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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.3 Fortaleza Sept. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Os Caminhos da Feminilidade em Preciosidade, de Clarice Lispector

 

 

Maria Sílvia Antunes Furtado

Professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. Mestre em Teoria da Literatura/ UFRJ. Membro da Escola de Psicanálise do Maranhão. Líder do DGP/CNPq Literatura, Linguagem e Psicanálise. End.: R. Mandacarus, quadra 10, nº 6, Jardim Renascença, São Luís, MA. CEP: 65075-500. E-mail: silviafurtado@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Um diálogo entre a Psicanálise e a Literatura - que toma como ponto de partida a leitura do conto Preciosidade, de Clarice Lispector - permite, dentre outras possibilidades, a abordagem do tema da feminilidade. O campo do sexual, para a Psicanálise é desnaturalizado. A feminilidade não é natural, ela não está atrelada ao gênero, não tem disposição etiológica. Ela vem a ser constituída a partir de um caminho singular, pela via da identificação, que ocorre a partir da vivência infantil inconsciente do complexo de Édipo-castração, cuja dissolução marca a estrutura psíquica do sujeito para o resto de sua vida, na medida em que dela resulta uma instância de lei psíquica denominada de superego. A partir das marcas deixadas por essa vivência inconsciente, o sujeito irá responder às suas questões de um determinado lugar e de uma posição subjetiva singular. Alguns conceitos psicanalíticos, segundo as concepções de Freud e Lacan, serão abordados no trabalho, a fim de subsidiar o diálogo entre o campo literário e o psicanalítico. Dos interstícios da leitura do conto Preciosidade serão ressaltadas passagens literárias específicas que abordam, ficcionalmente, aspectos da subjetividade feminina. A constituição da feminilidade é permeada por impasses, perdas e desdobramentos, diante dos quais a protagonista se vê convocada, para aceder a uma posição feminina.

Palavras-chave: psicanálise, literatura, subjetividade, feminilidade, Clarice Lispector.


ABSTRACT

A dialogue between the Psychoanalysis and the Literature - that takes as starting point the reading of the short-story Preciosidade by Clarice Lispector - allows, amongst other possibilities, the approach of the subject of the womanishness. The field of the sexual one, for the Psychoanalysis is not natural as the womanishness is not too; it is not related to the gender. It does not have disposal origin. It comes to be constituted from a singular way - by identification - that occurs from the unconscious childish experience of the Oedipus-castration complex, whose dissolution marks the psychic structure of the citizen for the rest of his life, because from this dissolution results an instance of psychic law called superego. From the marks left by this unconscious experience, the citizen will answer its questions from a determined place and in a singular subjective position. Some psychoanalytic concepts, according to the conceptions of Freud and Lacan, will be approached in this paper, in order to subsidize the dialogue between the literary and psychoanalytic fields. From the interstices of the reading of the short-story Preciosidade will be highlight specific literary subjects that approach aspects of the womanishness subjectivity in a fiction way. The constitution of the womanishness is permeated by obstacles, meets with a loss and developments, in the presence of the protagonist is convoked to accede to a womanishness position.

Keywords: psychoanalysis, literature, subjectivity, womanishness, Clarice Lispector.


 

 

Introdução

A Literatura, em um diálogo com a Psicanálise, revela em seus interstícios a possibilidade de se apreender, através de uma leitura metafórica, alguns conceitos psicanalíticos que permeiam o universo ficcional, mesmo à revelia intencional de seus autores.

A história da Psicanálise acena condescendentemente para a possibilidade dialógica deste campo com o da Literatura. Diante de toda a controvérsia advinda do saber psicanalítico, que colocava Freud em um lugar dissimétrico em relação ao saber predominantemente científico da segunda metade do século XIX e início do século XX, os seus ensaios, de cunho literário, lhe valeram o único prêmio que ele recebeu em vida - Prêmio Goethe - em 1930. Era hábito outorgar esse prêmio no dia 28 de agosto de cada ano na casa em que Goethe nascera, em Frankfurt. Na ocasião, o autor deveria estabelecer, através de discurso, a relação com Goethe. Freud, doente à época, enviou o seu discurso, que foi lido pela filha, Anna Freud, na cerimônia.

Em sua experiência, Freud foi tácito, inclusive no discurso que escreveu para ser lido por Anna Freud, afirmando que o seu único interesse, mesmo abordando a literatura, era a Psicanálise. A Literatura foi uma via de acesso através da qual ele pôde falar da Psicanálise:

O trabalho de minha vida se dirigiu a um só objetivo. Observei os mais sutis distúrbios da função mental em pessoas saudáveis e enfermas e procurei inferir - ou, se preferirem, adivinhar -, a partir de sinais desse tipo, como o aparelho que serve a essas funções é construído e quais as forças concorrentes e mutuamente oponentes que nele se acham em ação. (Freud, S. 1930/1980f, p. 241)

Os poetas ou escritores criativos têm um saber sobre a alma que brota na tessitura dos textos literários, o que levou Ezra Pound (1934/195) a chamá-los de antenas da raça. Freud se utilizou da Literatura, desse saber nela contido e aceito universalmente, para elaborar ensaios psicanalíticos. Essa via nos mostra um caminho em que o ponto de partida é a psicanálise; a literatura entra como suporte dessa construção teórica.

