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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza 2011
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Entrevistas preliminares em psicoterapia de família: construção da demanda compartilhada
Preliminary interviews in family psychotherapy: construction of shared demand
Entrevistas preliminares en la psicoterapia familiar: construcción de una demanda compartida
Les entretiens préliminaires en psychothérapie familiale: construction de une demande partagée
Rebeca Nonato MachadoI; Terezinha Féres CarneiroII; Andrea Seixas MagalhãesIII
IPsicóloga clínica graduada pela PUC, Rio. Especialista em Terapia de Família e Casal pela PUC, Rio. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC, Rio e Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC, Rio. End.: R. Xavier da Silveira, 50/404, Copacabana. CEP: 22061-010 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: recanm@gmail.com
IIProfessora Titular do Departamento de Psicologia da PUC, Rio. Coordenadora do Curso de Especialização em Psicoterapia de Família e Casal PUC, Rio. End.: R. General Góes Monteiro, 8/bl.D/2403, Botafogo. CEP: 22290-080 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: teferca@puc-rio.br
IIIProfessora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC, Rio. Psicoterapeuta de Família e Casal. End: R. Vicente de Souza, 14/403, Botafogo. CEP: 22251-070 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: andreasm@puc-rio.br
RESUMO
O presente trabalho é produto de uma pesquisa que teve como objetivo investigar o período de entrevistas preliminares com famílias, focalizando a especificidade da avaliação diagnóstica familiar e as implicações da construção da demanda compartilhada para a adesão da família à psicoterapia. A demanda familiar compartilhada foi uma noção desenvolvida neste estudo, significando a motivação latente que conduz o grupo à psicoterapia. Ou seja, corresponde aos conteúdos interpsíquicos que são ainda incompreensíveis para a família, a qual não concebe o sofrimento como algo compartilhado. Postula-se que, no período de entrevistas, é importante problematizar a queixa inicial, por vezes centrada nos conflitos do sujeito-sintoma. As intervenções iniciais visam à realização da transformação do discurso de vitimização dos familiares, conduzindo a um posicionamento conjunto responsável pelo sofrimento psíquico. Na revisão da literatura, foram privilegiadas contribuições tanto da abordagem psicanalítica quanto algumas noções da abordagem sistêmica. Para atingir os objetivos propostos, a pesquisa adotou uma metodologia de estudo de casos clínicos. Foram analisados três casos de psicoterapia familiar, com diferentes queixas e problemáticas. O estudo dos casos se respaldou na análise clínica de conteúdos das entrevistas preliminares e na análise do material projetivo originado da aplicação do Arte Diagnóstico Familiar (ADF), instrumento de avaliação familiar. A descrição dos três casos clínicos ilustra o período de entrevistas preliminares e o trabalho de construção da demanda compartilhada.
Palavras-chave: Psicoterapia de família, avaliação familiar, entrevistas preliminares, queixa inicial, demanda compartilhada.
ABSTRACT
The present work is product of a research that had as objective to investigate the period of preliminary interviews with families, focusing the familiar diagnosis evaluation specificity and the conjoint demand construction implications for the family adhesion to psychotherapy. The conjoint familiar demand was a notion developed in this study, meaning the latent motivation that led the group to the psychotherapy. That is, it corresponds to the interpsychics contents that are still incomprehensible for the family, that does not conceive the suffering as something shared. One claims that, in the period of interviews, it is important to problematize the initial complaint, for times centered in the subject-symptom conflicts. The initial interventions aim the accomplishment of the relatives victimization speech transformation, leading to one responsible joint positioning for the psychic suffering. In the literature review, the psychoanalytic approach was privileged as well as some systemic approach notions. To reach the considered objectives, the research adopted a clinical cases study methodology. Three cases of familiar psychotherapy had been analyzed, with different problematic complaints. The study of the cases was based in the clinical analysis of preliminary interviews contents and in the analysis of the projective material originated from the Family Art Evaluation application- FAD, instrument of familiar evaluation. The three clinical cases descriptions illustrate the preliminary interviews period and the conjoint demand construction work.
Keywords: Family psychotherapy, preliminary interviews, family evaluation, initial complaint; conjoint demand.
