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Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. vol.3 no.2 Fortaleza Sept. 2003
ARTIGOS
Afastamento para tratamento de saúde: sintoma institucional e recurso precário no enfrentamento do sofrimento psíquico no trabalho docente
Janete de Aquino GoulartI; Anna Rosa Fontella SantiagoII; Ângela DrüggIII
IPsicóloga, Especialista em Psicologia Escolar pela PUC/RS, Mestre em Educação nas Ciências e Professora do Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. End.: R. Luigi Basso, 1335. Centro. 98270-000 - Pejuçara/RS. e-mail: joliv@main.unijui.tche.br
IIDoutora em Educação. Professora do Curso de Pedagogia Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências - Mestrado
IIIPsicóloga, Aluna do Programa de Pós- Graduação de Doutorado em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
RESUMO
O presente trabalho de pesquisa aborda, a partir de um levantamento de dados de uma secretaria municipal de educação de um município do interior do Estado do Rio Grande do Sul, o uso do atestado para tratamento de saúde, como um recurso precário de enfrentamento de situações de risco para a organização psíquica. Busca elementos, na psicanálise e na psicologia, para pensar as manifestações de sofrimento psíquico no trabalho docente. Toma a psicanálise, a partir de Freud, para pensar na possibilidade de que a escolha de uma profissão possa ser entendida como uma escolha sintomática, na medida em que, através do fazer docente, possa repetir vivências e dificuldades decorrentes da impossibilidade de significação de si próprio através do trabalho. Por outro lado, supõe a possibilidade do profissional retomar e ressignificar suas vivências e marcas, decorrentes de sua constituição psíquica de sua inserção no social, encontrando no trabalho condições de organização tal como na construção do sintoma. Busca uma aproximação com o estudo acerca da psicopatologia do trabalho com Christophe Dejours, a fim de estabelecer alguns parâmetros na identificação do sofrimento psíquico no trabalho e, por aproximação, no sofrimento psíquico do trabalho docente. No senso comum, há um entendimento disseminado de que o atestado médico é um recurso utilizado para burlar o trabalho, como fuga do trabalho. Entretanto, acerca do sujeito tomado pelo viés da psicanálise, pode-se pensar que há um saber que não se sabe, um saber que circula na linguagem do senso comum, mas que não se encontra nos livros de histórias. Há histórias não registradas pelo nível consciente, mas que emergem do inconsciente, de modo a inscrever-se na vida do sujeito. Por outro lado, é necessário reconhecer a existência de fatores sociais que interferem, de modo significativo, no estabelecimento das condições de trabalho docente. Isso, em muitos momentos, é fator de desorganização para o profissional, dificultando a constituição de um espaço onde ele possa se ver como sujeito, possa se manter como sujeito, se reconhecendo e se significando pelo trabalho. Ultrapassar a barreira da percepção visual e auditiva comuns na leitura do cotidiano escolar, para identificar as formas de o sujeito controlar ou até mesmo expressar seu sofrimento são possibilidades de se avançar no entendimento sobre a organização das escolas, bem como dos laços nela produzidos, componentes fundamentais do processo ensino-aprendizagem.
Palavras-chaves: organização psíquica, sofrimento psíquico, psicopatologia do trabalho
ABSTRACT
The present work of research approaches, from a data-collecting of a city department of education of a city of the interior of the State of the Rio Grande Do Sul, the use of the certified one for treatment of health as a precarious resource of confrontation of situations of risk for the psychic organization. Search elements in the psychoanalysis and psychology to think the manifestations of psychic suffering about the teaching work. It takes the psychoanalysis from Freud to think about the possibility of that the choice of a profession can be understood as a symptomatic choice in the measure where, through making professor can repeat experiences and decurrent difficulties of the impossibility of proper significance of itself through the work. On the other hand, it assumes the possibility of the professional to retake and to remaking the meaning its experiences and decurrent marks of its psychic constitution of its insertion in the social one, finding in the work organization conditions such as in the construction of the symptom. It searchs an approach with the study concerning the Psychopathologie of the work with Christophe Dejours, in order to establish some parameters in the identification of the psychic suffering in the work and for approach in the psychic suffering of the teaching work. In the common sense it has, an agreement spread of that the certified doctor is a used resource to cheat the work, as escape of the work. However, concerning the citizen taken for the bias of the psychoanalysis, it can be thought that it has one to know that it is not known, one to know that it circulates in the language of the common sense, but that one does not meet in books of histories. It has histories not registered for the conscientious level, but that they emerge of the unconscious one in order to enroll itself in the life of the citizen. For another side, is necessary to recognize the existence of social factors that intervene in significant way with the establishment of the conditions of teaching work. This, at many moments is factor of disorganization for the professional, making it difficult the constitution of a space where it can see itself while subject, can remain itself as subject, if recognizing and if meaning for the work. To exceed the common barrier of the visual and auditory perception in the reading of the daily pertaining to school to identify the forms of the citizen to control or even though to express its suffering they are possibilities of if advancing in the agreement on the organization of the schools as well as of the produced bows in, component basic of the process the teach-learning.
