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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.8 n.1 São Paulo jun. 2006
ARTIGOS
A psicanálise pragmática e o paradoxo da interpretação
Pragmatic psychoanalysis and the paradox of interpretation
João José Rodrigues Lima de Almeida
Professor colaborador da Unioeste (PR)
RESUMO
A psicanálise pragmática defende uma reformulação lingüística da metapsicologia freudiana nos termos das filosofias da linguagem de Donald Davidson e de Richard Rorty. Esta recomposição filosófica das descrições de objetos e eventos mentais na psicanálise consegue, em grande parte, dessubstancializar a teoria de Freud, mas ainda permanece refém de suas próprias manobras estratégicas ao depender de concepções cujas tônicas recaem sobre aspectos mais racionais que pragmáticos das descrições: o causalismo na psicologia e a sobrevalorização da importância da interpretação nas ações intencionais. Como conseqüência, a psicanálise pragmática trava a sua própria tarefa de reformulação e dessubstancialização da teoria psicanalítica do ponto de vista pragmático que se propõe, e a metafísica parece ser reintroduzida pela porta dos fundos.
Palavras-chave: Psicanálise pragmática, Marcia Cavell, Jurandir Freire Costa, Donald Davidson, Richard Rorty, Ludwig Wittgenstein.
ABSTRACT
Pragmatic Psychoanalysis stands for a linguistic reformulation of the Freudian Metapsychology in terms of Donald Davidson's and Richard Rorty's philosophies of language. This1 philosophical rearrangement of the description of both objects and mental events in psychoanalysis largerly accomplishes to desubstantialize Freudian's theory. Notwithstanding, Pragmatic Psychoanalysis becomes a hostage of its very strategy, since its theory accents much more the rational than the pragmatic aspects in its descriptions: causalism in psychology and an overestimation of the importance of interpretation in intentional actions. As a consequence, Pragmatic Psychoanalysis hampers its own task of reformulation and desubstantialization, in the very pragmatic terms that it aims at doing, and, as it seems, metaphysics is reintroduced by the back door.
Keywords: Pragmatic psychoanalysis, Marcia Cavell, Jurandir Freire Costa, Donald Davidson, Richard Rorty, Ludwig Wittgenstein.
Pretendo descrever e analisar neste artigo a chamada "psicanálise pragmática" (doravante sem aspas). Denomino psicanálise pragmática o tipo de teoria psicanalítica defendida por Marcia Cavell (1993) e por Jurandir Freire Costa (em 1989, 1992, 1994, 1995a, 1995b e 1999), porque ela não somente se reconhece e pode ser reconhecida por esse nome, mas também porque se vincula teoricamente a autores conhecidos como "pragmáticos" ou "neopragmáticos", tais como Donald Davidon, Richard Rorty e John L. Austin. Existem diferenças, naturalmente, entre Cavell e Costa, sobretudo porque a primeira autora tem uma vinculação teórica muito mais forte com Davidson do que com Rorty; entretanto, para os efeitos da descrição a que me proponho, passarei por alto o contraste detalhado entre as suas principais fontes filosóficas.
Como, certamente, este não é o primeiro nem será o último exame que se faz da psicanálise pragmática - lembro aqui as excelentes objeções de Loparic (1995), que, com muita propriedade, já sugeria, com Heidegger, que "Precisamos... aprender a nos desfazer até mesmo da metafísica lingüística, presente na obra dos filósofos de linguagem (p. 95)" -, esclareço que o padrão da análise aqui exercida será interno à própria postura filosófica da teoria em questão; mais precisamente, será feita desde um ponto de vista que compartilha uma grande parte dos seus pressupostos filosóficos.
Creio ser importante que o parâmetro da crítica não venha de fora para que, em primeiro lugar, seja atendida uma justa reivindicação de Costa (cf. 1995b, p. 97), e, em segundo lugar, seja apagada a impressão de que juízos divergentes estejam sendo apresentados como mais corretos, mais rigorosos ou mais verdadeiros. Não há aqui nenhum ideal que deva ser forçosamente seguido. A insistência em impor um ideal transforma o que seria um ideal de correção numa correção ideal. Wittgenstein recorda que nós, muitas vezes, compreendemos mal o papel que o ideal joga (spielt) em nosso modo de expressão, e um ideal mal compreendido acaba simplesmente nos ofuscando (cf. 1953, § 100). Portanto, o único ideal aqui em causa, isso deve ficar evidente, não é o de correção ideal, mas o de clareza. Desse modo, esta análise se dedica apenas às figuras que a própria psicanálise pragmática nos apresenta como reflexo dos seus próprios paradigmas e à maneira como ela incorpora o espólio de Davidson e de Rorty ao seu próprio patrimônio.
Embora tenha o dever de realizar essa tarefa da maneira a mais concisa possível - trata-se do espaço disponível para um artigo -, os pontos filosóficos que devem ser iluminados para compor o eixo da argumentação tornarão imprescindível um percurso de oito tópicos. Explico-os. Os quatro primeiros são introdutórios e visam ao estabelecimento de um arcabouço retórico para revestir exercício descritivo. Os quatro tópicos iniciais referem-se, respectivamente, ao que denomino "dessubstan-cialização", "externalismo", "pragmatismo" e "concepção comportamental da linguagem". Trata-se, como verá o leitor, de termos propositalmente amplos e vagos para apenas colocar em curso a descrição da atividade teórica da psicanálise pragmática, e não fixar conceitos e teorias universais. Não se pretende de modo algum uma identificação entre as teorias em pauta neste artigo e as ferramentas retóricas que utilizo somente aqui. Em outras palavras, uma teoria qualquer só é "dessubstancializada", "pragmática", "externalista" e tem uma "concepção comportamental de linguagem" no interior das páginas deste artigo e a propósito dos fins a que ele quer chegar. Justifico-me apenas pela vaguidade e imprecisão desses termos em razão da necessidade de algumas vezes termos conceitos vagos funcionando como pano-de-fundo para aplicações precisas daquilo que, na realidade, é igualmente difuso; por isso, remeto ao leitor à reflexão sobre o próprio conceito vago de "jogo de linguagem" usado por Wittgenstein para descrever inumeráveis tipos de articulação entre proposições gramaticais e empíricas (cf. ibid., §§ 100-101; tb. §§ 71, 77 e 98).
Os quatro tópicos seguintes dedicam-se diretamente à psicanálise pragmática, da seguinte forma: no quinto tópico examino a parti-cular concepção de "sujeito" da psicanálise pragmática e suas conseqüências clínicas; no sexto, tento mostrar as razões ontológicas e pragmáticas nas quais se baseia a concepção de que "razões são causas", que fundamentam a sua noção de "sujeito"; no sétimo, passo para as chamadas "ações irracionais", avançando na hipótese de que a introdução da noção de "causalidade" no jogo de linguagem dos motivos está a serviço da manutenção da coerência da noção associada de "interpretação radical", mas com o preço de resgatar, paralelamente, a concepção freudiana da mente subdividida em compartimentos; e, no oitavo e último tópico, defendo a idéia de que só trazendo de volta a palavra "interpretação" para o seu uso cotidiano teríamos a possibilidade de evitar o que chamarei de "dogmatização da metafísica" (a justificação do impreciso termo "metafísica" aparece no primeiro tópico); isso implicaria conceber uma psicanálise que não se referisse a conteúdos, como defendia Lacan, e que se desenrolasse somente no âmbito das ações.
Uma advertência final faz-se necessária: valho-me de uma interpretação particular da filosofia de Wittgenstein para exercer minha análise. Essa interpretação provém, como qualquer outra que conheço, da leitura dos textos do autor, e, por isso, ela tampouco me parece mais correta ou melhor que outras, divergentes, que fazem o mesmo (e vice-versa). O que se exige de uma interpretação é o que ela mesma se propõe: o respeito ao cânon da exegese, pois apenas nessas regras e entre elas reside a disputa pela correção. Uma disputa que obviamente se constitui pelo próprio cânon.
A dessubstancialização da psicanálise
Compreendo as teorias de Cavell e Costa como tentativas de "dessubstancializar" as descrições de objetos e eventos mentais da teoria freudiana fundamentando-se nas filosofias da linguagem e da mente pro postas por Davidson e por Rorty. Como pode intuir o leitor, essa inexistente palavra da lexicografia oficial portuguesa, a dessubstancialização, não é incomum na filosofia. Normalmente, significa retirar a gordura metafísica de uma idéia ou de uma teoria e reapresentá-la com os constituintes operatórios mínimos e dieteticamente necessários para o seu desentravado funcionamento. No sentido que realmente importa para uma teoria psicanalítica, são dessubstancializados os objetos e eventos mentais, os chamados "objetos" ou "fatos psicológicos" que passam a receber um tratamento distinto do que normalmente se concebe para os objetos e eventos físicos. Se não se modifica a abordagem, outra alternativa seria simplesmente desconsiderá-los, como no caso do behaviorismo.
Cabe salientar que uma teoria dessubstancializada não é, estritamente, sem metafísica. O que implica dizer que o significado da palavra "metafísica", nesse tipo de atitude, comporta uma acepção dogmática e outra operatória (cf. Descombes 1995, pp. 111-119). Do ponto de vista básico, anterior a essas duas acepções, a palavra "metafísica" pode ser pensada como o tratamento de tudo que se refere ao imaterial, ao que não se inclui no conjunto das entidades físicas do mundo, ao que está "para-além" da realidade concreta e sensível, cuja necessidade é postulada para a compreensão desse mesmo mundo. Mas, na posterior acepção dogmática, a necessidade de tais entidades é injustificada, e o sentido e significado do que é o mundo prescinde delas. Desse modo, o finalismo, o essencialismo e a idéia de uma causa primeira são dispensáveis na maioria das descrições cosmológicas da filosofia contemporânea como noções injustificáveis. Na acepção operatória, porém, essa necessidade é real: os postulados metafísicos são concebidos como os parâmetros dentro dos quais ordenamos o pensamento do mundo, aquilo que introduzimos, pela razão, a título de distinções conceituais, como princípios do entendimento sem os quais não haveria conhecimento possível. A teleologia, a diferença e a integração entre essência e existência, e a doutrina da causa primeira já foram úteis na filosofia medieval para entender o vínculo e a separação entre razão e fé, a ordem da natureza e a finalidade da criação. Não se sentia, à época, qualquer necessidade de dispensar esses conceitos como pontos fundamentais da cosmologia. No caso de uma dessubstancialização, porém, eliminam-se proposições sobressalentes e preservam-se apenas as proposições operatórias, aquelas que promovem, efetivamente, na visão da teoria dessubstancializada, a divisão do contínuo que se apresenta ao entendimento, organizam seus pontos de encaixe, seu encadeamento, e proporcionam uma inteligibilidade ou significado para o mundo. O que resulta, em relação ao conjunto teórico do qual a nova visão descende, numa figura mais magra, despida do seu ar de mistério, de circunvoluções especulativas, desenroupada de dobras sinuosas e subterrâneas, despossuída da antiga aura de fascínio e inexplicabilidade. As proposições sobressalentes são tachadas então como dogmáticas.
