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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.1 São Paulo  2016

 

ARTIGO

 

Entre a angústia e a dor: um diálogo entre Martin Heidegger e Ernst Jünger

 

Between Anxiety and Pain: A Dialogue between Martin Heidegger and Ernst Jünger

 

 

Alexandre Franco de Sá*

Universidade de Coimbra
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Após o projeto da ontologia fundamental, o conceito fundamental de angústia que aparece em Ser e tempo é desenvolvido por Heidegger no momento em que este se depara com o pensamento de Ernst Jünger. O presente artigo trata da influência das reflexões de Jünger sobre a dor nesse desenvolvimento. Nesse contexto, mostra como é possível dizer que dessa influência resultam os conceitos de dor, de carência e de perigo no pensamento de Heidegger.

Palavras-chave: dor; angústia; carência; perigo.


ABSTRACT

After the project of fundamental ontology, Heidegger develops the fundamental concept of anxiety that appears in Being and Time in the moment he encounters Ernst Jünger's thought. The present paper handles the influence of Jünger's reflections on pain in this development. In this context, it shows how it is possible to say that from this influence results the concepts of pain, distress and danger in Heidegger's thinking.

Keywords: pain; anxiety; distress; danger.


 

 

Desde a publicação incompleta de Ser e tempo, em 1927, é possível traçar com clareza o papel que o plano do sentimento, dos afetos ou das tonalidades afetivas adquire no âmbito do pensamento de Martin Heidegger. Em Ser e tempo, no fundamento último do projeto da ontologia fundamental, encontra-se a noção de que o ente que nós mesmos somos, o Dasein, não poderia ser analisado ontologicamente como algo Vorhandenes, ou seja, como uma substância presente perante nós e que pode ser descrita segundo marcas categoriais. A pergunta pelo Dasein teria de ser não a pergunta por um "quê", mas por um "quem", abordando-o a partir do modo como existiria no mundo. Dessa existência faria parte essencial o modo como o Dasein se encontra no mundo, o modo como ele se sente nele, sua Befindlichkeit ou disposição afetiva. Tal disposição afetiva não seria, então, uma característica adjacente a um ente que a precede, mas primordialmente constitutiva desse mesmo ente. O Dasein seria, em função dessa primordialidade que nele assume a disposição afetiva, aquilo que se poderia chamar de um ente que já está de algum modo sempre disposto.

Uma abordagem da questão da dor em Heidegger não pode dispensar a evocação prévia desse estatuto da "disposição afetiva" na análise ontológico-fundamental. Não o pode porque é a partir dela que a consideração do sofrimento emerge, por meio do tema da angústia.

A angústia, tal como é apresentada em Ser e tempo, é marcada por duas características fundamentais. Em primeiro lugar, o sofrimento provocado pela angústia não é uma disposição afetiva entre outras, mas a disposição afetiva fundamental, a Grundbefindlichkeit, pois expressa a exposição e a entrega do Dasein a um mundo que ele mesmo não domina nem controla. A angústia é a expressão de um ente a partir daquilo que Heidegger chama de Geworfenheit, de encontrar-se já sempre lançado num mundo que é essencialmente estranho, desconfortável, perturbador, inquietante e até mesmo hostil (matizes que se resumem no termo alemão unheimlich). Nesse mundo, o Dasein que se confronta com o seu próprio ser não se encontra em casa e é assolado por um sentimento de estranheza, vulnerabilidade e desassossego. Em segundo lugar e a partir da Unheimlichkeit ou inquietude, a angústia é apresentada por Heidegger como ligada de algum modo não apenas a uma compreensão do mundo, mas também a uma atitude que decorre dessa mesma compreensão. A disposição afetiva, como sabemos, implica sempre compreender o mundo de alguma maneira, do mesmo modo que a compreensão ocorre sempre com base numa disposição, por esse motivo Heidegger a chama de uma "compreensão disposta", um befindliches Verstehen (Heidegger, 2002, pp. 260 e 265).

