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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490

Cad. psicol. soc. trab. vol.28  São Paulo  2025  Epub 11-Jul-2025

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.cpst.2025.219188 

Artigos originais

Entre nós: oficinas de trabalho e geração de renda como dispositivos de saúde

Among us: workshops and income generation as health devices

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Brasil)

2 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Brasil)


RESUMO:

O presente relato de experiência aborda o entrelaçamento entre Políticas Públicas de Saúde Mental e Economia Solidária. Tendo por objetivo mapear aspectos psicossociais que sustentam a promoção de saúde mental por meio do trabalho, foi realizado o acompanhamento de um grupo de bordado em uma oficina de geração de renda que compõe a Rede de Atenção Psicossocial e que integra o Sistema Único de Saúde (SUS). O percurso desenvolvido, calcado em perspectiva cartográfica, permitiu identificar elementos psicossociais que caracterizaram a Oficina como espaço emancipatório: ambiência dialógica, o fazer-com, a construção de saberes compartilhados, a autogestão e a autoria do grupo de oficineiras(os). Para além, diante da necessidade de literatura em Psicologia articulando produção de saúde e Economia Solidária, especialmente em tempos de fortalecimento neoliberal, explicitam-se possibilidades interventivas em uma Psicologia que tensiona e ressignifica o trabalho como campo de subjetivação ético, estético e político.

Palavras-chave: Saúde mental; Oficina de trabalho; Economia solidária

ABSTRACT:

This experience report addresses the intertwining of public mental health policies and solidarity economy. To map psychosocial aspects that support the promotion of mental health by work an embroidery group was monitored in an income-generating workshop that belongs to the psychosocial care network and the Brazilian Unified Health System. The developed path, based on a cartographic perspective, enabled us to think about psychosocial elements that characterized it as an emancipatory space: dialogic ambience, doing-with, the construction of shared knowledge, self-management and the authorship of the group of workshop participants. Furthermore, given the need for literature in psychology articulating health production and solidarity economy, especially in times of neoliberal strengthening, intervention possibilities are highlighted in a psychology that tensions and resignifies work as a field of ethical, aesthetic, and political subjectivation.

Keywords: Mental health; Work workshop; Solidarity economy

Pontos de partida

A inserção social pelo trabalho para usuários(as) dos serviços de saúde mental é discutida, no Brasil, dentro de um conceito amplo chamado Reabilitação Psicossocial, que está em consonância com iniciativas voltadas à cultura, lazer, esporte, arte e habitação. No contexto de Reabilitação Psicossocial, o trabalho é apontado como gerador de vínculos e rede psicossocial, oportunizando a diminuição de preconceito e a ressignificação de si (Bürke & Bianchessi, 2013). Trata-se de uma proposta que remonta a um percurso histórico denso, na qual se altera a articulação entre atividade laboral e saúde mental: da ligação entre trabalho forçado e regulação dos corpos, como nos séculos XVI e XVII, migrando para propostas no marco da terapêutica psiquiátrica, no século XVIII, até aberturas de movimentos antimanicomiais, como em Nise da Silveira e Franco Basaglia, no século XX. Não é intuito do presente escrito mergulhar historicamente nas nuances e tensões que esse campo de discussão estabelece, entretanto, esse lembrete auxilia na compreensão da mobilidade de significados atribuídos tanto ao trabalho como à própria noção de terapêutica.

Cabe atentar que nesse movimento, especialmente a partir do século XX, muitas intervenções e estudos começaram a destacar as contribuições da Economia Solidária (E.S.) no processo de ressignificação do trabalho na atenção psicossocial, explicitando tensões e contradições presentes sobre as atividades desenvolvidas. Nestas vemos, eventualmente, a atualização do trabalho como cooptação produtivista e utilitarista, ainda que as propostas alinhadas à E.S. caminhem na direção contrária: de ações baseadas, efetivamente, nas premissas de autogestão, solidariedade e finalidade econômica (Morato & Lussi, 2015). Calcada, portanto, na participação social, a E.S. põe em pauta fazeres que coletivizam a gestão e os ganhos derivados do trabalho, oferecendo equidade nas oportunidades de renda. Em sua interface com a promoção de saúde mental, cabe atentar que possibilita que as relações de trabalho sejam produtoras de maior sentido para a vida, uma resposta crítica à exclusão pelo mercado e uma forma de reposicionar politicamente o que se compreende como geração de renda (Singer et al., 2014).