Há muitos sentidos para a dessubstancialização na história do pensamento. Porém, aqui, só nos interessa a dessubstancialização da psicologia que enveredou, no século XX, pela dessubstancialização da psicologia na psicanálise. Um resumo da desencontrada história das variadas e vãs tentativas de encontrar uma definição clara para a psicologia pode-se folhear no célebre artigo de Canguilhem, "O que é a psicologia?" (1968). A dessubstancialização da psicologia na psicanálise encontra, igualmente, várias versões. A mais marcante e duradoura talvez tenha sido a tentativa de propor uma psicologia concreta (Politzer 1928). Lacan pretendeu efetivá-la na psiquiatria, com a tese de 32 (Cf. Lacan 1975), contudo, com ela, acabou tornando-se um inconfesso seguidor de Politzer na teoria psicanalítica (cf. Gabbi Jr 1998; Simanke 2002).
Duas formas de externalismo
Tanto a psicanálise pragmática como a teoria de Lacan são duas formas de abordagem metapsicológicas que denomino externalistas. Ambas pretendem enxugar a teoria freudiana invertendo a polaridade da abordagem do fato psicológico e extinguindo, com o movimento, a introspecção. Para que a introspecção fosse uma função válida, teríamos que aceitar que há um conjunto de objetos internos que podem ser denotados pela linguagem. Dado o fato de que essas teorias psicanalíticas rejeitam tal possibilidade, restam apenas funções denotativas externas. Não somente a linguagem é pública, mas também os objetos a que pode legitimamente se referir quando denota. Quanto a supostos "objetos mentais" - sensações, emoções ou processos internos -, não se nega nem se assevera propriamente a sua existência; para todos os efeitos, trata-se a linguagem psicológica, aparentemente designativa, apenas como expressão de uma atitude ou criação de um vínculo entre interlocutores na qual tais objetos figuram como descrições. O uso eventual do vocabulário mentalista não implica, desse modo, o mentalismo. Assim, posto que desaparecem os objetos mentais como referências metafísicas nas psicanálises lingüísticas (psicanálise pragmática e teoria de Lacan), classifico-as imprecisamente como externalistas.
A rigor, a distinção interno/externo perde o sentido para correntes externalistas, como tampouco se esclarece perfeitamente de que maneira poderia ser usado com mais exatidão o termo "externalismo". O seu uso visa somente à caracterização, em geral, da atitude teórica das psicanálises lingüísticas e para traçar algumas diferenças entre correntes de pensamento que compartilham alguns pressupostos filosóficos. É preciso, contudo, salientar que o externalismo indicado nas concepções de linguagem comportamentais, que veremos no quarto tópico, não deve ser identificado ao behaviorismo. A metafísica do behaviorismo implica tanto a inexistência de objetos e processos mentais internos como a consideração exclusiva do comportamento como único componente metodologicamente válido para uma explicação psicológica, o que não caracterizaria o externalismo das psicanálises lingüísticas nem a concepção comportamental da linguagem que a psicanálise pragmática defende.
O que, em síntese, as psicanálises externalistas rejeitam é a possibilidade de uma linguagem privada, isto é, tratar sensações ou entidades mentais como objetos internos reais referidos pela descrição. O sentido de uma expressão, em qualquer caso, deixa de ser o objeto ao qual os interlocutores se referem para ressurgir como a reação comportamental vinculada à ação da fala. Nessa ação, entre um "eu" e um "outro" interfere uma conjuntura de fatores externos, pertencentes ao meio cultural no qual o falante está imerso, que, de alguma maneira, dão conta do seu comportamento ou podem servir como elementos de descrição para tal. O "eu", não sendo mais concebido como o jardim secreto situado por baixo da superfície lingüística, semi-oculto pelos desvios e deslocamentos do sistema de defesa mental, passa a ser visto na própria face das desarticulações da linguagem, na medida em que a linguagem é vista como constituinte da sua relação com o "outro" ou como formadora das imposições da cultura às quais o "eu" reage ou se submete, e também, de algum modo, como a própria dinâmica da alienação do "eu", quando queremos expressar que a idéia de um "eu" advém pelo contraste e pela identificação com o "outro" mediante ações lingüísticas das quais não se pode definitivamente abstrair, senão alternar-se em posições passivas ou ativas. Esses fatores externos, portanto, mais que conceitos provenientes das ciências sociais, são tomados como elementos lingüísticos. Dito de outro modo, nessas teorias psicanalíticas descreve-se o sujeito, não pela sua interioridade - inacessível - ou pelo ponto de vista sociológico ou antropológico - demasiado amplo para os interesses clínicos em jogo -, mas como um efeito da linguagem, no sentido de que o "sujeito", a "subjetividade" ou o "eu" é, antes de tudo, uma narração de si mesmo dentro de uma atividade com objetivo determinado ou uma ação intencional. Esse tipo de compreensão lingüística do sujeito pareceu-lhes o meio mais adequado para uma teoria psicanalítica, tanto por escapar ao mito da interioridade como por situar-se com maior precisão e força no entrecruzamento entre o individual e o social. Em resumo, por adequar-se ao tamanho exato para abrir a fechadura do psicológico sem deixar entrar porta adentro alguns hóspedes indesejáveis da metafísica.
Essa atitude das teorias psicanalíticas externalistas, portanto, é parte da sua política de varrer o excesso metafísico implícito na concepção freudiana da existência de uma vida interior e de processos mentais internos responsáveis pelo comportamento. Pela doutrina de Freud, temos que acreditar que está oculto, por trás da dinâmica da vida mental, todo um grande aparato subdividido em sistemas repletos de peças que impulsionam outras peças do aparato, explicando, assim, à maneira da dinâmica newtoniana, as causas do comportamento, e fornecendo, ao mesmo tempo, um organograma para melhor endireitá-lo, se for o caso. As psicanálises externalistas não acreditam numa "vida interior" do sujeito nem postulam entidades internas abstratas por trás das aparências para explicar a conduta humana. Do ponto de vista clínico, tampouco, elas acreditam que haja uma verdade pontual, essencial ou fixa, seja ela um acontecimento real ou uma fantasia, que deva ser encontrada sob a superfície das aparências para que as dificuldades se dissolvam. Não se trata de reencaixar uma peça perdida ou de colocar a engrenagem novamente endentada e funcionando. Para resolver o impasse epistemológico inerente à psicologia, e diante da impossibilidade de explicar o comportamento humano e resolver os problemas da conduta sem recorrer ao obscuro inexplicável, essas teorias psicanalíticas lançaram mão de filosofias da linguagem. Mediante esse promissor recurso, criou-se uma nova concepção do sintoma, a visão de que o sofrimento psíquico decorre não de uma fantasia secreta guardada num ponto fixo da história do sujeito, mas do próprio mito individual do neurótico tomado em sua estrutura total. Isto é, na maneira como o sujeito foi tecendo - e foi-lhe sendo tecida - a rede de correlações simbólicas que compõem a sua história, como age e se projeta em conformidade com essa mitologia. Lacan cumpriu a tarefa dando privilégio heurístico ao sistema estruturado pré-significativo e puramente diferencial dos significantes e a psicanálise pragmática entendeu que a linguagem é parte do próprio comportamento. Com esse ponto de vista organizado para diferenciar-se da concepção referencial da linguagem psicológica e para evitar qualquer menção a uma suposta vida interior, podemos dizer que a teoria de Lacan e a psicanálise pragmática são duas abordagens externalistas.
Esta última, no entanto, tem uma forma mais refinada de compreensão e uso da linguagem na teoria psicanalítica que a perspectiva de Lacan. Ela partiu, justamente, da crítica ao neo-estruturalismo lacaniano. Seus teóricos não apenas analisaram e desmontaram as pretensões da linguagem referencial na psicanálise, como também identificaram e recusaram as propostas reducionistas da concepção de linguagem idealista típica de Lacan. Em vez de promover abstrações lingüísticas a elementos privilegiados da análise do desejo e do inconsciente, perfazendo uma triangulação mediada entre a subjetividade, sua marca simbólica primordial e a própria análise, eles sustentam, pelo parâmetro comportamental da linguagem, uma forma de externalismo direto, isto é, uma versão de teoria psicanalítica que vê a relação entre objetos mentais e o comportamento como uma ligação imediata e interna à própria ação do indivíduo. O meio cultural e a história individual são partes dessa ação. Não se trata do fato de a teoria de Lacan não enfatizar essas dimensões, afinal de contas ela também é uma psicanálise externalista, mas do fato de que a psicanálise pragmática não coloca a linguagem, as regras da cultura ou a estrutura mitológica como intermediário entre o "eu" e o "comportamento". Para esses teóricos, não existe um tertium quid, tudo faz parte da mesma forma de vida ou entorno social que modela uma certa maneira de fazer as coisas, sem que algum desses elementos possa ser destacado como fator originário, epistemologicamente privilegiado, fundante ou determinativo, seja a priori ou mesmo a posteriori (après-coup, como dizem os lacanianos), da descrição psicológica. A resolução do impasse teórico da psicologia pela redução às abstrações lingüísticas também é, para eles, um acréscimo desnecessário que não ajuda a esclarecer os conceitos da psicanálise nem a dar validade objetiva à clínica. A concepção idealista da linguagem também resulta em confusão lingüística, com subseqüente criação de ruído no diálogo interdisciplinar: isolamento da disciplina num campo epistêmico supostamente exclusivo e pioneiro, e a impossibilidade de decisão acerca dos enunciados teóricos e clínicos. Dessa forma, a teoria lacaniana tem, na visão da psicanálise pragmática, uma forma de externalismo indireto que eles recusam.
