).

Bernardo (2009) apresenta diversos casos e relatos de trabalhadores lesionados em decorrência de suas atividades laborais. Em suas descrições, é notável o descaso das empresas em relação não apenas à saúde, mas também aos próprios sujeitos. Sobre tal discussão, os próprios sindicatos retratam, em seus websites, histórias reais que demonstram o desdém ao trabalhador lesionado.

Os diálogos com os procuradores revelam grande compatibilidade com a perspectiva teórica aqui adotada. Eles reconhecem que o contexto de trabalho atual propaga valores e ideais individualistas e competitivos. Nesse sentido, se Seligmann-Silva (2011) aponta que, para uma análise mais completa da relação entre trabalho e saúde mental, devem-se considerar alguns patamares, que vão desde o contexto macrossocial ao individual, atuar na prática de forma tão abrangente não é uma missão fácil. Essa pode ser a razão para que as análises do contexto pelos entrevistados pareçam mais amplas e complexas, enquanto sua atuação acaba sendo mais restrita, como será discutido a seguir.

As limitações na atuação sobre agravos à saúde mental relacionados ao trabalho

Apesar da perspectiva crítica apresentada pelos entrevistados, foi possível notar algumas dificuldades em harmonizar suas ações à noção conceitual que defendem. Embora tenham apresentado críticas sobre a monetarização do Direito do Trabalho, em muitos relatos de casos das suas práticas, o respaldo à vítima parece ter ficado restrito, ou ter o enfoque principal no pagamento de indenização, sustentando o caráter patrimonialista do Direito.

Por outro lado, vale destacar importantes instrumentos jurídicos incorporados às suas atuações que possibilitam intervenções mais efetivas no sentido da prevenção de novos adoecimentos, como os termos de ajuste de conduta (TACs) e as ações civis públicas.

SMRT e assédio moral: sinônimos?

De modo geral, ao apresentarem casos que envolviam o sofrimento e até mesmo o adoecimento mental, com naturalidade e quase que invariavelmente, os procuradores faziam associações diretas a situações de assédio moral, parecendo desconsiderar outras formas de violência psicológica presentes nos modelos de organização do trabalho, conforme eles mesmos apresentaram ao falar "em teoria" sobre o tema. Tratavam os dois conceitos quase como sinônimos, tendo assédio como base para seus pareceres e ações. Mas há de fato algum problema em fazer tal correlação? Existem diferenças tão significativas que impossibilitam tratar esses dois conceitos como semelhantes?

De acordo com Silva (2008), os autores Freitas, Heloani e Barreto entendem o assédio moral como um fenômeno constituído em nossa sociedade há tempos. Todavia, houve uma intensificação dos efeitos dessa prática na vida dos trabalhadores, principalmente devido às novas formas de organização do trabalho, que deram maior margem ao aumento de atrocidades praticadas contra os trabalhadores.

Para Hirigoyen (2002), o assédio abrange "toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica da pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho" (p. 65). No contexto nacional, Heloani (2004) aponta que assédio moral "caracteriza-se pela intencionalidade" (p. 5) e refere-se à exposição do trabalhador por meio de situações vexatórias, constrangendo e humilhando-o em sua atividade laboral repetidas vezes, podendo ser praticada por um ou mais chefes contra o trabalhador. Em resumo, pode-se dizer que os principais critérios para entender um ato como assédio moral são a recorrência de situações vexatórias e de humilhações voltadas a indivíduos específicos. Um aspecto a ser ressaltado é que tais atos são costumeiramente realizados por alguém de maior poder e tem por finalidade a exclusão das vítimas.