Keywords: psychic organization, psychic suffering, psychopathologie of the work
A doença é, sem dúvidas, uma possibilidade real na vida de qualquer sujeito, mas o que pensar quando esse adoecimento combina exatamente com o dia agendado para uma viagem com a família ou então, logo após a vivência de conflitos com colegas ou com a equipe diretiva da escola? Ou ainda, o que pensar, quando o adoecimento se torna um impedimento para o trabalho numa escola da rede municipal, mas não para o trabalho, no turno inverso, numa escola da rede particular, por exemplo?
Têm-se acompanhado vários estudos, alguns ligados à psicossomática, que apontam a existência de fatores que levam ao surgimento da doença e que vêm produzindo uma contínua interrogação das ciências relacionadas à saúde. O "estar doente" ou "ficar doente" implica no reconhecimento da doença e, através dela, do sujeito que se coloca por detrás dos sintomas, sejam eles manifestadamente orgânicos ou não. O modo como as pessoas lidam com os sintomas e com as doenças é singular, do mesmo modo que o surgimento desta, no exercício de uma profissão.
Quando se fala ou se ouve falar em doença, geralmente relacionam-se a ela sintomas correspondentes. Com o olhar da psicanálise, busca-se sair do circuito doença - sintoma, para pensar que o sintoma está para além da denúncia de um mal orgânico. Embora possa corresponder ao adoecimento do corpo é como o sinal de um conflito, por vezes inconsciente, que também cumpre com a função de organização de um sujeito, ou seja, o sintoma, além de trazer a possibilidade de o sujeito se defrontar com o desejo recalcado, pode representá-lo, na medida em que nele se encontra a expressão do desejo.
Se o sintoma pode representar um sujeito, como se pode pensar sua explicitação no universo do trabalho, qual seria sua função quando emerge dentro desse lugar? Esta seria a primeira indagação que orientou o estudo acerca do uso de atestados médicos por profissionais da educação.
Inicialmente, realizou-se um levantamento quantitativo do número de atestados para tratamento de saúde, durante três anos consecutivos, e verificaram-se alguns dados que conduziram a uma análise qualitativa acerca de uma possível função organizadora que este recurso representa, no trabalho na educação. Assim, inicia o trabalho, tomando-se uma experiência de uma profissional da psicologia, inserida na rede pública municipal de um município da região do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
A questão inicial emerge da preocupação da administração municipal acerca do afastamento para tratamento de saúde, no âmbito institucional, isto é, a partir da linguagem dos números o que se torna um complicador, na medida em que se supõe que essa linguagem radicaliza e, portanto, determina um fato de modo inequívoco, principalmente para quem administra ou trabalha com a matemática contábil. No caso da administração, um número será sempre quantitativamente o mesmo, não importando muito os significados que esse número possa trazer como elemento contextual. Já numa análise da linguagem simbólica, no entanto, há uma transgressão desse radicalismo, quando se supõe que haja uma infinidade de significações possíveis para um número, desde que este seja tomado e relacionado a outros elementos contextuais significativos.
Na organização dos homens, há aspectos simbólicos que têm a ver com as marcas impressas pelo movimento de sua inserção na condição humana, que diz de sua constituição como Sujeito, mas também, há desde seu princípio, um ordenamento simbólico que tem a ver com a ordem dos fatos ou com a linguagem dos números. O estudo sobre a psicopatologia, no trabalho com profissionais da Educação ou sobre o que evidencia a sua existência na esfera da educação, poderia ser tomado de várias formas, mas optou-se por problematizá-lo respeitando a escolha institucional, ou seja, desde um levantamento estatístico do número de atestados para tratamento de saúde, durante um determinado período (três anos). Antes de dar continuidade, é preciso apontar uma questão que se considera significativa nessa abordagem institucional: a diferença entre trabalho na rede pública e particular produtoras de especificidades que não cabem em generalizações, fazendo, portanto, que os achados a partir dessa investigação, possivelmente possam ser diferenciados numa ou em outra rede.
