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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.3 Fortaleza Sept. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Édipo em mim: uma discussão sobre a subjetivação nos limites do trágico1

 

 

Tania Mara Galli FonsecaI; Alessandro ZirII

IProfessora Titular do Instituto de Psicologia da UFRGS (Brasil), docente dos Programas de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa/UFRGS. End.: R. Campos Salles, 262. Bairro: Boa Vista. Porto Alegre, RS. CEP: 90480-030. E-mail: tfonseca@via-rs.net
IIDoutorando do Interdisciplinary Programme, Dalhousie University (Halifax, Canada), bolsista de doutorado pleno no exterior da Capes e membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências (GIFHC) do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. End.: R. Mostardeiro 1035, apto 501. Bairro: Moinhos de Vento. Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90430-001. E-mail: azir@dal.ca

 

 


RESUMO

O presente texto discute, a partir do personagem Édipo de Sófocles, elementos estéticos da tragédia clássica que permanecem atualmente relevantes para um confronto de questões relativas a modos de subjetivação e à noção de identidade. Tais elementos estéticos são colhidos na reflexão sobre o trágico emergente no pensamento alemão do final do século XIX, com autores como Hölderlin, Hegel e Nietzsche. Foca-se em noções como conflito, excesso, e a relação entre o trágico e o cômico, permanecendo-se fiel ao paradoxo que tais noções implicam ao exercício do pensamento. Aceita-se, antes de mais nada, o desafio de escrever não apenas a respeito de tais noções, mas incorporando-as na própria forma de escrita do artigo. Com relação a esse desafio, a referência é Maurice Blanchot.

Palavras-chave: subjetivação, identidade, tragédia, excesso, comedia.


ABSTRACT

Departing from the character of Sophocles' Oedipus, this text discusses aesthetic elements of classic tragedy that remain relevant to a critical understanding of issues about ways of subjectivation and identity. These aesthetic elements are taken from the reflections about the tragic advanced in the German thought of the end of the 19th century, in authors such as Hölderlin, Hegel and Nietzsche. We focus in notions such as conflict, excess, and the relation between the tragic and the comic, paying attention to the paradox that such notions convey to the exercise of thinking. We welcome the challenge of writing not only about these notions, but embedding them in the very way the paper is written. In relation to this challenge, the reference is Maurice Blanchot.

Keywords: subjectivation, identity, tragedy, excess, comedy.


 

 

Escrever de forma legítima sobre a tragédia demanda acolher, no limite do possível, o paradoxo, o fragmentário e o excessivo na constituição mesma do texto que se propõe. O sujeito do texto emerge acidental na tensão entre os diferentes nódulos (des)agregadores das linhas, num relevo não sequencial. Os autores por ele ultrapassados serpenteiam como coágulos numa cabeça dirigida ao e pelo, mas também para além do leitor. Força que congela, petrifica e ao mesmo tempo liberta de todo feitiço especular. Trata-se aqui do espaço que distancia o escritor daquilo que ele produz, e que um Maurice Blanchot denominaria, com referência a Mallarmé, supressão (abolition), anulação (annulation) ou aniquilação (anéantissement) do autor (Bident, 1998, pp. 120-1).

É a literatura, no mundo moderno, que insiste nessa escrita impossível, como quando Rimbaud se dirige aos leitores como estando absolutamente só, como sendo de além do túmulo. Há aqui algo de inevitavelmente cômico, um passo em falso, que se constitui naquilo que pode pouco mais do que parecer possível. "Como só, ele que nos confessa que o é?" - pergunta Blanchot. Ao que Blanchot mesmo responde: o escritor se vale aqui da solidão num gesto mesmo que a apaga (Blanchot, 2004, p. 9). Da mesma forma, nos valemos de fragmentos de uma subjetividade rizomática, como pedrinhas mínimas e espalhadas, permitindo um passeio moderno numa paisagem, antes completamente alagada, que antiga (a tragédia)2. Ilhazinhas em que se pisa para o ouvido ondular chiando na superfície espalhada de um silêncio sempre raso.

Nossos comentários se distribuirão em dois momentos. No primeiro, procuraremos analisar alguns aspectos do contexto em que a tragédia de Édipo se desenrola, situando, então, um modo de pensar que consideramos operador de um modo de subjetivação do qual os sujeitos seriam efeitos. Subjetivação tal como aqui entendemos não pode ser dita anacrônica em relação aos gregos. Ela representa exatamente o que extrapola e vai além do cogito moderno autoreflexivo. Parte-se aqui daquilo que pelo menos desde Schelling tem permitido desconstruções no limite do sujeito definido enquanto mera identidade especular3.