A E.S. baseia-se na perspectiva de que o trabalho, quando não está cooptado pela via neoliberal, pode abrir possibilidades de exercício de cuidado, cidadania e distribuição socioeconômica equânime (Amarante & Belloni, 2014). Trata-se, portanto, de uma característica fundamental à organização do trabalho pela via da propriedade coletiva do capital e da autogestão (ou seja, a não existência de chefias ou empregados, numa ruptura nas lógicas de poder laboral), a participação comunitária da produção e a divisão democrática de seus ganhos (Singer, 2003). Essa possibilidade de atuação está em consonância com a Política Nacional de Saúde Mental e Economia Solidária, que instituiu as diretrizes dos Programas de Inclusão Social pelo Trabalho (Brasil, 2007), processo ancorado na Portaria Interministerial MS/MTE n° 353/2005 (Brasil, 2007). Calcados nessa leitura articulada entre trabalho e saúde, que envolve exercício de cidadania e participação social, foram criados espaços a partir do Sistema Único de Saúde (SUS), de modo que temos exemplos contundentes no Brasil. Abordagens em CAPS (Campos et. al, 2015), experiências a partir da Terapia Ocupacional (Carretta & Lobato, 2010; Ferro et al., 2015), ações com foco de gênero e centrado em grupos de mulheres (Borges et al., 2022), ou tendo como singularidade a produção artística (Dall’Agnol da Silva et al., 2024), são indicados na literatura (ainda que minoritárias no campo da produção científica).

O presente relato de experiência baseia-se nas vivências em um desses locais disponíveis pelo SUS, uma Oficina de Saúde e Trabalho, da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). O Serviço acompanhado, intitulado GerAção/POA3, é um espaço que afirma o trabalho como possibilidade de trocas sociais, de vínculos solidários e de exercício de cidadania. O GerAção/POA é componente RAPS no eixo Reabilitação Psicossocial, da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, e organiza-se por três linhas: Apoio e Acompanhamento no mercado formal, por meio da inclusão pela lei de cotas para pessoas com deficiência; Trabalho e Arte, por meio de oficinas de expressão, desenho, pintura, escrita e fotografia; e Trabalho e E.S., que acontece por meio de oficinas com as técnicas de papel artesanal, serigrafia, costura, encadernação, velas e bordado, bem como de prestação de serviços relacionados.

As oficinas permitem a ênfase na perspectiva de usuárias(os) na atividade desenvolvida, alicerçada na criação de laços sociais e engajamento em prol de uma sociedade equânime. Entende-se que essas oficinas funcionam como dispositivos, ou seja, como conjuntos heterogêneos (englobando aspectos discursivos e não discursivos) que fazem falar (Foucault, 1988) e que, estando abertos à história e ao devir, provocam acontecimentos subjetivantes (Alvarez et al., 2017). Ou seja, tratam-se de espaços organizados a partir da compreensão de que a produção de subjetividade é uma processualidade e que, portanto, é necessário pensar a tensão entre o que identificamos que somos e o que estamos em vias de ser (Deleuze & Guattari, 1996).

Ainda que sejam diferentes espaços de trabalho com essa linha política, ética e estética, o foco do presente estudo recai na Oficina de Bordado. O grupo em questão foi acompanhado por uma estagiária em Psicologia e professora de técnicas de bordado (primeira autora deste artigo) com regularidade semanal, duas vezes por semana, durante o período de um ano. Tomando a Oficina de Bordado como ponto de partida, dispositivo subjetivante marcado por práticas poético-artesanais, foi possível perceber múltiplos acontecimentos que explicitam estratégias de cuidado em saúde mental. Esse alinhavo tomou corpo a partir de uma metodologia cartográfica, entendida como perspectiva epistemológica e metodológica (portanto, ética, política e estética) condizente com a proposta de percurso investigativo. Como pesquisa-intervenção, a cartografia se propõe ser metodologia que promove um trabalho horizontal entre pesquisadoras(es) e pesquisadas(os), na negociação de sentidos e ações cotidianas, visando a criação ou o fortalecimento de dispositivos psicossociais (Cavagnoli & Maheirie, 2020) - no caso, a própria Oficina de Bordado.

Procurando acompanhar processos subjetivos e não representar objetos (Kastrup, 2007), a cartografia na Oficina de Bordado tornou possível perceber “os pontos de ruptura e de enrijecimento” (Barros, 2013, p. 234) das relações psicossociais na Oficina. O registro dessas relações se deu em diários de campo, construção em parceria com as oficineiras e oficineiros à medida que o diário foi sendo produzido durante o oficinar, dando ensejo para pensar elementos que caracterizam a Oficina como espaço emancipatório, e que serão explicitados neste relato de experiência: a ambiência dialógica, o fazer-com, a construção de saberes compartilhados, a autogestão e a autoria de oficineiras(os). Para além, cabe indicar que o percurso desenvolvido atendeu os requisitos éticos conforme preconizado pela Resolução n° 466/2012 da CONEP, assegurando anonimato, confidencialidade e sigilo dos dados pessoais de participantes.

Oficinas de Trabalho: artesanias dialógicas e o fazer-com

Segundo Tallemberg (2005), a etimologia da palavra oficina vem de ofício (do latim officiu), que expressa modo de fazer transmitido artesanalmente de uns a outros, carregando o sentido de compartilhamento. Tal interpretação tem ressonância nas Oficinas de Trabalho desenvolvidas na rede de saúde, já que são território de pertencimento e convivência, materializadas por meio das relações que se fortalecem no dia a dia do Serviço. As Oficinas de Trabalho se definem, num sentido prescrito, por atividades dirigidas pelo(a) usuário(a), que realiza as ações utilizando materiais artesanais ou de outra qualidade para produzir produtos para alguém - familiares, consumidores etc. (Alvarez, Neves & Silva, 2017). Esses elementos mostram-se complexos quando pensamos no trabalho real desenvolvido (Dejours, 2012) abarcando, especialmente, a construção de uma ambiência apropriada ao diálogo e à escolha de ações que funcionem como um fazer-com.