É preciso apontar também, de saída, que no ensino público, seja municipal ou estadual, há um fator agravante - a política partidária - que faz com que, de quatro em quatro anos, seus profissionais passem por "provas", aprovações e reprovações, numa série de situações que lembram algumas das situações vividas por eles em sala de aula, desde o elogio à fidelidade e ao "bom" trabalho (inclusive de campanha), até as expulsões ou castigos, que os remanejamentos "por necessidade" produzem. Na verdade, são momentos difíceis para os professores e funcionários de um modo geral, que se tornam alvos fáceis, primeiro, por postulantes ao poder administrativo municipal e, depois, pelos que se elegem e buscam afirmação a partir dos erros supostamente cometidos pela administração anterior, que geralmente consideram o que vinha sendo realizado como um mau desempenho. A mudança da administração municipal ou estadual, sem dúvidas, é fator que deve estar no horizonte dessa discussão.
Em março de 2001, a administração municipal de um município do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul realizou um levantamento acerca dos afastamentos por licença para tratamento de saúde de servidores municipais da educação, compreendendo o período de 02.05.2000 a 31.01.2001, um período de 8 meses. Coincidentemente, era o tempo da implantação, através de realização de concurso público e nomeação de profissionais, do Serviço de Psicologia da Secretaria Municipal de Educação.
Os números eram inquestionáveis no sentido de que falavam de uma dura realidade. Afinal, poder-se-ia ir mais longe, radicalizar no sentido de imaginar que, se fosse um único trabalhador a se afastar do trabalho pelo período de 3.609 dias, isto significaria aproximadamente, nove anos e nove meses de afastamento do trabalho com a devida remuneração. É claro que, do ponto de vista administrativo, isso pesava de várias formas e, de certo modo, a psicologia era chamada a responder por aquilo que se imaginava de sua função, ou seja: por que tantas pessoas adoecem ou se afastam do trabalho na Educação? A primeira hipótese da administração partia de dados colhidos informalmente, ou seja, algumas delas já seriam conhecidas institucionalmente e tinham fama de "viver doente" no trabalho, mas saudáveis em outras vivências sociais, o que induzia a generalizações que apontavam como explicação, a "má vontade" ou a "preguiça" freqüentemente reforçada por notícias similares de outras secretarias, apontando uma vida social contrária à realidade da suposta "doença"?
O olhar da Administração, baseada na linguagem numérica, solicitava uma resposta rápida, até porque estava atrelada a um compromisso político, com data de início e fim determinados previamente, claro que, dependendo dos resultados, com direito à prorrogação. De modo contínuo, sem arrombos, o grupo encarregado de pensar e planejar um modo de modificar essa realidade foi se esvaziando, restando apenas três pessoas que deram por encerrado aquele momento, guardando cada uma para si as próprias conclusões. A administração voltou seu olhar para aqueles que concediam os atestados e buscou ali uma justificativa para os excessos. Falou-se em conversar com os médicos... enfim, não se sabe o que sucedeu a partir daquele momento. Por outro lado, iniciou-se um processo de registro, onde se buscou focar, com maior clareza, não apenas a quantidade de Licença Saúde, mas a natureza do afastamento e perceberam-se outras questões que mereceriam maior investigação, como por exemplo, as Licenças Gestantes. Sendo a Educação uma profissão onde o número de mulheres ainda é superior ao de homens, a probabilidade de gravidez, e o afastamento de 120 dias, poderia ser importante para a análise.
No período de maio de 2000 a janeiro de 2001, registraram-se vinte afastamentos por licenças-gestantes, o que significaria 2.400 dias de afastamento do trabalho em decorrência da maternidade. De 3.609 dias de Licença para tratamento de saúde se passaria a 5.445 dias de afastamento do trabalho. A partir disso, se poderia investigar a maternidade como sintoma ou ainda ir a direção aos afastamentos para tratar de pessoa da família, que ora aparece de modo direto, ou seja, o médico encaminha o atestado especificando o recurso da parentalidade, ora de modo indireto, quando exclui o recurso, fusionando os sintomas dos mesmos (o filho está doente e é a mãe que aparece como doente). Contudo, decidiu-se primeiramente centrar a análise nos dados mais gerais.
Nos levantamentos iniciados, tomando por base os registros internos da Secretaria, chegou-se a um número diferenciado quanto ao número de atestados para o período (564) que se justificaria, em parte, pelo acesso direto à administração, sem o registro na Secretaria, isto é, no caso de perícia, o funcionário se dirige diretamente à administração.