De fato, já em Schelling há uma clara oposição à noção de autonomia ou autotransparência da consciência, o que vem a ter um impacto decisivo em autores posteriores como Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger (Frank, 1989, pp. 276-77; cf. Roberts, 1988, p. 123). Schelling parte da concepção kantiana de que toda cognição é uma atividade sintética, e enfatiza que essa concepção é válida inclusive para o conhecimento do eu. A autoconsciência seria, portanto, uma experiência composta. O eu que é conhecido não é nunca o mesmo eu que conhece. É impossível incluir a atividade a partir da qual o eu é acessado na própria noção de eu (Roberts, 1988, pp. 125, 128-9). Antes da psicanálise ou Lacan, Schelling descentra o cogito cartesiano, não no sentido de negar a evidência dada no cogito - o que é absurdo - mas de apontar para sua insuficiência (Frank, 1989, p. 297). Dessa forma se tem disponibilizada uma noção de subjetividade que pode ser dita tanto pós- quanto pré-moderna.

Após tratar da questão da subjetividade na tragédia, tomaremos, num segundo momento, o próprio Édipo como uma espécie de dobra carnal que reflete em si os valores de sua época4, um homem que incorpora o seu mundo e que, agindo de forma circular, encontra, no final, aquilo que já havia no início, tornando-se prisioneiro de um eterno retorno do passado e da memória. Acentua-se, aqui, o fechamento de uma dobra e sua repetição asfixiante como aquilo que estrutura o herói no limite do esfacelamento de si mesmo e do outro. Essa dobra, no entanto, abriga em si várias dobras, dadas ao certo como leis, mas que são também potências de vida, que no supliciar-se do herói se acendem como fagulhas. Sacrificado, o herói tem agora o tamanho delas, e não menos que trágico poderia ser dito cômico.

No curso de tais considerações, buscaremos elementos que possam produzir alguma associação com a vida que levamos em nossa contemporaneidade, uma vez que o tempo de que estamos falando reporta-se àquele impregnado de longas durações que atravessam séculos de história da humanidade, fazendo presente, sob novas vestimentas, aquilo que, entretanto, é uma espécie de continuidade do que não passa e que se investe nos corpos e nas potências destes para expressar-se segundo as linguagens de cada época. Antes que fazer da tragédia algo meramente livresco, quer-se, através dela, encontrar "as grandes constelações cuja influência se guarda nas obras, coleções de imaginação impessoal que nenhum volume de autor pode imobilizar nem confiscar a seu proveito... os sonhos vagos de religiões e de mitologias sem memória" (Blanchot, 1963, p. 261).

A tragédia vive em nós, mergulha-nos na cesura daquilo que somos e que pensamos ser, convoca-nos à tomada do inconsciente que nos habita e nos faz mergulhar numa espécie de não-ser em nós que, sendo insondável em sua totalidade, se expressa aos poucos, como obra de uma vida inteira, incessante, ilimitada, desmesurada. O labirinto seria a imagem das operações que nos constituem, operações de um grande demais para nós que, entretanto, cabe em nós e nos violenta nas certezas de quem somos. O herói trágico caracteriza-se por poder assumir esse labirinto no espaçamento de um destino, sem pieguice ou ressentimento.

 

A peste da Cidade

A narrativa de Édipo em Colono nos transporta à luta frente aos males que se derramam sobre a cidade, figurando-se como peste. Os cidadãos buscam alívio para o insuportável, talvez uma limpeza moral que julgam possa vir banir o mal que devasta a cidade. Pressupõem que as desventuras vividas significam um destino determinado ao castigo em face de algum crime cometido. Oráculos e punições dão viabilidade à desmesura. O âmago da tragédia é esse choque entre diferentes potências que são dadas como leis na medida em que atravessam e constituem o vivido no limite do paradoxo. Na análise clássica de Antígona, feita por Hegel, tem-se o conflito entre a lei familiar e a lei da cidade. Cada uma dessas leis potencializa uma dimensão específica do vivido, cujo todo não é orgânico mas excessivo, na medida em que elas se perpassam e se perturbam mutuamente (Beistegui, 2000, pp. 12-19; cf. Hegel, 1968, p. 252)5.

