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Revista Mal Estar e Subjetividade

versión impresa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A repetição e o par mania-depressão na clínica psicanalítica das obesidades

 

The repetition and the pair mania-depression in the psychoanalytic clinic of obesity

 

La repetición del par manía-depresión en la clínica psicoanalítica de la obesidad

 

La répétition de la paire manie-dépression dans la clinique psychanalytique de l'obésité

 

 

Denise Teles Freire Campos

Psicóloga e psicanalista. Doutora em Psicopatologia Clínica pela Université de Provence. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás- PUC-Goiás. End.: Av. Lineu de Paula Machado, 826/101, Lagoa. CEP. 22.470-040 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: phdcampos@terra.com.br

 

 


RESUMO

O reconhecimento da obesidade como doença, do ponto de vista biológico, é polêmico. No entanto, a OMS aponta inequivocamente o fato de ela ter se tornado um problema de saúde pública dos mais urgentes e inquietantes. O presente trabalho visa a discutir a obesidade a partir da psicopatologia fundamental, sem esquecer o caráter "multidimensional" do fenômeno. O "corpo opulento" é tratado aqui em sua articulação com a subjetividade, apontando formações culturais que tornam a obesidade uma expressão da fetichização do corpo na modernidade.As reflexões aqui apresentadas se fundam em observações feitas de atendimentos a pacientes com quadro físico de obesidade, que procuram o consultório de psicanálise. O trabalho recupera a noção do "agir do melancólico" para examinar o "agir da obesidade", adotando a melancolia como um "paradigma" para a compreensão do sofrimento na obesidade. Nesta direção, é proposto um paralelo entre as manifestações depressivas num e no outro caso. Observações clínicas permitem levantar a hipótese de uma falha no par estrutural mania-depressão. A falha neste mecanismo de proteção parece impedir a regulação da angústia: diante da frustração de projetos idealizados e inatingíveis (o emagrecimento milagrosamente sonhado), a angústia é corporificada, e não simbolizada. Neste sentido, a obesidade se apresenta como um adoecimento narcísico. A falha no par mania-depressão tem o efeito de bloquear a elaboração e a possibilidade de simbolizar o conflito. A repetição no comer é o corpo da ausência, e o corpo opulento é a imagem invertida de um vazio. O trabalho examina ainda como o imaginário social, dentro de uma cultura de consumo e de injunção sobre o corpo, produz pressões sociais que convergem com a falha estrutural, promovendo o aprisionamento do sujeito no ciclo da obesidade.

Palavras-chave: Psicopatologia fundamental, obesidade, mania, depressão, prática-clínica.


ABSTRACT

The recognition of obesity as a disease from the biological point of view is controversial. However, WHO points unequivocally to the fact that it has become one of the most urgent and disturbing public health problem. The present work aims to discuss the obesity by the prism of the fundamental psychopathology, without forgetting the multidimensional nature of the phenomenon. The "opulent body" is treated here in its articulation with the subjectivity, pointing cultural formations which make obesity an expression of the body fetishization in modernity. The reflections presented here are based on observations made during patients' treatment with a obesity physical conditions, seeking the office of psychoanalysis. The work resumes the "melancholy acting" to examine the "obesity acting" taking melancholy as a "paradigm" to understand the suffering in obesity, and proposes a parallel between depressive manifestations in one and in other case. Clinical observations allow the hypothesis of a flaw in structural pair "mania-depression". The flaw in this defensive mechanism seems to prevent the regulation of anxiety: in face of frustration for idealized and unattainable projects (the miraculously slimming dreamed), the anxiety is embodied, and not symbolized. Thus, obesity is presented as a narcissistic illness. The pair "mania-depression" flaw has the effect of blocking elaboration and the possibility to symbolize the conflict. Repetition (in eating) is the body of absence, and the opulent body is the inverted image of a void. The work also examines how the social imaginary, within a culture of consumption and ruling on the body, promotes social pressures which converge with the structural flaw promoting the entrapment of the subject in the cycle of obesity.

Keywords: Fundamental psychopathology, obesity, mania, depression, clinical practice.


RESUMEN

El reconocimiento de la obesidad como una enfermedad, desde el punto de vista biológico, es objeto controvertido. Sin embargo, la OMS señala el hecho de que se ha convertido en un problema de salud pública urgente y preocupante. Este trabajo tiene como objetivo discutir la obesidad de la psicopatología fundamental, sin olvidar el carácter "multidimensional" del fenómeno. El "cuerpo opulento" se trata aquí en relación con subjetividad, señalando antecedentes culturales que hacen de la obesidad una expresión de fetichización del cuerpo en la modernidad. Las ideas aquí presentadas se basan en observaciones a pacientes con condiciones físicas de obesidad que buscan la clínica de psicoanálisis. La obra recupera la noción del "actuar del melancólico" para examinar el "actuar de la obesidad", y abarca la melancolía como un "paradigma" para entender el sufrimiento de la obesidad. En este sentido, se propone un paralelismo entre las manifestaciones depresivas en los dos casos. Las observaciones clínicas permiten la hipótesis de una falla en el par estructural manía-depresión. El defecto en este mecanismo de protección a primera vista interrumpe la regulación de la ansiedad: frente a frustración de un proyecto idealizado e inalcanzable (el milagro de la pérdida del peso sonado), la ansiedad se manifiesta en el cuerpo, no sólo en forma simbólica. En este sentido, la obesidad se presenta como una enfermedad narcisista. La falla en el par manía-depresión actúa bloqueando el desarrollo y la capacidad de simbolizar el conflicto. La repetición del comer es el cuerpo de la ausencia, y el cuerpo opulento es el reflejo de un vacío. El trabajo también examina cómo el imaginario social, en una cultura de consumo y prescripción en el cuerpo, produce presiones sociales que convergen a la falla estructural, hacia la promoción de la detención de los sujetos en el ciclo de la obesidad.