Ora, compreender o mundo numa disposição angustiada prende-se a uma atitude que pode ser caracterizada como uma assunção da estranheza e da inquietude que marca o seu estar-lançado no mundo. Em Ser e tempo, essa assunção é a Entschlossenheit, a resolução corajosa para ser si-mesmo, isto é, para ser eigentlich, para ser próprio ou autêntico. Como escreve Heidegger: "O Dasein é autenticamente ele mesmo na singularização originária da resolução silenciosa que encoraja a angústia" (Heidegger, 2002, p. 322)1.

No contexto da ontologia fundamental, a articulação entre resolução e angústia permite a Heidegger caracterizar o ser-si mesmo do Dasein – aquilo que em Ser e tempo aparece designado como a Eigentlichkeit, a "autenticidade" ou a "propriedade" do Dasein – com uma ambiguidade que será marcante para o seu desenvolvimento e, no meu entender, para o estado de incompletude em que o próprio projeto da ontologia fundamental é deixado (Franco de Sá, 2002, pp. 73-86). Tal ambiguidade poderia ser descrita como uma oscilação relativa às relações entre essa autenticidade enquanto possibilidade do Dasein, por um lado, e, por outro, à existência cotidiana do Dasein, ao seu modo habitual de ser, o qual é sempre perpassado pelo que Heidegger chama de tendência para a dispersão, para a distração e para a inautenticidade de uma alienação tranquilizadora do seu ser próprio.

Numa primeira acepção, essa relação poderia ser pensada como a possibilidade de uma ação, de um comportamento ou de uma atitude existencial alternativa à cotidianeidade alienante do Dasein. A partir da resolução de assumir-se como si-mesmo, a autenticidade poderia ser compreendida como a decisão para uma situação enquanto existência alternativa à vida pública (Öffentlichkeit), pela qual cada um é não ele mesmo, mas alguém alienado, tranquilizado e distraído no anonimato que caracteriza a existência do "a gente" (aquilo a que Heidegger chama das Man). Se "a gente" se distrair sempre da sua situação, "a resolução", diz Heidegger, "traz o ser do aí à existência da sua situação" (Heidegger, 2002, p. 300) e está ligada a uma "decisão que abre a situação" (Heidegger, 2002, p. 338). Contudo, pensada a partir do sofrimento, da dor ou da angústia, o que caracteriza a autenticidade e a confrontação do Dasein com o seu próprio ser não seria propriamente uma atitude, mas um sentimento caracterizado como fugaz e raro.

Como escreve Heidegger no texto "Que é a metafísica?", de 1929, depois de perguntar se alguma vez ocorre o instante de o Dasein se colocar diante de si-mesmo e do nada que o constitui, afirma: "Este acontecer é possível e também real – ainda que suficientemente raro – só por instantes na tonalidade afetiva fundamental da angústia" (Heidegger, 1976, p. 111), do mesmo modo que, na resolução, a presença autêntica do si-mesmo do Dasein ganha forma no que Heidegger chama de um instante, um Augenblick. Mas o que caracteriza tal instante angustiado seria agora o carácter fugaz e raro que o constitui e, nesse sentido, sua incapacidade de configurar uma atitude resoluta que se manifeste como uma alternativa possível à existência inautêntica de um cotidiano perdido na dispersão alienante da vida pública da gente.

É deixando o projeto da ontologia fundamental suspenso diante dessas duas possibilidades de pensar o instante da autenticidade – como uma resolução que abre uma situação e como a emergência momentânea e sem continuidade da angústia – que Heidegger, na década de 1930, começa a ler os textos de Ernst Jünger. A leitura dos textos de Jünger desde os ensaios da década de 1930 – A mobilização total (1930), O trabalhador (1932) e Sobre a dor (1934) – até aos ensaios da década de 1950, como Sobre a linha, permite a Heidegger repensar implicitamente a ambiguidade fundamental da autenticidade do Dasein e encontrar para ela um sentido cada vez mais profundo.

