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Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar e Subj. vol.4 no.1 Fortaleza Mar. 2004
ARTIGOS
Psicanálise e remédio antidepressivo, em As Fúrias da Mente, de Teixeira Coelho
Pascoal Farinaccio
Aluno do Programa de Pós-Graduação do Doutorado em Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Autor do livro Serafim Ponte Grande e as Dificuldades da Crítica Literária. End.: R. Padre Manoel Bernardes, nº780 ap. 10 - Parque Taquaral Campinas -SP CEP: 13087-320. e-mail: pascoalf@hotmail.com
RESUMO
A personagem "ele", do romance As Fúrias da Mente, de Teixeira Coelho, sofre de depressão. Este artigo procura analisar o difícil e doloroso esforço de "ele" para se curar e a reflexão que propõe sobre a cultura moderna, a psicanálise e o remédio antidepressivo.
Palavras-chave: Teixeira Coelho, romance brasileiro, crítica literária, Psicanálise, remédio antidepressivo
ABSTRACT
The character named "he" in As Fúrias da Mente, by Teixeira Coelho, suffers from depression. This article attempts to analyse difficult and dolorous effort his to cure himself and his reflection about modern culture, psychoanalysis and the use of antidepression medicine.
Keywords: Teixeira Coelho, brazilian novel, literary criticism, Psychoanalysis, antidepression medicine
Crítico de cultura, Teixeira Coelho traz para a prosa romanesca uma dimensão reflexiva muito relevante, a qual é exatamente um princípio estruturante do seu texto. Escrevendo sobre Niemeyer, um Romance, Celso Favaretto chama a nossa atenção para a "hábil inteligência do artifício" de Teixeira Coelho, o andamento ensaístico muito peculiar de sua prosa, que confere forma à "mais interessante modalidade de narrativa da atualidade, a ficção-ensaio"(Favaretto, 2001, p.11). Também As Fúrias da Mente, romance posterior a Niemeyer, é uma "ficção-ensaio", certamente uma modalidade narrativa muito interessante (não estamos convictos, porém, de que seja "a" mais interessante, considerada a pluralidade de modalidades hoje vigente). Seja como for, não resta dúvida de que a "ficção-ensaio" injeta sangue novo no gênero romanesco, renovando-o à altura das questões contemporâneas, ao tempo em que descortina novas perspectivas para a representação literária da realidade.
O protagonista de As Fúrias da Mente é "ele", pronome que aparece destacado no texto em negrito e itálico, o que, de imediato, parece-nos sugerir uma determinada linha de leitura e de interpretação em torno do dilema da identidade pessoal. De fato, "ele" se descobre um dia vítima da depressão. O que vem a ser a depressão e quais suas possíveis causas constituem os problemas centrais para "ele". A tomada de consciência do estado depressivo é um processo lento e, em si mesmo, doloroso. A depressão virá a modificar sua personalidade? "Resiste à tentação de dizer 'uma depressão tem a mim' porque seria admitir que a depressão está fora dele. Não. A depressão está nele, ele é a depressão" (Coelho, 1998a, p.12). Uma vez consciente de que está "doente" (admiti-lo, como esclarece, já é um grande passo!), "ele" se lança à autoreflexão e, mais pragmaticamente, busca ajuda médica, porque quer vencer a depressão e alcançar a cura.
Por que teria ficado deprimido? "Ele" remonta ao passado mais remoto: quando criança, cinco ou sete anos, começara a comportar-se seriamente (de modo - pergunta-se - "natural"?), motivo de elogio de seus pais. Supõe que a máscara da seriedade lhe grudara, já à época, à cara; daí, talvez, a depressão dos dias atuais. Bem, essa é apenas uma hipótese. Outra: na juventude, sempre cultuara imagens que tinham, na depressão ou na melancolia, um valor positivo. Nesse caso, a depressão mostra-se como uma "opção cultural" que teria inadvertidamente tomado: "A tristeza, a melancolia como sinal distintivo do jovem diferente, do jovem com tendência artística, do jovem interessante, sensível, refinado: deixara-se dominar por um imaginário do século passado que sobrevivera até mais da metade deste" (Coelho, 1998a, p.62).