Diferenças pragmáticas
É certo que a psicanálise pragmática inspira-se nas filosofias de Wittgenstein e de Austin em muitos pontos, e é com base no pensamento desses autores que eles criticam a tendência para a absolutização da linguagem vista em Lacan. Porém, as suas principais formulações teóricas foram modeladas na forma das filosofias da linguagem propostas por Donald Davidson e por Richard Rorty, e isso tem conseqüências cruciais que merecem ser analisadas. Os pressupostos filosóficos advindos dessas últimas filosofias são ênfases ou pontos de vista claramente evitados por Wittgenstein.1 Na concepção lingüístico-comportamental da psicanálise pragmática aprecia-se a ação pela visão do "intérprete radical", devido ao fato de a linguagem estabelecer uma relação que põe em cheque o intérprete, seu interlocutor e o mundo como fornecedor de estímulos comportamentais. A força da ação, na vertente davidsoniana, é a maximização da "verdade" obtida pelo exercício de "tradução" e a conseqüente formação de "crenças" a respeito do "mundo", do "outro" e de "si mesmo". As crenças guiam o "desejo" e justificam os próprios atos de fala como "ações intencionais" ou "atitudes proposicionais". Por conseguinte, os principais instrumentos conceituais da psicanálise pragmática são a "ação", a "crença", o "desejo", a "razão", a "causa", a "verdade" e a "objetividade". Esses conceitos não somente estão interconectados na mesma rede teórica, pois fazem parte do que se denomina "concepção holística da ação", mas também são sistematizados de tal modo que, adotados pela psicanálise pragmática, recuperam, para as palavras "verdade" e "objetividade", um valor que hoje dificilmente se justificaria do ponto de vista realista e universal. Esses dois conceitos são importantes tanto para Costa quanto para Cavell. No caso do primeiro autor, porque a "verdade" pode ser retomada pelo seu valor pragmático de "satisfação", o que é decisivo na noção de interpretação radical e para a recuperação da idéia da emergência da linguagem na triangulação lingüístico-causal entre interlocutores e o mundo (Cf. Costa 1994, pp. 43-51).2 E, para Cavell, porque tem a intenção de colocar a psicanálise dentro de parâmetros acadêmicos aceitáveis, ou seja, de conseguir uma forma teórica que, sem ser uma disciplina científica, tenha, porém, a capacidade de formular enunciados decidíveis. Cavell diz que "o psicanalista pode chegar a uma interpretação verdadeira e objetiva dos estados da mente do seu paciente (...); e, ademais, a verdade conta tanto para saber por que o paciente se comporta de uma certa maneira, como para ajudá-lo a mudar" (Cavell 1993, p. 86; cf. tb. pp. 20-41 e 221-34) . A base desse otimismo epistêmico é a doutrina de que "crenças" podem ser tomadas como "verdades", e de que razões podem também ser tomadas como "causas", um exercício filosófico tipicamente davidsoniano, também reafirmado, com outras conotações, por Rorty. Por esse motivo, a psicanálise pragmática reabilitou uma concepção de "subjetividade" nunca antes cogitada por filosofias de tom pragmático como as de Austin ou de Wittgenstein. Este último filósofo, em particular, colocou a ênfase de suas concepções de linguagem não na "interpretação", na "ação intencional", nos "acordos da comunidade" ou sequer nos seus próprios conceitos de "seguimento de regras" ou de "jogos de linguagem". O elemento decisivo em sua filosofia parece ter sido a própria ação, nua e crua, para a qual não existem "justificativas" plausíveis, nem a possibilidade de se postular a teoria de um "sujeito volitivo", mesmo que numa ação seja reconhecível um "eu", uma "vontade" e uma "intenção". O pragmatismo psicanalítico, no entanto, autoriza-se a falar do sujeito (ou da "subjetividade") como "uma rede particular de crenças e desejos postulados como causa interior do comportamento" (cf. Costa 1994, p. 21; Cavell, 1993 pp. 38, 117, 193-205), cuja ação pode ser justificada numa descrição.3
Veremos as razões dessas diferenças: por que Wittgenstein nunca aceitou que "razões" pudessem ser tomadas como "causas" e por que acentuou a ação em detrimento da interpretação. Veremos também o que a psicanálise pragmática acrescentou com as interpretações de Davidson e de Rorty e que objetivos espera cumprir com tais aquisições conceituais. A principal objeção que levanto com relação à aposição filosófica da psicanálise pragmática é a suspeita de que uma concepção comportamental da linguagem, cuja ênfase recaia sobre a "interpretação radical" e não sobre a própria ação, em vez de ganhar em objetividade, perde, e, na realidade, parece reintroduzir a metafísica pela porta dos fundos. Nesse sentido, o ideal wittgensteiniano de "trazer as palavras de volta da metafísica para o seu uso cotidiano" (Wittgenstein 1953, § 116), ao contrário do que a psicanálise pragmática aparenta supor, não é cumprido. O motivo, a meu ver, afigura-se como um anseio por teorização, um certo ofuscamento provocado pela sedução teórica que certas formas de expressão exercem sobre nós (cf. ibid, § 109; tb. 1958, p. 27), seguido de um entrecruzamento entre regras normais e desviantes nos jogos de linguagem das expressões comportamentais.
Linguagem como comportamento
A psicanálise pragmática advoga pelo argumento anti-essencialista de que a linguagem é uma forma de ação. A linguagem é parte de atividades nas quais aprendemos a interagir e a praticar cada vez melhor, com mais habilidade, o que já fazemos ou aprendemos recente mente a fazer (Cavell 1993, p. 25, cf. pp. 21-5; Costa 1994, p. 39). Pelos parâmetros assumidos pela psicanálise pragmática, a linguagem não pode, portanto, ser subsumida a um conjunto de formas ou entidades abstratas. Assim, como, tampouco, pode ser subsumida exclusivamente a comportamentos, tal como no behaviorismo radical, escamoteando-se a realidade de figuras, representações, intenções, sensações e estados emotivos como componentes inseparáveis da linguagem. Desse modo, como a visão pragmática estende a compreensão da linguagem para além do meramente verbal e ostensivo, e enfatiza com igual valor os seus aspectos interativos e práticos, denomino a essa posição "concepção comportamental da linguagem".
Numa concepção comportamental da linguagem, o sentido de uma palavra deixa de pertencer exclusivamente à relação ostensiva entre linguagem e mundo, e passa a ser compreendida dentro de uma miríade de práticas normatizadas por regras, dentre as quais a ostensão é apenas uma delas. O significado de uma palavra passa a ser o seu uso no interior de regras. A ostensão deixa de ser a norma, passa a ser, ela mesma, parte de uma prática regulada por normas dentro das quais indicar um objeto e ao mesmo tempo pronunciar um nome faz sentido. Isso pressupõe todo um processo de aprendizado e de incorporação de um costume para a constituição de cada um dos inumeráveis jogos de linguagem. A criança, por exemplo, aprende a substituir seus gritos infantis, grunhidos e choros por palavras que indicam mais eficientemente o que ela quer: mamar ou sair do berço, por exemplo. Tais atividades só se justificam por seu pertencimento a determinadas formas de vida, contextos vivenciais nos quais a prática de determinadas atividades encontra seu sentido pleno. Numa forma de vida tal como o comportamento familiar subsistem certas regras de procedimento para a alimentação infantil e para a realização de brincadeiras. Isso vale para um grande número de grupos humanos, por mais diferentes que sejam as formas e os valores em causa. As crianças aperfeiçoam suas atividades alimentares e recreativas com as maneiras mais eficientes de praticar aquelas ações. Os pais ensinam que há sinais sonoros ou símbolos "mais corretos" para utilizar naquelas práticas em vez de grunhidos, gritos ou choro. Os pais e toda a comunidade de falantes ao redor ensinam a criança a falar mediante jogos. Elas são, portanto, introduzidas numa prática que é, ao mesmo tempo, o aprendizado de uma linguagem. Se o emprego da fala parece ser mais eficiente para a comunicação do que o choro, não é porque, ao passar do choro e dos gritos para as palavras, aprendemos a indicar melhor o que pretendemos, nem se deve ao aprimoramento do poder referencial da linguagem, mas porque reproduzimos, cada vez mais perfeitamente, um exercício socialmente já codificado do significado de proferimentos. A maior eficácia comunicativa das palavras indica justamente uma codificação em regras de uso na prática de determinadas ações. A perda comunicativa indica, evidentemente, o contrário. As crianças são ensinadas, na verdade, a praticar jogos de linguagem. Não se pode dizer que o sentido das palavras seja uma espécie de intuição despertada na mente da criança ou que seja o produto de uma visão interna, porque não teríamos como justificar uma coincidência entre uma entidade mental e um objeto da realidade, nem a existência de uma propriedade particular pertencente a uma abstração lingüística, já que os tipos de justificativa que funcionam bem no mundo físico falham, clamorosamente, no mundo mental por falta de entidades substanciais. Os sentidos correspondem - isto, sim, pode-se justificar - a usos sociais regulares da fala em determinados contextos vivenciais. A linguagem, na forma como a psicanálise pragmática a define, não é uma "coisa" separada da ação, não é um terceiro elemento entre a vida interior e o mundo, não é um véu que simultaneamente esconde e revela nossos pensamentos. Embora seja factível admitir que há, de fato, pensamentos, vozes internas, sentimentos e sensações, o pensamento e a linguagem não se separam, na medida em que não há maneira de provar ou validar essa separação sem recorrer à própria linguagem. Por outro lado, tampouco seria possível reduzir a atividade lingüística a uma abstração, qualquer que ela seja (a comunidade dos falantes, o acordo comunicativo, o paradigma, as regras ou os significantes), porque faltariam as necessárias provas da existência e da efetividade dessas formas ideais platônicas separadas de seus conteúdos. Não se negam os estados mentais nem as formas lingüísticas; negam-se as suas reificações e abstrações em conceitos separáveis da prática lingüística.
É precisamente sob este aspecto que Costa nos diz que "desejo" não é uma entidade interna, oculta e separada do espaço público e compartilhado da linguagem por uma caixa preta chamada "mundo mental", e declara que "desejo" não é mais que "o uso do termo desejo" (ibid., p. 24). O sentido de um termo está no seu uso habitual, que "não comporta limites precisos" (ibid.). A linguagem, portanto, não é uma entidade à parte, uma coisa que se movimenta ao lado de outras atividades humanas, como o carro que anda quando o acionamos, de tal modo que pudesse conformar um reino separado de fenômenos especiais e misteriosos capazes de dar a explicação última e definitiva do "sentido" (Costa 1995a, p. 45). Costa vê a linguagem como uma espécie de reação, própria da nossa espécie biológica, na variedade dos contextos de vida (ibid., p. 44). Em outro lado diz, também, que a linguagem "é a soma dos nossos atos de fala" (1994, p. 39). Ela não deve ser vista como um "paradigma" ou um "esquema conceitual", não deve ser identificada a uma "estrutura ou matriz prévia" cuja característica principal é de fundar "logicamente" os "atos de fala concretos e empíricos". Para esse autor, a linguagem é indissociável daquilo que fazemos enquanto falamos, assim como aquilo que fazemos e falamos é indissociável da linguagem. Nesse conjunto pragmático da linguagem como comportamento, não há elemento isolável da forma de vida na qual a linguagem se exerce e dentro da qual se pratica.
Tudo isso concorda plenamente com o princípio wittgensteiniano de que "o sentido de uma palavra é o seu uso na fala" (Wittgenstein 1953, § 43) ou de que "falar uma linguagem é parte de uma atividade ou de uma forma de vida" (ibid., § 23). Ou seja, se uma criança se machuca e chora, então os adultos logo lhe vêm ao socorro, ensinando, por meio da própria fala e do próprio comportamento, nesses casos, a fazer exclamações e, logo depois, a formular sentenças que expressam "dor": o compor tamento dos adultos incute nessas crianças, na realidade, um novo comportamento de dor (ibid. § 244), um comportamento em que a expressão "sentir dor" tem sentido. O comportamento natural do choro é incorporado à prática social do uso de exclamações e palavras que exprimem aquela sensação, e este se torna o jogo de linguagem de expressão de dor. Uma pessoa entende que a outra sente dor se ela utilizar certas exclamações e palavras previsíveis, e entende melhor ainda se estas vierem acompanhadas de certo comportamento previsível. As palavras e o comportamento fazem parte do mesmo jogo, e são, depois de um certo tempo, inseparáveis: uma coisa está relacionada a outra pelo processo de aprendizagem socialmente imposto, pela maneira como os adultos ensinam às crianças novas maneiras de expressar a dor, além do choro.