RESUMEN
El presente trabajo es el producto de una investigación que tuvo como objetivo investigar el período de entrevistas preliminares con familias, enfocando la especificidad de la evaluación diagnóstica familiar y las implicaciones de la construcción de la demanda compartida para la adhesión de la familia a la psicoterapia. La demanda familiar compartida fue un concepto desarrollado en este estudio, que significa la motivación latente que llevó el grupo a la psicoterapia. Es decir, corresponde a los contenidos interpsíquicos que todavía son incomprensibles para la familia, que no concibe el sufrimiento como algo compartido. Se postula que, en el período de entrevistas, es importante problematizar la queja inicial a veces centrada en los conflictos del sujeto-síntoma. Las intervenciones iniciales tienen como objetivo la realización de la transformación del discurso de la victimización de los familiares, llevando a un posicionamiento conjunto responsable por el sufrimiento psíquico. En la revisión de la literatura, fueron privilegiadas contribuciones tanto del enfoque psicoanalítico como algunas nociones del enfoque sistémico. Para alcanzar los objetivos propuestos, la investigación adoptó una metodología de estudios de casos clínicos. Se analizaron tres casos de psicoterapia familiar, con diferentes quejas y problemáticas. El estudio de los casos cuenta con el respaldo del análisis clínico de contenidos de las entrevistas preliminares y el análisis del material proyectivo de la aplicación del Arte Diagnóstico Familiar (ADF), instrumento de evaluación familiar. La descripción de los tres casos clínicos ilustra el período de entrevistas preliminares y el trabajo de construcción de la demanda compartida.
Palabras-clave: Psicoterapia familiar, evaluación familiar, entrevistas preliminares, queja principal, demanda compartida.
RÉSUMÉ
Ce travail est le résultat d'une recherche ayant pour but de faire une investigation sur la période des entretiens préliminaires avec les familles, en mettant en lumière la spécificité de l'évaluation diagnostique familiale et les implications de la construction de la demande partagée pour l'adhésion de la famille à la psychotérapie. La demande familiale partagée c'est une notion développée dans cette étude, qui signifie la motivation latente qui a mené le groupe à la psychothérapie. Soit, elle correspond aux contenus interpsychiques que la famille n'est pas encore en condition de comprendre pour ne pas concevoir la souffrance comme quelque chose de partageable. Ce travail postule que, dans la période des entretiens, il est important de reconsidérer la plainte initiale, parfois centrée sur les conflits du sujet-symptôme. Les interventions initiales ont pour but la transformation du discours qui rend victimes les membres de la famille ce qui conduit à un positionnement conjoint responsable de la souffrance psychique. Lors de la révision de la litterature, on a privilégié non seulement les contributions de l'approche psychanalitique, mais aussi qualques notion de l'approche systémique. Pour atteindre les objectifs proposés, la recherche a adopté une méthodologie d'étude des cas cliniques. On a analysé trois cas de psychoterapie familiale présentant desplaintes et des problematiques différentes. L'étude des cas s'est basé sur l'analyse clinique des contenus des entretiens préliminaires et sur l'analyse du matériel projectif issu de l'application de l'Art Diagnostic Familial - ADF, instrument devaluation familiale. La description des trois cas clinique illustre la période d'entretiens préliminaires et le travail de construction de la demande partagée.
Mots-clés: Psychotérapie familiale, évaluation familiale, entretiens préliminaires, plainte initiale, demande partagée.
Introdução
O sistema familiar configura, enquanto conjunto intersubjetivo, uma organização produtora de seu próprio funcionamento e de sua realidade psíquica. Caracteriza-se por uma singularidade que é constituída por alianças, regras e crenças, tendo como objetivo a manutenção de sua sobrevivência. A família pode ser entendida a partir da noção de circularidade, desenvolvida na Teoria Sistêmica, na qual um elemento transforma e é transformado pelo conjunto, buscando-se manter a homeostase. O conceito de sistema implica a ideia de que o grupo familiar possui um funcionamento organizado por leis próprias, além de ser marcado pela história das gerações anteriores e pelo ciclo de vida.