Construíram-se algumas tabelas ilustrativas, como:
A Tabela 1 indica que o número total de professores e funcionários vem-se mantendo com uma variação não significativa, apontando uma estabilidade relativa. Isso, no entanto, não esclarece sobre os movimentos internos necessários para manter a rede funcionando. Contratos emergenciais, convocações, nomeações e remanejamentos são atividades de rotina no sistema.
Se apenas fossem tomados os números brutos, se poderia dizer que, em 2000, obteve-se uma média de 8,4 dias de atestado por professores e funcionários; em 2001, a média subiu para 9,5 dias de atestado por professores e funcionários e, em 2002, baixou para 7,5 dias de atestado por professores e funcionários. Embora o número de professores e funcionários siga a devida proporção, ou seja, o aumento e a diminuição de dias de atestado é acompanhado pelo aumento e diminuição do número de professores e funcionários, o aumento no número de dias é significativo, ou seja, a diferença entre o maior e o menor número é de 1713 dias. Já a diferença entre o maior e o menor número de professores e funcionários é de dezesseis, o que elevaria, neste recorte, a média para 107 dias de atestado, ou seja, dezesseis pessoas teriam 107 dias de atestado.
No entanto, é preciso aprofundar a investigação para se avançar na discussão, pois, dentre estes números, têm-se professores e funcionários, homens e mulheres, além de escolas diferenciadas onde estes profissionais atuam.
Antes de se prosseguir na apresentação dos dados coletados, é preciso deixar claro que os dados não correspondem ao resultado exato do final do ano, pois, em um ano letivo, há concessões de Licença Interesse (quando o professor ou funcionário se afasta por um período não superior a dois anos sem remuneração), exonerações (saídas a pedido do professor ou funcionário), bem como contratações.
Num resgate dos números em 2002, obteve-se o seguinte registro:
Na tabela de número 2, pode-se observar que o número de professores corresponde a 65,4% do total de trabalhadores lotados na Educação em 2002. Destes, 47,3% tiveram algum tipo de afastamento do trabalho pela via do atestado para tratamento de saúde. E, dos 240 professores que se afastaram do trabalho para tratamento de saúde, 97,1% eram mulheres, maioria absoluta. Se fosse retomada a tabela de número 1, se teria a média aumentada de 7,5 dias, por pessoa, para 14,6 dias por pessoa, considerando que 400 das 779 pessoas recorreram ao atestado para tratamento de saúde. Em termos mais globais, poder-se-ia ir aos demais funcionários e profissionais que atuam junto a Educação, para perceber que não se poderia afirmar ser específico dos professores um alto índice de atestados médicos. No máximo, pensar sobre como o sintoma orgânico se faz presente na Educação ou de que o atestado médico é um recurso de afastamento do trabalho de uso comum na educação. O interessante é que, de um total de profissionais que atuam na Educação, em 2002, 51,4% buscaram afastamento pela via do atestado médico e, embora se possa observar que o índice maior não se encontra com os professores, ainda assim os problemas decorrentes destes afastamentos não são passíveis de mensuração.
O fato de a maioria dos professores serem do sexo feminino justifica, em parte, um outro dado não refinado pela pesquisa, mas, facilmente constatado que indica um índice elevado de atestados da área da ginecologia e obstetrícia. Através da observação do trabalho na Educação, está sendo possível pensar que o vínculo de confiança que se estabelece entre a paciente e o profissional desta área, permite com que vários sintomas, tenham uma passagem ou expressam as questões subjacentes pela via da ginecologia. Assim, têm-se algumas professoras que iniciam o percurso pela ginecologia, e aí param ou, dependendo do "desvendamento", dirigem-se a outras áreas da medicina e, por vezes, chegam à psicologia. Além disso, vários relatos sugerem que os profissionais dessa área (ginecologia) tendem a um atendimento mais personalizado, o que permite, no dizer delas, o "conversar" ou o "desabafar", que inclui, muitas vezes, conselhos por parte do profissional da medicina, para enfrentar as dificuldades na vida doméstica e do trabalho.
É possível observar, então, que muitos destes atestados, funcionam amparados pela legislação, como instrumento de administração de conflitos reais ou imaginários, e encobrem outras questões, ou seja, pela legislação qualquer trabalhador e, neste caso o professor, tem direito a afastar-se do trabalho, ou justificar sua ausência assim que se julgar incapacitado para o exercício de sua função e for referendado pelo parecer de um outro profissional - o médico. Mas, como se pode observar, os números apontam para a existência de questões, que, no entanto, transcendem uma análise quantitativa, na medida em que não indicam os organizadores dessa questão. Por outro lado, abre a possibilidade de se pensar que, para além de uma manifestação sintomática, os atestados médicos poderiam ser um representante significativo de um sintoma institucional.