Com essa breve apresentação, é possível concluir que o assédio moral, ainda que intensificado no marco das novas formas de gestão e de seus vínculos com o padrão de acumulação flexível, tem características muito específicas, focalizando indivíduos ou grupos determinados, não sendo, portanto, sinônimo dos mecanismos de gestão predominantes na atualidade, que se dirigem ao coletivo de trabalhadores. Apesar de, muitas vezes, se valer de meios de humilhação e da ameaça de demissão, conforme identificou Bernardo (2009), os modelos "flexíveis" de organização do trabalho não têm o objetivo de exclusão, mas de fomentar o aumento da produtividade dos trabalhadores e do seu envolvimento com as finalidades da empresa4. Sem dúvidas, ambas as situações se configuram como violência psicológica e têm potencial ameaçador para a integridade mental dos trabalhadores, mas não se referem ao mesmo fenômeno.

Entretanto, os procuradores entrevistados parecem realizar procedimentos com relação a casos de agravos à saúde mental, dando maior enfoque às provas referentes ao assédio moral. Isso pode ser identificado por meio da fala do procurador Evandro, ao discorrer sobre seu entendimento e também suas ações frente aos abusos em relação à saúde mental do trabalhador.

. . . Sobre a saúde mental, vamos supor que a gente detecta dentro da empresa um assédio moral onde os chefes ofendem os trabalhadores e agridem verbalmente. Deixam eles num canto como castigo, deixa sem trabalho e o deixa encostado em uma salinha fechada sem trabalho o dia inteiro. Esse é um tipo de assédio com mais perseguição, é mais discriminatório (Evandro).

Essa fala evidencia a associação direta entre os conceitos, pois ao ser indagado sobre sua atuação com relação à saúde mental, o entrevistado trouxe um caso de assédio moral, sem fazer nenhuma distinção ou especificação. Já um segundo procurador expõe de forma ainda mais nítida a falta de diferenciação entre os conceitos, entendendo-os claramente como análogos: "Eu acho que a saúde mental, por exemplo, é qualquer coisa que envolva assédio moral e sexual" (Daniel).

Ao utilizar-se do conceito de assédio moral, as ações do MPT podem desviar a atenção da responsabilidade da própria empresa pelas violências acometidas no ambiente laboral, personalizando um assediador. A partir desse ponto de vista, algumas das formas para solucionar os casos de violência psicológica no trabalho poderiam ser a correção, punição ou demissão de uma pessoa: o assediador. Apesar de o conceito do assédio moral ser de extrema relevância e demandar a atenção dos mais diversos campos de atuação, entre eles o jurídico, é preocupante quando esse viés excede o seu papel. Ou seja, quando os problemas da organização do trabalho são alocados às questões singulares e pessoais. As características atuais da organização do trabalho, discutidas na introdução deste artigo e ressaltadas pelos próprios entrevistados, parecem não ser, de fato, enfrentadas a partir dessa perspectiva.

Apenas um dos procuradores apresentou uma fala diferenciada dos demais, fazendo distinção do assédio em diferentes tipos de casos.

O assédio moral tem sido objeto de muita denúncia em muitos processos, de muitas acusações. Nem todas são caracterizadas como assédio propriamente dito, às vezes, afeta a moral e a capacidade psíquica da pessoa, mas não necessariamente é assédio. O que eu vejo hoje é um aumento dessa situação. Eu acho que existe isso porque há uma política abusiva de muitas empresas (Fernando).

Indaga-se, então, a razão pela qual os procuradores recorrem ao conceito de assédio moral para efetuarem as ações, uma vez que reconhecem os efeitos deletérios dos modelos de organização do trabalho predominantes na atualidade. Uma hipótese para essa tendência de associar os casos de SMRT com o assédio moral pode estar relacionada ao fato deste último ter uma delimitação clara (frequência das ações, delimitação do assediador e do assediado etc.), possibilitando um parâmetro para o estabelecimento de "provas objetivas", que atendem aos princípios positivistas do Direito. Já as situações de violência psicológica associadas à organização do trabalho e as suas consequências para a integridade mental dos trabalhadores são muito mais complexas e difíceis de delimitar. Além disso, de certa forma, são naturalizadas nos contextos de trabalho contemporâneos, conforme aponta Gaulejac (2007).