Vale destacar alguns trabalhos de Freud nos quais ele se vale da Literatura. Em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906] /1980b), o primeiro ensaio de análise literária, com exceção dos comentários sobre o Édipo rei e Hamlet em A interpretação dos sonhos (1900/1980a), Freud trabalha a obra do dinamarquês William Jensen, Gradiva. A história se passa em Pompéia, cidade que sempre fascinou Freud:

Freud sentia-se particularmente fascinado pela analogia existente entre o destino histórico de Pompéia (o soterramento e a posterior escavação) e os eventos mentais que lhe eram tão familiares: o soterramento pela repressão e a escavação pela análise. Em parte essa analogia foi sugerida pelo próprio Jensen e Freud desenvolveu-a com prazer neste trabalho, assim como em contextos posteriores. (Freud, S. 1907[1906] /1980, p. 15)

Freud utilizou-se da história central da obra de Jensen, analisando os sonhos do personagem Dr. Norbert Hanold e a posição que ele assume em relação à Gradiva, nome da personagem que intitula a obra literária. Freud destaca elementos significantes na obra, analisando a relevância que eles tomam na constituição da história. Destaca-se também o artigo Escritores criativos e devaneios (1908[1907] /1980c), no qual Freud analisa a criação literária e o processo de sublimação, relacionando-os à atividade infantil do brincar.

Em O estranho (1919/1980e), Freud trata da compulsão à repetição, a partir da análise do conto O homem de areia (1993/1815), de Ernst Theodor Amadeus Hoffman. Ele inicia sua análise trabalhando exaustivamente a palavra estranho, desde sua etimologia até esclarecer a relação do que é estranho com o que é familiar. A análise do texto, da atitude de seus personagens e da leitura deslocada dos significantes textuais aborda questões sobre o complexo de Édipo-castração e sobre o duplo.

Em Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância (1910/1980d), Freud age diferentemente; ele se vale da obra de Leonardo da Vinci para inferir sobre a pessoa do autor. Antes de tratar da análise da obra de arte para dela extrair fundamentos para a construção teórica da psicanálise, ele se vale dos pressupostos da Psicanálise para analisar a vida de um grande vulto histórico.

A Literatura, inegavelmente, emprestou-se como suporte às elaborações freudianas. O diálogo iniciado com Freud encontra continuidade no ensino de Lacan, que também se vale da literatura como suporte das construções psicanalíticas. Essa prática teve seus desdobramentos e, hoje, a crítica literária contemporânea reserva - apesar de todos os impasses, que não cabe serem vistos neste artigo - um lugar à crítica psicanalítica, revelando a outra face da contribuição dialógica entre esses dois diferentes campos de saber.

Jacques Lacan também se utilizou da Literatura, dentre outros conhecimentos - Linguística, Lógica, Topologia e Arte - como suporte para elaboração do arcabouço teórico da Psicanálise. Destacam-se alguns autores, dentre muitos, cujas obras receberam articulações de Lacan: Victor Hugo, Verlaine, Margarite Duras e Cazotte. Relevante, também, o trabalho de Lacan sobre O Banquete, de Platão, trabalhado em seu Seminário A Transferência (1960-61/1990). Assim como Freud, Lacan sempre manteve, em seu horizonte, a Psicanálise. Utilizou-se de outros campos de saber para esclarecer sobre a técnica analítica quando se tornava difícil referir-se somente à experiência. Em O Banquete, por exemplo, ele aborda a fala de cada um dos presentes detendo-se mais especificamente sobre a fala de Alcebíades, abordando questões sobre o lugar da transferência, o lugar do analista, o desejo do analista, amor e desejo. Lacan buscou, na literatura, uma leitura deslocada de pontos que teriam contato com a Psicanálise.

Tendo apresentado de que forma a Literatura e Psicanálise entram em contato para que o primeiro campo contribua para a elaboração dos objetivos do segundo, vamos sustentar a viabilidade dialógica dos dois campos de saber, considerando as contribuições em via de mão-dupla. De um lado, o mundo ficcional resgatando em seus interstícios as leituras metafóricas possíveis dos conceitos psicanalíticos e, de outro, os conceitos psicanalíticos contribuindo para ampliar o escopo da crítica literária contemporânea, agregando novos operadores de leitura à Teoria da Literatura.

Para uma leitura mais eficaz do texto literário objeto deste trabalho, será necessário a abordagem prévia de alguns conceitos psicanalíticos. A fundamentação teórica preliminar dirá respeito somente à concepção de sujeito da psicanálise, pois a análise se dará a partir desse eixo.

 

A Desnaturalização do Sexual na Psicanálise

A leitura do conto Preciosidade (1960/1990), de Clarice Lispector, a partir da visão da Psicanálise permite, dentre outras possibilidades, a abordagem do tema da feminilidade.