Como sintoma institucional, sua abordagem conduziria a outras questões relacionadas ao social e aos sintomas da sociedade contemporânea. Certamente que se poderia avançar muito com o deslocamento de um problema que vem sendo individualizado, personalizado, para uma outra dimensão - a dimensão social do afastamento para tratamento de saúde ou o distanciamento necessário para continuar trabalhando.
Outros pontos que emergem do levantamento realizado apontam para situações como:
- Um número significativo de atestados e dias de atestado de professores da educação infantil e do currículo por atividades;
- Dentre os professores, de modo geral, há o predomínio de atestados para cobrir meio turno de trabalho ou poucos dias;
- Dos que recorrem seguidamente aos atestados encontra-se numa distribuição hierárquica, as seguintes questões relacionadas:
1 Professor com dificuldades no desempenho da profissão (planejamento, disciplina, participação);
2 Professor com dificuldade de vinculação, de se inserir ou construir relações com o grupo de trabalho;
3 Professor com sintomas orgânicos já cristalizados associados a um histórico de dificuldades de fundo emocional (doença de fundo psicossomático);
4 Professor com dificuldades na vivência familiar (incluindo vínculos afetivos e doenças familiares).
5 Professores com doenças específicas (tumores benignos, malignos, outras doenças...).
Acredita-se que a investigação, num primeiro momento quantitativa, dos pontos citados, poderiam vir a render novos achados acerca das manifestações de sofrimento e modo de organização pelo trabalho.
Conclusões e novas incursões
Iniciou-se o trabalho a partir do número de Atestados para tratamento de saúde, na área da educação, no entendimento de que o trabalho da psicologia poderia se organizar a partir do que a Instituição apontava como sendo um de seus problemas administrativos. Buscou-se uma organização de números, acreditando-se que, a partir deles, se poderia fazer emergir novas informações que produzissem algum movimento no pensamento institucional, previamente estabelecido, ou seja, a idéia de que os professores ou funcionários recorriam ao atestado como forma de burlar as regras de trabalho.
Obteve-se o índice em 2002, de aproximadamente 51,4% de profissionais (entre professores e funcionários) que buscaram o afastamento para tratamento de saúde, o que demonstra a validade da preocupação da administração municipal, como um todo, ou seja, algo se passa nesse contexto que merece ser mais bem observado ou investigado, pois o cotidiano escolar precisa ser pensado, de modo que se garanta a presença de profissionais em quantidade suficiente para o atendimento e manutenção desse "lugar" como espaço de discussão, criação, informação e de transformação social.
Dos três anos, o ano de 2001 foi o ano com o maior número de trabalhadores na educação, entre funcionários e professores. Para o serviço de psicologia, foi um ano de retrabalho, no sentido de que foi necessário retomar toda a discussão frente às diferentes formas de abordagem e organização do trabalho em psicologia, com a nova administração pública municipal.
Por outro lado, o trabalho no ano de 2002 produziu algumas possibilidades interessantes, movimentando o sistema na medida em que atualizou velhas questões que ainda se faziam presentes, embora não fossem mais reconhecidas como parte do sistema. Uma dessas questões foi justamente a da interrogação acerca do papel ou da função do psicólogo na educação. Os pedidos (não demandas) devem levar a clínica até a escola ou levar a escola à clínica?
Enfim, os atestados de afastamento para tratamento de saúde traduzem muito mais do que aparentemente se verifica. Sem dúvida que é um sintoma institucional na medida em que se repete numa lógica anual, envolvendo um número significativo de professores e funcionários. Muitos dos fatores psicológicos (emocionais e organizativos) ficam encobertos num suposto anonimato dos números e encontram continência nos atendimentos médicos. Em alguns casos acompanhados neste percurso, foi possível observar que a ciência se vulgarizou de tal modo, que muitos pacientes tomam os sintomas descritos em livros, revistas ou mesmo em bulas de psicofármacos ou outros medicamentos, para representar a cena da doença. Entendem-se esses atos, no entanto, como um modo de fazer um afastamento aceitável, mesmo que suspeitável, ou seja, se pode-se até desconfiar de alguns adoecimentos, mas a palavra do médico, via concessão do atestado, pela legitimidade conferida pelo título de doutor, cria o ambiente favorável para uma possível aceitação
De qualquer modo, as investigações nos registros trouxeram alguns achados interessantes, que poderiam tornar-se referência para discussões e trabalhos, tais como: a repetição de afastamento de um mesmo professor ou funcionário com a recorrência a vários médicos com a obtenção de vários atestados de poucos dias, ou a peregrinação a médicos de várias especialidades, somando-se a isso o relato de que tais professores ou funcionários enfrentam dificuldades no relacionamento interpessoal, no domínio de conteúdo, na metodologia ou outras especificidades; professores e/ou funcionários com patologias diagnosticadas e que mantêm uma inserção sem maiores sobressaltos, desde que, com acompanhamento especializado; professores e/ou funcionários com problemas localizados num tempo específico (dois ou três meses associados a dívidas, conflitos familiares, perdas...) ou a um espaço específico (numa determinada escola) e professores e/ou funcionários que respondem de modo diferente conforme a rede, municipal, estadual ou particular.