Sendo assim, embora o assédio moral seja credor das mais diversas áreas de conhecimento, entende-se como necessário uma atuação do judiciário que leve em consideração a complexidade do trabalho contemporâneo. A presença de atores sociais com um viés voltado ao combate das estruturas abusivas de trabalho que são propulsoras de desgaste mental é essencial para contribuir com uma vida mais digna aos trabalhadores. Pois, como aponta Alves (2011), a organização atual do trabalho é construída de um modo a "dominar" a subjetividade dos indivíduos. Em função disso não são poucos os agravos à saúde mental daqueles que estão sujeitos a esse tipo de organização e nem poucas as situações que os provocam.

Outro fator que pode influenciar o foco dos procuradores no conceito de "assédio moral" é sua proximidade semântica com a noção de "dano moral", bastante utilizada no Direito. Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, o dano moral pode ser conceituado como:

. . . lesão de caráter não material, ao denominado patrimônio moral do indivíduo, integrado por direitos da personalidade. Tanto em sede constitucional (CF, art. 5º, -caput- e incisos V, VI, IX, X, XI e XII) quanto em sede infraconstitucional (CC, arts. 11-21), os direitos da personalidade albergam basicamente os direitos à vida, integridade física, liberdade, igualdade, intimidade, vida privada, imagem, honra, segurança e propriedade, que, pelo grau de importância de que se revestem, são tidos como invioláveis (Brasil, 2009).

Desse modo, Oliveira (2007) destaca que,

. . . a dor da exclusão, a tristeza da inatividade precoce, a solidão do abandono na intimidade do lar, o vexame da mutilação exposta, a dificuldade para os cuidados pessoais básicos, o constrangimento da dependência permanente de outra pessoa, a sensação de inutilidade, o conflito permanente de um cérebro que ordena a um corpo que não consegue responder, a orfandade ou a viuvez inesperada, o vazio da inércia imposta, tudo isso e muito mais não tem reparação ou recomposição. A dor moral deixa na alma feridas abertas e latentes que só o tempo, com vagar, cuida de cicatrizar, mesmo assim, sem apagar o registro (pp. 121-122).

A partir dessa definição adotada no Direito, pode-se deduzir que toda forma de violência psicológica, seja ela assédio moral ou outra estratégia de gestão, se configura juridicamente como um dano moral. Mas o complemento "moral" no conceito de assédio moral pode torná-lo mais familiar aos procuradores, como se ele tivesse um caráter mais amplo do que tem de fato na conceituação teórica de autores como Hirigoyen.

As aplicações práticas e possibilidades dentro do MPT

Outro aspecto a ser destacado é o caráter patrimonialista – que envolve indenizações financeiras – do campo do Direito frente às questões da saúde do trabalhador. A priori, o aspecto patrimonialista teria como finalidade a proteção da integridade e da saúde física do trabalhador. Entretanto, se faz cada vez mais presente a monetarização dos riscos da saúde do trabalhador, como afirma Baruki (2015). Busca-se mais um ressarcimento financeiro pelos agravos causados à saúde do trabalhador e menos sanar as condições causadoras de tais danos. Desse modo, " . . . os valores monetários foram alçados a um espaço de maior importância em detrimento da vida, da saúde e da segurança do trabalhador" (Baruki, 2015, p. 102). Fernando admite que essa visão seja predominante nas ações no direito do trabalho. Segundo ele, "às vezes, há uma preocupação tão grande em indenizar a vítima, que, na verdade, se preocupa menos com a prevenção".

As políticas preventivas são mais escassas se comparadas ao ressarcimento monetário de um dano físico ou psíquico. Mesmo assim, Fernando justifica tais ações de cunho indenizatório como um procedimento de caráter educativo:

Às vezes, nós mesmos somos acusados disso, até porque a gente pede indenização por danos morais coletivos e, muitas vezes, eles são valores altos. Então, o Ministério Público está querendo "ferrar" a empresa? Na verdade, a indenização por danos morais tem os aspectos pedagógicos punitivos, o aspecto preventivo e compensatório para a vítima. A gente quer que todos esses aspectos sejam atendidos.

