SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 issue1O adolescente e a rua: encantos e desencantosJuan Rulfo y el ensueño del tiempo author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.3 no.1 Fortaleza Mar. 2003

 

CONFERÊNCIAS

 

Da identificação maciça à emergência do sujeito*

 

 

Fabiana L. Campos Baptista

Psicóloga, mestranda em Psicologia pela UFMG, membro efetivo da ONG 3º Margem - pesquisa e prevenção em toxicomania. Endereço: Rua Pium-í, 1440 - Bairro: Sion. Cep: 30310-080. e-mail: fabianabap@ig.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo pretende fazer a análise de uma experiência da oficina terapêutica de Composições Literárias desenvolvida com um grupo de pacientes toxicômanos do Hospital - dia e do ambulatório do Centro Mineiro de Toxicomania de Belo Horizonte, no ano de 2001. Para tanto, faremos uma exposição, a partir de Freud, sobre os efeitos de massa que podem surgir a partir da formação de um grupo. De acordo com ele, quando surgem efeitos de massa no grupo, seus membros se identificam de forma maciça entre si e com o líder. Como exemplo dessa identificação maciça, falaremos sobre o tratamento de um grupo anônimo de auto-ajuda, o Alcoólicos Anônimos. Traremos em seguida a contribuição de Lacan, que acredita que um dispositivo grupal possa se situar em sentido oposto aos efeitos de massa, o que se constitui como uma forma diferente de identificação possível. Para ele, um tratamento de grupos monossintomáticos deve ocorrer no sentido oposto ao da identificação maciça, produzindo uma falta na fusão identificatória que esses sujeitos fazem a determinado significante. Como exemplo desse tratamento da identificação, traremos uma experiência com um paciente da oficina de Composições Literárias do Centro Mineiro de Toxicomania, para identificarmos como é possível ocorrer um certo deslocamento da fusão identificatória ao significante toxicômano através de textos literários, pelo viés do tratamento da identificação.

Palavras-chave: oficina terapêutica, toxicomania, massa, grupo, identificação


ABSTRACT

This article intends to do an analysis of an experience of the therapeutic workshop of Literary Compositions developed with a group of patient drug addicts of the hospital - day and of the clinic of the Centro Mineiro Toxicomania of Belo Horizonte, in the year of 2001. For so much, we will make an exhibition, starting from Freud, on the mass effects that can appear starting from the formation of a group. In agreement with him, when mass effects appear in the group, your members identify to each other in a solid way and with the leader. As example of that solid identification, we will talk about the treatment of an anonymous group of solemnity-help, the Alcoholic Anonyms. We will bring the contribution of Lacan that believes that a device of group can locate soon after in felt opposite to the mass effects, what is constituted as a form, different from possible identification. For him, a treatment of groups similar symptoms should happen in the opposite sense to the of the solid identification, producing a lack in the coalition identification that those subjects make the certain significant. As example of that treatment of the identification, we will bring an experience with a patient of the workshop of Literary Compositions of the Centro Mineiro de Toxicomania for us to identify how it is possible to happen a certain displacement of the coalition identification to the significant drug addict through literary texts, for the inclination of the treatment of the identification.

Key-words: therapeutic workshop, drug addicts, mass, group, identification


 

 

O Centro Mineiro de Toxicomania, criado em 1986, é uma instituição vinculada à FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), que oferece tratamento, prevenção, ensino e pesquisa nas áreas de toxicomania e de alcoolismo. Atualmente, existem oito unidades desse tipo no Brasil, sendo o CMT a única referência para o tratamento de pacientes residentes em Belo Horizonte e no interior do Estado.

A instituição segue as diretrizes do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, funcionando através do ambulatório e do Hospital-dia, o chamado NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial). O ambulatório presta atendimento multiprofissional a pacientes e familiares e, caso seja necessário, o paciente poderá ser indicado para o NAPS. A permanência no NAPS se destina àqueles pacientes que demandem cuidados intensivos de tratamento, sendo realizadas no espaço do Hospital-dia atividades como acompanhamento médico e terapêutico, psicoterapia individual ou em grupo, atividades de lazer e oficinas terapêuticas.