Esse processo se inicia no próprio acolhimento de usuárias(os). Todas(os) oficineiras(os) chegam no Serviço e passam por um processo de apresentação das estratégias de trabalho. Nesse processo de familiarização, oficineiras(os) vão conhecendo as propostas desenvolvidas no espaço como um todo, até escolherem a(s) Oficina(s) que irão frequentar de forma sistemática. Esse processo de elaboração e identificação com algum dos fazeres sustenta uma primeira ponte, que faz com que tanto a participação seja efetiva, produzida a partir de investimento de desejo, assim como compõe a confecção dos produtos como ação carregada de intencionalidade e significados - organizados com valor poético e expressivo. Esse tipo de produção “gera artefatos e significados que transformam tanto quem as vê e consome, como quem as produziu, ao encontrarem-se para planejar, fazer, admirar, comentar ou consumir os produtos” (Veronese, 2020, p. 144).

Não por acaso, no Serviço, oficineiras(os) trabalham inspiradas(os) nos diálogos e estudos desenvolvidos nas Oficinas, adequados ao plano de produção subjetiva que consideram importantes: a presença de Nise da Silveira, Paulo Freire, Bispo do Rosário, Tarsila do Amaral, Frida Kahlo, Anita Malfatti e outras importantes inspirações abarcam os processos de identificação do coletivo oficineiro. Essas escolhas, como indica Veronese (2020), são possíveis na ambiência sociocultural que é a própria oficina. É possível considerar que a ambiência no grupo de oficineiras(os) é o primeiro elemento indicativo de uma leitura não prescritiva do processo psicossocial em jogo, visto que possibilita um espaço em que atividade manual e produção de subjetividade se dão voltadas para a produção de encontros dialógicos.

Na perspectiva da saúde pública no Brasil, o processo de acolhimento de usuários possui princípios basilares, como a acessibilidade universal, o processo de trabalho organizado em equipe multiprofissional (encarregada da escuta da pessoa) e a constituição da relação trabalhador-usuário em uma lógica horizontal. Essas premissas se baseiam na compreensão de que os sujeitos, em sua integralidade, demandam uma leitura múltipla do que é a vida, de que os processos de adoecimento e saúde apresentam diferentes significados para cada um, assim como o fato de que os recursos para lidar com problemas que se apresentam são singulares. Nesse processo, o acolhimento é um ponto de partida para o estabelecimento de um vínculo entre usuários e profissionais (Ministério da Saúde, 2013), ampliando a acessibilidade aos serviços de saúde (Cavalcante Filho et al., 2009) e tendo premissas como a postura (humanizada, voltada para a participação ativa dos sujeitos), técnica (fundamentada na singularidade e nas necessidades reais dos usuários), e reorientação dos serviços (numa articulação territorializada, conforme as demandas apresentadas).

Essa compreensão, fundamentada na ideia de que não é possível constituir respostas simples para conjunturas complexas em saúde, compreende que o acolhimento dependerá dos sujeitos envolvidos na cena de cuidado, permitindo a criação de um campo de ação no qual a inclusão dos sujeitos e a implicação no atendimento promoverão a circulação de conhecimentos e a promoção de autonomia (Cavalcante Filho et al., 2009). Em um dos momentos realizados entre oficineiras(os) foi possível observar como essa ambiência proporciona situações dialógicas intrinsecamente relacionadas à compreensão de promoção de saúde supracitada:

A palavra estava circulando e a proposta era dinâmica (as residentes e a estagiária de administração geralmente se ocupam de mediar essa oficina - e nos engajam nas construções, de forma bastante dinâmica e a partir das demandas do grupo propondo diferentes vivências e estudos). Em um dado momento o oficineiro D. resolveu contar sobre uma longa espera na fila no Posto de Saúde (UBS). Ele nos olhava (interpreto que olhava buscando conexão), e em alguns momentos ficamos impacientes com sua fala. Resolvo fazer uma aposta e incentivo ele tentando dar borda ao conteúdo - quase me arrependo, pois foram muitas as voltas e parecia que ficaríamos num beco sem saída. Entre seus relatos, o oficineiro D. conta sua experiência acessando os serviços, transitando em seu território e convivendo entre os Serviços da Rede. Não era uma fala linear, pareceu em alguns momentos fugir do tema central, mas ao final sintetizou sua ideia carregada de sentido nesta frase: “quem não se envolve, não se desenvolve”. Eu tomo nota e grifo a frase, penso que é de sua autoria e depois, ao buscar na internet, descobri que é do psiquiatra José Angelo Gaiarsa, que teve seu trabalho focado na luta pela liberdade e contra o autoritarismo (Trecho do diário de campo).