Se Antígona inicialmente representa a lei familiar, ela igualmente abriga em si algo da lei da cidade, que a constitui enquanto alguém que vive "sob a autoridade política (Staatsgewalt) de Creonte". Ela própria é filha de outro rei (Édipo), e além disso noiva de Hémon (filho de Creonte). Por outro lado, se Creonte inicialmente representa a lei da cidade, ele também abriga em si algo da lei familiar, à medida que - "pai e marido" - deve respeitar o "laço sagrado" (Heiligkeit) que une Antígona ao irmão. Ou seja, em Antígona e Creonte há algo "imanente" que eles mesmos atacam, de forma que eles são "atravessados" (ergriffen) e "divididos" (gebrochen) por algo intrínseco ao que eles são (Hegel, 1966, p. 568).

No caso de Édipo, esse dilacerar em conjunto de diferentes potências num único indivíduo é ainda mais agudo. O juiz transforma-se em réu, o pai revela-se também irmão, e o filho também esposo. Tirésias, cego, pondera ao rei Édipo, que, este, mesmo enxergando, não poderia vislumbrar sua desgraça, uma vez que ela se encontraria, pois, imiscuída em um segredo que se confunde com a própria fonte que o produz. Édipo é avisado de que ele próprio é um mal para si mesmo. E, no entanto, a aceitação do impossível em si ergue o herói ao nível do divino, quer dizer, do excesso fundamental que o constitui. Pode-se falar de um acolhimento em si de partes antagônicas, ao mesmo tempo liberadas num gesto que, para um Hölderlin, é por excelência o religioso (Courtine, 2000, p. 66; cf. Fóti, 2006, p. 72-3).

Ao seguir a "própria natureza" (ihrer Natur), os homens dela "se elevam" (erheben), atingindo uma relação ao mesmo tempo "diversa" ou "variada" (mannigfaltig) e "íntima" (innig) com o mundo (Hölderlin, 1961, 275). Não se trataria de simplesmente encontrar no final o que estava no início, mas de trazer à luz o que era conhecido de modo implícito. Aquilo que de imortal constitui os homens já mesmo na sua própria finitude. Sustentar a visão na e através mesmo de uma cegueira constitutiva, a qual desafia tanto o pensamento quanto os sentidos. Essa cegueira seria, entretanto, uma relação viva (lebendig) com o meio, em cuja peculiaridade cada sujeito contata como que "seu próprio deus" (eigenen Gott), sem com isso negar a possibilidade de uma "divindade comum" (gemeinschaftliche Gottheit) (Holderlin, 1961, p. 278).

No contexto da tragédia grega, peste, castigo, crime, oráculos e punições podem ser ditos fatores operantes de modos de subjetivação. Os heróis trágicos caracterizam-se, entretanto, por uma forma de consciência que desafia o que modernamente se tem por subjetivo em sentido comum. O subjetivo nesses heróis não é o que seria neles autônomo, ou transparente a si mesmo. Ao contrário, a subjetividade aqui é o que atravessa o sujeito, o que é desmesurado, excessivo. Ela tem uma raiz natural, mas que justamente ao ser (per)seguida eleva o sujeito numa relação viva, ao mesmo tempo íntima e diversa com mundo em que habita.

 

A insuficiência de Édipo

Para onde os pés inchados de Édipo o levam senão ao arrastar-se nas brumas de um passado desconhecido, em um sombrio precursor que teima em traçar o futuro de sua vida inteira? Édipo, preso ao passado que, como precursor sombrio, subjuga o passar de todos os seus dias e noites em suas brumas e opacidade. E não seria justamente esse mergulhar opressivo no pesadelo do retorno incessante do mesmo, o que em última instância libera o singular, o individual e o momentâneo do jugo de ter de servir a qualquer finalidade externa que em última instância apenas o dissolveria? (Kaufmann, 1968, p. 319-21). Através do suposto sacrifício, o herói ganha a força pra tornar a si mesmo nada menos que um non plus ultra, uma mônada simbolizando na própria diferença o eterno diferir entre si do todo enigmático (Kaufmann, 1968, p. 332).