De acordo com a abordagem psicanalítica, o funcionamento familiar é organizado por um aparelho psíquico grupal. Este é responsável pelo arranjo do material psíquico de cada membro familiar, dando origem a um conteúdo único que forma a singularidade da atividade psíquica da família. A função desse aparelho psíquico é realizar o trabalho de reequilíbrio dos investimentos libidinais, transformar as representações e consolidar a vivência de identidade familiar.
Anzieu (1990) afirma que o grupo cria um "si" próprio, delimitando a identidade que o mantém vivo. Neste "si" grupal, o sujeito se constitui e se sujeita às condições estabelecidas pelo conjunto, ao mesmo tempo em que possui um papel constituinte nele (Kaes, 1997). Nos casos em que existem traumas ou segredos, por exemplo, o que está fragilizado é a capacidade de simbolização do aparelho psíquico (Lemaire, 2007).
Os conflitos psíquicos intersubjetivos podem ameaçar o "si" grupal, produzindo um temor ao colapso dos vínculos. Esse temor compartilhado intensifica a indiferenciação e cristaliza a dinâmica grupal, dificultando a ação de transformação nos níveis intra e interpsíquico. Lemaire (2007), Eiguer (1995) e Neuburger (1988) reforçam a ideia de que, nesses casos, o projeto psicoterapêutico mais urgente consiste em compreender essa angústia conjunta.
O psicoterapeuta deve estar atento à complexidade do pedido de ajuda, principalmente porque, na maioria das vezes, a família procura tratamento apenas para um dos seus integrantes. Faz- se necessário realizar, no período de entrevistas preliminares, um trabalho de elaboração dos objetivos conscientes e inconscientes comuns ao grupo familiar.
A necessidade de criar esse questionamento conjunto se torna emergente quando o discurso coletivo se apresenta confuso, o sentimento de ameaça aos vínculos familiares é intenso, e o sofrimento conjunto impede, em alguma medida, a expressão das singularidades. O trabalho de reformulação do pedido de ajuda passa a ser, então, uma condição primordial para a implicação da família no tratamento.
A psicoterapia de família envolve a complexidade dos fenómenos intersubjetivos e dos processos intrapsíquicos. Os impasses em relação à avaliação familiar e as motivações do grupo para pedir ajuda foram questões que suscitaram o interesse em investigar o período de entrevistas preliminares. Entende-se que o trabalho terapêutico inicial é bidirecional, ou seja, depende da família e do encontro desta com o psicoterapeuta.
No presente estudo, abordou-se o período de entrevistas preliminares com famílias, enfatizando a especificidade da avaliação diagnóstica familiar e as implicações da construção da demanda compartilhada para a adesão da família à psicoterapia. Adotou-se uma metodologia de estudo de casos clínicos, com base na análise de três casos de psicoterapia familiar. Foram analisados conteúdos verbais das entrevistas preliminares e do material projetivo originado da aplicação do Arte Diagnóstico Familiar - ADF (Kwiatkowska, 1975, 1977 e 1978). Propõe-se uma reflexão sobre a especificidade do período inicial da psicoterapia de família, discutindo-se a importância de uma minuciosa análise do funcionamento familiar para que a indicação terapêutica seja adequada, favorecendo a implicação da família no tratamento.
Entrevistas Preliminares e Motivação Familiar
O período de entrevistas é fundamental para a elaboração do pedido de ajuda e para a avaliação da pertinência de uma indicação de tratamento familiar. A indicação para uma psicoterapia familiar possui uma especificidade, posto que a questão central circunda a investigação de um sofrimento familiar latente. Procura-se analisar quem está adoecido: o conjunto ou apenas um dos membros do grupo? Não se trata de negar as patologias e os sofrimentos individuais, mas de avaliar o que, nesse momento, é prioridade.
Nas entrevistas preliminares, considera-se como eixo central a investigação sobre os conteúdos interpsíquicos latentes que estão subjacentes aos conteúdos manifestos. Dentro desta perspectiva, Ocampo, Arzeno e Piccolo (2003) enfatizam que o trabalho de compreensão sobre o motivo da consulta é um pilar para uma avaliação diagnostica eficiente. As autoras discriminam o motivo da consulta em dois níveis diferentes. O primeiro é o motivo manifesto, correspondente à motivação familiar em nível consciente, muitas vezes centrada no sintoma ou no sujeito-sintoma. No presente trabalho, denominou-se de queixa inicial aquilo que é primeiramente mencionado no discurso familiar.