Nos ensaios escritos na década de 1930, Jünger se propõe a pensar a transição entre a sociedade liberal e burguesa do século XIX – cuja descrição coincide com a análise feita por Heidegger da "vida pública" tranquilizadora e alienante – e o que considera a emergência da mobilização total do mundo através do caráter do trabalho. Segundo a descrição jüngeriana, diante de uma natureza cada vez mais dominada tecnicamente e de um mundo seguro que estaria colocado ao serviço e à disposição do homem, o mundo do século XX, particularmente o mundo que emergira da Primeira Guerra Mundial, assemelhar-se-ia a uma forja ou a uma fábrica gigantesca em que não seria a técnica a servir o homem, mas o homem a estar colocado ao serviço da técnica e de seu poder dominador do mundo.

Assim, para Jünger, longe de ser o sujeito individual de uma vontade apropriadora do mundo, o ser humano já não seria propriamente um indivíduo, mas apenas a instância singular na qual ganharia forma uma "vontade de poder" que, alimentando-se a si mesma numa dinâmica de potenciação crescente, se apropriaria do próprio homem e o transformaria em "trabalhador". Tal homem encontraria uma medida não em si mesmo, mas numa medida imutável que o ultrapassaria e o apropriaria. É a essa medida arrebatadora do homem que Jünger se refere em 1934 como a potência presente no sentimento ou na disposição afetiva da dor. Como escreve o filósofo: "A dor enquanto medida é imutável; mutável é, pelo contrário, a maneira na qual o homem se coloca em relação a esta medida" (Jünger, 2002a, pp. 145-146).

A alusão de Jünger à noção da dor como "medida imutável" da relação do homem com o mundo permitia-lhe pensá-la a partir de uma perspectiva que se focava na distinção de eras históricas diferenciáveis. Para Jünger, a partir dessa noção, tratar-se-ia de distinguir essencialmente duas eras históricas em função de duas relações possíveis ao sofrimento e à dor. A primeira era, a que Jünger situa num desenvolvimento histórico da modernidade ocidental que se estende desde a Aufklärung até seu ponto culminante no liberalismo e humanismo do século XIX, baseia-se em duas noções fundamentais. Por um lado, o homem aparece como um sujeito essencialmente livre e progressivamente emancipado, numa liberdade que, caracterizada inicialmente como ausência de vínculos e determinações, desemboca na noção de autonomia de um sujeito que é, como autônomo, senhor de si mesmo. Por outro lado, o mundo constitui-se como um ambiente crescentemente seguro, ligado a uma natureza que, ao ser trabalhada, vai se transformando num meio crescentemente humanizado, habitável, cômodo e domesticado. Jünger descreve essa era burguesa e liberal como a do "último homem" de Nietzsche. A era do "último homem" seria também mensurável pela "medida imutável" da dor. No entanto, poder-se-ia dizer que o modo de a dor estar presente nela consistiria no paradoxo da sua subtração e ausência. Nesse sentido, tal era seria especificamente anestésica. Essa anestesia consistiria não propriamente na simples ausência de dor, mas na presença dessa dor sob a forma de sua negação, repressão e alienação por intermédio do prolongamento de um tempo que a dissolve. Jünger chama de tédio o modo como a dor está presente na era liberal e burguesa, que a dissolvem. Daí sua afirmação: "O tédio não é outra coisa senão a dissolução da dor no tempo" (Jünger, 2002a, p. 156).

O estabelecimento da dor como "medida imutável" permitia a Jünger pensar imediatamente a contraposição da era liberal e burguesa a uma outra era que a ultrapassasse. Se a era liberal e burguesa não seria propriamente imune à dor, mas constituída por uma imunização aparente por meio de sua dissolução, isso siginficaria que essa era não poderia deixar de ser caracterizada por seu contraste com outra da qual ela fosse, em sua essência, a negação; com outra era em que a dor se manifestasse de forma propriamente presente e visível. Erguida pelos projectos humanistas da Aufklärung e consumada num mundo humanizado e seguro, o que caracterizaria especificamente a era liberal e burguesa seria, para Jünger, a sua impossibilidade de durar. Referindo-se à caracterização por Nietzsche do "último homem", Jünger afirma: "A profecia do Último Homem cumpriu-se rapidamente. Ela é exata – até a frase que diz que é o Último Homem que vive mais tempo. A sua era já se encontra atrás de nós" (Jünger, 2002a, p. 155).