Palabras-clave: Psicopatología fundamental, obesidad, manía, depresión, práctica clínica.


RÉSUMÉ

Du point de vue strictement biologique, la reconnaissance de Tobesité en tant que maladie est objet d'une polémique. Alors que pour l'OMS ce phénomène constitue un problème de santé publique assez important et inquiètant. La travail ci-présent porte la visée de débattre l'obesité sous le régard de la psychopathologie fondamentale, sans oublier sa caractéristique de phénomène multi-dimensionnel. Le ''corps volumineux'' est pris alors dans son articulation à la subjectivité et aux formations culturelles qui font de l'obesité une parmi les expressions de la fetichisation du corps dans la modernité. L'approche ici adopté prend le modele du "agir-melancolique", pour saisir "l'agir de Tobesité". Dans ce sens la mélancolie devient modele paradigmatique pour la comprehénsion de la souffrance psychique chez Tobése; des manifestations dépresives y sont intérrogées soit du cote de la mélacolie, soit de Tobesité. Le matériel clinique permet de poser Thypothèse explicative selon laquelle une rupture intervient dans le fonctionnement du pair structural manie-dépression. Tel défaillance dans ce mechanisme de protection empéche, de la part des sujets, le maniement de l'angoisse face à la non-réalisation des projets, attentes ou intentions miraculeuses concernant la perte de poids. De cela, l'angoisse atteinds le corps, elle "prends corps", éloignant le sujets de toute possibilité de symbolisation des conflits inconscients. L'obesité se déploit en blessure narcissique. La répetititon (dans l'acte de manger) c'est le corps de l'absence, ainsi que le corps volumineux fait image du vide. Le travail ci- présenté intérroge l'immaginaire social ancrée sur une culture de consummation et investissement sur le corps, dont les enjeux des préssions socials vont de pair avec la défaillance structural. Ce cadre contribute á ce que l'obese y reste avec son désir enprisionné.

Mots-clés: Psychopathologie fondamentale, obésité, manie, dépression, pratique clinique.


 

 

A Repetição e o Par "Mania-depressão" na Clínica das "Obesidades"

Trata-se, pois, de pensar os destinos do desejo na atualidade, já que esses destinos nos permitem captar o que se passa nas subjetividades. O rastreamento de alguns destes destinos nos possibilita uma leitura acurada das subjetividades. Com isso, podemos nos aproximar do que há de sofrente nas novas formas de subjetivação da atualidade, circunscrevendo então o campo do mal-estar contemporâneo" (Birman, 2000, p.16)

A noção de "obesidade" está na ordem do dia das discussões em saúde, embora seja polêmico o reconhecimento de seu estatuto de doença do ponto de vista biológico, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta inequivocamente o fato dela ter se tornado um problema de saúde pública dos mais urgentes e inquietantes, com inegável perfil de epidemia. No interior de uma força tarefa da OMS é cunhada a expressão globesidade, de modo a indicar que se trata de uma epidemia global. O problema inicial está justamente na constatação que são realizados encontros científicos, seminários, fóruns de debate, porém a própria definição do "fenômeno" pelos diferentes atores sociais envolvidos não é tarefa simples. A afirmação de uma natureza (social, física, biológica, cultural, histórica, emocional ou comportamental) ou de uma constituição bem delimitada, é de difícil consenso. Assim como sua compreensão e, especialmente, suas explicações causais se fazem opacas às abordagens mais cientificamente rigorosas e menos "aplicadas". A pluralidade de definições faz prova das hesitações profundas em aceder a modelos incontestáveis ou compreensões sólidas, seja na intervenção médica, na redução e controle do peso, na psicoterapia ou na análise propriamente dita.

Considerando a relevância social e científica das questões produzidas pelo e derivadas do fenómeno da obesidade na atualidade, optamos por explicitar, desde o início, nossa posição quanto a uma polêmica que se encontra efervescente no campo. Na perspectiva aqui desenvolvida não se deve pautar a questão com base na visão, segundo a qual toda obesidade seria de "causa psicológica"; nem mesmo é sustentável a ideia que grande parte do problema obedeça a este princípio. Também aqui não se adota uma posição contra nenhum tipo de tratamento médico, nutricional ou sequer cirúrgico. A nossa perspectiva é de entender o sofrimento associado à obesidade, como fenômeno psíquico. Não se postula, em absoluto, a procura das "causas psicológicas" da obesidade, o que seria, de antemão uma tarefa infrutífera. O que se procura destacar no presente trabalho é que o indivíduo obeso é também um sujeito de fala; como tal, a expressão de seus sofrimentos pode ou não estar construída tendo a obesidade como significante. Busca- se, metodológica e clinicamente, tratar os fenómenos de fala como tal, neste contexto. Então, é salutar apontar que "não se faz análise para emagrecer", mas para possibilitar ao sujeito compreender o que há de fundamental no seu sofrimento.

Os aspectos psicológicos associados à obesidade, são frequentemente abordados com reserva e designados no plural. Esta forma de lidar com a dimensão psicológica envolvida denota um reconhecimento, por parte dos autores, de uma relação de causalidade na qual vários fatores interferem, ou seja, o reconhecimento de que a obesidade é, do ponto de vista psicológico, multifatorial. Vários autores afirmam a pré-existência de características "psicológicas" (Oliveira, Linardi, & Azevedo, 2003; Cataneo, Carvalho, & Galino, 2003; Vasques, Martins, & Azevedo, 2004). Porquanto outros preferem a reserva, ao afirmarem a interveniência de fatores psicológicos, sem assegurar sua pré-existência ou não (Halpern, 1995; Sena & Santos, 2003), além dos aspectos chamados de modo impreciso de sociais, psicossociais ou culturais. De todo modo, tanto no campo da medicina, quanto no da psicologia, aparece, explícita ou implicitamente, a visão de traços psicológicos suscetíveis de favorecer e, até, produzir a obesidade.