A feminilidade na Psicanálise não é naturalizada; ela não está atrelada ao gênero, não tem disposição etiológica; ela vem a ser constituída a partir de um caminho singular, pela via identificatória, a partir da vivência inconsciente do complexo de Édipo-castração, entre 3 e 5 anos de idade. A dissolução desse complexo marca a estrutura psíquica do sujeito para o resto de sua vida, na medida em que dela resulta uma instância de lei psíquica denominada supereu. A partir das marcas deixadas por essa vivência inconsciente, o sujeito irá responder suas questões de um dado lugar e de uma determinada posição subjetiva. Em oposição ao sujeito cartesiano, o sujeito da Psicanálise é aquele que desconhece o seu desejo. Esse é um ponto angular na teoria psicanalítica, pois carreia, em si, a noção de sujeito enquanto sujeito barrado, dividido, constituído na linguagem e pela linguagem. Assim como as descobertas de Copérnico e de Darwin, pode-se dizer que a descoberta freudiana também veio para abrir uma ferida narcísica na humanidade, na medida em que ele afirmou que o eu não é senhor da sua casa.

A vivência edípica inconsciente não é mesma para meninos e meninas. Os meninos vivenciam um percurso inconsciente que vai do Édipo à castração, ao passo que o percurso das meninas ocorre da castração ao Édipo. Essa diferença de percurso se coloca a partir da diferença anatômica entre os sexos que, na verdade, não é entendida como diferença. Ao tomar o pênis simbolicamente como falo - destacável do corpo, representante psíquico da ausência na presença e presença na ausência - as crianças estabelecem uma equação em que a diferença anatômica passa a ser percebida, do lado dos meninos, como aqueles que têm e, do lado das meninas, como as que não têm. O falo é, portanto, o símbolo da completude e, ao mesmo tempo, da falta.

Ao abordar o complexo edípico a partir do fenômeno, faz-se necessário explicitar que as referências que são feitas ao casal parental - pai e mãe - dizem respeito a funções e lugares que ocupam na relação; não se referem a pessoas, portanto. No percurso edípico, os meninos enamoram-se pela mãe - à semelhança de Édipo - mas são simbolicamente interditados pelo pai; essa interdição se faz, ao mesmo tempo, para a criança e para a mãe. O pai, enquanto terceiro, tem a função de interditar a relação mãe-filho, instalando o que se chama a lei simbólica. A instalação dessa lei é chamada de castração. Nesse período edípico, os meninos tendem a rivalizar com o pai, através de seus substitutos simbólicos. A rivalidade, por sua vez, acontece somente porque há identificação. A identificação ao pai é o que possibilita ao menino a saída do complexo de Édipo, pois não se trata mais de disputar a mãe com o pai, mas de, ao se identificar com o pai, ter uma mulher para ele, assim como o pai tem. A ameaça de castração é o temor que o menino tem de perder o seu pênis; essa é mesmo a única ameaça que o faz parar de rivalizar com o pai para identificar-se com os traços desse pai. A abordagem edípica, neste caso, diz respeito ao desenvolvimento heterossexual masculino, de uma estrutura clínica neurótica. Não serão abordados os demais desdobramentos desse percurso, na medida em que o escopo deste trabalho é a feminilidade e a abordagem do desenvolvimento edípico masculino faz-se presente como o contraponto ao desenvolvimento feminino.

Para as meninas, a operação edípica ocorre ao inverso da que se dá com os meninos. As meninas não têm pênis, o que equivale a não ter o falo, ou seja, partem da castração. Elas dirigem-se amorosamente para o pai, a fim de obtê-lo dele, em forma de filho. Entram, portanto, no Édipo. Essa relação com o pai é interditada na medida em que esse pai se dirige à mãe e não a ela, menina. A menina, então, em vez de desejar ter um filho do pai, tem que se dirigir amorosamente à mãe, com ela se identificar. Para a menina, a identificação com a mãe é bem diferente da via masculina, pois ela tem que se identificar àquela que não tem. Nessa condição, ela acede à condição de não ter. O caminho da feminilidade é tecido pela possibilidade de considerar que a falta é o que coloca em movimento o desejo e amar é, segundo Lacan, "dar o que não se tem". Nesse percurso inconsciente a menina sai da condição de castração e, a partir da vivência edípica, para Freud, ela acede à possibilidade de ter um filho, condição essencial para o caminho da feminilidade.

Essa é uma das saídas do complexo edípico feminino, considerando a estrutura neurótica. Há outras saídas dessa vivência que implicam em outros desdobramentos estruturais, que deixarão de ser abordadas, na medida em que não têm relação direta com a feminilidade. Tem-se, pois, que a feminilidade é constituída através de um caminho inconsciente, que assim como o Édipo masculino, deixa marcas no modo de cada sujeito responder frente à castração, frente à falta. Para a psicanálise, portanto, o sujeito é o sujeito do desejo, constituído na linguagem e pela linguagem, marcado pela falta.

Na análise literária estaremos referidos, assim, ao sujeito do desejo, ao sujeito barrado, àquele que desconhece seu próprio desejo. As demais considerações que se fizerem necessárias, serão feitas no decorrer da análise literária.