Contudo, a psicanálise pragmática concorda com os princípios wittgensteinianos da linguagem como comportamento somente até este ponto: até o ponto em que o sentido de uma palavra é o seu uso na fala ou na linguagem. Todas as outras implicações do que significa "seguir uma regra", para Wittgenstein, são deixadas de lado a favor da preponderância da "intencionalidade", da "interpretabilidade" e do "uso pragmaticamente consagrado", focalizados especialmente pelas filosofias de Davidson e de Rorty. As conseqüências wittgensteinianas da idéia de "seguir uma regra", porém, muito pouco têm a ver com "interpretar".4 Existe, claro, uma inclinação para dizer que toda ação feita conforme uma regra é uma interpretação da regra. Como poderíamos saber o que fazer quando há dúvida se um novo caso se aplica? Como resolvemos, no xadrez, se uma jogada está ou não correta? Como decide o juiz, no futebol, se o impedimento que seu auxiliar lateral acena com a bandeira é realmente aplicável? Aparentemente, só poderíamos saber quando há conformidade ou não, se interpretamos a regra. Na realidade, porém, "interpretar a regra" e "seguir a regra" são duas coisas diferentes: a interpretação pressupõe o sentido, dado no uso. Por isso, como diz Bloor, "a interpretação não é o processo que gera o sentido: é uma transformação" (1997, p. 18). A interpretação de um poema atesta o que diz o poema, mas em outra ordem e com outras palavras. Interpretar é traduzir, como bem enfatiza Davidson, passar de uma língua para outra. Embora seja certo que seguir uma regra envolve, em muitos casos, o acompanhamento da interpretação, isto não pode ser verdadeiro todo o tempo, já que o próprio processo de interpretação tem também o caráter de um seguimento de regra. "Interpretar" não poderia ser mais que substituir a expressão de uma regra por outra, e, por esta razão, Wittgenstein sentenciou que a interpretação não é a regra, é uma espécie de construção "suspensa no ar" (1953, § 198). Seguir uma regra, por outro lado, é, simplesmente, obedecer a uma prática (ibid., § 201).
O motivo da recusa da interpretação como fator de decisão do sentido no seguimento de regras segue-se do fato de que esse tipo de solução criaria um lapso ou um espaço em branco entre a ação (a obediência à prática de uma regra) e a sua interpretação (sua tradução). Esse vácuo logo seria ocupado por uma ilusão platônica denominada por Saul Kripke "paradoxo wittgensteiniano" (1982, pp. 7-54). Esse paradoxo, enunciado no § 201 das Investigações Filosóficas, consiste na conclusão de que uma regra não pode determinar nenhum modo de agir, pois todo modo de agir pode ser feito em conformidade ou em contradição a uma regra. O ponto é que a tentativa de eleger uma "interpretação correta" da regra coloca-nos diante do fato de que, ante um comportamento lingüístico, teremos um número infinito de regras que poderia dar conta da mesma ação, inclusive regras contraditórias entre si. Resolver o paradoxo significa evitar a interpretabilidade. Como diz Wittgenstein, "há uma concepção de regra que não é uma interpretação..." (1953, § 201). Vejamos a questão com mais detalhe.
Comecemos por observar que, embora o sentido sempre esteja relacionado a um uso, não é verdade que o uso sempre tenha um sentido. Há usos desviantes de palavras, existem absurdos, naturalmente, contra-sensos, expressões sem sentido. A sentença "o sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem" nada esclarece sobre o "sentido", se deixarmos de lado o aspecto normativo do seguimento de regras. O uso, em si, não ocasiona o sentido, simplesmente, porque pode haver uso correto e incorreto de uma palavra. Dizer "parabéns" para a viúva no funeral é uma espécie de uso sem sentido de uma condolência ou então uma amostra de uso sem sentido de uma congratulação. Restar "4" da subtração de "10 - 5" é uma aplicação incorreta, portanto, sem sentido, da regra simbolizada na aritmética pelo sinal "-". Em outras palavras, usos e costumes são estabelecidos em conformidade com uma "gramática", isto é, com uma série de procedimentos socialmente constituídos que regulam a correta aplicação de um termo ou de uma maneira de atuar. As maneiras de assentar e dirigir palavras, os cálculos e as aplicações de símbolos matemáticos, tudo o que faz parte de um jogo de linguagem, pauta-se por "regras". Os pais ensinam comportamentos corretos aos seus filhos aplicando regras: "- Não se usa gritar quando se quer dar um passeio no parque, o costume é pedir educadamente, utilizando certas palavras, e saber aceitar a decisão quando a resposta for negativa". Os erros de procedimento, nesse jogo de linguagem, são imediatamente corrigidos pelos adultos, até que a aplicação se torne um hábito incorporado pela criança, e as regras não sejam mais explícitas. Por conseguinte, "uso" não se identifica imediatamente com "sentido", de maneira que se possa fazer a substituição de um termo pelo outro. Não é possível estabelecer a equação "uso igual a sentido". Deve haver, necessariamente, usos "sem sentido" de palavras na linguagem para que a definição acima possa ser divisada e, assim, ganhar claridade. Quer dizer, sua clareza surge da normatividade e do contraste com as más aplicações das regras. Portanto, só podemos dizer que o sentido das palavras é o seu uso na linguagem se houver normatividade, se houver sentido em pensar num espectro de aplicações corretas e incorretas de termos e de comportamentos.
No entanto, se estabelecermos que as regras têm um componente normativo, não seremos levados a pensar que elas também determinam o sentido das palavras em última instância? Que sentido haveria então em falar de boa e má aplicação de jogadas de xadrez, de procedimento correto e incorreto de maneirismos à mesa, de expressões adequadas de pesar, de formas pré-fabricadas para relatar sonhos, de modos apropriados para cumprimentar um amigo, de "regra fundamental" na psicanálise, se não forem as regras que determinam o "uso", e, em conseqüência, o "sentido"? Em outros termos, existiria "normatividade" sem "determinabilidade"?
Vamos admitir, em função do caráter normativo das regras, que elas sejam determinativas do comportamento. Dessa forma, se aprendo, por exemplo, uma regra de adição, como "a soma de `+ 2' a um número n dado, resulta `n +2'", não preciso ler a regra da adição todas as vezes em que o caso se apresenta. Não preciso, depois de um certo tempo, que alguém me advirta sobre a maneira correta de proceder. A aplicação será automática e imediata, e, depois de um número finito de exemplos, posso aplicar infinitamente, e sem erro, a mesma regra. Sempre saberei, automática e imediatamente, que 100016 vem depois de 100014 na série dos números naturais pares, sem nunca ter somado "+ 2" ao pé da letra, em minha mente, até a essa altura do conjunto.
Aparentemente, é esse caráter infinito do uso correto das regras que possibilita a suposição de que a mente "interpreta" imediatamente a regra e aplica-a, sem erro, a cada nova instância. Invocar uma regra, nesse sentido, seria apenas uma interpretação instantânea, imediata, de uma regra, que nos auxilia a utilizá-la corretamente cada vez que um novo caso se apresenta. Esse seria o motivo pelo qual nunca "nos esquecemos" das maneiras adequadas de cumprimentar amigos e das palavras certas para usar nesse momento, assim como nunca "nos esquecemos" da ordem dos números pares, mesmo na sua milionésima aplicação. Teríamos, portanto, como conclusão, que a "interpretação instantânea" é o elemento determinativo, a última instância antes do próprio jogo, não as "regras", da própria aplicação correta das regras.
Sem embargo, duas objeções ocorrem neste ponto. A primeira refere-se ao problema do regresso infinito. Se tudo o que temos a respeito de "seguir uma regra" é a sua "interpretação instantânea", por que deveria ser justamente esta interpretação a "última palavra mental" a respeito das regras a que se refere? Por que não poderia haver outra "interpretação" a respeito da "última interpretação"? Ou, por que uma intuição mental seria preferível a outra visão interna imediata? Como poderia a mente decidir internamente, por si mesma, em qual interpretação parar? Não haveria, aparentemente, nenhum fator concreto para assegurar que outra interpretação não pudesse ser a última. Nada impediria o regresso infinito de "últimas interpretações", caso imaginemos que "seguir uma regra" seja uma questão de "intuição interna". Como conclusão, não temos nenhuma possibilidade de imaginar, para além de qualquer objeção possível, que as regras determinem o comportamento e induzam à normatividade. Se para isolar uma regra de sua aplicação prática, da sua concretude vivencial, do seu uso, do hábito e da instituição social, necessitamos interpretá-la ou ter uma intuição interna imediata, o mentalismo, como interpretação instantânea da regra, cai num indesejável regresso infinito (Wittgenstein 1953, § 198).
A segunda objeção refere-se ao paradoxo do seguimento da regra: mesmo que a intuição imediata da regra fosse totalmente transparente e inobjetável, mesmo que o regresso infinito pudesse ser retido por uma espécie de gatilho automático disparado pela "interpretação verdadeira", e a "interpretação verdadeira" representasse a presença em si da própria regra, o caroço da determinação, a sua própria "essência", para usar figuras mais radicais, ainda assim não haveria como fazer uma ponte discursiva entre a regra e a ação. Outra vez, nada garante também que uma ação não resulte da aplicação de regras diferentes ou conflitantes, pois uma mesma ação pode, sem nenhum problema, justificar-se por qualquer outra regra. A noção de conformidade ou conflito com a regra se torna, por isto, automaticamente nula. Como no exemplo de Kripke, uma pessoa fazendo cálculos de adição pode estar usando a regra "neis" e não a regra "mais" (correspondente ao símbolo "+"), como poderíamos ingenuamente inferir pelo comportamento. A regra "neis" é em tudo semelhante à regra "mais" quando os números da adição são menores que "57", mas não quando são maiores que esta cifra (1982, pp. 8ss).5 Um comportamento, uma maneira de agir não torna transparente a regra que a determina. A tentativa de isolar a regra como a essência da determinação não pode ser senão uma quimera, uma ficção criada pela vontade de encontrar algum elemento da realidade que possa responder inequivocamente pelo comportamento.
Procurar o sentido de um comportamento lingüístico nada tem a ver com "interpretar", pois não há nenhum padrão de determinabilidade mediante o qual se possa prever a correta aplicação de uma regra. Nada disso, porém, significa que não haja uma determinabilidade (uma compulsão ao seguimento de regras) ou que não haja uma normatividade (uma maneira correta de seguir a regra).6 Os problemas do regresso infinito e do paradoxo resolvem-se se, em vez de concebermos a normatividade e a determinabilidade como certas refinações platônicas ou mentalistas, pensarmos que são instituições sociais. Como tais, essas concepções devem ser suficientemente vagas para serem precisas. A tentativa platônica de enrijecimento do conceito torna-o, neste caso, inexato em sua aplicação. A normatividade pressupõe um treinamento em um costume ou prática. O sentido das palavras é um fenômeno social, não pode ser separado do seu aspecto comunitário. Um indivíduo isolado, que nunca teve contato com uma comunidade, não pode seguir regras. O comportamento é ajustado e afinado pela vivência comunitária, ali se exerce a coerção normativa. A regularidade do comportamento lingüístico e o acordo comunitário na ação são, por esse motivo, a base dos jogos de linguagem. Não se trata, porém, de um acordo de opiniões, de que as pessoas pensem de maneira igual, mas, como diz Wittgenstein, de um acordo de formas de vida, um acordo no uso da linguagem (1953, § 241). Dessa forma, a regularidade do comportamento, a atitude governada por regras num jogo de linguagem é objetiva precisamente quando a concebemos como instituição so-cial, já que assim ela é livre dos impulsos e caprichos individuais, sem precisar ser concebida na forma de uma reificação teórica. As disposições idiossincráticas são refreadas pela norma cultural. Mas a expressão "norma cultural" não é nada mais que um conceito impreciso cujas fronteiras estão dissolvidas em formas de vida. Ninguém pode postular-se como garantia oficial da norma, já que a decisão sobre o que é ou não correto não depende do indivíduo nem de uma interpretação. A objetividade da norma deriva somente da harmonia das ações e juízos da comunidade de agentes.