O segundo nível postulado pelas autoras é o motivo latente, cujo significado permanece inconsciente em princípio, devido à intensa ansiedade que provoca. Por isso, necessita ser esclarecido, para que as fantasias e as defesas possam ser trabalhadas em seus sentidos mais profundos. Faz-se aqui um paralelo entre o motivo latente com o termo demanda, um termo mais comumente utilizado pelos clínicos, referindo-se ao desejo para a busca de ajuda. Neste trabalho, entende-se que o diagnóstico equivale a uma investigação sobre o que ocorre com a família, para além das descrições formuladas por ela, posto que, são limitadas e defensivas (Arzeno, 1995).
Em muitos casos, o receptor do sinal de ajuda é um terceiro não ligado à família, sendo ele quem incentiva o grupo a procurar uma psicoterapia para tratar dos conflitos. A problemática pode ou não ser reconhecida pela família, pois a mesma pode encontrar-se em plena negação de seu sofrimento. Nestes casos, em que sujeito ou a família consideram desnecessário um tratamento psicológico, a motivação inicial parte de algum encaminhamento institucional - médico, escolar, judicial, organizacional, dentre outros.
Assim, o motivo manifesto familiar é composto pelo discurso de um terceiro, e não exclusivamente pelas motivações dos membros do grupo familiar. No entanto, em nível inconsciente, acredita-se que a família se dirige ao tratamento, motivada por seu próprio desejo. Arzeno (1995) reforça a existência deste aspecto comum, independente das inúmeras justificativas para se procurar um psicoterapeuta.
Ainda dentro desta discussão, Morandi (2006) afirma que em algumas situações de encaminhamento, percebe-se que o grupo não identifica claramente a razão de estar ali, nem mesmo o que espera da psicoterapia familiar. A autora ressalta que a queixa inicial irá centrar-se apenas na razão da indicação, podendo ser algo com o qual concorde ou não, e por isso há a necessidade de avaliar a viabilidade de um início de tratamento com estas famílias.
Ou seja, é preciso investigar a disponibilidade interna dos familiares, para que seja efetivada a construção de suas próprias motivações. Por meio de uma compreensão calcada na noção da circularidade, o psicoterapeuta ajudará a família a realizar a passagem da obrigação à elaboração da sua própria demanda de tratamento.
Muitas vezes, a lógica grupal dificulta o processo de singularização do sujeito, limitando-o a entrar em contato com seus próprios conflitos e ideias, portanto, ficando subjugado ao conjunto. Para poder se conscientizar de questões próprias, o sujeito deve "romper" com o jogo fusional familiar, no qual os membros familiares se misturam formando um bloco único sem limites internos. Nos casos em que existe este tipo de configuração fusional, o indicado é tratar o grupo a fim de que seja possível viabilizar aos sujeitos a capacidade de entrar em contato com seus conflitos individuais.
Conforme Stierlin, Rucker-Embden, Wetzel e Wirsching (1980), quando existe uma insuficiência na capacidade de individuação na relação, torna-se difícil para os membros da família distinguirem seus próprios desejos, suas emoções e suas ideias. Como consequência disto, eles também ficam impossibilitados de assumirem a responsabilidade pelo que sentem, e de reconhecerem sua participação na dinâmica familiar.
Talvez esta seja uma das tarefas mais difíceis do psicoterapeuta, porque muitas vezes a família vem ao consultório com a estrutura muito fragilizada e fragmentada, resistindo à possibilidade de um trabalho familiar. É preciso que o psicoterapeuta a ajude a amenizar a cisão e a indiferenciação entre seus membros, facilitando a passagem do conjunto ao individual. Esta tarefa de atenção à origem do pedido de ajuda possui um caráter ético na avaliação clínica, tendo em vista as fortes reações familiares de sabotagem e de resistência para manter-se em homeostase. Esses mecanismos defensivos dificultam o tratamento que supostamente desejam para um filho, um cônjuge ou um parente.