A partir dessa constatação primeira, passa em revista as correntes filosóficas, a crítica de arte e a própria arte que o influenciaram e que, supõe, possivelmente estão na raiz de sua depressão atual. Sartre e a "náusea", por exemplo. Venerara o Sartre da "angústia existencial", chegara mesmo a "sentir" a náusea descrita pelo filósofo francês. Walter Benjamin e a idéia de que a melancolia traz a dose necessária de pessimismo requerida pelo pensamento crítico. Enfim, toda a "arte séria" e sua relação de "negatividade" face à realidade. Exemplos: o sorriso da aniquilação, da morte, de Mona Lisa; as vênus delicadamente melancólicas de Boticelli; a música erudita como manifestação do desejo de morte, de fuga romântica da vida prática; Camus e a questão do suicídio... Esse acervo cultural de que se nutriu e que tem na categoria da negatividade um valor forte não o teria, afinal, empurrado para a depressão?
Talvez - "ele" cogita - o problema seja de geração. "Ele" pertenceu à geração dos anos 1960, de 1968. À época, os jovens, dentre os quais "ele", revoltaram-se contra a "tirania da razão" exercida pelas instituições sociais, em busca de uma vida mais livre. Assim, envolveram-se até o pescoço com problemáticas culturais, políticas, econômicas. Atitude contrária à da geração pós-68, a de filhos conservadores de pais libertários. Essa última teria instaurado uma sorte de "sensibilidade de representação": os jovens não se envolvem com nada ou, antes, sabendo que todas as experiências lhes são acessíveis, jogam com elas, sempre mantendo um estado de espírito de neutralidade e distanciamento. Mas "ele" pertenceu à outra geração e quiçá a depressão, supõe, seja uma herança geracional: "... sob o forte estímulo de uma consciência cultural coletiva. A depressão como uma herança cultural, um fantasma cultural passando de uma geração para outra, ele pensa" (Coelho, 1998a, p. 32).
"Ele" se enreda mais e mais na autoreflexão. Trata-se de um intelectual obviamente muito refinado e que não aceita respostas fáceis. Daí o primado de questões de cunho filosófico e o ritmo ensaístico desta ficção, feita de avanços e recuos, retomada das questões colocadas inicialmente, que são desdobradas, analisadas de diversos ângulos e, assim, complexificadas. Se a depressão é resultado de uma "opção cultural", não seria o caso de renegar o aprendido, de - para usar sua própria expressão - "deseducar-se"?
E se, diferentemente, a depressão for um resultado derivado do "mundo moderno"? Não uma "opção", mas sim uma "inevitabilidade": "Ou simplesmente uma inevitabilidade do mundo moderno gerador de vidas danificadas, um mundo que alimenta constantemente a insatisfação como única mola que o faz girar em seu processo sem destino e sem projeto que tem na autolamentação sua única justificativa" (Coelho, 1998a, p. 151). Como se curar, então, se a depressão é, por assim dizer, um destino inevitável?
Chegados a esse ponto convém trazer à baila o elemento que desencadeia uma verdadeira reviravolta na fina argumentação desenvolvida por "ele": o remédio antidepressivo. O médico que procura recomenda-lhe um tratamento quimioterápico. A deriva da cura desloca-se, a partir daí, de um eixo essencialmente cultural para outro, o da bioquímica: a depressão como resultado de "um desequilíbrio de substâncias no cérebro", "um distúrbio do nível de serotonina no cérebro". "Ele" faz recurso à pílula.