A determinabilidade das regras tampouco é uma especialização mental ou a face visível da imanência da própria regra. As regras não são externas ao comportamento, nem o ocasionam desde algum lugar do espaço. O caráter mandatório do seguimento de regras provém da formação de um hábito, do aculturamento, da incorporação de uma "segunda natureza" acima da predisposição particular do indivíduo. Esse aspecto de aculturamento é o que torna "cega" a obediência.7 Seguimos regras, o mais das vezes, quase sem pensar, não é preciso refletir cada vez que um caso se apresenta, para que o uso de uma palavra se aplique corretamente. Ouço um grito de socorro vindo de dentro de uma casa, e imediatamente me predisponho a ajudar. Assim fui ensinado pela cultura que me formou. Quando sou recebido com gentileza, imediatamente retribuo a deferência com sorrisos e palavras de amizade. Procuro livros na biblioteca pela ordem numérica do seu assunto e pela ordem alfabética do sobrenome do autor. Tais ações só são interrompidas se um problema ou alguma coisa sem sentido surgir ou for percebida na ação. Se uma pessoa diz "- Estou muito triste", e recebe como resposta a pergunta "- Quantos graus tem a sua tristeza?", interrompe-se imediatamente o curso da ação. A expressão "estou muito triste" não se refere a um estado interno da emoção que pode ser medido em graus, embora o advérbio de intensidade possa conduzir a essa inferência desviante. A expressão é normalmente usada como forma de demanda de amor ou de carinho. A resposta só poderia ser a aceitação ou a recusa da demanda. Uma resposta estranha paralisaria o curso da ação. O pensamento da ação, que também a neutraliza, denota um problema, uma divergência qualquer. O conflito convoca a interpretabilidade e cria um vácuo entre a regra e a ação. Nesse sentido, o caráter compulsivo das regras pressupõe o indivíduo que já superou o processo de aprendizado, que já passou pelo treinamento e sabe desempenhar sem entraves o que pretende fazer. Este utiliza a gramática por hábito, não por teorização ou pelo exercício aplicado da razão. As regras não aparecem porque foram incorporadas; elas não precisam ser forçadas pelo raciocínio, trata-se de uma compulsão psicológica e não lógica (ibid., §§ 140, 231). Somente na esfera da fase de aprendizagem é que surgem as justificações e as interpretações. São jogos de linguagem do ensinamento. Na esfera da mestria, no entanto, a pessoa age sem precisar de razões (ibid., § 211), pois não há justificativas completamente plausíveis para a ação. Wittgenstein lembra que quando as justificativas se exaurem, nós já atingimos a pedra no fundo do solo e a pá entorta; nesse momento, somos inclinados a dizer: "isso é o que eu faço" (ibid., § 217). O seguimento de regras não pressupõe nenhuma racionalidade prévia, pertence integralmente ao mundo prático.
O ponto que desejo remarcar, em função desses argumentos, é que, entre a perspectiva pragmática de Wittgenstein e a via escolhida pela versão pragmática da psicanálise, esta última ainda aparece como uma proposta ainda obstinada pela teorização, como uma forma atenuada de mentalismo descritivo e de racionalismo; ela ainda tenta encontrar, tal como uma vítima desavisada do uso desviante de algumas palavras na linguagem ordinária, um elemento decisivo para enquadrar a normatividade e a determinabilidade numa ação racional. Para a psicanálise pragmática, as ações devem ser justificadas. Mas ao assumir tal pressuposto, ela confunde, na realidade, sintoma com critério. Esse tipo de embaralhamento é usualmente induzido pela pergunta "como você sabe que é o caso?" (Wittgenstein 1958, pp. 24-5). A resposta, dependendo do jogo de linguagem, algumas vezes é dada pela apresentação de sintomas ou pela apresentação de critérios. Se um médico aprender que uma inflamação na garganta tem como característica o inchaço das amígdalas, a dor, a supuração e a presença de um bacilo, e que a prescrição dever ser de antibióticos, então diante da pergunta "- Como você sabe que era uma inflamação na garganta?" -, vai apresentar seus critérios: inchaço nas amígdalas, produção de pus e a presença de um bacilo. Se ele disser, porém, que a febre era um sinal de inflamação na garganta, esse será um sintoma, não um critério. A diferença entre os dois é que o sintoma estabelece uma conexão não necessária entre dois eventos. A febre pode ser tanto pela infecção na garganta, quanto por uma infecção no ouvido ou em qualquer outra parte do corpo. Portanto, quando utilizamos critérios não saímos do plano da manifestação do fenômeno, da sua visão de aspecto, e quando utilizamos sintomas, procuramos o que está oculto por detrás da aparência empírica, a sua causa remota e não vinculada logicamente ao mesmo campo semântico. Os critérios são as características presentes na própria manifestação, enquadradas pela gramática numa conexão lógica, enquanto que os sintomas são hipóteses, inferências, elementos que não estão presentes no que aprendemos a ver no fenômeno. O sintoma corresponde a uma produção de teoria, o critério é parte de uma prática já consolidada. Parece-me que a psicanálise pragmática, diante da resposta em que o sujeito apresenta sintomas em vez de critérios, substitui o aparente pelo oculto ao postular causas de comportamento. Tomar razões como causas induz, por outra parte, a postular também o mecanicismo das ações intencionais, o que retira imediatamente o privilégio da primeira pessoa. Não é mais alguém, Maria, Pedro ou João, quem faz as coisas, mas uma coisa faz-se por seu intermédio, causadas por uma hipótese: redes interiores de crenças e desejos.
O sujeito e a psicanálise do pragmatismo
O reducionismo lingüístico praticado pela psicanálise pragmática não é do mesmo tipo que o praticado por Lacan, a redução da linguagem a seus aspectos formais com fins de objetivização da teoria. No caso de Lacan, a linguagem é escolhida propositalmente como um terceiro elemento, o que torna, como já mencionei, a sua concepção uma forma de externalismo indireto. O reducionismo da psicanálise pragmática é interno à sua própria concepção de linguagem e provém da ênfase que atribui à utilização de conceitos pragmáticos. Dessa forma, permanece menos visível por causa dos seus artifícios retóricos. Dado o fato de que agora lidamos com uma teoria externalista e direta, pode-se divisá-lo apenas no deslize de uma argumentação que sustenta não haver fatores epistêmicos privilegiados, mas que elege, por outro lado, um candidato a modelo da ação. Em Lacan encontramos um problema de estratégia fácil de detectar, porque o conjunto de operações e procedimentos escolhidos para compor uma teoria dessubstancializada é autocontraditória. Trata-se de uma ilusão gramatical proveniente da fixação de um ideal de linguagem (cf. Almeida 2004). Na psicanálise pragmática, no entanto, o problema não é de estratégia, mas do manejo do instrumental escolhido para a operação: as ferramentas são as apropriadas para o que se almeja atingir, uma dessubstancialização lingüístico-pragmática da metapsicologia, que, porém, foram utilizadas de maneira incorreta de acordo com os seus próprios propósitos. Isso quer dizer que se, por uma parte, os elementos que a teoria elege como fatores determinantes e normativos da ação não se destacam nem se isolam da própria ação, por outra parte, o peso e o realce impressos a tais elementos frustram totalmente o resultado final. Quando Marcia Cavell diz que "a subjetividade é uma propriedade relacional" ou quando Jurandir Costa esboça o "sujeito" como "uma descrição em termos de crenças e desejos", não estão pretendendo dizer que existe na realidade um objeto chamado "subjetividade", uma coisa denominada "crença" e um pedaço da rede mental correspondente ao "desejo" (Cavell 1993, p. 117; Costa 1994, p. 21). Não há substancialização: essas "realidades" nada mais são que maneiras de descrever a ação; numa palavra, são descrições, partes de uma atividade lingüística. Quanto a isso, tudo parece perfeito e adequado. As descrições estão apenas demarcando parâmetros conceituais, como pontos orientando as coordenadas de um campo a ser medido. A existência desses pontos permanece enquanto servem a uma função e são inconcebíveis de maneira separada do terreno demarcado. Não obstante tais cuidados, "desejos" e "crenças" são logo subsumidos em "razões" consideradas suficientes para descrever a ação como evento sempre inteligível. Em suma, para a psicanálise pragmática, as ações humanas ou os eventos mentais, sob descrição, são sempre racionais.
Por que a psicanálise pragmática se compromete com a racionalidade das descrições psicológicas? À primeira vista, tudo indica que a razão desse compromisso pertence à própria essência lingüística das descrições de motivos e razões: elas devem ser de natureza lógica e necessária, à diferença das descrições empíricas, que são sempre contingentes. Todavia, o verdadeiro motivo não é esse, já que, como vimos, não há compromisso lógico entre uma ação e sua justificação: cada descrição de uma ação, cada racionalidade, cada interpretação, é uma ação diferente da ação em foco. A razão do compromisso entre as descrições psicológicas e a racionalidade das ações provém de uma ênfase filosófica distinta na própria concepção comportamental da linguagem, ao deslocar os marcos interpretativos da conduta, manifestos ou aparentes no mesmo plano da ação, para a sua interpretação, criando teoria em lugares que a prática já se justifica por si mesma. Tal deslocamento induz à concepção de que a linguagem das ações e eventos mentais tem, como característica intrínseca, a racionalidade. Interpretar é fornecer as razões de uma conduta. Tais razões, no caso de atos irracionais, por exemplo, são buscadas não mais no que é manifesto ou aparente na ação. Nesses casos, a interpretação deve buscar razões de fundo, razões encobertas, e deve, por conseguinte, tentar entender por que, às vezes, as pessoas agem sem justificativas ou mesmo sem querer fazer o que sabem que fazem.
O peso desse compromisso com a racionalidade torna-se tão grande, que esses autores são obrigados a reincorporar na filosofia da linguagem uma idéia antiga,8 com uma nova faceta: entender que "razões" também são "causas". Em outros termos, por causa da injustificabilidade da conduta, eles postulam que as relações entre desejos e crenças são "determinações causais". Cavell e Costa entendem que a vantagem dessa solução é dessubstancializar o inconsciente freudiano e poder dar conta da idéia de "subjetividade" e de tratamento clínico de problemas psicológicos sem se comprometer com a reificação dos fatos. No entanto, é possível demonstrar que se trata, na realidade, de confusão conceitual. Mistura-se novamente a descrição psicológica com a descrição de objetos e escorrega-se do plano do aparente para o plano do oculto. Abandona-se também o privilégio de primeira pessoa, presente nos atos dos quais só há sentido em dizer que são praticados por um determinado alguém. Os atos causados por conexões involuntárias são mecânicos ou, na melhor das hipóteses, são reflexos, deixam de ser atos de uma pessoa determinada. As próprias conexões, declinadas em terceira pessoa, passam a ser os reais responsáveis pela ação do indivíduo.