 

Ela tinha algo precioso

O conto inicia-se com o despertar da protagonista, que se repete todas as manhãs do mesmo modo. Trata-se de um despertar automatizado, que não leva à diferença. A personagem encontra-se na ordem da repetição, do ponto fixo. Esse despertar sugere uma circularidade; uma volta sempre ao mesmo ponto, a inflexibilidade, a impermeabilidade:

De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 103)

A personagem encontra-se em uma temporalidade elasticizada, já tem quinze anos, mas encontra-se numa nebulosidade, algo ainda lhe é obscuro, na suposta adolescência. Vive em um mundo fechado, vive em si, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação (Lispector, C. 1990, p. 103). Ela se encerra em seu mundo pré-estabelcido, com regras próprias; não se compromete; não se contamina, ou seja, ela não se dá, não troca com o outro. Só se compromete ou se contamina quem se lança em alguma relação de troca com o outro. Mas a protagonista agia assim porque tinha a si mesma, se bastava, tinha algo precioso. Que era intenso como uma jóia. Ela. (Lispector, C. 1990, p. 103). Ela, fundamentalmente, tinha algo e, aquele que tem, de nada precisa, nada lhe falta. A personagem encontra-se numa posição fálica, a posição masculina. A posição masculina é a que supõe ter, assim como foi visto na abordagem do complexo edípico.

Ela acordava antes de todos (Lispector, C. 1990, p. 103), ou seja, se precipitava aos acontecimentos, colocava-se à frente deles, em sentinela para que não fosse surpreendida por eles, para manter o que tinha de precioso, a sua consistência. O sujeito da Psicanálise é aquele que está submetido aos significantes: o sujeito aparece de forma evanescente entre os significantes; ele não tem consistência, não tem materialidade, essa só é possível ao significante. Acordar antes de todos, em última instância, é não poder estar submetida a nenhuma ordem à qual algo escape.

No caminho para a escola, pegava um ônibus e um bonde e se entregava a devaneios:

O que lhe tomaria uma hora. O que lhe daria uma hora. De devaneio agudo como um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de ninguém olhar para ela. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 103)

O devaneio é a fantasia que se dá conscientemente. Freud diz que nunca renunciamos a um prazer já experimentado; o prazer obtido nas brincadeiras infantis jamais é renunciado, mas trocado por outro:

A criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. (Freud, S. 1908[1907]/ 1980c, p. 151)

A personagem entrega-se ao devaneio por mais de uma hora. Freud parte da hipótese de que aquele que fantasia o faz porque se encontra insatisfeito com a realidade e, na medida em que toda fantasia é a realização de um desejo, fantasiar é também corrigir uma realidade insatisfatória e, para isso ela se vale de uma temporalidade própria:

É como se ela flutuasse entre três tempos - os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une. (Freud, S. 1908[1907] / 1980c, p. 153)

Em seus devaneios, a personagem entrega-se, pois, a uma cena construída, que só acontece porque ela não é olhada, porque está encerrada em si mesma. Sorri, sem que esse sorriso se dirija a alguém. O devaneio a coloca em Outra cena, em uma cena em que o outro não a pode olhar; ela não pode se deixar ver; o que pode ser lido como: ela não pode se ver. Para chegar a seus devaneios - que se davam no ônibus - para se encontrar encerrada em si mesma, ela precisava atravessar uma senda nebulosa, fazer um caminho obscuro, nebuloso, de névoa. Para se encontrar em devaneio, percorria um caminho que era nebuloso:

Tinha que atravessar a longa rua deserta até alcançar a avenida, do fim da qual um ônibus emergiria cambaleando dentro da névoa, com as luzes da noite ainda acesas no farol. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 104)

O ônibus - o qual espera e no qual embarca - é personificado no conto; esse espaço é o correlato da protagonista. O espaço de devaneios se apresenta também vagaroso, lento, assim como a personagem em seu despertar. O espaço reservado aos devaneios - o ônibus - também assume as mesmas características da personagem:

E já de longe o ônibus trêmulo começava a se deformar (...) a tornar-se incerto e vagaroso, vagaroso e avançando, cada vez mais concreto - até estacar no seu rosto em fumaça e calor, em calor e fumaça. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 104)

Embora o ônibus garantisse a ela uma hora de devaneio, ela temia, tinha medo. Tinha medo que lhe dissessem alguma coisa, que a olhassem muito. O medo é um sinal da ameaça. O medo, diferentemente da angústia não tem objeto. A angústia, segundo Lacan, não é sem objeto. Ela é angústia diante de algo, ou seja, diante da castração. A angústia se dá na relação com o objeto causa do desejo. O objeto do medo é sempre encoberto por outra coisa. Digamos que o medo é, por sua natureza, adequado, correspondente, entsprechend ao objeto de onde parte o perigo (Lacan, J. 1962-1963/ 1997, p. 196). O medo refere-se à ameaça de castração. A partir de um conto de Tchecov, que foi traduzido para o francês com o título de Frayeurs, Lacan destaca o medo do personagem do conto, que vê um cão de raça e, por não dever estar naquele local naquela determinada hora, lembra-o o mistério do cão do Fausto:

E pensa ver a forma sob a qual o aborda o diabo; é exatamente em relação ao desconhecido que aí se delineia o medo, e este não é de um objeto, não é do cão que ali está que ele tem medo, é de outra coisa, é do que está por trás do cão. (Lacan, J. 1962-1963/1997, p. 197)

Tem-se que, a partir das observações lacanianas, a partir do trecho abaixo, podemos perguntar o que está por trás desse medo da personagem de que lhe falassem ou a olhassem:

Na gravidade da boca fechada havia a grande súplica: que a respeitassem. Mais do que isso. Como se tivesse prestado voto, era obrigada a ser venerada, e, enquanto por dentro o coração batia de medo, também ela se venerava, ela a depositária de um ritmo. Se a olhavam ficava rígida e dolorosa. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 104)

Falar com a protagonista ou olhá-la significava a ameaça de castração. Significava o deslocamento de uma posição na qual encontrava segurança: na posição de falo. Esperava que a venerassem, também ela se venerava (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 104). Era um ícone de si mesma. O olhar do outro, ao recair sobre ela, como um espelho, podia ser tomado como o medo do seu próprio olhar recair sobre si mesma e, ver-se de outra forma, implicaria, portanto, em se deslocar da posição adotada, que lhe é revelada como uma prisão. A veneração de si é também a sua prisão; ela não lhe permite qualquer movimento, está fechada para a vida: como se tivesse prestado um voto e, ao mesmo, isto que lhe imobiliza, confere-lhe um gozo. A contradição própria do sintoma, que tenta realizar, sob essa forma, a elisão da falta.

Se a olhassem, ficava rígida e dolorosa (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 104). Essa passagem ficcional remete, em uma relação de simetria, à postura assumida por aqueles que olhassem para a figura mítica da Medusa: diante do horror que lhes era imputado à visão, ficavam rígidos. A cabeça da Medusa, segundo Freud (1940 [1922] / 1980g), é o símbolo da castração. As serpentes em profusão - que compõem sua cabeça - são um signficante da falta. Excesso também é falta. Nessa perspectiva, tanto no mito quanto na narrativa literária, ser olhada remete ao horror à castração, à condição de que há falta, daí a dor que a acompanha simultaneamente.

A protagonista sentia-se uma moça sem homem (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 105), o que remetia a ser aquela que não tinha. Algo lhe faltava. A proximidade dos dezesseis anos lhe indicava que ela não era mais invisível aos olhos masculinos. Escondia a sua falta, encobrindo-a com atributos fálicos, que eram a sua preciosidade. Não ter a tornaria desejável, mas para não revelar que não tinha, preferia mostrar que tinha: É que eles sabiam. E como ela também sabia, então o desconforto. Todos sabiam o mesmo. Também seu pai sabia. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 105). Ela julgava ter um saber sobre o sexual. O que todos sabem é que há diferença sexual, mas ela é encoberta e desdobra-se na impossibilidade de se defrontar com falta, desdobrando-se, portanto, no encobrimento da falta. Esconder-se em seus devaneios custava caro à personagem. Enfrentava uma batalha a cada dia. Depois de enfrentar o ônibus e o bonde:

Ainda teria de enfrentar na escola o longo corredor onde os colegas estariam de pé conversando, e onde os tacos de seus sapatos faziam um ruído que as pernas tensas podiam conter como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração, sapatos com dança própria. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 105).

Os sapatos dela tinham dança própria, como se ela não pudesse conduzir os seus próprios passos, como se tivesse tão encerrada em seus devaneios que era guiada por eles. A personagem revela que era feio o ruído de seus sapatos, e ainda que: Só tinha sapatos duráveis. Como se fossem ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando nascera. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 106). A personagem refere-se aos seus sapatos como a ela mesma, como a essa prisão que lhe confere segurança. A referência à durabilidade dos sapatos diz respeito à elastização de um tempo, refere-se a não ter se deslocado de uma posição infantil. Vestir os mesmo sapatos desde quando nasceu diz respeito a não ter crescido, não ter se defrontado com a vida de adolescente.

Somente um bebê encerra-se em mundo fechado, no qual a mãe supõe uma demanda em cada choro - e é essa a única via possível de constituição do ser falante. A mãe, nesse momento, funciona como o Outro do bebê, fala por ele; é, no dizer de Saussure (1916/2006), o seu tesouro dos significantes.

A protagonista evita o contato com o outro. Ela não se interessa em saber o que o outro pensa; não se dirige a ele; em seus devaneios, ela supõe o que o outro pode pensar e fica retida nessa suposição, tomando-a como a sua verdade. Seu caminhar a denunciava, não havia mudança, usava sempre os mesmo sapatos. Ao chegar à sala de aula, a personagem se instalava em uma posição estanque, pré-determinada, para que não fosse jamais assaltada pelo desconhecido:

Era tratada como um rapaz. Onde era inteligente. (...) Sua curiosidade lhe informava mais do que respostas. Adivinhava, sentindo na boca o gosto cítrico das dores heróicas, adivinhava a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos colegas, que, de novo, não sabiam como comentá-la. Cada vez mais a grande fingida se tornava inteligente. Aprendera a pensar. O sacrifício necessário: assim 'ninguém tinha coragem'. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 106).