Em entrevista dada por ocasião do lançamento de As Fúrias da Mente, Teixeira Coelho adianta uma informação importante: "Talvez esclareça um pouco dizer que pensei inicialmente em dar ao livro o título de O Homem-Glândula. Existe mais de uma descrição científica do cérebro como sendo uma glândula. A gente tem uma idéia arcaica, clássica, de que o cérebro é a mente, ou o espírito ou quase uma massa divina colocada numa caixa de ossos..." (Coelho, 1998b, p.6). Considerado o cérebro na qualidade de "glândula", abre-se um novo leque de perspectivas para o tratamento da depressão. Sobretudo, perspectivas alternativas à psicanálise. Quanto a isso, o autor é deveras incisivo: "O que me assusta tremendamente num tipo de diálogo psicanalítico é que se trata de diálogo que não sai do mesmo lugar, que se faz em cima de um remoimento do passado que me parece destrutivo. Considero o diálogo proposto pela psicanálise muito entravante (...) Nós vivemos muito pouco, não podemos ficar fazendo dez anos de psicanálise para poder tocar o outro (...) A psicanálise não é factível, digna, justa". E o arremate do juízo sobre a psicanálise não poderia ser mais peremptório: "Ainda assim a psicanálise, como poesia, me interessa. Como terapia, porém, ela surge como último grito do movimento xamanista, que é pré-modernidade" (Coelho, 1998b, p. 6-7).1
Citações um tanto longas, mas decisivas para o avanço de nossa própria interpretação. Como dissemos, a introdução do medicamento na trama narrativa praticamente cinde a argumentação de "ele" ao meio. De um lado, o ingrediente químico e, de outro, a cura "tradicional" para a depressão, ou seja, a psicanálise, a "cura pela palavra". "Ele" pensa que, com o desenvolvimento da psicofarmacologia, será dado, enfim, o quarto golpe na auto-imagem idealizada que o homem tem de si mesmo. Depois dos abalos produzidos por Copérnico, que retira a Terra do centro do universo; por Darwin, que revela a origem animal-vegetal-mineral do homem; e por Freud, que revela as forças inconscientes que se subtraem ao domínio pleno do ser humano, temos então a ciência neuroquímica que desvela o cérebro como "uma enorme glândula secretando fluidos cuja combinação anima a máquina humana ou a desarranja". Como se nota, "ele" se vale de uma argumentação original de Freud para desalojar, agora, o próprio Freud do lugar central que ocupa nas discussões em torno da vida psicológica do homem.
"Ele" considera toda a obra freudiana como um "último esforço místico" destinado a confirmar a "imagem soberba" que o homem projeta de si mesmo desde o Iluminismo. Nessa perspectiva, enfatiza ainda uma vez as determinantes bioquímicas que agem sobre a mente: "A explicação pela palavra, e a conseqüente cura pela palavra - pelo verbo, pelo logos, pela argumentação - , tivera seus domínios vastamente desapropriados: sobrava-lhe agora pouco ou menos terreno de manobra. O caráter, a personalidade, não era mais (não era mais apenas) uma construção humana, uma construção daquilo que é considerado próprio do homem: a idéia, uma idéia de si mesmo. Líquidos, substâncias, matérias respondiam por grande parte dessa operação". De resto, "ele" pensa que, em relação à análise psicanalítica, o remédio constitui "um recurso mais rápido, mais eficaz e mais barato; um recurso mais democrático" (Coelho, 1998a, p. 97, 59, 104 respectivamente).
Avaliação que, a bem da verdade, não assustaria o próprio Freud. Já em 1926, num artigo que redige para a Enciclopédia Britânica, Freud procura adivinhar os destinos da psicanálise; ora, os termos de que se vale na ocasião não estão distantes das observações de "ele": "No futuro, provavelmente se atribuirá importância bem maior à psicanálise como ciência do inconsciente do que como procedimento terapêutico" (apud Souza, 1990, p.9). Estamos longe de possuir a competência necessária para avaliar o acerto da conjectura freudiana, se ela se confirmou ou não no tempo presente, bem como não dispomos de conhecimento sobre a psicofarmacologia, que é evidentemente um saber especializado e que nada tem a ver com o que se passa no mundo das letras.
O que não nos impede de notar, entretanto, que certas observações de "ele", no que respeita à psicanálise, são excessivamente redutoras e não fazem justiça à obra freudiana. O edifício de Freud de maneira alguma se confunde com um mero "esforço místico", como chega a propor, tampouco é uma "poética" que teria como objetivo "tornar realidade os sonhos infantis" (Coelho, 1998a, p.115). O que Freud elaborou em sua obra, para além da dimensão terapêutica da psicanálise, é uma teoria da cultura, um modo de se pensar e interpretar a cultura moderna, como aliás já o demonstrou cabalmente, entre outros, Paul Ricoeur em Da Interpretação.