Exatamente por prender-se ao passado - a um passado arcaico e atemporal - Édipo pode evitar o que Nietzsche denomina de a danação "de ver o devir em toda parte" (überal ein Werden zu sehen). É preciso entender aqui que quando Nietzsche critica o apego ao passado, sua crítica é, antes de mais nada, dirigida ao historicismo. Ao desconectar do presente e ver tudo em fluxo, o historicista perderia a si mesmo numa "torrente de devir" (Werden zu sehen). Esse tipo de danação é o oposto do que ocorre com Édipo. O apego de Édipo ao passado é um apego à própria singularidade. Pode-se dizer que Édipo reata com o que Nietzsche denomina de "potência plástica" (plastische Kraft), uma capacidade de moldar e assimilar tudo o que se quebra no desenvolvimento de um caráter próprio. O apego ao passado de Édipo é como uma espécie de esquecimento e entrega ao que há de a-histórico na história (Nietzsche, 1972, p. 246-50).

Tal a-histórico está, é claro, longe de ser uma objetividade geral e "totalmente desinteressada" (gar nichts angehe) (Nietzsche, 1972, p. 289). Ele é uma atmosfera de ilusão reverente (pietätvolle Illusions-Stimmung), uma estrutura estética (Kunstgebilde), uma condensação misteriosa de vapor (geheimnissvollen Dunstkreis) que abriga e possibilita o desdobrar de uma dada forma de vida em sua especificidade (Nietzsche, 1972, 292-4). Pode ser dito também um "horizonte determinado" (begrenzten Horizont) que - como uma arte ou uma religião - confere à existência "o caráter de algo eterno e estável em significado" (Ewigen und Gleichbedeutenden) (Nietzsche, 1972, p. 326).

Em contraposição a essa esfera religiosa e artística, cabe lembrar, por outro lado, que o herói trágico é um emancipado dos mitos, mesmo que deles não se separe. É o próprio Édipo quem se faz juiz e se condena à errância e ao esquecimento. Numa abordagem benjaminiana, pode-se dizer que o herói submete "a esmagadora ambiguidade dos mitos à descontinuidade do... paradoxo" (Sparks, 2000, p. 195). A sentença inescapável dos deuses sobre os homens se desdobra na exposição dos próprios deuses pelo silêncio aparentemente resignado do herói, em parte mortal, em parte deus ele mesmo (Sparks, 2000, p. 206). Seu silêncio torna visível aquilo que o atravessa, e que atravessa os próprios deuses na própria medida em que o constituem.

Enquanto dobra carnal, voltado sobre si mesmo, Édipo não deixa de refletir os valores do mundo em que habita. Ou melhor dito, ele os molda e os assimila em si mesmo, erguendo-se (com eles) numa singularidade que, se dada na história, nem por isso se deixa submergir ao mero fluxo abstrato do devir. No limite da asfixia, círculo e repetição estruturam desventuras estranhas e comprometedoras, num caminho por terras incógnitas que são retomadas como um mundo próprio. Trata-se de uma dobra múltipla em que se dobram e desdobram rachaduras e intensidades selvagens, que nela se acendem como fagulhas. Édipo se faz noite nessa constelação, curvando disjunções internas na envergadura de uma velhice capaz de habitar o que era anteriormente insondável, o que era desconhecido e jamais agrimensado.

Tornar-se estrangeiro na própria língua pode significar tornarmo-nos bárbaros em nossa própria civilizada cultura. O herói assume em si essa tensão iniludível pra Nietzsche entre o apolíneo e o dionisíaco. Ele é aquilo que dura através da inclusão exatamente do que mais o ameaça (Figal, 2000, p. 145). Agora, a melhor questão não é simplesmente a de quem sou: mas a do que me atravessa, uma vez que o acontecimento em que nos encontramos mergulhados supõe que estejamos à altura das potências que o habitam e que lá estão, à espera de agenciamentos para a produção de mundos possíveis, novos retratos da vida e de nós mesmos6. É preciso, então, lembrar que o ápice da tragédia não é mais trágico do que cômico. Depois da trilogia trágica, tradicionalmente se produz uma quarta peça, a comédia satírica. Ou, conforme séculos adiante, dirá Nietzsche: o artista atinge o seu máximo quando aprende a rir de si mesmo (Brogan, 2000, p. 160, 164; cf. Sallis, 1991, pp.109-10).