A noção de vulnerabilidade tem aplicação adequada em vários campos da medicina, da epidemiologia ou da psicologia social, por exemplo, apresentando ganhos em compreensão. Uma aplicação adequada constitui em permitir integrar as ações de saúde pública em obesidade na mesma orientação dada a epidemias cujo comportamento das pessoas é um elemento determinante e não controlável da difusão, como a exemplo da epidemia da AIDS. Neste sentido, e de modo legítimo, não se pode falar de "grupos de risco", mas de condutas que as pessoas adotam ou não e que resultam em prevenção ou em "risco", vulnerabilidade.

Aqui se reencontra, particularmente no contexto das obesidades, o uso vago e equivocado da noção de vulnerabilidades. Vale lembrar que esta noção é importante e necessária em outros contextos, sobretudo quando ela se refere à dimensão social das condutas e das posições sociais do indivíduo, como nos exemplos da violência, da gravidez na adolescência ou de determinados quadros de contaminação das DST/AIDS.

Porém, o uso da noção de vulnerabilidade, sem o rigor conceitual, acaba por reforçar a ideia da obesidade como uma doença. Neste caso, a vulnerabilidade emocional ou psicológica suposta, converge com a noção atual de transtorno mental ou com a noção, mais antiga, de doença mental. Assim, os indivíduos obesos seriam aqueles "vulneráveis", ou seja, predispostos a uma doença mental, cuja consequência seria o descontrole com a comida e o engordar. Neste sentido, a aplicação descuidada do modelo da vulnerabilidade ao campo da obesidade contribui para situar uma "provável causa" no indivíduo: as assistências médicas, nutricionais e cirúrgicas podem continuar centradas no controle do peso e da gordura. Se o tratamento fica centrado no controle do peso ou na redução da gordura, o eventual cuidado com as "questões psicológicas ou emocionais", ou seja, a atenção para com a vulnerabilidade, passa a ser relegado à esfera das decisões privadas do indivíduo.

Ainda um cuidado necessário ao se considerar este tipo de "modelo" explicativo, baseado na existência de vulnerabilidades individuais, constitui em conceber que, se há uma "vulnerabilidade" que entra em relação com a cultura, esta relação é sempre media da por um outro. O palco de embate entre o imaginário social e a formação do sintoma é a própria relação com alteridade e, sobretudo, na sua formação na relação básica com o representante da função materna (Enriquez, 1991).

Embora não seja propriamente uma doença, a obesidade adquire, ao final do século XX, o status de epidemia. Estudos recentes (Williams, 2003) apresentam um modelo de análise segundo o qual o indivíduo "portador" de problemas pré-existentes ou de "vulnerabilidades", vai entrar em um tipo de ciclo que finda por alimentar o chamado "desejo de emagrecer", que por sua vez, torna-se uma compulsão. Este ciclo do "desejo de emagrecer é composto de cinco etapas: (1) o "portador de vulnerabilidades" vai sofrer a influência de frustrações e cobranças sociais, as quais acionam os mecanismos que levam à bulimia, à anorexia; (2) o indivíduo adota uma solução, o emagrecimento, per der peso continuamente é significado como ter aceitação social e como "tornar-se belo", associado à felicidade; (3) a indústria da moda, a cultura de consumo e a mídia, a elas associada, compõem o trio perverso, no nosso entender, que veicula as múltiplas soluções para ter acesso rápido ao objetivo de emagrecer, em última instância, o "objetivo" de "ficar belo" (dietas mágicas e científicas, cirurgias, exercícios, roupas adaptadas); (4) perda de peso de efeito fugaz, sem que as "vulnerabilidades anteriores" sejam soluciona das, ou seja, insatisfações e frustrações não desaparecem com a gordura perdida; e (5) os esforços são percebidos como inúteis, levando à vergonha e à culpa, enfim, retoma-se a compulsão para emagrecer como "solução".

Contudo, note-se que o ciclo proposto é referente à compulsão para emagrecer e não à obesidade. Ou seja, ele não se ambiciona como um modelo de compreensão do "engordar". Afortunadamente ele aponta para uma direção importante na com preensão clínica psicológica de alguns casos de obesidade. Neste sentido, podemos suspeitar que os meios de comunicação reforçam um ideal definido de beleza que nutrem os transtornos, oferecendo significantes culturais do magro-belo e do gordo-feio. Também não se pode descartar uma relação entre o imaginário social/mídia e as pressões exercidas sobre o sujeito, para emagrecer, que tenham como efeito inverso, o engordar. Aqui faz sentido a tese segundo a qual a nossa sociedade fez do corpo lugar de injunção pelo excesso de prazer (no consumo e na comida), ou pelo excesso de controle, através de padrões estéticos ditados pela indústria do consumo e pela mídia.

Um cuidado necessário reside no rigor em estabelecer a fronteira entre a noção de "transtornos alimentares", regulada pela psiquiatria e referenciada atualmente no DSM-IV (APA, 2005), e a noção de "obesidade" (Vasquez et al., 2004; Halpern, 1995). Pensar esta fronteira é necessário para se abrirem interrogações sobre as ditas "causas psíquicas" ou sobre as "vulnerabilidades" indicadas.

O próprio campo da psiquiatria atesta dificuldades notórias em estabelecer relações claras entre a presença de transtornos psiquiátricos bem delimitados e a obesidade. Alguns autores estimam (Olsson, Ryden, Danielsson, & Nilsson-Ehle, 1984) que a prevalência de alterações psiquiátricas em obesos mórbidos chega a 50% desta população específica. Por outro lado, estudos recentes vêm buscando identificar a existência de relações constantes no caso de pacientes que se submetem à cirurgia bariátrica, porém encontram dificuldades em estabelecer a fronteira entre "dificuldades de ordem psicológica" e "transtornos psiquiátricos" bem definidos. Por exemplo, Rand, Kuldau e Robbins (1982) indicam que 1/3 dos casais apresentam "problemas conjugais graves" após a realização da cirurgia. O que estamos explicitamente apontando é a existência de estudos no campo da psiquiatria que acabam por adotar como eixos de análise noções pouco delimitados, de ordem "psicológica", como "impacto emocional" ou "relacionamentos interpessoais"; noções que, em última instância, se afastam do campo axiomático dos chamados "transtornos" (Leal & Baldin, 2007). Tal afastamento não resulta em melhor compreensão do que sejam os fatores psicológicos.