Por outro lado, cada "número" encontrado pode revelar uma história e fazer parte de outras tantas histórias, pode ser nomeado, individualmente e coletivamente, e constitui-se ou significa- se a partir das trocas sociais.
Quando se começa a observar de longe as variações dos números de afastamento em cada época do ano, evidenciando determinados períodos, contextualizando socialmente em anos, vê-se que algumas idéias vão ganhando forma e, dentre elas, a de que a o atestado para tratamento de saúde não pode ser tomado simplesmente como uma irresponsabilidade do professor ou uma falta de vontade de trabalhar, ou como muitos administradores, diretores, coordenadores e os próprios professores dizem acerca daquele que "vive doente" - "(...) não quer nada com nada".
A questão exige que se aprofunde a discussão rumo ao sujeito do desejo, buscando qual a significação que este obtém a partir desse adoecer. Mas também rumo ao que a sociedade ou a cultura institui como possibilidade de significação para esse sujeito - no caso o trabalho na educação. O que marca a humanidade é justamente a possibilidade do sujeito ser significado a partir da linguagem. Esta é efeito da repressão que supõe um sujeito dividido - consciente/inconsciente. No social, se reconhece a humanidade no contato com o outro social e isso diz também da organização imprescindível para a manutenção desse aparato organizativo. Nessa análise, chega-se à educação e ao trabalho como possibilidade real do sujeito organizar-se, significar-se, constituir-se psiquicamente.
Pode-se observar que o trabalho tem um significado que só pode ser tomado a partir do que o próprio sujeito detém acerca de suas marcas, embora haja generalidades interessantes, ou seja, há um limite que não permite afirmar que todos os professores que recorrem ao afastamento para tratamento de saúde estejam produzindo um sintoma que revele isto ou aquilo. Embora seja possível afirmar ser interessante que professores da rede pública costumam recorrer ao afastamento para tratamento de saúde por uma quantidade razoável de motivos, nem sempre relacionados com o sintoma registrado efetivamente na justificativa para o afastamento. Isso, por sua vez, denuncia a presença de uma outra ordem de "motivos" nem sempre acessíveis ao próprio sujeito ou entendível em nível institucional.
O trabalho tem funções que transcendem a ordem da manutenção da sobrevivência manifestada frente ao questionamento: "- Por que trabalha?" Dentre estas, observa-se a função de representação do sujeito que vem a ser função de organização. Um professor faz uma escolha ao trabalhar na educação e isso tem a ver com as marcas subjetivas que orientam sua constituição e com os recursos que dispõem para lidar com aquilo que emerge nesse contexto. Assim, há quem encontre no exercício de suas atividades possibilidades de retomar as próprias questões de forma criativa. Por outro lado, há quem não encontre nesse trabalho um lugar desde onde possa se significar socialmente e produza, então, um sintoma que o represente. Neste ponto, surgem outras possibilidades de investigação, pois se vai em direção à repetição como o que traz de volta o que não encontrou forma de expressão e onde se encontram não apenas os atestados médicos como recurso, mas o presenteísmo e o acting out, por exemplo.
Aqui se toma Dejours (1994) com a troca do termo psicopatologia do trabalho por psicodinâmica do trabalho, para pensar sobre o cotidiano das escolas. Refazendo a leitura que ele realiza no âmbito do trabalho e adaptando-a ao trabalho em educação, acredita-se que se produza uma leitura interessante, na medida em que se observa, com uma certa clareza, aquilo que ele trata como sofrimento psíquico presente nos professores, assim como os mecanismos utilizados para lidar com ele.