Na apresentação de seus argumentos, Cavell e Costa pretendem postular um "eu" relacional e subdividido para escaparem da armadilha auto-imposta pela teoria de Lacan (Costa 1989, pp. 149-171; 1994, pp. 13-21; Cavell 1993, pp. 113-115, 169-70, 220-221). Para esses autores, a "divisão" da subjetividade não é causada pela intervenção de uma estrutura rígida e indiferente, cujo efeito é repartir em pedaços uma experiência pré-lingüística enquanto cria uma espécie de infinita fascinação pelo eternamente "Outro" (Cavell 1993, p. 220). Para ambos, a divisão da subjetividade só acontece ocasionalmente, como resultante de "conexões causais" entre laços incompatíveis de crenças e desejos; não como a intervenção instantânea e evanescente do "sujeito do inconsciente" no "eu imaginário", como parece sugerir Lacan (1966a, p. 53). Quando Lacan concebe a linguagem como um terceiro elemento, como poder determinante exclusivo dos fatos do mundo, vê-se obrigado a pensar a subjetividade como uma espécie de "espaço de reserva" em relação à potestade lingüística. A subjetividade não é a estrutura, é o que resta dela por efeito retroativo imaginário quando o sujeito tenciona preencher uma lacuna simbólica. Entretanto, a subjetividade é estruturalmente marcada na medida em que se coloca como o alvo inconsciente ao qual se dirige a pergunta "- Quem sou eu?" e "- O que queres de mim?" (Lacan 1966b, p. 815). De fato, o propriamente humano em Lacan parece ser essa revolta sempre latente, a possibilidade de ocasionar um contrapoder suficiente para dizer "não" e recusar-se a cumprir um destino que, de qualquer modo, será imposto de maneira inexorável. Desse ponto de vista, não só a linguagem aparece como uma estrutura impessoal e indiferente, a subjetividade também, como conseqüência, aparece separada da linguagem. Isto é, se a linguagem é um terceiro elemento, o sujeito também é, necessa-riamente, alguma coisa à parte. Cavell e Costa não aceitam essa solução. Para eles, não se dá o caso de que a ordem simbólica, por um lado, possibilita-nos o pensamento, a consciência, a capacidade de falar em primeira pessoa e dar articulação expressiva às demandas, e, por outro lado, aliena-nos da "verdade", do "real", do próprio "simbólico" e do "desejo", definitivamente perdido no mito da experiência de totalidade imaginária. A entrada no simbólico não cria a divisão aparente versus oculto, na qual, por detrás da demanda dirigida ao "Outro", esconde-se um desejo para sempre inalcançável pelos efeitos da linguagem. Para a psicanálise pragmática, o "eu" é dividido pela própria rede de relações que se estabelecem entre desejos e crenças, as quais podem provocar ações contraditórias, mas que são contraditórias somente em aparência. Na consciência teórica da psicanálise pragmática, supostamente nada há de oculto, nem de es condido, nem para sempre alienado. A divisão da subjetividade, embora seja um efeito lingüístico, não é, estritamente falando, um efeito da linguagem. Sem poder ser uma entidade à parte, a linguagem é apenas o meio no qual existem "eventos mentais". Portanto, a subdivisão da mente pretende ser, mais propriamente, um resultado da complexidade das relações entre entidades descritivas como "crenças" e "desejos". A ordem simbólica, a cadeia significante, não divide nem aliena ninguém; porém, as ações que o sujeito comete na sua história de vida, a série de descrições entrecruzadas, por vezes confusas e contraditórias, são, para os autores, suficientemente complexas para formar um emaranhado de caráter aparentemente ilógico, costurado por atitudes que não se coadunam com outras crenças, desejos e ações, até que uma redescrição esclareça uma ordem adequada das relações descritivas no decurso de uma história.
Como se nota, a psicanálise pragmática não pretende separar o patamar da ação do patamar da linguagem: as coisas acontecem conjuntamente. "Crenças" e "desejos" não são nem "entidades mentais", nem "eventos mentais" (Cavell 1993, p. 61). São, na verdade, realidades lingüísticas capazes de serem postas em correlação numa atividade descritiva, para interpretar uma ação intencional como ocasionada por esses fatores. São apenas partes constituintes da descrição de um comportamento.
Uma razão para um comportamento é o nome dado à relação estabelecida entre crença e desejo pela descrição ou interpretação (ibid., p. 58). Uma crença pretende ser a descrição da atitude de sustentar como verdadeira uma evidência de que o mundo ou um estado de coisas é tal como ali se representa. Um desejo representa a descrição da atitude de fixar um objetivo a ser realizado. Não se imagina o desejo, nessa perspectiva, como algo distinto do seu "objeto" ou do seu "objetivo". O desejo é somente a eleição de uma meta, visa à realização de alguma coisa. O movimento desencadeado pelo desejo é necessariamente consecutivo à crença, e a ligação lógica entre esses estados mentais é estabelecida de imediato pela linguagem. A crença se liga ao desejo porque não haveria apresentação de finalidade sem evidência de "verdade" para a sua consecução.
Deve-se observar nessa definição dois importantes pontos: o primeiro ponto é que não há concepção de "crença" e de "desejo" como eventos empíricos ou estados separados de uma ação porque, pela tese neopragmática, estados mentais não são acessíveis por introspecção. Daí a inexorabilidade da sua conexão lógica e do fato de ela ser necessária e incontingente. O segundo ponto, contudo, é que Cavell faz reaparecer precisamente sobre essa conexão o sentido de qualquer ação; em outras palavras, para ela, o significado de uma ação desloca-se da ação para a sua razão, para a conexão entre crença e desejo. Porém, uma vez aceitos esses argumentos, a definição davidsoniana nos coloca numa escala diferente com relação à concepção de sentido como "uso de palavras de acordo com regras". O acento colocado pela psicanálise pragmática cai na razão, aceita como um dos componentes descritivos da ação. A melodia é a mesma, no entanto percebe-se outro andamento. Cavell é consciente disso, e ilumina imediatamente suas diferenças com Wittgenstein (ibid., pp. 59-66, 71-74). Não obstante, resgatar a idéia de "ações intencionais inconscientes", e postular, em seguida, a possibilidade de entender a subjetividade ou a "mente" como um sistema subdividido em compartimentos estanques, parece ser, para a autora, uma oferta imperdível. Se para Wittgenstein há uma diferença entre a maneira como são explicados os eventos físicos e a maneira como são descritos as razões e motivos, para Cavell, basta apagar essa diferença com o argumento de que se trata da mesma ontologia (ibid., p. 61). Por isso, nenhuma diferença haveria entre empregar a palavra "causalidade" num ou noutro tipo de elucidação (causal ou motivacional). Mediante essa perspectiva, mesmo as ações inconscientes poderiam ser justificadas - numa interpretação posterior. Recupera-se, nessa base, uma teoria da clínica e uma idéia de psicanálise aparentemente impossibilitadas pela crítica wittgensteiniana.
Embora, nos textos de Costa, a influência davidsoniana tenha sido filtrada pelas lentes de Rorty, esse autor também entende que a psicanálise consiste fundamentalmente em "redescrições". O "sujeito" é aquele que "aprende a se descrever e a descrever outro sujeito de maneira lin güística peculiar" (Costa 1994, p. 22). Essa "maneira lingüística" é pe-culiar porque as palavras que se usam para relatar um comportamento não têm referentes, exceto as próprias palavras e as proposições que o circunscrevem. Crenças e desejos são realidades lingüísticas utilizadas para narrar um comportamento como uma ação intencional. Costa acrescenta: "Diferentes de fatos que dizem respeito ao corpo, os acontecimentos subjetivos são passíveis de interpretação em termos de ´intenção´". Donde a conclusão de que qualquer comportamento lingüístico pode ser justificado (ibid., p. 22). Diante da pergunta "- Por que você fez isso?" -, o sujeito pode responder: "- Fiz isso porque visava a tal finalidade". A finalidade é o objetivo da ação, e o objetivo da ação é o nome do desejo. O sujeito, portanto, é, a seu ver, "um tecido de quadros lingüísticos coerentes que são causas ou razões, conscientes ou inconscientes, de nossas ações ou estados psíquicos" (Costa 1995a, p. 44). Pela terapia psicanalítica, a "rede de crenças e desejos, que é o sujeito, começa a retecer-se" (Costa 1994, p. 52). Os fios da conexão entre os nós das crenças e dos desejos são dispostos de outra maneira em função do "diálogo" na clínica, na qual novas causas e justificativas podem ser criadas (ibid.). O que faz a psicanálise? "Psicanálise não faz análise de conceitos; faz análise dos sujeitos e seus desejos. Seu objetivo é o de entender como se formaram crenças e que crenças justificam a descrição que o sujeito dá de si, de modo a sentir-se infeliz, inibido ou paralisado diante dos seus Ideais de Eu" (ibid., p. 53).
Razões como causas
O sentido de um comportamento é a razão de sua ação, e uma "razão", mais que uma ação, é uma interpretação. Neste caso, é o entrelaçamento descritivo entre crenças e desejos. No entanto, para a psicanálise pragmática, a demanda de análise começa por ações que não fazem sentido. O motivo do sofrimento é, basicamente, não entender a razão de certas atitudes. O sujeito não entende o que faz ou não entende o que lhe ocorre. Uma vez descobertas as "causas" de certos comportamentos ou, por outra, uma vez descobertos os entrelaçamentos que conformam o desenho de uma rede particular de crenças e desejos, o sujeito pode, para a psicanálise pragmática, inventar uma nova narração de si, refazer a sua biografia e apagar seu sofrimento, afinal de contas, baseado em evidências inadequadas à ação. Podemos dizer, então, que a finalidade da análise, para nossos autores, é recuperar o sentido de ações tidas como "irracionais".
A autoridade e o valor dados à "redescrição", na atividade clínica, ressaltam uma das diferenças essenciais entre os pontos de vista de Davidson e o de Wittgenstein. Para Davidson, existem ações intencionais, mesmo que elas não tenham sido descritas. Digamos assim, uma ação intencional ainda não descrita é aquela que pode aparecer como "irracional" num comportamento em que crenças e desejos não se coadunam coerentemente. A situação é bastante similar à opinião manifestada por Einstein diante do comportamento não-causal das partículas subatômicas. Como ele se recusava a aceitar a indeterminação preconizada por Heisenberg, achou que o problema era apenas de tempo e de dificuldade para encontrar a suposta "variável oculta". O elemento escondido por detrás das aparências, na filosofia de Davidson e de Rorty, é a "razão" das atitudes irracionais. Uma vez recuperado o sentido da ação intencional, a sua razão real, ela deixa de ser "irracional". A pergunta que separa o novo do velho pragmatismo é: como pode existir uma ação intencional ainda não descrita, ainda não interpretada, uma ação intencional ainda "fora da linguagem"? A resposta, tanto em Davidson como em Rorty, é dada pela introdução de um elemento mecanicista no jogo de linguagem da descrição de comportamentos.
Como é possível realizar esse deslocamento? Obviamente, nenhum desses autores confessaria a existência de qualquer elemento, evento ou realidade extralingüística, embora haja realidades não-lingüísticas na linguagem, como pedras, árvores ou estrelas. Assim como Wittgenstein, esses autores reconhecem que há distintas maneiras de descrever a mesma realidade (Cf. Davidson 1980, pp. 3-21, 149-62, 207-225; Rorty 1991, pp. 113-25). Posso descrever, por exemplo, a bofetada de Clara em Pedro como uma ação intencional, relacionando crenças e desejos que conformariam uma razão para essa atitude, assim como posso descrever a ação do ponto de vista estritamente neurológico, em termos da capacidade cerebral de transmitir ordens eletrobioquímicas causadoras de reações emocionais que, por sua vez, comandam o movimento dos braços de uma determinada maneira. Não há diferenças hierárquicas entre uma e outra maneira de descrever os fatos, senão uma pura diferença de modo:
(a) a primeira é uma descrição puramente lingüística, e a segunda pretende referir-se ao universo físico não-lingüístico.
(b) O primeiro tipo de descrição é lógico e necessário; o segundo é empírico e contingente.