 

A Obesidade e as Estruturas Sociais

As estruturas sociais não determinam nem de modo automático, nem isolado a subjetividade. Elas regulam as possibilidades de simbolização da economia do desejo. Na modernidade, estas possibilidades vão se inscrever no repertório de uma sociedade que fez do corpo lugar de injunção pelo excesso de prazer (no consumo e na comida) e pelo excesso de controle, na estética ditada pela mídia. Neste contexto, mais uma questão nos interpela: como, por quais processos os aparatos de controle e comércio transformaram o que era representação social da beleza (o corpo opulento) em representação de doença e feiura? Intrigantes processos que, em menos de dois séculos, transformaram a imagem da mulher bela de um corpo com "generosidade das formas" para um modelo, não somente andrógino, como próximo do esquelético.

Resta ainda nos interrogarmos sobre o corpo opulento como significante, a saber, interrogar-nos sobre o porquê do corpo opulento ter se tornado um dos significantes privilegiados de expressão das subjetividades na modernidade e ter sido vinculado ao sofrimento, ao feio e à vergonha. A própria palavra "gordo" passou a ter conotação negativa, pejorativa. O que é interessante a nos interrogarmos é como esta representação, nomeada pelo adjetivo associado à visibilidade - a gordura -, deixou de ser problematizada em um contexto político, moral e sexual. Certamente, no mesmo passo em que o corpo foi fetichizado para se tornar mercadoria, também tudo que dele deriva sofreu o mesmo processo. A obesidade não é uma metáfora do sujeito, nem do corpo do sujeito, mas uma metonímia que deixa o sujeito em posição de "prisioneiro" do imaginário. A falha no par mania-depressão tem o efeito de bloquear a elaboração, ou seja, a possibilidade de simbolizar o conflito. Novamente, a repetição (no comer) é o corpo da ausência. E o corpo opulento é a imagem invertida de um vazio.

O corpo e suas representações se tornaram "objeto" de pesquisa e intervenção científicas, como se fossem objetos independentes, isoláveis, objetiváveis, positivados. Na nomenclatura médica especializada, a "obesidade" vai ser estendida: todo gordo será, no imaginário social cultivado e induzido pela medicina, obeso. Dito de outro modo, como o gordo virou obeso e engoliu a noção de sobrepeso?

Apesar de a modernidade desencadear uma verdadeira cruzada contra a obesidade, sobretudo no plano do padrão estético, a palavra "gordo" preserva sua amphibiologia, ser gordo também é ser "cheio", "grande", "forte", "robusto", "fofo", "presença marcante". Este processo não nos parece dissociado do investimento das estruturas sociais hegemônicas nas manias. Também não nos parece obra do acaso que, em dispositivos de escuta clínica, apareçam falhas na articulação estrutural mania-depressão, como discutiremos adiante.

Uma das características do "mal-estar" do obeso na atualidade é que, sob a inspiração da mídia e das ciências médica e psicológica, a sociedade parece ter certeza que todo obeso (na verdade, todo gordo) é infeliz. A despeito deste "imaginário infeliz" as reflexões que aqui são apresentadas se restringem ao contexto de sujeitos que procuram o consultório do analista por estarem em sofrimento. Porém, o peso da obesidade neste sofrimento é função das subjetividades, que solicitam, antes de tudo, serem escutadas e não "emagrecidas".

 

A Clínica da Obesidade entre a "Doença" Médica e o "Sintoma" Psíquico

Como problema e objeto de investigação científica, a obesidade é uma construção da atualidade, da ciência moderna, e, sobretudo referente às últimas décadas do século XX. Como analisa Foucault (1984), entre os gregos, o corpo opulento não constituía em si, objeto de reprovação, de discriminação ou preocupação. O corpo se inscreve em uma ética dos cuidados de si e as preocupações com o corpo se articulavam com o alcance da temperança. Para o autor, as preocupações com o corpo e os cuidados para com ele, constituíam, em última análise, em uma ascese.

No pensamento grego dominante (Ariès & Bejin, 1978), o corpo opulento é visto com uma relativa ambiguidade: primeiro ele é positivo, uma vez que as formas cheias expressam a estética do belo nas mulheres; e nos homens, as formas cheias são símbolo de prosperidade. Somente em segundo plano é que o corpo pode assumir um lado negativo, se, e somente se, ele decorre de um excesso, seja pela não observação voluntária da moderação dos sentidos e do prazer, a "entrega" aos excessos do desejo e do prazer; seja pela incontinência na qual o sujeito é incapaz de se conter, incapaz de ser comedido, incapaz de controlar os próprios instintos. Assim, não é o corpo opulento que constitui em si problema moral ou político, mas sim quando o corpo que se apresenta (opulento ou não) é resultante do excesso de prazer na comida: a gula. Entre os romanos, a problematização moral do corpo opulento não é, assim como entre os gregos, autônoma em relação à moral sexual ou política.

Podemos afirmar que, nem gregos, nem romanos, nem os ocidentais, até o início do século XIX, não contavam a quantidade de gordura no corpo, não mensuravam tecido adiposo, nem problematizavam o "corpo gordo" em si, não inventavam medidas (positivas ou "subjetivas") para contar as dobras da pele. O corpo opulento não foi objeto de controle por si; as questões acerca do corpo "obeso" se inscreviam então na lógica da moral sexual, ética e política. Os efeitos estéticos do corpo opulento se inscreviam em uma economia do desejo e em uma política de poder, conforme a posição social do ator em questão cuja relação com o alimento não constituía problema, ou ao menos não constituía problema maior.