Até o advento da Constituição Federal de 1988, o direito à indenização por dano moral levou um longo período a ser reconhecido, havendo muita resistência a respeito de sua legitimação (Oliveira, 2007). Após isso, garantiu-se o direito à resposta aos danos materiais, morais e à imagem, proporcionais aos agravos sofridos, assegurado pelo art. 5º, V.

Nota-se que tratar da questão da indenização não é tão simples. Venosa (2008, apud D'Assunção, 2010), por exemplo, mostra um duplo sentido no pagamento de indenizações. O primeiro refere-se ao ressarcimento da vítima, e o segundo está relacionado à prevenção associando-se à possibilidade de cessar a permanência de práticas adoecedoras dentro do meio ambiente de trabalho. Além disso, Oliveira (2002) ressalta a dificuldade em se estabelecer a fixação do quantum indenizatório, uma vez que compreende que o dano moral é em si incomensurável. Para ele, é necessário levar em consideração a intensidade do sofrimento da vítima, como também os aspectos da personalidade envolvidos, o poder econômico do ofensor, bem como o aspecto macrossocial que abrange a economia do país. Isso sem desconsiderar a gravidade objetiva ocasionada pelo dano para, assim, poder pautar-se na razoabilidade e equitatividade na estipulação do valor da indenização.

Todavia, os relatos dos procuradores entrevistados e alguns pareceres mostrados por eles indicam que os valores estipulados pelos juízes para os danos sofridos no trabalho são, em geral, irrisórios e incapazes de reparar os inúmeros prejuízos dos trabalhadores, sejam eles físicos ou psicológicos, que o privaram de viver dignamente. E, sendo assim, tampouco servem como medida de caráter "educativo" para os empregadores5.

Reflete-se, aqui, que esse seria um aspecto importante nas ações do MPT. Entretanto, diante da complexidade presente em casos relacionados à saúde mental de um trabalhador, emergem outras demandas, entre elas, a necessidade de se promover práticas que combatam as formas de organização do trabalho causadoras de prejuízos à saúde. Outro aspecto relevante diz respeito ao caráter coletivo das vivências que levam aos agravos à saúde mental no ambiente de trabalho, de modo que o sujeito não seja apenas uma vítima singular, mas um dentre aqueles inseridos num meio onde existem condutas abusivas e potencializadoras do processo de adoecimento, estando todos também suscetíveis.

Nesse sentido, o MPT se destaca com o uso de um instrumento denominado Termo de Ajuste de Conduta (TAC), um tipo de ação que tem como foco a modificação de situações que podem afetar a dignidade e saúde dos trabalhadores no ambiente de trabalho. Por meio desse mecanismo, o empregador estabelece um acordo com o MPT e assina um termo de compromisso, o qual implica multas estabelecidas previamente caso o acordo seja descumprido. É importante esclarecer que o TAC só é realizado se a empresa aceitar fazer o acordo. Quando ela não aceita os termos estabelecidos, o MPT pode entrar com uma ação judicial e, então, volta-se ao caráter patrimonialista discutido acima. Apesar de suas limitações, o TAC parece ser o instrumento com maior potencial para realizar uma atuação preventiva de caráter coletivo. Todavia, as falas dos procuradores indicam que sua utilização ainda é relativamente limitada se comparada às ações de caráter indenizatório.

Observa-se que muito ainda precisa ser feito para que o MPT possa atuar de modo mais efetivo na prevenção e no combate de um modo de gestão abusivo, que tem levado milhares de trabalhadores no país a sofrerem os efeitos do desgaste mental.