A protagonista - para ser tratada como um rapaz - revestia-se de atributos fálicos, que levavam à suposição de que ela tinha o que os meninos têm. Ela diz que ninguém tinha (coragem), somente ela. A posição estratégica adotada por ela a fazia ter diante daqueles não tinham. A personagem ainda diz que essa posição adotada por ela causava repulsão fascinada em seus colegas. Como já comentamos anteriormente, essa repulsa remete-nos à figura mitológica da Medusa, que tem correlação com a falta. Ela causava repulsa porque se travestia de um excesso que denunciava a falta. A falta convoca a presença e ausência, e causa, ao mesmo tempo, repulsa e fascinação.

Na volta da escola para casa, faminta, a personagem é comparada a um animal de caça, o que prenuncia um acontecimento posterior. (...) ela era protegida pela espécie de feiúra que a fome acentuava seus traços escurecidos pela adrenalina que escurecia a carne dos animais de caça. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 107).

O conto apresenta apenas três diálogos. Nos dois primeiros diálogos (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 107 e 114), a personagem, ao ser convocada, esquiva-se. Não há uma continuidade de fala. Esquivando-se, encerra o diálogo. Somente no terceiro diálogo (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 115) ela formula uma demanda: - Preciso de sapatos novos! (...) Tem-se que, na Psicanálise, toda demanda implica em uma demanda de amor, na qual se articula o desejo.

 

Uma fantasia encobridora

Em casa, em sua vivência fantasística, a personagem relembra um episódio ocorrido na infância. Ela é atordoada por uma lembrança da infância, de algo que a marcou, que se repete em sua memória. Para neutralizar uma lembrança, ela a combate com outro pensamento:

Quando tinha dez anos, relembrou, um menino que a amava jogara-lhe um rato morto. Porcaria! Berrara, branca com a ofensa. Fora uma experiência. Jamais contara a ninguém. Com a cabeça entre as mãos, sentada. Dizia quinze vezes: sou vigorosa - depois percebia que apenas prestara atenção à contagem. Suprindo com a quantidade, disse mais uma vez: sou vigorosa, dezesseis. E já não estava mais a mercê de ninguém. Desesperada porque vigorosa, livre, não estava mais a mercê. Perdera a fé. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 108).

Sabe-se que toda lembrança é encobridora. Freud, no que é considerada a pré-história da Psicanálise, elaborou a teoria da sedução. Através da catarse analítica o sujeito memorava um trauma, sempre de origem sexual, geralmente de sedução de um parente próximo, correlativo à figura do pai. Posteriormente, ele se dá conta de que a sedução não ocorre na realidade, mas na fantasia, e está intimamente ligada aos processos inconscientes vividos durante a experiência edípica. O incidente traumático rememorado pela personagem - alguém que a ama joga-lhe um rato morto - encobre a possibilidade de ter sido rejeitada por aquele que amava. Se tomarmos o complexo de Édipo-castração como ele se apresenta para as meninas, vivido de forma inconsciente, podemos dizer que ser rejeitada por um menino que a ama é a substituição de ter sido rejeitada pelo pai. Essa marca, por ser inconsciente, só pode ser rememorada com uma lembrança encobridora, a de ter sido rejeitada pelo menino. A substituição a essa rejeição é a de que ela é vigorosa. A fantasia é um substituto do sintoma. As fantasias também são precursoras mentais imediatas dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes, abrindo-se um amplo desvio do que conduz à patologia. (Freud, S. 1908 [1907] /1980c, p. 154). O adjetivo vigoroso é fundamentalmente um atributo masculino. Ao não ter a possibilidade de poder tomar a rejeição pelo pai como uma indicação de lei, como uma interdição paterna, faz com que ela se identifique com esse pai, adotando a posição masculina, de vigor. Como já foi dito anteriormente, o complexo edípico é uma matriz a partir da qual o sujeito se posiciona diante da castração, ou seja, diante da falta. Ressalta-se, porém, que a Psicanálise entende essa marca como uma sobredeterminação e não uma pré-determinação, o que permite ao sujeito aceder a outra temporalidade. Embora a personagem encontrasse uma saída no vigor, era atormentada por essa mesma saída, à qual não se coadunava.

 

Na temporalidade em que o erro engendra o acerto

Na manhã seguinte, a personagem acorda, cumpre o seu ritual matinal, mas uma diferença marca essa manhã. Ela não se apressa como sempre o fazia. Esse movimento é importante porque ele estabelece outro caminho para ela. A mudança da temporalidade irá encaminhar a personagem em outro rumo: E então já não se apressou mais. A grande imolação das ruas. Sonsa, atenta, mulher de apache. Parte do rude ritmo de um ritual. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 109). Nesse dia, a temporalidade era diferente e o atraso necessário levou-a ao desconhecido. Foi andando para o imprevisível da rua. (...) Surpreendida em seu atraso, arredondava-se na hesitação (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 109). Ao se lançar ao imprevisto - àquilo que se desconhece, àquilo que não se pode saber antes - a personagem cai em uma hesitação; titubeia, mas, mesmo assim, caminha e enfrenta o desconhecido. Enfrentar o desconhecido é se arriscar ao encontro com o que há de mais íntimo em si.