A partir destes elementos podemos desenhar o dilema da ciência moderna face à obesidade. A grande maioria dos estudiosos do campo da saúde (médicos, biólogos, nutrólogos e psicólogos incluídos) reconhece o fenômeno como sendo multidimensional, ou seja, reconhecem a interveniência de diversos fatores "causais", mas finalmente, o que se preconiza é uma intervenção sobre a gordura e/ou sobre os hábitos. Se tomarmos com rigor a ação médica dominante, a obesidade é um problema de quantidade de tecido adiposo e de maus-hábitos. Estes "hábitos" são concebidos de uma maneira rasa, uma vez que as especialidades médicas se debruçam, segundo o próprio relato dos pacientes obesos, sobre a "mudança de hábitos", ou seja, as dietas e a prática de exercícios. O emagrecer torna-se assim resultado ou alvo da vontade do paciente "reforçada ou sustentada" pela vontade (sob a forma de orientação e/ou cobranças) do médico e, secundariamente, de um profissional da área psicológica.

Do ponto de vista psíquico, tal perspectiva se enquadra no projeto político de uma medicina anátomo-técnica que convida a uma paixão pela causalidade e a uma confusão entre estrutura psíquica e sintoma (Del Volgo, 2003; Gori & Del Volgo, 2004). A partir do visível de um corpo excessivamente visível, se procura uma causa sobre a qual se projeta a sombra da acusação. Gori (1998a) nos lembra que causa e acusação têm a mesma etimologia. Neste sentido, o excesso no alimentar seria visto como descontrole gerado pela ansiedade, por depressão ou por ferida narcísica; ou seria visto como recusa voluntária em controlar, em abrir mão do prazer encontrado na comida como um substitutivo do prazer sexual propriamente dito.

Esta forma de olhar, ancorada no mito da ciência moderna, trata a obesidade como doença, falta, disfunção, distúrbio, anomalia, sintoma. Quando o sujeito obeso é aprisionado pela medicina anátomo-técnica (Pereira, 1998), ele torna-se gordura. Porém, do ponto de vista da Psicopatologia Fundamental (Fédida, 1989; Berlinck, 2000), pode-se pensar que a medicina finda por operar por um desconhecimento metodológico, que desconhece o paciente como um ser que fala, dotado de uma subjetividade que se expressa e constrói significados para alojar sua verdade no mundo.

No espaço do tratamento, o sintoma é necessária e unicamente o que cai junto na fala, e que ao ser recolhido por um e por outro, e às vezes pelos dois, faz história. Renovando, pois, esta coincidência do encontro na fala, a complacência da linguagem deixou advir a opacidade de um acontecimento ao qual a sonoridade significante, a pulsação enunciativa se uniram. Aquilo a que qualquer significação médica ou realista da palavra constitui obstáculo. Isto supõe que renunciemos às ilusões do visível e do sensível para deixar advir a revolução freudiana da cena psíquica." (Gori, 1998a, p. 181).

Uma outra possibilidade de concepção seria pensar que, no caso da obesidade, doença somática e doença psíquica entrariam em convergência, do mesmo modo que sintoma somático e sintoma psíquico também observariam este movimento. Ora a dificuldade de tal visão, neste caso, é justamente a impossibilidade de se identificar uma doença somática, à exceção notória de disfunções ou doenças neuro-endócrino-metabólicas. Ainda mais, há o inconveniente de aceitar qualquer opulência como referente a um sintoma somático. Aqui, o problema do grau, do quantum de tecido adiposo, da "justa medida" a partir da qual se consideraria uma doença ou uma "gordura normal", não é nada fácil se estabelecer, ou se sustentar uma posição como clara e objetiva. Além do que esta perspectiva se funda, mais do que em uma naturalização abusiva do homem, em uma naturalização de um ideal, de um valor. Afinal, o que seria o homem ideal, de onde se expandiria para o homem normal? Devemos lembrar que, face a comparações interculturais e inter-raciais, o próprio IMC (Índice de Massa Corpórea) nos coloca em insistente embaraço.

Há também um grande inconveniente em se adotar uma abordagem psicossomática estrita para a obesidade, na qual se postula tratar um fenómeno biológico como "sintoma psíquico". Uma conversão somática de fundo histérico, por exemplo, é um sintoma psíquico, dada sua natureza, o qual tem efeitos sobre a estrutura neuronal e muscular. Entretanto, não se pode pleitear uma aplicação automática desta perspectiva sobre o fato de alguns indivíduos apresentarem uma certa quantidade de tecido adiposo, considerado pela medicina como excessivo; a presença, em grande quantidade, de gordura, no corpo humano, não pode ser considerada manifestação de mesma natureza que uma representação psíquica.

Alguns poderão objetar que a obsessão no alimentar pode ser um sintoma, promovendo voluntariamente uma assimilação generalizante entre obesidade e compulsão no alimentar. Em primeiro lugar, na prática se tem contato com obesos que não apresentam compulsão alimentar; em segundo lugar, nos casos de obsessão/compulsão, o sintoma a ser tratado psicologicamente seria a obsessão e não a gordura. O mesmo raciocínio é válido para a medicina: o psiquiatra trata do transtorno, neste caso a bulimia, enquanto o excesso de gordura no corpo é uma sintoma de outra ordem, a ser tratado por outro profissional da medicina. Acrescente-se que nem todo acúmulo de gordura corresponde a um excesso de ingestão de alimentos e que não se pode desconhecer a distinção básica neste domínio, entre obesidade de desenvolvimento (que acompanha o sujeito em seu desenvolvimento desde a infância) e a obesidade reacional, associada a acontecimentos, episódios, vividos mais ou menos como traumas ou como trágicos.