Quando o oficineiro D. fala que “quem não se envolve, não se desenvolve”, atualiza o que, em José Angelo Gaiarsa, aparece como um envolvimento com coisas que nos colocam em contato com o mundo (e, portanto, com a diferença). O usuário indica a importância de prestarmos atenção ao que acontece no nosso território, nos movimentos políticos e nas consequências desses movimentos na nossa vida cotidiana - mudanças na saúde, na educação, na dificuldade em termos a garantia de direitos básicos e na precarização dos serviços. Para além do conteúdo enunciado, a cena em questão importa: não é uma obviedade no cuidado em saúde mental constatar que, se o oficineiro estivesse em um espaço normativo, não teria escuta ou tempo de articular suas ideias e elaborar essa relação de contato com o mundo. Para além, o coletivo de oficineiros (profissionais e usuários) perderia refletir a partir de sua fala e exercitar o lugar que sustenta seu trabalho - que é oferecer espaço para as diferentes formas de se expressar, proporcionando uma escuta coletivizada que encoraja e aposta no sujeito.

Os princípios do SUS direcionam os serviços de saúde mental para essa possibilidade de acolhimento (que não enrijeça a escuta descontextualizando o sujeito de sua história de vida), e que permite não recair em condutas prescritivas por parte dos profissionais da saúde (Oliveira, 2007). Nesse sentido, o objetivo é construir vínculos que valorizem as narrativas, saberes e fazeres dos usuários a partir de uma escuta implicada e de uma postura ética, produzindo uma prática em saúde instrumentalizada para oferecer alternativas singulares às demandas (Favoreto, 2008). Essa premissa de trabalho e convivência permite colocar em pauta questionamentos fundamentais ao trabalho em saúde, como o perguntar-se qual o objetivo das atividades desenvolvidas e, no contexto das Oficinas, quais as reais possibilidades de participação dos usuários na produção de um trabalho em conjunto. Considera-se que um forte elemento de garantia dessa condição de participação é o fazer-com, exercício presente no processo oficineiro.

Em cada encontro, os(as) oficineiros(as) compartilhavam seus conhecimentos entre todos(as), à medida que executam suas atividades no/em coletivo. “No fazer da oficina cada um se dirige também, em sua atividade, àqueles que compartilham experiências: há um fazer-com: com outros usuários, com os técnicos que participam ou coordenam, com parceiros diversos, e mesmo com alguns que podem ser parceiros ‘virtuais’” (Alvarez et al., 2017, p. 135), como, por exemplo, a escuta de vozes. Fazer-com significa fazer junto, estar ao lado, estabelecer uma relação de acompanhamento, de parceria. Para Alvarez et al. (2017) esse fazer-com se mostra como condição fundamental para que o processo de produção de saúde promova uma clínica implicada, já que viabiliza um vínculo indispensável da atenção em saúde como um cuidado em liberdade (e cuja agência dos sujeitos é questão fundamental).

Essa perspectiva de fazer-com na Oficinas de Trabalho remete a uma quebra da lógica de tutela, que tradicionalmente colocava o sujeito da loucura no lugar de fora-de-si, num individualista e paralisante modo de compreensão da subjetividade (Birman, 2003), para uma posição subjetiva na qual a perspectiva é de produção coletiva. Há, nesse último caso, um aumento na agência de pensar e agir no mundo. Essa postura promove algumas torções importantes, por exemplo, no que se refere à maneira como diagnósticos psiquiátricos são abordados na Oficina. Ainda que se trate de um Serviço de Saúde Mental, nesse espaço de trabalho as relações são pautadas pelas potencialidades de cada um que compõe o coletivo, de modo que o diagnóstico, ainda que seja um dos requisitos para estar na Rede de Atenção Psicossocial, não é a prioridade, já que o trabalho desenvolvido se pauta em ações baseadas na singularidade como produtora de saúde. O trecho a seguir exemplifica esse aspecto:

Hoje começamos o trabalho revisando as encomendas e uma oficineira comentou com orgulho que “seus bordados agora estavam nos produtos” (sic). Acrescentou dizendo: “agora eu cuido” (sic) para não embolar o tecido e não deixar muito fio solto. Outra oficineira segue na conversa e diz que agora consegue bordar e conversar ao mesmo tempo, que antes se fazia isso esquecia uma parte, como o arremate. A conversa seguiu e fomos mostrando nossos bordados, nossa evolução no cuidado com os fios soltos, conversando sobre o quanto aprendemos sobre bordar e, também, conviver com nossos erros e acertos. Voltamos ao bordar todos e todas concentrados e em silêncio até que uma oficineira comenta que, desde que entrou na oficina, “escuta menos as vozes em sua cabeça” (sic) - é a primeira vez que ela fala sobre esse aspecto, articulando, ao seu modo, com o diagnóstico que tivera. Fala que trabalhar faz bem, que “ajuda a juntar os fios soltos” (sic) e dá risada. “Ocupa a mente e me deixa feliz”, diz ela. Na sequência desse momento de descontração, outra oficineira diz: “gosto de quem eu sou quando estou trabalhando”, completando que lhe agradava estar nesse espaço e ser oficineira, ver os produtos sendo vendidos. Com a fala dela, mais pessoas comentaram sobre como se sentiam, “num lugar de respeito”. Uma oficineira complementava sobre não se sentir julgada, enquanto outro oficineiro comentava sobre gostar de aprender coisas novas e de receber a cota para poder comprar “as coisas que gosta sem pedir dinheiro emprestado” (sic) (Trecho do diário de campo).