Por ironia do cinema contemporâneo, os desdobramentos do trágico puderam se dar de forma a inverter o que teria sido o destino da própria tragédia no período clássico. Caminhou-se não de Sófocles a Eurípedes, e no sentido contrário do desenvolvimento de uma interioridade psicológica do herói. Ainda teve-se primeiro um Édipo, com Pasolini (1967), e depois Medeia, com Trier, Lars von (1988). No entanto, Édipo passou a ser aquele que se desmascara caricato na face nua e ensanguentada de um ator que grita atravessando a tela. E Medeia, por outro lado, ajudada pelos próprios filhos na cena do enforcamento, pode ser reconciliada e não consigo mesma - mas com a paisagem expressionista dos pássaros invisíveis assobiando o revolver silencioso de pradarias. O que importa num caso ou noutro permanece sendo a tensão que sustenta cada solução estética na sua singularidade, desafiando o pensamento. Recolocada ontem, hoje ou amanhã nos limites interconstitutivos do trágico e do cômico, tal tensão permite o desenvolvimento de diferentes modos de subjetivação em sentido forte.

O texto aqui proposto encontra, assim, seu termo no mesmo gesto pelo qual se abre: impossibilidade de completamente concluir. Busca-se com isso uma fidelidade antes ao trágico-artístico do que ao teórico ou abstrato. Reconhece-se uma certa "impossibilidade de reinscrever o artístico dentro da ordem de conceitos" (Sallis, 1991, p. 16). A contradição entre figuras como Dionísio e Apolo tal como invocadas por Nietzsche em sua análise da tragédia é antes força instauradora do que premissa silogística: "é uma contradição em que os opostos são mantidos em sua oposição antes do que mutuamente cancelados, e é uma contradição que não é meramente desdita ao ser dita, mas que se deixa falar do âmago das coisas" (Sallis, 1991, p. 57). Não que tal contradição não possa ser pensada. Mas ao ser pensada, ela atravessa o pensamento constituindo-o - subjetivizando-o - nos sujeitos e além dos sujeitos que supostamente o refletiriam.

 

Notas

1. O presente texto desenvolveu-se a partir de um diálogo entre Tania Mara Galli Fonseca e Alessandro Zir no que se refere às contribuições ao entendimento da tragédia advindas do âmbito da filosofia alemã do século XIX, com suas implicações relativas ao conceito de subjetividade, e considerações sobre o processo de escrita literária. Trata-se de uma versão modificada e ampliada do texto intitulado "Édipo em nós", apresentado inicialmente por Tania Mara Galli Fonseca, no debate "Discutindo Édipo", realizado em 15 de junho de 2008, no Theatro São Pedro de Porto Alegre, por ocasião da encenação da tragédia "Édipo" de Sófocles, com montagem dirigida por Luciano Alabarse e protagonizada por Marcelo Adams. O referido evento fez parte da programação das comemorações dos 150 anos do mais tradicional e importante teatro da cidade de Porto Alegre/RS.

2. Por "subjetividade rizomática" quer dar-se a entender uma subjetividade como multiplicidade substantiva. Apoiamo-nos aqui na noção de rizoma, multiplicidade dada não como unidade superior, mas evidenciada antes por subtrações, tal como sugerem Deleuze e Guattari. Ver Capitalisme et Schizophrénie. Mille Plateaux (1980, 13, 31). É preciso, entretanto, fazer a ressalva de que uma noção como rizoma é apresentada por Deleuze e Guattari como dando um passo além mesmo de autores como Nietzsche (Deleuze e Guattari, 1980, 12), a cuja concepção sobre a tragédia o presente texto pretende ser fiel.

3. Para uma discussão da questão dos modos de subjetivação numa perspectiva diferenciada da desenvolvida aqui, considerando outros autores mais contemporâneos, ver Costa e Fonseca 2008.

4. Usamos a noção de dobra aqui em sentido deleuzeano. Ver, por exemplo, o livro de Deleuze sobre Foucault (1986, p. 104).

5. A leitura feita por Hegel da tragédia corre o risco, entretanto, de permanecer livresca, visto que para Hegel o conflito no âmago da tragédia é percebido em sua dimensão estética como abstrato e devendo ser superado. Assim, a relevância da tragédia enquanto tal fica drasticamente reduzida no mundo moderno, em que tal conflito seria supostamente reconciliado de forma concreta no desenrolar da própria história (Beistegui, 2000, pp. 19, 21; cf. Fóti, 2006, p. 12).

6. Usamos a noção de agenciamento aqui em sentido deleuzeano, de "linhas de articulação ou de segmentação, estratos, territorialidades" (Deleuze e Gattari, 1980, 9).

 

Referências

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Recebido em 08 de janeiro de 2009
Aceito em 09 de abril de 2009
Revisado em 04 de maio de 2009

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