Deixando atrás de si a era do último homem, com seu tédio civilizado no meio de uma natureza humanizada e de um mundo seguro, a nova era que Jünger procurava descrever – a era do trabalhador e da mobilização total por um carácter total do trabalho – seria marcada precisamente pelo que ele considera uma relação com o elementar e com o imutável e o arrebatador. Se a era burguesa e liberal seria constituída por uma dissolução da dor pelo tempo e, nessa medida, pela sua transformação em tédio, a era do trabalhador que Jünger anuncia poderia ser descrita pela emergência de uma geração que, abolindo o tédio, assumiria corajosamente a presença da dor e sua relação com ela.

A partir da influência de Jünger, Heidegger pensará a autenticidade de Ser e tempo e a possibilidade essencial do Dasein de ser ele mesmo como a entrega a uma potência que dele se apropria e o arrebata. Nesse sentido, a autenticidade corresponderia à resolução angustiada de se assumir, enquanto Dasein, como apropriado pelo próprio ser ou por uma história que não é senão o acontecer desse mesmo ser. É por isso que, no auge de sua ocupação com Jünger, nos anos de 1933 e 1934, e no contexto da chegada ao poder do nacional-socialismo, Heidegger pensará a resolução angustiada como a decisão de um povo e de cada um desse mesmo povo de se confrontar com um mundo sempre unheimlich, misterioso e inquietante. É nesse contexto que Heidegger assinala:

Este povo atua no seu destino, na medida em que coloca a sua história na abertura da supremacia de todas as potências formadoras de mundo da existência [Dasein] humana e combate sempre de novo pelo seu mundo espiritual. Assim exposto à mais extrema questionabilidade da existência [Dasein] própria, este povo quer ser um povo espiritual. (Heidegger, 2000a, p. 113)

No entanto, se é clara a marca da influência de Jünger no modo como Heidegger repensou a autenticidade no começo da década de 1930, assumindo a resolução angustiada de que falara em Ser e tempo como uma decisão por uma existência entregue a uma potência arrebatadora e fundadora de um "mundo espiritual" e de um "outro início" da história, é imprescindível notar que Heidegger, ao contrário de Jünger, não pensa a partir da noção de época. Tal diferença é fundamental e é ela que traça uma linha clara de demarcação entre o pensamento dos dois autores.

As considerações de Jünger em torno da transformação do indivíduo em tipo dirigem-se precisamente à tentativa de pensar uma era histórica que, assumindo o homem como trabalhador, ultrapassasse a era de sua constituição como indivíduo livre e desvinculado. Jünger pode, nesse contexto, falar de uma "nova raça que começa a se desenvolver sob as exigências peculiares de uma nova paisagem e que representa o singular não como pessoa ou como indivíduo, mas como tipo" (Jünger, 2002b, p. 55). Para Heidegger, ao contrário de Jünger, a alusão a um "outro início" da história, a um início contraposto ao "primeiro início" dessa mesma história, não poderia deixar de se articular com a noção de que o homem é, enquanto Dasein, sempre e essencialmente exposto a potências que o arrebatam e dele se apropriam. A potência apropriadora do homem é, para Heidegger, o tempo, e a pertença do Dasein ao tempo, sua apropriação por ele, não permite pensar que o tempo surja como um curso linear dividido por épocas distintas. Dir-se-ia que, para Heidegger, no tempo, convertido em história do ser – embora não de forma igual –, sempre acontece o mesmo, ou seja, a apropriação do homem por um tempo que o arrebata.

Assim, para Heidegger, tratar-se-ia de pensar de que forma o "primeiro início" constituiria o tempo como tal: um tempo longo a cuja passagem se poderia contrapor não uma época, mas o instante angustiado que abriria um "outro início" como algo "outro" em relação à dispersão ou à distração que a temporalidade sempre implica. É logo a partir do começo da década de 1930 que essa confrontação de Heidegger com o pensamento epocal de Jünger começa a se desenvolver. Isso se dá em três momentos que podem ser associados a três conceitos cruciais nos quais poder-se-ia dizer que emergem dimensões da dor e do sofrimento. É percorrendo brevemente esses conceitos que podemos abordar o diálogo entre Heidegger e Jünger em torno da dor e do sofrimento.