O atraso da personagem faz com que algo se modifique em seu percurso, na medida em que ela encontra dois homens. Ela percebe-se em um engodo, engendrado por ela mesma: Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade. Mas errara os minutos: saíra de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir. Seu coração se espantou (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 109). A personagem, através do erro, engendra um acerto: depara-se com o outro. Em O Tempo Lógico e a Asserção da Certeza Antecipada: um novo sofisma (1998/1945), Lacan, ao trabalhar a temporalidade do sujeito, diz que é o erro que engendra o acerto. O tempo lógico admite três momentos: instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir; esses tempos estão subsumidos no instante de ver; mas, somente em um après-coup será possível chegar à resposta que colocará os presos em liberdade. Diante da proposta do diretor da prisão, cada um dos presos é impelido a fazer um raciocínio a partir do outro, a partir da temporalidade do outro, a partir do significante do outro; consideram-se os significantes que estão presentes - discos brancos, mas é fundamental que se considerem, também os significantes que estão ausentes - discos pretos. Nesse raciocínio, dentro e fora contam segundo a forma que a banda de Moebius. Essa temporalidade oferecida por Lacan, como um novo sofisma, traz uma aproximação com uma temporalidade na qual o sujeito se inclua em seu ato, porque contou-se a partir de um Outro.

No conto, no momento em que o personagem engendra o erro - atrasa-se - e muda a temporalidade é que ele tem uma chance de se dirigir a outra posição. Indaga-se se está no lugar certo, e verifica que sim, que se enganou - enganou a si mesma - quanto à temporalidade:

Com os olhos franzidos pela incredulidade, no fim longínquo de sua rua, de dentro do vapor, viu dois homens. Dois rapazes vindo. Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade. Mas errara os minutos: saída de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir. Seu coração se espantou. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 109).

Atrasou-se, de um atraso necessário. Mesmo reconhecendo o erro, a personagem teria condição de recuar, evitando ser olhada pelos homens. Pensa nessa possibilidade, mas não recua. A personagem avança. Ela tem um saber, percebe que já não se pode mais recuar diante de um passo que já foi dado, aqui traduzido por: Mas como voltar e fugir, se nascera para a dificuldade. (...) Como recuar e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta? (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 109). O significante é inexorável e é impossível, depois de mergulhar na linguagem, estar no mundo que seja como um ser de linguagem.

Todo o movimento culmina com o ataque dos homens à personagem. Esse ataque, entretanto, deve ser entendido como uma metáfora, como uma possibilidade da personagem ser tocada pelo Outro. Ser olhada/ser tocada pelo Outro. Olhar o outro, considerar o outro enquanto espelho, enquanto aquele que possibilita o olhar-se. Ela não olhava ninguém, mas traiu-se, olhou os dois homens: Com brusca rigidez olhou-os. Quando menos esperava, traindo o voto de segredo, viu-os rápida (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 109). Ao trair-se, a personagem vê algo que não podia ver, sai da nebulosidade na qual está envolta no início do conto. Ela sabe que o olhar, o ver o que não pode ver - defrontar-se com o Real - possibilita um deslocamento de posição:

(...) enquanto fosse impessoal, seria filha dos deuses, e assistida pelo que tem que ser feito. Mas, tendo visto o que os olhos, ao verem diminuem, arriscara-se a ser um ela mesma que a tradição não amparava. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 111).

Ser filha de deuses colocava-a em uma posição de ser adorada. Diferentemente dos mortais, não cabe aos deuses amar, mas sim serem amados, colocados em posição de preciosidade. Amar pressupõe a troca. Quanto mais se aproxima do fato de ser tocada pelo Outro, a personagem percebe que não pode recuar. Correr seria chegar à outra margem do rio sem tê-lo atravessado. Assim, ela respeita a sua temporalidade, o passo já dado, submete-se ao erro que engendra, submetendo-se, assim, ao significante.

Mas era tarde demais para recuar. Só não seria tarde demais se corresse. Mas correr seria como errar todos os passos, e perder o ritmo que ainda a sustentava, o ritmo que era o seu único talismã (...) (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 111).