Encontros bordados, saberes compartilhados

Como indica Guimarães (2015) “a bordadura torna-se uma linguagem de experiências, de afeto, de vínculo e de liberdade” (p. 4073). Nessa perspectiva, estar na roda de bordado é algo que desperta interesse, seja pela intimidade crescente com as linhas e tecidos, seja pelo trabalho de mediação das discussões e técnicas de bordado, ou pelo escutar das histórias que circulam. Nesse ambiente de convivência, à medida que o grupo foi se fortalecendo e ganhando espaço, foram se intensificando os vínculos e a atividade de bordado ganhou sentido e significado. Foi possível compreender que, por meio do bordado, aparecerem diferentes processos criativos entrelaçados aos conteúdos do grupo, do Serviço e das narrativas de vida de cada um(a). Essa relação, no qual o trabalho passa a ser um catalizador da produção de saúde, se constituía como produção de singularidade. Como indicam Guattari e Rolnik (1985, p. 47), espaços que promovem singularização insistem em “um devir diferencial que se sente por um calor nas relações, por uma afirmação positiva da criatividade”.

Com o passar do tempo, o desenvolvimento da Oficina foi despertando o desejo de profissionalização por parte dos usuários. Esse processo foi contemplado buscando formas de conhecimento sobre as técnicas, aprendendo mais pontos, novos acabamentos, escolhendo novas temáticas a serem bordadas. Esse processo abarcava, também, apropriação de oficineiras(os) com processos outros, como a compra de materiais (que passam pela aprovação de custos na Oficina de Comercialização, em que duas oficineiras apresentaram a lista feita junto ao grupo da Oficina de Bordado), investimento na divulgação e valorização dos produtos (entre as Oficinas do Serviço e na Rede) e a partir, também, da valorização do trabalho e conhecimento de cada um(a), podendo enxergar a Oficina de Bordado como uma parte importante do coletivo e aprendendo a criar estratégias para trabalhar em conjunto - colocando em pauta elementos viscerais da Economia Solidária (como a autogestão e a participação comunitária) para a geração de renda coletivizada.

Fonte: Acervo próprio.

Figura 1 Registro de pontos aprendidos e compartilhados em Oficina 

Por meio dos pontos de bordado, dos arremates desses fios soltos, do corte do fio enozado que chamamos de “bololô”, na dica pra pedir ajuda pro(a) colega do lado, no nomear de “Grandona” (sic) a agulha que gosta de bordar, o cuidado com os materiais e preocupação com o que fazer com os fios que sobram . . . por meio dos combinados sobre a rotina de trabalho e os lembretes que eles(as) vão fazendo pro horário de café . . . . As oficineiras e oficineiros vão se interessando pela técnica, pela profissionalização do trabalho, pela convivência, e vão se interessando em quem está em roda. Querem escutar a história do(a) outro(a) (Trecho do diário de campo).

Contamos com a parceria de todas as demais Oficinas do Serviço, e mais diretamente da Oficina de Serigrafia e da Oficina de Corte e Costura. Aos poucos fomos percebendo a importância de mantermos uma boa comunicação com todos(as) do coletivo, trocando informações e saberes que ofereciam uma visão sistêmica. Se o trabalho se fazia em conjunto, os produtos ficavam com um acabamento mais profissional, de modo que a qualidade dos produtos se localizava, também, na relação de uma oficina com a outra, já que o tipo de tecido e o tipo de corte, assim como a maneira de serigrafar, importavam - cada etapa influenciava no processo: “era preciso estarmos atentos e atentas aos detalhes - nossos, de nossas relações e dos produtos” (Diário de Campo).

Fonte: Acervo próprio.

Figura 2 Registro do aumento com a preocupação no acabamento dos bordados 

O espaço físico se transformou junto com as demandas da Oficina, concomitante com o aumento do grupo de trabalho. Começamos uma vez por semana em uma pequena mesa de seis lugares que sempre tinham cadeiras sobrando, passamos para uma mesa cheia que teve que ser substituída por uma maior e, por fim, ganhamos mais um dia da semana para bordar, contando com geralmente doze pessoas na Oficina de Bordado. O espaço, compartilhado com a Oficina de Corte e Costura, bem como a Oficina de Pintura, acabou por propiciar contato direto ou indireto entre os grupos ao longo dos turnos de atividade. Para que ficássemos confortáveis, contamos com o projeto de reorganização dos espaços feito pela administração. Com sensibilidade e conhecimento foi-se identificando as diferentes demandas e envolvendo o coletivo na reorganização, de modo que o grupo de bordado fez modificações no espaço e se reposicionou na sala, ficando em uma mesa (agora maior) entre as demais Oficinas.