A "obesidade" pode ser entendida como um conjunto de manifestações corporais, cujo critério de categorização se situa, do ponto de vista biológico, na presença de uma "grande" quantidade de tecido adiposo. Ela corresponde também ao visível do corpo opulento, a uma expressão, a uma manifestação da verdade do sujeito no mundo, que é lida pelos dispositivos de controle institucional como uma consequência (relativa a uma causa, da qual o sujeito obeso é acusado: fraqueza, frustração, histeria, desilusão e, até, "gula"), como um sintoma.

Neste contexto também parece útil retomar a distinção entre desejo, demanda e necessidade (Campos, 2003; Tort, 1992), inicialmente proposta dentro do campo da reprodução humana artificial. A necessidade pode ser biológica, como necessidade de emagrecer por questões de saúde física, ou ainda necessidade social, quando o imperativo cultural e/ou religioso exige. No caso da obesidade, a necessidade médica de se emagrecer está relacionada, sobretudo, à presença ou potencial de co-morbidades. A indicação para a cirurgia bariátrica, por exemplo, deveria ser aplicada sem equívoco aos casos de obesidade mórbida ou obesidade, acompanhada de co-morbidades crônicas e agudas. A falar de modo restrito, exato, estas seriam as condições de indicação médica para a cirurgia. No entanto, a demanda é lida, sobretudo, nos serviços médico-hospitalares particulares, por médicos e por algumas abordagens da psicologia como referente à "necessidade de emagrecer". Esta legitimação da demanda, seja por critérios ditos "de saúde" ou estéticos (como se, ao emagrecer, o sujeito se tornasse ou atingisse o estado de beleza) opera um achatamento do desejo no querer. Para a psicanálise, querer e desejar são eventos estruturalmente diferentes (Campos, 2003).

Na nossa concepção, a obesidade não é e não deve ser tratada como sintoma, no sentido exato do termo. Dito de outro modo, nos parece insustentável a posição de afirmar a existência de uma psicopatologia da obesidade. Qual interesse reside então em problematizar a obesidade no campo da psicopatologia fundamental? O interesse está fundado em uma concepção das obesidades como expressão de diferentes formas de subjetivação. A "obesidade" tem valor de significante. Melhor seria dizer que ela toma valor de fala, quando a expressão do sofrimento se organiza (e se manifesta no interior dos dispositivos de escuta ou dos serviços de saúde) em torno do corpo visível e seu grande volume, em torno da imposição de sua visibilidade ao mundo ou em torno da relação com a comida. Do ponto de vista analítico, constitui uma forma de resistência confundir estas modalidades de sofrimento com aquele sofrimento imposto pelo imaginário social dominante acerca dos padrões estéticos do dito "corpo saudável". Este último supostamente não comporta gorduras e mesmo se pode dizer do dito "corpo modelo", que é, em essência, magro; no caso do modelo feminino, perigosamente magro.

 

As "Obesidades" no Contexto do Consultório e da Análise

As reflexões clínicas aqui apresentadas foram elaboradas em uma abordagem de investigação científica, fundada em material clínico originado em sessões clínicas em consultório psicanalítico, cujo fundamento é a dinâmica transfero-contra-transferencial (Gori, 1998b). Neste sentido, as reflexões e indagações constituem-se de observações feitas de atendimentos a pacientes com quadro físico de obesidade, que procuram o consultório. É necessário destacar dois aspectos dinâmicos que distinguem as observações realizadas de outros dados psicológicos acerca da obesidade. Estes aspectos demarcam o limite de não buscar estender estas reflexões por sobre a totalidade do fenômeno obesidade. No contexto de nosso trabalho, o primeiro aspecto dinâmico refere-se à existência mesma de uma demanda de saber e de tratamento, o sujeito que procura a análise e permanece é um sujeito em sofrimento; o que não é evidente em outros atendimentos a obesos.

De um modo geral, as ideologias médica e psicológica parecem crer que o simples "excesso" de tecido adiposo seja signo inequívoco de sofrimento psíquico. Um segundo aspecto refere-se à queixa, que em certos casos é formulada em termos de uma necessidade imperativa de emagrecer, mas, mesmo nestes casos, pode-se perceber, ao fundo, uma queixa de sofrimento por "insatisfação com o próprio eu", o que é distinto de insatisfação com a gordura. Na nossa experiência prática, se mostra rara a situação em que um paciente obeso procura o consultório de psicanálise com a demanda imperativa de emagrecer. A análise tem como foco a subjetividade e não a "obesidade", ou qualquer outra "doença" ou transtorno.

Embora Freud tenha aproximado a noção de subjetivo à atividade de representação, a existência de um conceito de subjetividade em sua obra é alvo de polêmica. Para Queiroz (2004), a noção de subjetividade, em Freud, seria o resultado dos processos de simbolização e remete à maneira pela qual o sujeito se apropria das experiências e do mundo. A subjetividade, neste sentido, poderia ser entendida, a partir de Freud, como o modo pelo qual o sujeito torna-se sujeito de si mesmo.

Grandes reticências devem ser abertas neste ponto: a noção de subjetividade não é essencial para compreender o sujeito, sua constituição e a formação da cadeia simbólica. Não é um conceito-chave. A noção de subjetividade, em psicanálise freudiana (embora isto seja um pleonasmo!) é apenas operacional: ao invés de nos remetermos às representações psíquicas específicas, remetemos ao conjunto delas que, em seu todo - se ele fosse acessível - se confunde com seu portador, o sujeito. Enfim, os dois conceitos, sujeito e representação psíquica são suficientes para indicar as simbolizações operadas pelo sujeito, consciente e inconscientemente.

A noção de subjetividade nos parece mais interessante no contexto da prática clínica e na interface desta com o mundo da cultura. Nós definimos a subjetividade como a resultante, em um dado momento, do esforço de construção de verdade sobre si e sobre o mundo, pelo sujeito, dentro da cultura.