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud mostra que a base da civilização, o dado em que essa se funda é a "renúncia às pulsões instintivas": os membros da comunidade, em favor de manter a coesão do grupo social, devem necessariamente limitar suas possibilidades individuais de prazer. Daí, a propósito, ultrapassando o desejo individual, a existência de uma instituição regulamentar como o Direito. A civilização já nasce, pois, sob o signo da repressão. Essa, por sua vez, está na origem de diversos tipos de neurose: "On découvrit alors que l'homme devient névrosé parce qu'il ne peut supporter le degré de renoncement exige par la société au nom de son ideal culturel, et l'on en conclut qu'abolir ou diminuer notablement ces exigences signifierait un retour à des possibilités de bonheur" (Freud, 1929/1971, p.34) O que Freud denomina uma "renúncia cultural" (uma não-satisfação de desejos essenciais) rege o vasto domínio das relações sociais entre os homens.
Ora, até onde sabemos, a hipótese de Freud sobre a repressão dos instintos na civilização ocidental permanece válida, malgrado as mudanças histórico-culturais. "Ele" se diz "farto de cultura", e a hipótese freudiana é cultura, uma interpretação da cultura. "Ele" se recusa a acreditar que sua depressão possa advir da representação que faça de si mesmo e das relações singulares que mantém com os outros (Coelho, 1998a, p. 60). "Ele", coerente, faz recurso à pílula e começa, efetivamente, a se curar: aos poucos, sente-se melhor, sai da depressão. Com o remédio, sente enfim que pode encarar a "fúria da mente" diretamente nos olhos. Caberia saber se nós, leitores, estamos preparados para olhar de frente o novo mundo descortinado pela "ficção-ensaio" de Teixeira Coelho: o mundo do homem do futuro, o "homem-glândula", capaz de se "construir" num sentido propriamente laboratorial. Como se sabe, no laboratório científico a palavra "cultura" tende a ultrapassar o seu significado antropológico.
Referências
Coelho, T. (1998a). As fúrias da mente: Viagem pelo horizonte negativo. São Paulo, Iluminuras. [ Links ]
Coelho, T. (1998b). Entrevista concedida a Aurora Bernardini e Manuel da Costa Pinto. Cult: Revista Brasileira de Literatura, (13), 6-9. [ Links ]
Coelho, T. (2001). Niemeyer, um romance. São Paulo: Iluminuras. (Originalmente publicado pela Geração Editorial em 1994). [ Links ]
Favaretto, C. (2001). Sobre Niemeyer, um romance de Teixeira Coelho: Prefácio. In C. Teixeira Niemeyer, um romance (pp. 9-11). São Paulo: Iluminuras. [ Links ]
Freud, S. (1971). Malaise dans la civilisation (Ch. Et. J. Odier, Trad). Paris: Presses Universitaires de France. (Originalmente publicado em 1929. [ Links ]
Souza, P. C. (1990). Sigmund Freud & o gabinete do Dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Recebido em 02 de dezembro de 2003
Aceito em 17 de dezembro de 2003
Revisado em 05 de fevereiro de 2004
Nota
1 Observe-se que tais observações do autor já haviam sido elaboradas anteriormente, em plano ficcional, mais precisamente, no romance Niemeyer. Aí, o frustrado biógrafo de Niemeyer tenta dissuadir sua mulher, Beatriz B., da suposta eficácia das sessões de psicanálise freqüentadas por ela: "Eu vivia repetindo para Beatriz B. (...) que a psicanálise me interessava como poesia e que não me via gastando meu pouco dinheiro com consultas psicanalíticas que teriam o mesmo efeito que consultas com videntes, cartomantes ou sacerdotes, os quais, em todo caso me cobrariam muito menos e que não me impediriam de fazer uma viagem, por exemplo, que me eliminaria temporariamente alguns problemas interiores que eu poderia ter" (Coelho, 2001, p. 54-55; grifo do autor).