Faz-se importante pormenorizarmos o que são as oficinas terapêuticas, para que possamos, posteriormente analisar a função e importância do grupo no tratamento do paciente toxicômano e ou alcoolista.

A oficina é um dispositivo terapêutico utilizado como recurso no tratamento de pacientes no CMT. Ela consiste em uma atividade grupal de socialização e expressão do sujeito. Além desse aspecto terapêutico, a oficina permite uma produção subjetiva que pode ter, como efeito, a construção de uma forma diferente de relação do sujeito com o mundo. É uma atividade coletiva que remete seus participantes à convivência com o social, pela via da produção.

A partir dessas considerações acerca do trabalho desenvolvido em oficinas terapêuticas, vamos seguir uma orientação de Lacan (apud Laurent, 1998), a fim de compreendermos o que se constitui a hipótese de aplicação da psicanálise em um campo que ultrapassa o tratamento individual. Para tanto, faremos uma diferenciação entre os fenômenos de massa e o grupo.

Para entendermos como se forma a massa, partiremos das considerações de Freud (1921/1976) em seu texto Psicologia de grupo e análise do eu. Ele diz que, a partir da formação de um grupo, podem surgir efeitos de massa. Na massa ou multidão, os indivíduos se combinam em uma unidade e, sob influência da sugestão, podem ser levados a ter profundas mudanças de comportamento, onde suas particularidades tendem a desaparecer. Eles são capazes de realizações elevadas sob a forma de devoção a um ideal. De fato, é através de uma referência imaginária que a massa se identifica a um líder ou a um ideal, em que um único e mesmo objeto ocupa o lugar Ideal de eu. Os membros comportam-se como fossem uniformes e o que dá consistência ao grupo é o laço libidinal existente, com o líder e entre eles.

Freud (1921/1976) diz que o laço mútuo existente com o líder e entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação, que se constitui como a mais remota expressão de laço emocional com outra pessoa. Com efeito, nos fenômenos de massa, o grupo se identifica de maneira exaltada à potência ideal do líder, na qual as diferenças subjetivas são eximidas em prol dessa identificação vertical ao chefe, tomado como ideal. Mas Freud (1921/1976) nos alerta que a identificação entre os membros só ocorre quando há uma identificação a uma causa comum. A tendência do grupo em fazer massa tem,, como reflexo, a alienação do sujeito que, segundo Laurent (1998), "anula a diferença particular sob a insígnia universal".

É o que acontece, por exemplo, em instituições que trabalham com grupos anônimos de auto-ajuda, como o Alcoólicos Anônimos. Nesses grupos, os indivíduos se identificam fazendo massa, nos quais podemos perceber uma identificação maciça entre os membros a um objetivo em comum. O trabalho se realiza a partir de 12 princípios básicos de funcionamento, que se constituem como roteiros de vida e mensagens de esperança para aqueles que procuram auxílio. Os 12 passos a serem seguidos visam permitir, aos membros, alcançar sobriedade e desenvolvimento espiritual. Aqueles que já obtiveram uma melhora em seu tratamento transmitem e coordenam os que ainda estão em seu início.

Existe uma só autoridade fundamental que sustenta e rege os objetivos do grupo. A orientação de suas vidas é delegada a um Poder Superior, cujo reforço de sua figura como ideal solidifica o coletivo. Podemos apreender que essas instituições trabalham, a princípio, a partir de uma supressão das diferenças subjetivas, pois é através de uma identificação comum e homogênea a um ideal que o tratamento é feito. O anonimato também é algo preconizado. Segundo o AA, não importa quem seja o individuo ou quais são suas opiniões. Todas essas diferenças são subordinadas aos princípios espirituais pré-estabelecidos.

O tratamento baseia-se no reforço da identificação e o grupo traça um objetivo em comum. Não é raro se ouvirem expressões como: "estamos todos no mesmo barco".