Ser tocada pelo Outro, segundo a protagonista, tem seus efeitos: Mas o que se seguiu não teve explicação (Lispector, C. 1960/1990, p. 112), foi da ordem do inexplicável. Diz ainda que ficou paralisada, o que nos leva novamente à figura da Medusa, à castração. Algo da ordem de uma lei se impõe para ela. Ao ser tocada pelo Outro, ela também percebe que toca o outro, produz efeito sobre o outro. Seu medo se esvanece e parece habitar esses que a tocaram, ao perceberem que também foram tocados: Mas pela pressa com que a magoaram soube que eles tinham mais medo do que ela. Tão assustados que já não estavam mais ali (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 112). Os sapatos, metáfora do ser-no-mundo da proprietária deles, indicação do caminhar da personagem, do seu ritmo, tomam relevância. Quando os homens se aproximam dela para o ataque, vemos que: Os sapatos dos dois rapazes misturavam-se ao ruído de seus próprios sapatos, era ruim de ouvir. Era insistente ouvir. Os sapatos eram ocos ou a calçada era oca (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 112). Percebia o caminhar do outro, a aproximação do outro, e não gostava disso, embora não pudesse deixar de ali estar. A calçada lhe parecia oca - algo como uma calçada insólita e não sólida, pisava sem saber onde pisava. Guiada por um saber, de nada sabia. O ruído de seus sapatos, como que antecipando uma mudança, não eram mais o ruído apenas de seus sapatos, ele misturava-se ao ruído dos sapatos dos rapazes. O seu caminhar não era sozinho, seria tocada pelo caminhar do outro. Quando os dois homens vão embora, a personagem:

Ficou de pé, ouvindo com tranquila loucura os sapatos deles em fuga. (...) No oco dos sapatos deles ouvia atenta o medo dos dois. (...) Tão nítido na nudez da pedra que o sapateado não parecia distanciar-se: era ali a seus pés, como um sapateado de vitória. De pé ela não tinha por onde se sustentar senão pelos ouvidos. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 113).

Os homens, ao irem embora, deixaram suas marcas. Ali, aos seus pés, ficaram as marcas do Outro. Naquele momento, ela não encontrava como se sustentar, a não ser pelo ouvido. O ouvido é o canal da escuta, por onde o outro recebe a materialidade da palavra, isenta do imaginário do olhar. Nesse momento a personagem é levada a outra posição. O que resta do ataque à personagem é um som - não o som do taco do sapato, que era ouvido como um ruído, como uma falha na comunicação - de castanholas. Depois percebeu que há muito não ouvia nenhum som (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 113). Algo que lhe estava vetado comparece, não surge como novo, mas ressurge, assim como cantou de Rimbaud (1872/1985), em A uma razão.

Depois do episódio que imprime o clímax ao conto, o movimento do dia apresenta-se correlativo ao re-nascimento da personagem. Ela se perfaz em Outra: viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 114). Ali ela não era mais a mesma, muda de letra, muda de posição. Nesse dia, a protagonista chega atrasada à escola. Não pensa em nada. Não preenche seu tempo com devaneios: Como não tinha pensado em nada, não sabia que o tempo decorrera (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 114). Ela não estava mais regida por uma temporalidade cronológica, mas pela temporalidade do desejo. Entrara na sala de aula, na qual ela tinha uma posição fálica - a de menina inteligente - e era considerada como um rapaz; sentiu-se repentinamente desconfortável e, pedindo licença, foi ao banheiro. Percebe-se sozinha no mundo. Isolou-se no banheiro e, quando molhou os cabelos, diante do espelho, percebeu-se não tão feia, possível de olhar-se. Atribui essa mudança de olhar ao episódio: Ela possuía tão pouco, e eles haviam tocado. Ela era tão feia e preciosa (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 115). A partir desse momento ela percebeu que tinha que cuidar mais de si. Adquiriu um saber: Preciso cuidar mais de mim, pensou. Não sabia como. A verdade é que cada vez sabia menos como (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 115).

O saber do inconsciente é um saber que não se sabe. Freud, ao inaugurar a Psicanálise, disse que iria deixar uma ferida narcísica na humanidade quando disse que o eu (ego) não é senhor da sua casa. O desejo não se resume em um querer. O querer é da ordem do ego, o desejo é sempre desejo de Outra coisa, tem relação com o não saber. E, justamente quando a personagem diz estar regida por um não-saber, é que ela faz sua primeira demanda. Em um diálogo ela faz uma demanda de amor:

- Preciso de sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar de salto de madeira, chama muita atenção, ao que lhe dizem: - Você não é uma mulher e todo salto é de madeira. (... ) E ela ganhou os sapatos novos. (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 115-116).

Nessa demanda ela pede um novo caminhar, deixa de calçar os mesmos sapatos desde que nasceu e passa a calçar sapatos novos, adquire um novo caminhar. Esse novo caminhar só lhe foi possível na medida em que saiu do ovo, de um mundo fechado, sem trocas, que a colocava em uma circularidade: Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo (Lispector, C. 1960/ 1990, p. 116). Esse saber adquirido, como nos é dito, é obscuro, é da ordem do inconsciente. Somente através de outra temporalidade se pode aceder a Outra posição. A personagem, ao ser tocada, deixa de agir como um rapaz, colocando-se como mulher, a quem é possível admitir que alguma coisa falta, e somente a falta coloca em movimento o desejo. Ao abandonar a posição fálica, de quem tudo sabe, ao sair de sua redoma, ao colocar-se como faltosa, a personagem engendra os caminhos da feminilidade.

 

Referências

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Recebido em 16 de fevereiro de 2009
Aceito em 11 de abril de 2009
Revisado em 05 de maio de 2009

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