A perspectiva da psicopatologia fundamental nos permite abordar a "obesidade" como uma das muitas formas possíveis de subjetivação fundadas no sofrimento. Assim é interessante distinguirmos a obesidade como fenômeno corporal, como fenômeno médico e também, em outra ordem, como fenômeno psicopatológico. Por analogia retoma-se a distinção feita por Del Volgo (2003) entre a doença da medicina e a "doença do doente", ou seja, aquilo que é expresso como um "romance sobre a doença", cujos personagens e autor se sobrepõem: ao construir uma história subjetiva sobre a doença, não é mais ela (doença) que ocupa a cena, mas a própria subjetividade e a organização libidinal que lhe dá consistência. No caso da obesidade, a convergência de elementos culturais e de elementos da organização libidinal (significados culturais e significados ontogênicos confluem) reflete o sofrimento psíquico "como reação ao real" (Dejours, 2004).

De fato, em atendimentos clínicos de obesos pode-se apontar alguns sinais ou indícios, que podem ser entendidos como traços, no sentido proposto por Dor (1991), como marcas que apontam para uma estrutura clínica. Gori (1998b) faz uma análise etimológica do termo sintoma, apontando que, em sua origem, o termo designa "aquilo que vem junto" ou "aquilo que cai junto", no nosso caso, vem junto com o sofrimento psíquico, por tal lhe serve de sinal. O risco é de tratar estes sinais como sintomas no sentido exato e supor que, na obesidade possam haver "sinais patognômicos" que indicam inequivocamente uma patologia (Martins, 2003). É comum, em contexto clínico, encontrarmos índicos manifestos de eventos vivenciados como feridas narcísicas, sentimentos de perda de controle, seguidos de sentimentos de culpa, exagerado nível de exigência para consigo próprio, a elaboração de "projetos" mágicos de emagrecimento (perder 20 quilos em uma ou duas semanas; 30 quilos em dois meses, dietas extremas etc.) seguidos de sentimento e culpa por não ser capaz de realizá-los; grande dificuldade de tolerar frustrações, independentemente do tamanho ou da falta de autonomia do sujeito. Por fim, relatos frequentes de episódios de tristeza profunda sem causa aparente. Nestas manifestações, um aspecto em particular se destaca: quando o sujeito obeso se deprime, esta depressão não provoca uma redução geral do nível de atividade, nem recolhimento da libido para o próprio ego.

O "agir depressivo" no obeso não é estruturalmente comparável ao "agir depressivo" do melancólico, embora tenham alguns pontos em comum, como a autodepreciarão, autorecriminação e a idealização. Em casos clínicos de obesos atendidos em análise, podem ser observados episódios melancólicos, com um retorno persecutório da ausência (fantasma do objeto) sobre si, em momentos que manifestam depreciações do próprio eu. Na clínica dos sujeitos obesos que procuram a análise, vivências do tipo depressivo e maníaco parecem amalgamados. Mas é preciso lembrar que "enquanto a depressão é estado de luto muito primitivo, manifestando-se sem culpa, a melancolia é neurose composta de conflito, culpa e depressão" (Berlinck, & Fédida, 2000). É neste aspecto que o "agir do melancólico" se assemelha ao "agir da obesidade", sem lhe ser estruturalmente equivalente. Aqui, a melancolia funciona como um paradigma para se pensar o funcionamento de certos obesos (Fédida, 1999; Cerqueira-Leite, 2002).

Nossas observações da clínica destes pacientes nos levam a insistir na hipótese de uma falha na articulação estrutural mania-depressão, como mecanismo de defesa privilegiado, nos casos de pessoas que organizam suas subjetividades em torno da vivencia da obesidade. De fato, trabalhos anteriores nos levam a crer que provavelmente esta falha estrutural não seja específica da obesidade. De um lado, o obeso aqui estudado (em distinção a todos os obesos), não sofre de depressão, embora apresente episódios depressivos recorrentes. Também não é propriamente um melancólico, apesar de produzir atos que se assemelham ao agir maníaco. Podemos introduzir a hipótese clínica que, em obesos capazes de sustentar, ainda que provisoriamente o conflito psíquico, a necessidade de reorganização narcísica do vazio, deixado pela ausência do objeto de satisfação (seja por luto ou ferida narcísica), encontra uma falha estrutural.

Para Fédida (1999), a articulação do par mania-depressão é estrutural e dinâmica. Neste sentido, existe algo estranho no luto depressivo que leva o indivíduo a uma sedução imaginária, a qual é exercida pela repetição daquilo que está ausente, da falta que lhe confere um poder fascinante. A repetição é o "corpo da ausência" e a fase maníaca é a representação do ausente, por meio da atuação e do retorno persecutório de si mesmo. O fenômeno depressivo possui uma ampla complexidade, que confere uma nova organização econômica para o luto. A depressão opera como um importante mecanismo de defesa contra a melancolia e contra a mania, promovendo um retorno do investimento libidinal para o próprio eu, evitando a sensação de "esvaziamento". Como um trabalho de elaboração do luto pode também ser concebida como "uma organização narcísica primária protetora de um luto e defensiva contra o luto" (Fédida, 1999, p. 23). Portanto, o estado depressivo impele o indivíduo para a ação, o que torna uma característica essencial e paradoxal da depressão, a imobilidade e o amortecimento, os quais articulam na pessoa uma aflição e uma excitação interna, um movimento.

O agir depressivo possui uma inibição que desarticula a pessoa do tempo, deixando-a desprovida dos sistemas que se integram nos movimentos temporais em relação ao seu próprio corpo e às suas ações, como também na relação com os outros. O desejo de dormir e o desejo de morrer são sentimentos recorrentes.