Há, porém, uma outra forma de trabalhar com grupo, a partir da hipótese de Lacan (apud Laurent, 1998) de que um dispositivo grupal pode se situar em sentido oposto à alienação, o que se constitui, para ele, como uma forma diferente de identificação possível. É o que confirma Laurent (1998) ao dizer que as diferenças de cada um no grupo não devem ser preteridas ou misturadas ao todo, mas assumidas e trabalhadas. A prioridade está na garantia da existência do particular.

É interessante notarmos que, na toxicomania, há uma identificação do sujeito ao significante toxicômano. Cito como exemplo um paciente que, ao tentar explicar por que havia resolvido se tratar, disse: "quando passei na porta do CMT e vi a palavra toxicomania, vi que era aqui que tinha que me tratar, esse era o meu lugar". Vemos que o sujeito se identifica não só a esse significante, mas aos outros membros do grupo. O sujeito se vê como um igual no grupo e podemos perceber uma cola imaginária que ele realiza, através de uma cristalização idealizada a um significante, o que acaba por diluir as diferenças de cada um. Todos são toxicômanos. O trabalho da psicanálise na lógica de grupos caminha na direção contrária a essa identificação maciça que o sujeito tende a realizar. Mas como fazer surgir a diferença? De que forma é possível transpor a barreira que a identificação maciça promove?

Para tentar elucidar um pouco essas questões, irei relatar uma experiência desenvolvida de oficina terapêutica, com pacientes toxicômanos. Criei e coordenei, de fevereiro a dezembro de 2001, a oficina de Composições Literárias no Centro Mineiro de Toxicomania. A partir de poemas, crônicas e contos tomados de empréstimo da literatura brasileira, os pacientes eram convidados a discutir e, posteriormente, escrever sobre o que, em cada um, suscitou a leitura dos textos. Apesar da tendência imanente do grupo em fazer massa, o trabalho foi desenvolvido no sentido oposto a ela, na vertente de fazer emergir o particular de cada um, dissolvido na massa amorfa do grupo.

Para tanto, um dos objetivos da oficina visou justamente promover um deslocamento da representação social de toxicômano a qual o sujeito se encontra colabado, realizando um tratamento da identificação. Não se trata de reforçá-la, como no caso dos grupos de auto-ajuda, mas retirar dela o que há de singular em cada membro. O que se preconizou foi a tentativa de desconstrução da identificação coletiva.

Sabemos que na toxicomania, o sujeito estabelece com o objeto droga uma relação baseada na repetição, em que a droga ocupa, na economia psíquica do sujeito, um lugar central. Há um investimento libidinal significativo do sujeito na droga. Sua vida se desenrola em torno desse objeto, há todo um empenho para obtê-la e o interesse do sujeito fica totalmente localizado na droga. O sujeito prescinde do Outro e passa a acreditar que se basta a si mesmo. Mas é no momento em que sua relação com a droga já não se mostra assim tão infalível, que o sujeito se oferece à instituição para que essa - seja lá por quais métodos - o livre de seus infortúnios (Baptista & Palhano, 2001). Há um certo distanciamento feito pelo sujeito em relação à droga e esse é o momento propício para que o tratamento possa ser realizado. Entretanto, a entrada na instituição e o início da participação em atividades como a oficina podem fazer com que o sujeito volte a realizar uma cola imaginária, não em absoluto com a droga, mas entre os membros do grupo que, como ele, são toxicômanos. A tendência do sujeito no grupo é formar uma unidade, a partir da identificação a uma similaridade sintomática, prescindindo do Outro.

O que o trabalho da oficina preconizou foi justamente tentar restituir esse Outro, ao produzir uma falta na homogeneidade imaginária da fusão identificatória. As diferenças eram constantemente marcadas, para que pudesse emergir a particularidade de cada um.