 

Considerações finais

As entrevistas realizadas forneceram um material rico de análise, que possibilitou encontrar sensibilidade e crítica dos procuradores entrevistados sobre as situações de trabalho. De forma geral, todos os sujeitos se opõem à lógica abusiva de gestão e entendem essa estrutura como danosa à dignidade física e mental da "classe-que-vive-do-trabalho", na expressão de Antunes (2009, p. 101). Mas, um aspecto a ser ressaltado aqui é que não se pode dizer que o olhar desses quatro participantes seja representativo do conjunto dos procuradores do MPT. Conforme esclarecido anteriormente, trata-se de uma "amostra intencional", de pessoas que já são sensíveis à possibilidade de o trabalho trazer danos à saúde. O que se pretendeu aqui foi analisar as facilidades e dificuldades de procuradores que já estão atentos à saúde do trabalhador com relação especificamente à saúde mental, que é um tema de grande complexidade e dificilmente identificável por meio de provas materiais, dificultando, portanto, a objetividade buscada no Direito.

Conclui-se que os procuradores identificam os prejuízos à saúde mental em virtude das condições atuais de trabalho. Porém, apesar da familiaridade com as discussões teóricas do campo da Saúde do Trabalhador, quando tratam de situações concretas que envolvem o desgaste mental tendem a restringir-se ao assédio moral. Esse fato interfere diretamente na maneira de acolher o trabalhador e, principalmente, na possibilidade de ações preventivas que focalizem diretamente as políticas de gestão empresarial. A partir disso, defende-se aqui que estudos a respeito da SMRT podem elucidar novas possibilidades de enfrentamento inclusive ao campo do Direito do Trabalho.

As falas dos entrevistados também evidenciam inúmeras adversidades que enfrentam no cotidiano de suas atividades referentes às questões relacionadas à saúde mental. Ainda que não tenha sido o enfoque deste trabalho, os procuradores também apresentaram outras fragilidades que permeiam sua atividade na proteção dos trabalhadores, como a falta de trabalhos acadêmicos que forneçam maiores subsídios para a elaboração de seus pareceres e a ausência de peritos técnicos que contribuam com suas atuações. Desse modo, refletir sobre as possibilidades de ações mais complexas é um grande passo e requer a interlocução de diferentes abordagens teóricas e de distintos atores sociais envolvidos nessa problemática, a fim de se construir práticas cada vez mais eficazes e coerentes com a realidade dos trabalhadores.

Espera-se, com esta investigação, propiciar uma reflexão sobre o olhar de mais um campo de atuação, no caso, o Direito do Trabalho, considerando sua grande influência sobre a SMRT, a fim de oferecer maior abrangência dos estudos sobre a relação entre a saúde mental e o trabalho. Compreende-se que esse tema remete aos problemas de saúde pública e sabe-se que a postura de atores sociais, como os operadores do Direito, na atual conjuntura, pode colaborar para manter os direitos já conquistados pelos trabalhadores ou favorecer ainda mais o retrocesso que as leis trabalhistas estão sofrendo. Nesse aspecto, acredita-se que um órgão importante como o MPT tem muito a contribuir com a luta em prol da garantia dos direitos à saúde dos trabalhadores, bem como pleitear novas políticas, especialmente se considerarmos as consequências das chamadas "reformas" que vêm sendo implementadas com relação às leis do campo do trabalho.

 

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Endereço para correspondência
natasha.contro@gmail.com
marciahespanhol@hotmail.com

Recebido em: 02/05/2018
Revisado em: 21/02/2019
Aprovado em: 08/03/2019

 

 

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
2 Professora aposentada do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
3 Os nomes utilizados para se referir aos entrevistados são fictícios para preservar suas identidades.
4 Aqui, deve-se fazer uma ressalva relativa às situações, não raras, nas quais, por adoecer, o trabalhador deixa de ser útil à empresa do ponto de vista da sua capacidade produtiva. Dessa forma, o assédio pode apresentar-se como um dos instrumentos de exclusão relacionado aos interesses da gestão.

5 Também vale ressaltar que a já citada Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) estipulou um teto para pagamentos de indenizações por parte dos empregadores, com valor máximo de 50 vezes o salário do trabalhador, no caso de "ofensa de natureza gravíssima" (Brasil, 2017).

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