O primeiro conceito a que nos referimos é o de tédio (Langweile), e ele surge sobretudo nas lições lidas em Freiburg em 1929/1930, intituladas Os conceitos fundamentais da metafísica. Se em 1934 Jünger aludirá ao tédio como uma característica epocal que refletiria a vã tentativa de uma época de vedar o acesso ao elementar e de se imunizar à dor, Heidegger pensará o tédio profundo associando-o precisamente à temporalidade como tal. Para Heidegger, a passagem longa do tempo, a Lange-weile, teria um carácter paradoxal que seria fundamental assinalar. Por um lado, essa passagem longa do tempo contrapor-se-ia, em sua essência, ao instante no qual uma resolução angustiada poderia emergir. Por outro lado, o sofrimento ou a disposição afetiva constitutiva do tédio profundo não seria pura e simplesmente a negação do instante resoluto ou angustiado, mas torná-lo-ia possível porque entregaria a existência a esse instante que estaria presente sob a forma paradoxal de sua ausência e de seu constante afastamento. O tédio seria, assim, não a simples ausência da angústia, mas a maneira de essa mesma angústia estar presente sob a forma paradoxal do retraimento ou da subtração de um instante angustiado que o captura, entorpece, enfeitiça e fascina nesse mesmo retraimento ou subtração. Como escreve Heidegger:

O tédio é o fascínio [Bann] do horizonte temporal cujo fascinar faz desaparecer o instante que pertence à temporalidade, para, em tal fazer desaparecer, constranger o Dasein fascinado para dentro do instante enquanto possibilidade autêntica da sua existência, existência essa que é apenas possível no meio do ente no seu todo que se nega precisamente no seu todo no horizonte do fascinar. (Heidegger, 1983, p. 230)

Em outras palavras, ao contrapor-se ao modo primeiro como quase sempre o Dasein se encontra no mundo, fugindo do confronto com o seu próprio ser e entretido tranquilamente com as ocupações cotidianas que o distraem e alienam, o tédio faz irromper a inquietude e a estranheza, a Unheimlichkeit, que abre a dor de uma resolução angustiada. Assim, o tédio não é nem a dispersão inautêntica com que nos distraímos e nos perdemos de nós mesmos nas nossas ocupações cotidianas nem o instante angustiado e resoluto em que caímos em nós, mas o limiar entre ambos e, nesse sentido, a linha que permite vislumbrar um trânsito entre os dois. Ao definir o tédio como a dissolução da dor ao longo do tempo, em seu ensaio "Sobre a dor", de 1934, Jünger encontra uma formulação com que Heidegger poderia ter articulado precisamente a relação entre a temporalidade do tédio e o instante da resolução angustiada. Tal relação seria, em última análise, formulável da seguinte maneira: o tédio não é nem a presença nem a ausência da dor, mas o modo de a dor estar presente enquanto ausente, com dor dissolvida, anestesiada e alienada.

O segundo conceito que Heidegger desenvolve no contexto de sua confrontação com Jünger e que evoca a dimensão da dor e do sofrimento é o de carência ou necessidade (Not). Ele está presente sobretudo em textos inéditos como Contribuições para a filosofia e Meditação, escritos a partir da segunda metade da década de 1930. Em articulação com o conceito jüngeriano da técnica como mobilização total (totale Mobilmachung), Heidegger articula a ideia de que o mundo moderno surge determinado como "maquinação" (Machenshaft). Nela, o homem se apodera crescentemente de um mundo que o ser abandonou, num movimento chamado por Heidegger de Seinsverlassenheit, expondo o ente à sua violação, manipulação e utilização despudorada através de um puro e simples exercício de poder. A esse poder também fica exposto o homem, que igualmente se torna um ente mobilizável pela maquinação. Nesse sentido, tal poder não corresponde a um domínio do homem, mas à sua inversão: a entrega desse homem a uma potência que emerge como uma violência ou um poder2 que ele mesmo não domina. Como escreve Heidegger em 1938: "A potência desencadeada na essência da maquinação provoca sempre apenas poder e nunca fundamenta domínio; pois a maquinação é a ligação prévia a todo o maquinável e, finalmente, a subversão de qualquer decisão" (Heidegger, 1997, p. 16). Num mundo determinado pela maquinação, é precisamente essa decisão que está em falta e passa a ser necessária. O tempo que culmina no abandono do ente pelo ser e na estrutura da maquinação é, então, marcado pelo sofrimento dessa carência e dessa falta.