Isso foi feito através de intervenções nas falas dos pacientes e da produção de um objeto que fosse próprio a cada um na oficina. Como nem todos tinham um objetivo comum ao procurar o tratamento, isso foi preconizado. Um dizia que estava lá para diminuir o uso da droga, outro porque a família mandou, outro porque iria morrer, se não interrompesse o uso. Essas peculiaridades foram trabalhadas no sentido de o sujeito descobrir-se único na massa e trabalhar a partir disso. Como exemplo, cito um paciente que, no início dos trabalhos da oficina, sempre relacionava qualquer texto que lhe fosse apresentado às delícias de se ingerir o álcool. Escrevia longos discursos sobre o prazer de tomar o "tubão", uma garrafa de 2 litros de pinga vendida a R$1,00, antes de qualquer coisa que fosse realizar. Tinha uma visão romântica do uso do álcool e sempre se comparava à personagem Quincas Berro D'água, de Jorge Amado. A partir de contínuas intervenções que questionavam o prazer absoluto do uso incessante do álcool, ele pode realizar um deslocamento dessa posição. Passou a escrever que, de fato, beber é bom, mas com restrições. Começa a pensar que deveria haver certos limites para o uso, já que senão nada mais ele iria realizar em sua vida, a não ser beber, beber e beber e... De fato, ao iniciar uma resignificação de sua relação com o álcool, ele pôde se descolar um pouco dessa identificação a um ideal romântico com o álcool. Começou a trabalhar e a redução do uso foi uma conseqüência dessa nova forma de relação com a bebida. Nesse momento, ele escreve: "eu quero viver, mas resolvi correr, correr para morrer e perder o sentido de viver. Então resolvi correr e os vícios diminuir. Voltar a viver é o que eu devo sempre querer".

A produção visava justamente que o sujeito produzisse algo que o diferenciasse no grupo. A escrita estava calcada como um resultado material que pudesse receber um contorno simbólico pela linguagem, uma inscrição social particular na cultura e um deslizamento do significante droga para outros significantes.

Um texto literário permite ao sujeito dialetizar conceitos pré-estabelecidos, já que não há um sentido único para ele. O texto pode ter vários sentidos e nenhum sentido também. Dele surge uma superposição de significações e o enigma do sentido aparece. De fato, o enigma está em todo o texto, pois o sentido está sempre ausente em sua plenitude. Pode-se dizer que todo texto é capaz de produzir uma lacuna. É na proliferação e na retroação das palavras que algum sentido pode advir, posto que o sentido nunca é definitivo, sempre se abre a significados inéditos. Quando se trabalha com um texto literário, há sempre o mais além do sentido da palavra e, com os sujeitos, também acontece dessa forma. Aquilo a que o sujeito se identifica e diz ser sua verdade pode ser questionado e o sentido alterado. O sujeito pode deslocar-se de sua identificação maciça e produzir algo singular, que tenha a sua impressão digital. Na oficina, o sujeito, convidado a escrever, pode, a seu modo, construir sua significação dos textos através da escrita. E, por ela, tentar significar algo de si e de sua verdade, deslocando-se de uma identificação maciça à sua emergência como sujeito.

 

Referências

Baptista, F. & Palhano, M. (2001). O mal-estar na espontaneidade (pp.28-32). In Anais 14. Jornada do Centro Mineiro de Toxicomania, 2001, Belo Horizonte, MG. Belo Horizonte, MG: CMT.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e análise do eu (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1921).         [ Links ]

Grossi, F. (1994). CMT: Pontuações sobre a sua história (pp. 23-25). In Anais 7. Jornada do CMT - I Fórum interno de debates 1994, Belo Horizonte, MG. Belo Horizonte, MG: CMT.         [ Links ]

Laurent, E. (1998). O lugar da psicanálise nas instituições. Belo Horizonte, MG: École Europèenne de Psychanalyse. Mimeografado.         [ Links ]

 

 

Recebido em 08 de outubro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003

 

 

* Comunicação apresentada no XIII Encontro Mineiro da ABRAPSO - 2002 e na XI Jornada da Clínica de Psicologia da PUC-MG - 2003.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License