(c) No primeiro modo, os eventos não podem ser separados da sua descrição, concorrem para formar um só sentido; e nas descrições de fenômenos físicos, os eventos de causa e os de efeito têm sentido independente de qualquer descrição. Isto é, podemos dizer que a bola de bilhar corre toda vez que o taco a golpeia, mas o taco, o golpe e a bola de bilhar correndo têm sentidos que independem da descrição.
(d) A conexão feita entre golpear uma bola e a bola correr, mediante a qual constituímos uma lei de ação e reação, provém exclusivamente da regularidade da observação: nós associamos causa e efeito, no mundo físico, por hábito, não por se tratar de uma necessidade ontológica; nada no mundo garante que sempre teremos o mesmo efeito como resultado de igual causa. Apesar disso, temos a vantagem de que, por outro lado, podemos constituir "leis" que prevejam os acontecimentos empíricos com um grau de precisão excelente. Já os eventos mentais são absolutamente singulares e opacos, nunca se repetem, e nunca posso dizer que o mesmo comportamento resulte da regularidade observada da mesma conexão entre crença e desejo. Não é possível, portanto, instanciar uma lei em relação a eventos mentais ou a eventos psicofísicos.
No entanto, para Davidson, em particular, o fato de não podermos descobrir uma lei que preveja perfeitamente o comportamento racional não é um problema ontológico, é uma limitação própria da linguagem dos eventos mentais. A descrição de uma ação, do ponto de vista intencional, não pode ser vertida em termos preditivos. Isso não quer dizer que a realidade não seja a mesma para os eventos mentais e os físicos, porque, em sua opinião, tampouco há sentido em sustentar a existência de duas ontologias diferentes (cf. 1980, pp. 207-225). O que esse autor denomina "monismo anômalo" é precisamente essa teoria de identidade entre o físico e o mental, combinado com a asserção de impossibilidade preditiva dos eventos particulares. Embora todos os eventos componham o mesmo mundo material, somos lingüisticamente obrigados a usar apenas a forma da racionalidade para eventos mentais e psicofísicos. Esse princípio está exposto no que o autor denominou "caráter nomológico da causalidade", acrescentando que "deve ser lido com cuidado, pois ele diz que quando eventos estão relacionados como causa e efeito, eles comportam descrições que instanciam uma lei. Não diz que todo enunciado singular verdadeiro de causalidade instancia uma lei" (ibid., p. 215).
Se a psicologia não é permeável a formulações em termos preditivos, nas descrições dos eventos mentais vige, particularmente, outro princípio, diferente das descrições de fenômenos físicos. De fato, o instrumento heurístico que afeta a questão do sentido, na linguagem dos eventos mentais, o fator que nos obriga a vincular logicamente as crenças e os desejos a uma ação, e a atribuir sentido ao comportamento de um falante, é o chamado "princípio de caridade",9 operante na "interpretação" (o agente não deve acreditar em proposições contraditórias, a ação realiza-se segundo as melhores evidências possíveis, o agente não age contra o que acredita ser seu melhor juízo, devemos maximizar o número de crenças verdadeiras do agente e diminuir as falsas). Não obstante, do ponto de vista ontológico, a conexão entre as crenças e desejos, por um lado, e a ação, por outro, continua sendo "causal". Não há problema em usar a mesma palavra, porque a natureza dos eventos mentais, por imposição também lingüística, tem a mesma identidade dos eventos físicos.
Para Rorty, entretanto, o uso do jargão causalista na descrição de eventos mentais não é decorrente de um argumento ontológico ou identitário. Para fugir de uma possível armadilha metafísica, esse autor segue um raciocínio mais pragmático e naturalista de que uma "linguagem materialista não-reducionista" previne contras as idiossincrasias das crenças platônicas, religiosas e seus sub-rogados nas formas do empirismo e do idealismo transcendental, ao evitar a eleição de entidades epistêmicas privilegiadas (cf. Rorty, 1991). O que significa ser ao mesmo tempo materialista e não-reducionista? Significa aceitar que é mais natural acreditar que todos os eventos mundanos são materiais, mas, ao mesmo tempo, evitar a redução da compreensão psicológica de eventos mentais a uma explicação física. Comportamentos podem ser descritos tanto em termos neurológicos quanto em termos de razões e causas. Um vocabulário não é tradutível ao outro, naturalmente, e eles são completamente independentes. Entretanto, não há, entre eles, qualquer privilégio hierárquico, e cada qual cumpre a sua própria função. Nesse sentido, a palavra "causa", utilizada nas duas descrições, é apenas o nome de uma correlação observada entre dois eventos. Embora haja diferenças reais entre uma descrição fisicalista e outra psicológica, já que na primeira descrição a causa está ligada à regularidade e comporta previsões, não há, por outro lado, qualquer problema real em utilizá-la na segunda descrição porque os propósitos são totalmente diferentes (cf. ibid., p. 60). Critérios pragmáticos como eficácia, pertinência e uso ordinário, em suma, são os que realmente pesam na decisão acerca da possibilidade de utilizar o jargão causalista para descrever eventos mentais.
Talvez por causa do menor compromisso metafísico, Costa prefere seguir Rorty em vez de Davidson. Em Rorty, o uso de vocabulário mentalista, como crenças, desejos ou mesmo o "eu" (self) não indica mentalismo, mas é parte das regras das descrições psicológicas que correlacionam razões e ações em termos de "causas". Nosso autor ainda acrescenta que preservar a "idéia de que o sujeito é causa interior dos atos de fala" é respeitar "o vocabulário moral ordinário" (Costa 1994, p. 32).
Ações irracionais
O princípio de caridade é não somente o dispositivo que leva a efeito a operação da "interpretação radical", mas também é o ponto de apoio ou suporte das descrições psicológicas. Todavia, tomado ao pé da letra, esse princípio impõe a inexistência prática do que se nos apresenta como "ações irracionais". Não há como ocultar o fato de que grande parte das pessoas em muitos momentos parece não agir segundo a melhor evidência possível. Há todo um amplo espectro de variados exemplos que, à primeira vista, falsificariam os princípios racionais da interpretação radical. As manifestações fóbicas, os ataques de pânico, o comportamento agressivo sem causa aparente, personalidades obsessivo-compulsivas e histéricas que sequer entendem ou estão satisfeitas com suas próprias ações, e que, no entanto, as seguem praticando.
Para defender seus argumentos, Davidson relança em termos pragmáticos a tese freudiana da repartição interna da mente em compartimentos mais ou menos independentes e correlacionados (Davidson 1982, pp. 289-305). Digo "em termos pragmáticos", porque agora já não vale mais a idéia de que são compartimentos "internos" da mente, senão apenas uma explicação das ações intencionais em formulações mais complexas do que poderia alcançar uma aplicação muito simples e direta da interpretação radical. A rede de crenças e desejos que explicam a ação, para dar conta das ações irracionais, deve se tornar bem mais intrincada e complexa. Numa estrutura suficientemente complexa, composta de subsistemas autônomos entrelaçados, as atitudes proposicionais podem ser consideradas como emaranhados difíceis de desenredar. Davidson propõe três hipóteses, em sua teoria, que mantém viva a idéia freudiana do sintoma como uma solução de compromisso entre instâncias mentais em conflito. Essas hipóteses estão apoiadas na tese do "holismo mental"10 e não anulam o seu anterior "princípio de caridade". Diz-nos esse autor (cf. ibid., pp. 290-291) que:
(a) a mente contém um certo número de estruturas semi-independentes, sendo que essas estruturas se caracterizam por atributos mentais como pensamentos, desejos e memórias;
(b) as partes da mente são, em importantes aspectos, como pessoas, não somente por ter (ou consistir de) crenças, aspirações e outros traços psicológicos, mas também pelo fato de que esses fatores podem se combinar, como na ação intencional, para causar outros eventos na mente ou fora dela;
(c) algumas das disposições, atitudes e eventos que caracterizam as várias subestruturas da mente devem ser vistas pelo modelo das disposições e forças físicas quando elas afetam, ou são afetadas, por outras subestruturas da mente.
A concepção de uma mente repartida empresta apoio à idéia de que um desejo pode atuar para inibir outro desejo, mais fraco ou mais recente. Uma ação pode aparecer, por isso, como "irracional", simplesmente, porque uma parte da intencionalidade pode estar em contradição com outra parte. Por exemplo, uma ação intencional de uma subdivisão pode anular a crença na melhor atitude diante da melhor evidência possível, pertencente a outra subdivisão. Assim, o obsessivo não abre a porta enquanto não está totalmente seguro de que a maçaneta foi limpa. O que o paralisa é a crença infantil de que tocar objetos imundos pode desencadear uma punição insuportável. Essa crença, entretanto, muito mais antiga, proveniente do medo de punição na infância, não lhe é consciente.
Redes de crenças e desejos seriam, portanto, preservadas também pela memória, como pensava Freud, e continuariam a afetar outras redes de crenças e desejos mais recentes. Como diz Cavell, "só há irracionalidade contra um fundo de racionalidade, e é a sua descoberta que traz o sentido para o sem sentido aparente" (1993, p. 33). Diante das atitudes proposicionais sempre pode haver um resto sem sentido à espera de uma descrição razoável. Bastaria, para devolver o sentido do comportamento até ali incompreensível, descobrir para a rede uma nova acomodação descritiva. Entretanto, ainda mais importante que tudo, a repartição de Davidson garante para Cavell, em particular, pela afirmação (c), que quando uma ação não encontra razão de ser, como, por exemplo, proceder contra a melhor evidência possível, ela deve ser considerada como uma ação meramente mecânica . Fantasias reprimidas, guardadas pela memória, em redes de crenças e desejos formadas desde a infância, atuam de maneira automática na ação neurótica do adulto (Cavell 1993, pp. 180-91). A ação surge sem razão de ser, como reação, porque uma parte do sistema afeta causalmente outra parte. Em outros termos, enquanto a razão de uma ação não aparece, fica evidente apenas a sua mecânica causal. A linguagem hidráulica de Freud pode ser restabelecida em outra ordem, pensa Davidson, sem perda de conteúdo e de inteligibilidade. Se as razões puderem ser tomadas como causas da ação, e não somente como motivos, contra Wittgenstein, podemos dispensar a condição básica de que motivos sempre são elementos que podem ser confessados. Para Davidson e Cavell, há motivos mecanicamente inconfessáveis. A quebra da condição de confessabilidade reforça, assim, a possibilidade da compreensão racional de ações inconscientes.
Há metafísica bastante
Em 1995, numa elogiosa resenha ao livro Freud: racionalidade, sentido e referência, de Osmyr F. Gabbi Jr. (1994), Costa (1999, p. 31) comenta: "A psicanálise surgiu com a tentativa de dar sentido ao que aparentemente não tinha sentido. Se nos contentamos em afirmar que no solo do ato irracional existe apenas repetição, pulsão de morte ou conceitos equivalentes, em que isso se distingue dos venerandos conflitos metafísicos entre corpo e espírito, paixão e razão, instinto e vontade, etc.?"