Em sua confrontação com Jünger e refletindo sobre a abordagem jüngeriana da técnica moderna, Heidegger encontrará no mundo tecnicamente determinado um mundo em que, estando o ente completamente domesticado e exposto ao poder, nada parece faltar. No entanto, se nada parece faltar num mundo tecnicamente mobilizado pela maquinação, agora é a própria falta, a própria carência – die Not –, que falta. A descrição de Heidegger do acontecer do Dasein em Ser e tempo, sua apresentação como uma fuga alienante, tranquilizadora, entretida e inautêntica diante da possibilidade de uma confrontação com o seu próprio ser pode agora fundamentar a abordagem do tempo do Dasein como um tempo em que emerge a mais extrema carência (die äußerste Not). Contudo, aquilo que falta nessa carência extrema não é este ou aquele ente, mas o ser que no ente se subtrai; aquilo que falta é não alguma coisa que falte, mas a própria carência como tal. Heidegger chama essa carência da carência extrema de "carência da falta de carência" (die Not der Notlosigkeit).

Em 1938, Heidegger escreve que essa carência da falta de carência constitui a própria essência do que acontece, "a realidade autêntica da nossa história" (Heidegger, 1997, p. 70)3. Ao contrário do que se passaria para Jünger, para Heidegger a história não pode ser diferenciada por eras diferentes. Nessa história o que acontece é sempre o mesmo, ainda que não de forma igual, e o que acontece é a subtração ou o retraimento do ser, o abandono do ente pelo ser (a Seinsverlassenheit) e, nessa medida, a falta ou a carência do ser, a Not que constitui a essência da dor, da angústia e da finitude, emergindo tanto em tempos de abundância como de pobreza, tanto numa era que aliena as necessidades como numa era em que essas necessidades se tornam manifestas. Em ambas, é a essência da dor, a falta, que emerge precisamente como faltando, como um retraimento do ser ou uma fenda aberta entre ser e ente que se abre no próprio ente que se manifesta.

A concepção da carência ou da falta como algo que emerge mesmo na sua negação ou aparente ausência conduz Heidegger à elaboração de um terceiro conceito no qual a dimensão da dor e do sofrimento está presente: o conceito de perigo. A concepção de um tempo em que aparentemente nada falta mas se está diante da mais extrema das carências, da carência da falta de carência, conduz Heidegger a abordar tal tempo como regido por uma ânsia de poder e de segurança. Na era do abandono do ser e da pura e simples exposição do ente à possibilidade de sua violação e manipulação, a aparente segurança não pode deixar de se tornar perigo.

No início da década de 1950, particularmente em sua célebre conferência A questão da técnica, de 1953, Heidegger abordará esse perigo que cresce no momento em que o ente, despojado de ser, se manifesta já não apenas a partir de sua representação como objeto de conhecimento, mas a partir do "desafio" (Herausforderung) contido numa atitude que o manipula, viola e armazena como energia. Como sabemos, Heidegger referir-se-á ao tempo do abandono do ser, que constitui a essência do niilismo e se manifesta na técnica moderna como uma era em que é o próprio crescimento do perigo que permite pensar na "salvação". É nesse sentido que Heidegger se apropria do dito de Hölderlin ao dizer que onde está o perigo cresce também aquilo que salva (Heidegger, 2000b, p. 29). Mas se o perigo só tem lugar num tempo em que emerge a possibilidade da salvação, o perigo é, ao mesmo tempo, o risco de que essa salvação não se dê, ou seja, o risco e a possibilidade de que a mais extrema carência se estenda até à mais extrema indigência e pobreza, escondendo e encobrindo a própria falta da carência durante um tempo que se estende indefinidamente. Segundo Heidegger, é diante desse risco e dessa possibilidade que tem de despertar uma dor. Como ele escreve em Superação da metafísica: "A dor que antes de mais tem de ser experimentada e evocada é a intelecção e o saber de que a falta de carência [Not der Notlosigkeit] é a carência suprema e mais encoberta, que só obriga a partir da mais longínqua lonjura" (Heidegger, 2000c, p. 89).