Antes de se prosseguir, no entanto, é preciso apontar que, mesmo com a troca de termo (psicopatologia-psicodinâmica), Dejours vem sendo criticado, principalmente pelas correntes que pensam no Trabalho como categoria de análise social, que sugerem que essa visão deixa toda responsabilidade do lado do sujeito - trabalhador, assim como todas as abordagens que possam se organizar a partir da psicanálise, subestimando outras categorias como capital e poder, por exemplo. É certo que o termo psicopatologia (origem de sintomas ou doenças psíquicas) já limita a leitura, no sentido de tomar o sofrimento como expressão de doença e, mesmo com a divisão que Dejours (1996), aponta entre sofrimento patológico e criativo, fica-se preso numa possível identificação de sofrimento, limitando-se a entender que, na impossibilidade da livre organização do trabalho - uma das vias de se lidar com o que emerge no contexto do trabalho - resta ir encontrando novos modos de expressão do sofrimento psíquico. Há, portanto, risco de, aos poucos, se assumir a denúncia do sofrimento perdendo todo o sentido que este possa vir a ter, na posição discursiva do sujeito. Mas também não se pensa a posição discursiva como um ato individual, assim como não existe sujeito sem que este seja lançado numa cultura com todas as suas implicações. Acredita-se que as críticas que lançam questões fundamentadas no pensamento maniqueísta (certo/errado - culpado/inocente - vítima/algoz) são difíceis de ser tomadas em discussões produtivas.
Entende-se que o sofrimento psíquico possa também vir a se configurar numa escolha do sujeito e, como tal, constitui-se numa saída para a expressão do sujeito do desejo, ou seja, que não se pode tomar o sofrimento psíquico utilizando o pensamento maniqueísta - é bom/ruim. Um pouco menos fechado que a teoria do Burnout ou do Stress, a possibilidade de se aceitar o sofrimento psíquico como um conceito que defina parte do universo do trabalho pode ser o de finalização de processo, ou seja, busca-se prevenir mas... é inevitável a emergência do sofrimento psíquico em alguma circunstância do trabalho.
Não se trata, portanto, de descrever o que acontece com os professores, ou por que usam de atestados para buscar um afastamento do que deveria ser um momento de ressignificação de conteúdos..., e modos de subjetivação. Não se trata de "achar" um diagnóstico que explicite o quadro atual ou uma chave de interpretação para o sofrimento psíquico, mal-estar na educação ou outra coisa do gênero. Pode-se até chegar à indicação de pequenos procedimentos, embora se acredite que isso faça parte da intervenção de outras áreas e que dizem da importância do trabalho interdisciplinar ou de vários profissionais de diversas áreas do conhecimento, tendo em vista a dimensão do trabalho na educação e principalmente do ensino público.
Enfim, há um transtorno a ser administrado e que afeta toda a organização da escola quando na ausência de um de seus professores e que precisaria ser problematizado institucionalmente pela Administração, a partir de dados concretos, tais como: escolas com maior ou menor incidência de afastamentos, professores e funcionários com o maior número de atestados de saúde, sintomas recorrentes usados na justificativa dos afastamentos, áreas da medicina e profissionais da saúde que mais referendam os sintomas organizadores dos afastamentos. Com tais informações, acredita-se que talvez também se pudessem observar os fatores organizadores do trabalho como orientadores na escolha dos sintomas, ou seja, carregar excesso de peso, sentar-se em cadeiras projetadas para crianças por um período longo, pode produzir sintomas em nível de corpo a serem tratados pelo ortopedista, mas há que se reconhecer que esse corpo é habitado e que passam por ele outras questões que se expressam no posicionamento ou escolha do professor. Não se podem descartar os problemas reais do trabalho do professor, mas perceber que este não se reduz a um corpo. Não se pode perder de vista que a escolha de um trabalho é a expressão do desejo ou da impossibilidade de seu reconhecimento, seja desde a posição de sujeito ou da posição de objeto.
Na análise dos dados subjacentes ao presente estudo, como a existência de um grande número de atestados para meio turno ou um dia, entende-se que os professores que recorrem ao atestado para tratamento de saúde com uma certa regularidade utilizam-no como recurso suplementar para dar conta de situações desorganizadoras, seja de origem familiar ou do próprio trabalho. Neste caso, o afastamento produz uma escansão que afasta a ameaça temporária de desorganização psíquica seja ela produto real ou da fantasia do sujeito. Por vezes, esse recurso é individual, mas, por vezes, é recurso de um grupo e, neste caso, refere-se a um recurso institucionalizado pelo grupo.