Essas artesanias produzidas no coletivo autogestionário, por meio das Oficinas de Trabalho, viabilizam a relação dos sujeitos consigo próprios e com o mundo, transformando e dando novos endereçamentos ao sofrimento psíquico. Notou-se, a partir do vínculo que se estabeleceu em oficina, o cultivo de um espaço para dialogar e argumentar sobre aquilo que lhes faz sentido. As oficineiras e oficineiros se tornavam protagonistas no engendramento dessas relações de trabalho à medida que faziam os produtos e assumiam a autoria de suas produções e histórias. Assim, “a ação não é apenas uma realização da tarefa. A tarefa é também uma realização das atividades que o sujeito procura realizar através dela, do mesmo modo como pode ser a ocasião de descartar aquelas que ele recusa” (Clot, 2006, p. 139).

Em diferentes momentos, oficineiros(as) comentavam com quem haviam aprendido a bordar/serigrafar/pintar/costurar/encadernar/oficinar. Falavam com carinho sobre esse processo, nomeando quem veio antes e se orgulhando de terem, também, ensinado o ofício, a sua maneira, a alguém do coletivo - um ciclo que se mantinha vivo e de forma dinâmica. Nesse processo, apareciam, também, diferentes modos de subjetivação que compunham esse coletivo de trabalho, porque à medida que iam partilhando sobre o processo de ensinar e aprender as técnicas iam se dando conta que não havia um ponto de bordado feito da mesma maneira ou uma costura na encadernação que ficasse igual. Cada um aplicava diferentes técnicas, a sua maneira, e quem ensina vivencia seu saber sendo transformado pelo outro.

Hoje conversando no fim do turno, um oficineiro que faz encadernação me mostrou que sempre sabe identificar qual caderno ele fez. Ele pegou um dos cadernos na estante (disponível para venda) e me mostrou que a forma que finaliza a costura, a maneira como faz o nó no fio, é diferente dos demais, é uma “marca sua” (sic). Percebo que ele comenta com orgulho e se sentindo esperto, uma forma de deixar sua marca única em meio ao todo, mas sem precisar colocar seu nome. Essa não é uma questão para todos(as), mas noto que alguns oficineiros e oficineiras gostam de marcar os trabalhos e reconhecer quando foram eles(as) que fizeram. Individual - Coletivo - Nó - Nós - Nosso - Singular Coletivizado (Trecho do diário de campo).

Bordando autogestão e cuidado de si

À medida que o oficinar vai acontecendo o grupo começa a se preocupar com seus avessos e vamos desdobrando conversas sobre “nossos avessos”. Desse processo resulta profissionalização e valorização dos produtos, a melhora nos acabamentos do bordado, e estratégias de cuidado de si (Trecho do diário de campo).

Ao longo do processo de trabalho, cada oficineira e oficineiro foi escolhendo as artes com as quais iriam trabalhar, os tipos de pontos a serem desenvolvidos e as maneiras de se expressar e marcar sua presença, dando contribuições singulares ao todo. Tínhamos uma organização a partir das demandas do Serviço, decididas em reunião coletiva, mas havia também o ritmo de produção a partir do desejo de bordar artes em específico, aspecto presente nas escolhas de pauta e de inspiração para a produção dos bordados da Oficina. Esse processo poderia se dar de forma mais localizada, no grupo de Bordado em si, ou como pauta transversal ao Serviço. Em coletivo no Serviço, por exemplo, a história do Bispo do Rosário foi pesquisada, de modo que foram feitas leituras e reflexões sobre sua produção em articulação com as poesias que uma das oficineiras do Serviço criara.

Lima (2009) relembra que Bispo do Rosário passou grande parte de sua vida em um manicômio, transitando entre a indigência e o estigma da loucura. Sofreu a concretude de processos de exclusão que marcam a experiência de muitos oficineiros e oficineiras do Serviço. “Contudo, o que a trajetória de Bispo nos mostra é que ele criou dentro do manicômio agenciamentos que permitiram que a vida continuasse pulsando em seu corpo” (Lima, 2009, p. 212). Inspiradas(os) pela pesquisa dos “avessos”, como nomeado no grupo de trabalho, as releituras de Bispo do Rosário empolgaram muitos oficineiros e oficineiras. Com essa arte, uma das últimas trabalhadas em coletivo no período de estágio, diferentes recursos para a apropriação do conteúdo foram utilizados, como mídias contando a história do artista, fotos e relatos durante as reuniões iniciais de turno, além de uma síntese impressa. Foram criadas poesias e desenhos inspirados nas obras originais, e por se inscrever em uma zona de transversalidade entre arte e clínica foi, também, escolhida como arte para trabalhar de forma aprofundada na Oficina de Bordado.

Fonte: Acervo próprio.