Ao evocar o conceito de perigo, Heidegger refere-se precisamente não apenas à possibilidade da salvação, como se tornou habitual a partir de sua citação de Hölderlin, mas, sobretudo, à dor provocada pela intelecção e pelo saber de sua distância. Essa distância far-se-ia sentir não apenas em tempos de comodidade e segurança, em tempos alienados e anestesiados por uma aparente ausência de carências, mas também em tempos de pobreza, miséria, sofrimento, morte e dor, como aqueles que se viveram na Alemanha da guerra e do imediato pós-guerra. Em 1949, numa conferência intitulada O perigo, Heidegger traça o retrato desse sofrimento. Sua conclusão é a de que, mesmo no tempo em que as carências, a pobreza e a dor tornam-se manifestas, mesmo no tempo em que o perigo irrompe como perigo, a essência da dor e da pobreza, aquela essência da qual decorre a possibilidade da salvação, se encobre, se retrai e se encontra ausente. Como escreve Heidegger:

Sofrimentos sem medida deslizam e avançam sobre a Terra. Incrementa-se ainda o fluxo do sofrimento. Mas a essência da dor encobre-se [...]. Por todo o lado nos atormentam sofrimentos sem conta e sem medida. Mas nós, no entanto, somos sem dor, não apropriados à essência da dor. (Heidegger, 1994, p. 57)

A essência de um mundo marcado pelo abandono do ser, bem como pelas dores e pelos sofrimentos provocados pela possibilidade da manipulação e mesmo da aniquilação do mundo e do homem – aquilo a que Heidegger chama de essência da técnica moderna como abandono do ente pelo ser – consiste, segundo a conhecida apresentação de A questão da técnica, na com-posição, no Ge-Stell (Heidegger, 2000b, pp. 20 ss.). É a essência mesma dessa composição técnica do mundo que é pensada por Heidegger como o próprio perigo: "A essência da com-posição é o perigo" (Heidegger, 1994, p. 62)4. Se, nos anos 1930, o tédio profundo surgia como a presença da angústia sob a forma de sua diluição ao longo do tempo e se a maquinação e a dominação técnica do mundo surgiam como a presença da carência sob a forma de sua falta, o perigo emerge agora como uma presença da dor mesmo no meio de dores e sofrimentos que fazem esquecer a sua essência. Esta é formada pela coincidência entre a possibilidade sempre aberta da salvação e o saber de que a dor, constituindo o tempo, se prolonga até uma lonjura indefinida; ou seja, a presença de um sofrimento se arrasta até uma lonjura indefinida entre a presença de uma dor que coincide com o tempo e a possibilidade sempre aberta de que essa coincidência não esgote o próprio tempo.

 

Referencias

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Endereço para correspondência

Alexandre Franco de Sá
E-mail: alexandre_sa@sapo.pt

 

 

* Professor da Universidade de Coimbra e do programa de pós-graduação em filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
1 "Das Dasein ist eigentlich selbst in der ursprünglichen Vereinzelung der verschwiegenen, sich Angst zumutenden Entschlossenheit".
2 O termo em questão é Gewalt, o qual pode ser traduzido precisamente tanto por poder como por violência.
3 "(…) die eigentliche Wirklichkeit unserer Geschichte".
4 Das Wesen des Ge-stells aber ist die Gefahr.

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