De fato existem múltiplos aspectos regressivos no agir maníaco, associados à depressão, tanto normais quanto patológicos, aos quais recorrem ao sujeito de forma habitual. Os elementos característicos desses padrões primitivos nos estados maníacos de organização são: a negação da realidade psíquica; a onipotência marcada por um sentimento da capacidade do ego de satisfazer toda a demanda instintiva; a relação com objetos ideais; o tempo maníaco; a vigência das técnicas mágicas; a destruição do objeto; o triunfo maníaco; o retorno à bissexualidade. Estes traços são, segundo alguns autores, também encontrados no "agir dos obesos" (Halpern, 1998; Melo, 2000; Loli, 2000; Williams, 2003).

Podemos pensar que, no campo da obesidade, as formas variadas de se aniquilar, de se auto acusar, de se denegrir são queixas que a pessoa obesa faz e que lhes trazem um profundo sofrimento, assemelhando-se a um luto interminável, melancólico. Em nossas observações clínicas, o "agir depressivo na obesidade" se caracteriza por relatos de projetos idealizados irrealizáveis, negação da realidade, organização maníaca do tempo, onipotência de controle e metas (sobretudo de emagrecimento e mudanças de hábitos), associados a sentimentos de grande culpa e desvalorização.

O agir melancólico é apresentado por Cerqueira-Leite (2002):

É o que podemos observar no discurso absolutamente lógico que enuncia grandes verdades "pseudofilosóficas" em relação às quais o sujeito se apresenta resignado, um discurso no qual a sonoridade das palavras predo mina sobre a sua significação, produzindo, finalmente, um discurso de proposições absolutamente impessoais. Todas essas características têm uma função econômica ao substituir os atos pelos pensamentos totalmente desafetados. A ausência de sentido traduz a ausência de afeto. O melancólico garante, assim, uma economia motora e dos afetos. (p. 235)

O "agir da obesidade" e o agir melancólico têm em comum seu componente regressivo e depressivo. Contudo, no primeiro caso parece haver uma falha no par mania-depressão, na qual o efeito de reinvestimento no eu é substituído por um "preenchimento" do eu pela comida, o qual, finalmente, não se mostra como mecanismo eficaz de contenção da angústia. O excedente de excitação psíquica parece ser transformado em angústia somática. Pode-se dizer que, nestes obesos, a depressão não funciona propriamente como um "estado durando o tempo necessário para que o vazio inanimado do vivo se constitua como organização narcísica..." (Berlinck & Fédida, 2000, p. 15). Quando o sujeito realiza, depois do "tempo necessário", algum reinvestimento e reorganização narcísica possível, ele encontra uma pressão social que ataca seu Eu Ideal e um imaginário cruel, produzindo um efeito externo de ataque ao eu: o obeso é visto e tratado como um incapaz, incapaz de controle da gula (o que não é necessariamente real, uma vez que nem todo obeso come compulsivamente) e inábil ou socialmente incapacitado para capturar o desejo do outro, uma vez que no imaginário, gordo não é passível - em nenhuma hipótese - de ser desejável. Aqui, pressão cultural e sofrimento subjetivo se encontram contra o sujeito (Campos & Campos, 2005)

Neste sentido, a obesidade que se apresenta no consultório se assemelha a quadros psicossomáticos clássicos: ela também é marcada pela insuficiência de estruturação do conflito neurótico. Uma parte do "agir da obesidade" se enquadra no "agir depressivo" do melancólico, outra parte na mania. Uma falha no mecanismo de proteção parece impedir uma regulação da angústia: diante da frustração de projetos idealizados e inatingíveis (o emagrecimento milagroso sonhado) a angústia é "corporificada", e não simbolizada, pelo agir da comida, ou dos exercícios e dietas compulsivos. Esta falha pode ser entendida como obstáculo a uma fixação no compromisso histérico.

Não nos parece de todo insólito propor que em certas formas de subjetivação, a obesidade se apresenta como uma expressão de diferentes estruturas, especialmente nos casos onde ela está associada a uma imagem corporal volumosa. Nestes casos, da imagem corporal volumosa (note-se que não dissemos de disfunções ou distorções da imagem corporal), a obesidade é uma expressão, não no sentido figurativo, mas no sentido exato. Como expressão, ela remete diretamente a como o sujeito se vê, vê ao seu corpo, na sua economia libidinal, como ele se oferece ao outro como causa do desejo do outro. Deste modo, a obesidade não se constrói como metáfora do sujeito, mas sim como metonímia da imagem corporal interna e inconsciente.

Se faz útil aqui um pequeno parênteses para apontar o estranho relato de alguns pacientes, após gastroplastias realizadas com sucesso (com significativa perda de peso e volume), lamentando que ressentem-se do fato que agora não ocupam "o mesmo espaço", onde chegam "não são mais notados"; ressentem-se do fato de perderem o lugar de destaque no grupo, na família, que ocupavam pelo fato de serem "gordos". Aparentemente, em alguns casos, o corpo perde sua visibilidade e sua capacidade de expressar uma presença e uma ausência. No sentido que trata Del Volgo (2003), o corpo obeso pode ser a inspiração para a construção de um "romance" em torno da dor.

O quadro corresponde, então, não a um sintoma da estrutura psíquica, mas a um traço que remete à estrutura, no sentido que Dor (1991) atribui a esses dois termos. O autor considera que, entre causa e sintoma, está sempre presente o trabalho do inconsciente e as formações do inconsciente (emergindo como sintomas) podem revelar indícios de uma economia do desejo, ou seja, a estrutura propriamente dita. Assim, a especificidade da estrutura de um sujeito é predeterminada pela economia de seu desejo. A economia do desejo é caracterizada por trajetórias estereotipadas e "são semelhantes trajetórias, estabilizadas, que chamarei, por assim dizer, traços estruturais" (Dor, 1991, p. 22).

 

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Recebido em 15 de agosto de 2010
Aceito em 10 de dezembro de 2010
Revisado em 20 de dezembro de 2010