Figura 3 Releituras das artes de Bispo de Rosário 

Essas discussões e produções coletivas, agenciadas com disparadores potentes como a experiência de vida e arte de Bispo do Rosário, colocavam em questão a articulação potente entre o trabalho desenvolvido e o itinerário de vida de quem participava. Um exemplo, em específico, foi paradigmático desse processo (aqui nomeada como oficineira T). A oficineira T ingressou no Serviço junto com seu companheiro, oficineiro S. Ambos participavam nos mesmos dias, apesar de cada um ficar numa Oficina diferente. Na hora da saída ele vinha encontrar ela, cumprimentava a todos(as) e de mãos dadas iam esperar sua carona. T. falava pouco sobre a vida antes da Oficina de Bordado, comentando rapidamente, em certa ocasião, que viveu durante muitos anos em um Hospital Psiquiátrico. Entretanto, falava bastante sobre a moradia atual, assim como do cachorro, da cozinheira que fazia comidas que ela gostava e que preparava seus lanches. Comentava dos passeios em grupo e das atividades que fazia, como bordar em casa, assim como as idas ao mercado público.

Durante a pandemia, a oficineira T. viveu a perda de seu companheiro para a covid-19 e todos(as) sofremos. O oficineiro S. era querido pelo coletivo e sua perda impactou, deixando saudades e a mobilização de todos(as). Nos ocupamos de esperar a oficineira T. voltar a frequentar a Oficina depois de um período fora, lhe aguardando e demonstrando sentir sua falta. A equipe se articulou em Rede e traçou um plano terapêutico singular para dar o suporte que a oficineira necessitava naquele momento. Como parte da estratégia, organizou-se uma reaproximação para que ela tivesse, duas vezes por semana, a Oficina de Bordado - contando com um colega que também mora no mesmo local e tinha interesse em estar no Serviço como suporte - bem como a ocupação em mais atividades em outros serviços da RAPS.

Ao longo dos meses de trabalho após a morte do companheiro, a oficineira T. foi se deixando emocionar, foi chorando, falando, bordando, se recolhendo e se abrindo. Notamos um investimento da sua parte na profissionalização de seu bordado e, também, momentos de extrema tristeza e diminuição do ritmo em bordar. Verbalizava o quanto gostava de bordar e estar no Serviço, como lhe fazia bem trabalhar nas duas vezes por semana em que estava presente - sem falta. Seus primeiros bordados eram todos em ponto de arroz, muito fechados, um ponto sobre o outro, sem arremate e de tecido embolado e com predominância de somente uma cor, geralmente vermelho ou azul. À medida que foi praticando e observando os movimentos do grupo, seus bordados foram se transformando. Seu último bordado acompanhado em diário de campo (uma releitura de Tarsila do Amaral), carrega diversas cores, mostrando cuidado com o tecido, atenção aos arremates e bordando com pontos menos carregados. Também inaugurou algo novo: deixou o bordado ser em conjunto com outra oficineira.

A oficineira T. mostra para todos que está bordando o ponto arroz, seu ponto - como ela se refere. Conta que estava bordando a casa, pede ajuda para escolher novas cores, um e outro oficineiro(a) vão dando opiniões e ela deixa separado as futuras cores que vai usar, se preocupa em usar sempre uma “boa agulha” (sic). Falando mais baixinho, com o rosto bem perto do bordado, me conta que essa casa vai ficar com as janelas abertas (as anteriores estavam fechadas, ela lembra), na frente de um gramado verde. Neste bordado há muito investido, inclusive a tolerância com o erro e a dedicação do refazer. Foi o primeiro bordado que a oficineira T. pediu ajuda para desmanchar uma parte, quer deixar “muito bom” e diz querer desmanchar se for preciso. Ao ajudá-la a desmanchar pra recomeçar ela suspira ao final da tarefa, sinto ela aliviada e empolgada. Me emociono, nos emocionamos (Trecho do diário de campo).

No Bordado de T., segundo ela, temos uma “uma casa com gramado verde e janelas abertas para o sol entrar” (sic). Esse bordado, destinado para a Oficina de Corte e Costura para se tornar uma bolsa, para T. foi mais que um produto, uma forma de se ocupar (e elaborar). Enquanto viveu alguns meses em luto, foi bordando e dando novos endereçamentos para seus sentimentos e desejos. Para os demais oficineiros e oficineiras o bordado oportunizou conversar com T., acolhendo seus sentimentos e a incluindo nos processos de trabalho dentro de suas possibilidades, a ajudando com as cores da composição, lembrando de sua potência e importância. Trata-se, portanto, de um trabalho conectado com o respeito à singularidade, com à história e contexto de cada pessoa que compunha o coletivo, em movimentos de resistência e ruptura que produziam singularizações (Guattari & Rolnik, 1985).

Essa postura de trabalho coletivizado e autogestionário, com compromisso de cuidado em liberdade, possibilitava dar ênfase à pessoa e não ao diagnóstico, processo no qual o uso da arte servia de afirmação do real e abertura de possíveis. Ecoava na prática de trabalho investigado à medida que existia um movimento de tomada de responsabilidade coletiva que se constituía, nas relações, como meio para a transformação institucional:

A cura cede espaço à emancipação, mudando a natureza do ato terapêutico, que agora se centra em outra finalidade: produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo a relação de tutela e o lugar de objeto que captura a possibilidade de ser sujeito (Torre & Amarante, 2001, p. 82).