Do mesmo modo que se entende por esse estudo, ter elementos que corroboram a idéia do atestado para tratamento de saúde como um recado, seja do sujeito consciente ou do sujeito inconsciente, de que houve uma quebra nos recursos internos disponíveis que exigem a presença de um novo organizador para manter as condições básicas de pensamento e troca com a realidade, ou seja, a emergência do sintoma. Assim, propõe-se a idéia do sintoma real ou fantasiado como uma expressão legítima do sujeito do inconsciente. Ao invés de fugir das questões como sugere o senso comum, recuperam, para formação do sintoma, uma condição frágil, mas eficaz no sentido de manter sua organização psíquica e garantir a troca com a realidade.
Em nível "preventivo", poder-se-ia sugerir que talvez alguns aspectos teóricos, presentes no campo de outras ciências como a Administração, o Direito, a Economia e a Contabilidade, talvez pudessem trazer elementos significativos para a organização do cotidiano da Educação, permitindo-lhe descobrir um modo de manter esse aparato em funcionamento, considerando o contexto organizativo da escola, ou seja, seu relacionamento com as demais instituições sociais de caráter público ou privado.
Nesse ponto da discussão é preciso reconhecer que as ações em nível de recursos humanos na educação, ainda estão muito personalizadas, ou seja, dependem da pessoa que assume a administração geral. Assim, cada administrador (secretário, diretor...) implementa fórmulas de organização escolar baseando-se, na maioria das vezes, nos conhecimentos da própria vivência e com base no senso comum. Entretanto, há que se reconhecer que o senso comum é um elemento importante na troca social, a questão é que geralmente ele vem impregnado de pré-conceitos e valores moralmente aceitos ou rejeitados, facilmente reduzindo o pensamento ou as ações numa visão maniqueísta - bem/mal; certo/errado. Sua ocorrência contínua não problematiza as questões, transforma-as em opiniões constituídas pela vivência de cada sujeito. Cabe ressaltar ainda que o senso comum não se organiza pela escassez de informações, mas com a simplificação das mesmas. Ler o mundo com os olhos da experiência vivenciada é também uma opção do sujeito de desejo que não se submete às construções teóricas sociais.
Embora o professor, e de certo modo os administradores das instituições escolares, já tenham visto e ouvido muito acerca da psicologia, da psicanálise e do que se coloca nas bases do desenvolvimento humano através das ciências que teorizam acerca da humanidade e, dentre elas, a psicologia, há ainda o predomínio do senso comum nos encaminhamentos dos problemas, o que dificilmente sustenta discussões e trabalhos consistentes, que possam movimentar os discursos da educação e produzir ressignificações de ações. Neste sentido, talvez se pudesse pensar que os afastamentos para tratamento de saúde, os conflitos de toda ordem do universo escolar poderiam trazer novos indicadores para possíveis discussões, se o compromisso com a linguagem fosse mantido institucionalmente, buscando encontrar, através dela, a posição em que o sujeito se coloca frente ao próprio desejo. Esse é um exercício contínuo, considerando que a linguagem se coloca justamente no vazio do deslocamento do sujeito do desejo e seu compromisso é orientar a busca do que organiza nossas ações num continuum ressignificar.
A educação é um campo que favorece o sujeito que opta por trabalhar nela, o enfrentamento de velhos problemas em novos momentos, velhos conflitos em novos relacionamentos, o encontro do antigo no novo, isso pode tanto fazer parte de um trabalho de ressignificação quanto de continuidade ou repetição de velhas fórmulas. Assim, é um trabalho que pode ir-se constituindo de modo dinâmico e criativo ou paralisar numa repetição frente a uma determinada questão. Tanto em uma, quanto em outra forma, é importante não perder de vista o sujeito representado.
Para finalizar, pensa-se que o que pode movimentar esse quadro discursivo atual seja um trabalho a ser construído a muitas mãos, por vários campos da ciência, sustentado por um ideal que ultrapasse os quatro anos de mandato político-partidário e que não pertença a um grupo. Assinalando também a necessidade do professor sair da posição de vitimização, para se implicar e se responsabilizar pela mudança de posição... se isso vier a se constituir a expressão de seu desejo como sujeito e profissional.
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Recebido em 04 de fevereiro de 2003
Aceito em 12 de fevereiro de 2003
Revisado em 22 de julho de 2003
Notas
1 Estudo resultado da Dissertação de Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ/RS
2 Recalcamento: "processo de afastamento das pulsões às quais é rejeitado o acesso à consciência". (Chemama, 1995, p.185).
3 Acting out - "termo usado para designar as ações que apresentam, quase sempre, um caráter impulsivo, relativamente em ruptura com os sistemas de motivação habituais do sujeito, relativamente isolável no decurso das suas atividades, e que tona muitas vezes uma forma auto ou hetero-agressiva". (Laplanche, 1992, p.6).