A idéia defendida pelo livro de Gabbi Jr. é a de que, para uma linguagem de tipo referencial, cuja função seja denotar as entidades psicológicas internas, como a de Freud, a psicanálise aparece como uma teoria sobre "atos irracionais" vinculada a uma teoria da referência (1994, p. 4). Encontrar a referência última dos atos irracionais permitia a Freud desfazer o aparente contra-senso percebido no sintoma. Uma vez, porém, que a escolha do referente último da análise passou a recair, depois da publicação, em 1920, de "Além do Princípio do Prazer", sobre elementos que obedeciam a um comportamento cego, inteiramente opaco ou não-intencional, como a "pulsão de morte" ou a "compulsão à repetição", essa concepção de análise já não teve mais cabida. Como Freud teria se amarrado à busca do referente último capaz de desfazer os nós sintomáticos, os últimos candidatos a objeto da sua linguagem referencial já não satisfa-ziam seu antigo ideal de análise. Sendo assim, na conclusão de Gabbi Jr., a teoria freudiana não podia mais cumprir com os antigos requisitos empiristas depois de 1920.
Acredito que Costa tenha interpretado o texto de Gabbi Jr. de outra maneira, como que a defender a tese de que se não vincularmos a questão do sentido ao problema da busca pelo referente oculto, manter-se-ia intacta e viva a visão da psicanálise como "teoria dos atos irracionais". Bastaria, para tanto, deslocar a questão da correspondência entre linguagem e mundo, exigida pelo Freud empirista, para a exigência de satisfação na resolução do sentido, de coloração neopragmática. Entretanto, o último parágrafo do livro de Gabbi Jr. coloca em dúvida a validade da dicotomia "racionalidade ou irracionalidade", empregada por Costa em sua descrição. Parece-me que não se trata de deslocar o enfoque ali, mas sim de supor que não podemos escapar ao Princípio de Medéia, a hipótese que estipula não haver ações intencionais no comportamento irracional. Ademais, o livro propõe uma aproximação entre a metapsicologia e a clínica mediante a adoção da teoria dos atos performativos, de Austin, que dispensa completamente a referência a conteúdos (Gabbi Jr. 1994, pp. 221-8). Segundo Gabbi Jr., então, se pensarmos a fala na análise simplesmente como atos, não precisaremos mais supor a sua irracionalidade nem a sua intenção. A dicotomia estaria automaticamente dissolvida. Somente entrariam em jogo as ações do analisando (convencer o analista) e as do analista (fazer fracassar os atos do analisando). Razões, justificativas e redescrições seriam, então, desnecessárias na metapsicologia.
Gostaria de encerrar este artigo colocando em dúvida a eficácia das intervenções antimetafísicas da psicanálise pragmática. Agarrar-se à linguagem ordinária, às razões das descrições, para fugir da metafísica dogmática, não é, necessariamente, escapar. Gordon Baker, por exemplo, adverte que a questão não é eleger o uso ordinário das palavras como "sacrossanto" (2002, p. 301), mas saber como estamos utilizando palavras particulares, tais como "crenças", "razões" e "causas". A maneira como a psicanálise pragmática reabilitou a causalidade no jogo de linguagem dos motivos traz implícito no argumento uma confusão entre tipos de ações diferentes, a própria ação e a sua interpretação, cimentando-a com a idéia de causalidade e de racionalidade. Tipos de ações diferentes misturadas como uma só ação, como diferentes jogos de linguagem numa ilusão gramatical. Suspeito que essa confusão conceitual leve a efeito uma concepção de análise anterior à crítica lacaniana, uma análise que busca motivos por detrás da fala, para além da ação da fala.
A teoria que tradicionalmente busca motivos como "causas" dos comportamentos é a psicologia clássica (cf. Politzer 1928). Se dispensássemos a busca de razões ou causas do comportamento, restabeleceríamos o ideal politzeriano atualizado por Lacan de uma psicanálise sem psicologia. A psicologia faz descrições empíricas, uma fonte potencial de regresso infinito de interpretações acerca da ação. Uma descrição psicológica, tomada sem dogmatismos, não pode ser mais que expressão comportamental. Mas uma interpretação, identificada à ação que traduz, é, na verdade, um interposto metafísico entre a regra e a ação. Algo tão incômodo quanto a metafísica que obstaculiza a sensibilidade de Alberto Caeiro, quando diz: "Há metafísica bastante em não pensar em nada" (Pessoa 1980, p. 39). O ideal, para Caeiro, seria a sensibilidade pura, sem pensamentos.
Se concebermos, por outro lado, que a ação não se justifica, que se trata de um costume socialmente coagido e incorporado em comportamento, o que estará em jogo na análise não será o conteúdo psicológico, mas a apresentação, ao analisando, de outras possibilidades descritivas ou narrações, apenas como um confronto de poderes clinicamente calculado, sem qualquer sugestão de conteúdos. Esse confronto dar-se-ia entre o analisando e o analista pautado pela transferência, isto é, pela regra fundamental da psicanálise: o analisando deve dizer tudo o que lhe ocorrer na mente sem nada ocultar. Ao analista caberia frustrar as figuras da linguagem apresentadas pelo analisando e facilitadas pela transferência: histeria, neurose obsessiva, perversão, depressão, mania, paranóia e/ou esquizofrenia.11 O objetivo será que o analisando reaprenda, sem sugestões por parte do analista, a reatualizar suas expressões na forma de vida que envolve o jogo da psicanálise. Tratar-se-ia de estabelecer um "armistício" entre os poderes incons-cientes envolvidos no jogo, fazendo valer subjetivamente o império da lei por cima das exigências pulsionais e suas contra-reações. A compulsão à repetição não seria mais um entrave: dado que o conteúdo não interessa na análise, a reedição de práticas anteriormente frustradas é sinal de que o analisando ainda não incorporou em hábito uma nova maneira de atuar diante do "outro", uma maneira que, sem submissão incondicional ao poder do outro, saiba alternar entre a consecução das exigências pulsionais e a sua renúncia em proveito de outros ganhos.
Acredito que a teorização sobre a "subjetividade" seja dispensável nessa proposta. Não importa que o sujeito seja um efeito da linguagem, que seja subdividido por redes de crenças e desejos ou descrições em conflito, ou que comporte elementos reprimidos em fantasias guardadas na memória. Desde uma perspectiva filosófica em que a proposição de teorias deve ser reduzida ao patamar minimalista, justamente para não servir de obstáculo para a ação, deveria importar não o que é o "sujeito" ou a "subjetividade", mas somente como as fantasias vão atuar na análise mediante figuras que colocam a linguagem num cativeiro.
Parece-me que trazer a "interpretação" de volta ao seu uso cotidiano implicaria desistir que ela tivesse alguma função explicativa ou justificadora; implicaria colocá-la a serviço da clínica psicanalítica. A interpretação, na prática, ou é um recurso pedagógico ou um argumento contraditório. No primeiro caso, nada resolve acerca da prática que ensina, nada descobre acerca da linguagem que traduz; no segundo caso, está a serviço de outra prática ou costume. A questão sobre os motivos da ação deveria permanecer, por isso, sempre aberta, indecidível, vaga, sem "verdades" a serem desencavadas do solo lingüístico. A metafísica consiste justamente em imaginar essências na existência, ela obstaculiza a ação pelo pensamento, faz com que troquemos o perfume da flor por tentar descobrir o âmago do seu cheiro e abandonemos a experiência sinestésica pela intromissão de atividades desnecessárias. Não tentar descobrir um significado para o sentido, a interpretação ou as regras, é trazer de volta as palavras do seu uso metafísico para o cotidiano. Por isso, deveríamos fazer como João Cabral de Melo Neto quando, ao ser ensinado pelo toureiro, diz que precisamos é trabalhar "com mão certa, pouca e extrema: sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema" (Melo Neto 1973, p. 186). Isto é, não é necessário despir a alcachofra de suas folhas para encontrar sua verdadeira razão de ser (Wittgenstein 1953, § 164). Dessa maneira, evitamos aumentar o mobiliário ontológico com entidades invisíveis e inexplicáveis. A pergunta que caberia dirigir à psicanálise pragmática é "já não há bastante metafísica?"
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----- 1958: The Blue and Brown Books. Oxford, Basil Blackwell.
----- 1961: Tractatus Logico-Philophicus. London, Routledge & Kegan Paul.
----- 1967: Zettel. Oxford, Basil Blackwell.
----- 1972: On Certainty (Über Gewibheit). New York, Harper & Row.
----- 1980: Remarks on the Philosophy of Psychology, v. II. Oxford, Basil Blackwell.
Endereço para correspondência:
João José Rodrigues Lima de Almeida
E-mail: limalme@uol.com.br
Recebido em 19 de novembro de 2005.
Aprovado em 26 de maio de 2006.
1 Deve ficar claro que não me interessa classificar Wittgenstein como "pragmático", como tampouco evitar essa palavra para caracterizar o tom da sua posição filosófica. Meu propósito é apenas sublinhar pontos comuns e divergentes nos pressupostos teóricos de Cavell e de Costa, e não colocar em discussão o rigor de um termo que na realidade é absolutamente difuso.
2 A triangulação davidsoniana não conforma, à diferença da proposta de Lacan, uma mediação indireta entre linguagem e subjetividade. Todas as mediações aqui em causa são compreendidas como inseparáveis da descrição lingüística (Cf. Davidson, 1999).
3 Costa (1994, p. 22) acrescenta: "se aceitamos que os enunciados constitutivos do sujeito são intencionais, aceitamos que qualquer um de seus comportamentos lingüísticos pode ser justificado".
4 Minha interpretação sobre "seguimento de regras" e "significado" em Wittgenstein não é, evidentemente, uma linha exegética acima de qualquer disputa. Sigo a versão de que tais conceitos não redundam em ceticismo e são, na realidade, diluídos em instituições sociais. O que não quer dizer que devemos transformar essa interpretação numa espécie de "antropologia wittgensteiniana", senão que devemos dissolver algumas de nossas irrefreáveis tendências teóricas no "fluxo da vida" (cf. Wittgenstein, 1953, § 124; 1967, § 173; 1980, §§ 504, 687).
5 Nas palavras do autor, essas regras são, respectivamente, "quus" e "plus."
6 Cf. Wittgenstein (1953, §§ 219-242).
7 "Quando sigo uma regra, não escolho. Eu obedeço à regra cegamente" (Wittgenstein 1953, § 219).
8 A idéia de interpretar "razão" como "causa" é platônica, porém, depois de Hume, já estava bem consolidada na filosofia a concepção de que duas coisas ou eventos causalmente relacionados não podem ter entre eles uma ligação lógica, já que, empiricamente, a existência de um não implica a do outro. Como as descrições de motivos e razões têm sempre conexão lógica, não podem ter natureza causal - são dependentes da descrição. Postular o contrário só pode ser feito, parece-me, ao preço de uma espécie de "idealismo".
9 O termo foi cunhado por Norman Wilson, adotado por Quine e radicalizado por Davidson no âmbito da sua "interpretação radical". Cf. Davidson 1984, p. xvii; tb. Evnine 1991, p. 101-105.
10 Davidson incorpora uma tese de Quine, pela qual entende a semântica como parte de uma grande cadeia de influências recíprocas entre a linguagem, a mente e a ação, mediante a qual a expressão de crenças e desejos é inseparável tanto do uso lingüístico quanto da expressão de outras crenças e cumprimento de outros desejos eventualmente correlacionados.
11 Retiro essas figuras psicopatológicas da idéia de atos de fala "infelizes" exposta em Gabbi Jr., 1994, da qual, por outra parte, excluo toda a responsabilidade pelos riscos de equívoco em minhas afirmações. Pretendo desenvolver em outro texto a relação entre figuras e paradigmas nos jogos de linguagem.