A possibilidade terapêutica não se dava mais fundada sobre a doença e não provinha da autoridade biomédica: ao invés de fundar-se sobre uma regra imposta, a organização coletiva se converte, por si mesma, num ato terapêutico (Basaglia, 1985). A compreensão de que “a construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político” (Torre & Amarante, 2001, p. 84) possibilita, portanto, um reposicionamento da própria noção de terapêutica (e de clínica). Clínica se transforma, na abordagem ético-político-estética (Deleuze & Guattari, 1996), para movimento não voltado à remissão dos sintomas, mas para a promoção da vida, da criação de formas outras de existir. A clínica, nesse sentido, não é executada pelo especialista, pois a análise se produz sem se centrar em um sujeito que a realize, nem como uma interpretação ou revelação do oculto; a análise se produz em um campo de forças, em espaços mais distintos. Torna-se um acontecimento possível nos diferentes espaços sociais, e não propriedade do ato médico ou psicoterapêutico do consultório, mas sim uma clínica ampliada (Torre & Amarante, 2001).

Arremates: tecendo os pontos finais na trama clínico-artesanal

Que mundo se tecem a cada ponto? Que pontos se tecem em cada mundo? Por meio do contato com os tecidos, as linhas, tesouras e agulhas, cada pessoa encontra uma forma de se expressar e deixar criar, colocando-se em um movimento inventivo, intuitivo e expressivo. O pensar-fazer se estabelece por meio da voz-mãos, enquanto alguém compartilha narrativas, os pontos vão se tecendo, a escuta se abre e as mãos executam. O bordar-viver brota e as composições têxteis, narrativas e simbólicas marcam e registram um existir. Por meio da Oficina, foi possível tomar contato com diferentes modos de vida, testemunhando aprendizagens, afecções e um processo de trabalho que mantinha como base o cuidado em liberdade - afinal, as cenas vividas no coletivo do Serviço se dão atravessadas por movimentos institucionais, o cenário social e político que se expressa no contemporâneo.

Durante o estágio, a intenção foi acompanhar, mediar, aprender e contribuir para relações coletivizadas, de pertencimento e produção (para além de produtos concretos), mas de afetos e implicação sem perder de vista as singularidades que compõem o coletivo como um todo. Escutar as demandas, conhecer cada um dos oficineiros e das oficineiras e perceber de que maneira o trabalho da psicologia poderia se engendrar nessa lógica de cuidado em liberdade se fez presente à medida que muitas temáticas nos atravessaram, perpassando nossas conversas. Por meio das artesanias nos encontramos no coletivo, entre nós, entre nossas histórias e tudo aquilo que fizemos juntos, confiamos na potência para além do diagnóstico.

Então, como resultado de um entrelaçamento de desejos, no último mês de estágio, em ritmo de despedida e promessa de sempre lembrar do que vivemos em coletivo, produzimos juntos(as) uma grande bandeira costurada, bordada e pintada. Um tecido cortado e costurado pelas mãos da oficineira A., que é uma das referências em projetos especiais no serviço e dá, muitas vezes, base para que os produtos passem de mãos em mãos. Esse material não se encontra acabado, a proposta é que ele vá se transformando conforme o desejo dos oficineiros e oficineiras se mova promovendo novos agenciamentos. Colocamos no centro a frase «Em coletivo, meus pontos se tornam nossos nós - mãos que transformam produtos em histórias, afetos e resistências››. Enquanto todas as Oficinas aconteciam normalmente, fomos convidando as pessoas para irem até a Oficina de Bordado para riscarem sua mão no tecido e íamos escrevendo verbos que traduzissem nosso sentimento ao compor o coletivo. Ao ler a frase cada vez que alguém vinha marcar sua mão, íamos desdobrando os sentidos, e as oficineiras, oficineiros e demais trabalhadores(as) iam escrevendo seu nome nessa bandeira.

Histórias, desejos, afetos foram sendo contados por cada um que marcou a sua mão e compôs a tessitura, numa experiência que remete, mesmo diante da ameaça neoliberal do desmembramento da saúde pública, a uma ação coletiva - repleta de significações que permitem que o trabalho tenha outro caminho que não a produção massiva e precarização da vida. Para tanto, se entende que as demandas transbordam a Oficina, pondo em pauta a necessária existência de estratégias de saúde que contemplem esse modo de viver. Na esteira dessa discussão, compreende-se que o fortalecimento das políticas públicas (no incentivo de recursos para ampliação de espaços como o GerAção/POA) e uma mudança do perfil formativo de profissionais no país (criticamente atenta para a reedição de perspectivas exclusivamente biomédicas em saúde) possibilitarão um alinhavo ético, estético e politicamente emancipatório.

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3 Para maiores informações, acessar o site: https://portfoliodepraticas.epsjv.fiocruz.br/pratica/geracaopoa

Recebido: 24 de Novembro de 2023; Revisado: 10 de Outubro de 2024; Aceito: 29 de Outubro de 2024

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