Os primeiros encontros em psicoterapia despertam angústia e ansiedade, porque a iminente mudança ameaça o equilíbrio grupal. De acordo com Mannoni (2003), a ansiedade e a angústia emergem justamente pelo fato de o psicoterapeuta ser a pessoa a quem a família recorre após tentativas fracassadas e ilusões perdidas. Paradoxalmente, ele é visto como alguém que "denunciará" os aspectos disfuncionais familiares. Talvez seja importante identificar, assim como fez Lemaire (2007), que o lugar do psicoterapeuta não deve ser de denunciador/acusador, e sim de anunciador das fragilidades e dos problemas familiares, indicando as questões do grupo a partir capacidade deste.
Funcionamento Psíquico e Sintoma da Família
Segundo Kaes (2005) e Anzieu (1990), o aparelho psíquico grupal seria constituído por um espaço comum e partilhado, criado nas fronteiras entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, cujo conteúdo é onírico e relativo às contribuições do processo primário de cada membro do grupo. Comparam o funcionamento do grupo com a formação do sintoma e do sonho, considerando-o, assim como estes dois últimos, um espaço de associação de desejos que buscam satisfação. Ou seja, na base da estruturação do grupo familiar haveria uma "formação de compromisso" na medida em que é estruturado na realização desses desejos, e também na produção de defesas suscitadas pela angústia do eu diante da satisfação primária de tais desejos.
O funcionamento psíquico familiar, fundamentado pelos autores grupalistas como Eiguer, Ruffiot e Kaes, tem como fator de coesão o material fantasmático compartilhado. Para a constituição e a preservação da atividade psíquica familiar, são reunidos os conteúdos psíquicos de cada integrante, criando uma aliança entre eles. Eiguer (1995) denominou essa circulação de material psíquico de interfantasmatização, conceituando a tendência da família para agir e reagir de acordo com o conluio de fantasias.
Eiguer correlaciona a interfantasmatização ao conceito de colusão desenvolvido por Willi (1975). A colusão corresponde às alianças de representações e de fantasias inconscientes entre os membros do casal, formando, assim, a base afetiva e conflitiva deste. Portanto, é na tentativa de reparar os conflitos internos que o sujeito se liga ao outro. O tipo de colusão organiza a vida amorosa do casal e, posteriormente, a vida familiar.
Eiguer (1995) entende a interfantasmatização como um dos organizadores da vida simbólica familiar. O primeiro organizador é a escolha do parceiro, que, segundo ele, inaugura o modelo de vínculo objetal. O outro é o "si" familiar, equivalente ao sentimento de pertença e ao mundo interno do grupo. Considera-se que esses organizadores estruturam as modalidades de vinculação, o modo de subjetivação do grupo e também de cada sujeito individualmente.
Esses processos interpsíquicos ocorrem num sistema complexo de interação e vinculação, os quais devem ser compreendidos a partir da noção de circularidade. O sistema complexo designado como o aparelho psíquico familiar tem como função colocar em continuidade a circulação psíquica, além de transformar e elaborar certas formações psíquicas e formas de investimento afetivo. Também faz parte do trabalho do aparelho psíquico familiar integrar a energia pulsional, conter a excitação no psiquismo ou desviá-la para outras metas a serviço do vínculo grupal (Kaes, 1997).
Segundo Lemaire (2007), o aparelho psíquico se torna disfuncional quando, em determinadas circunstâncias, algumas de suas funções falham, não colocando em movimento a identidade da família e fazendo com que o "si" familiar fique enrijecido e empobrecido simbolicamente. A avaliação dos movimentos pulsionais do conjunto, a observação do tipo de ansiedade- seja de castração ou de perseguição - e das fantasias compartilhadas ajudam na compreensão do universo simbólico do grupo. Esses elementos do aparelho psíquico familiar se encontram representados nas atuações do grupo no "aqui e agora", no discurso e nos mecanismos de defesa (Eiguer, 1980). Todos esses fatores são determinantes na avaliação da trama familiar.
Picollo, Grynberg, Iraeta e Wheel (1978) concebem o inconsciente familiar como uma trama relacional e identifica- tória, a qual sustenta o sistema e funciona como a memória do deste. A memória da trama familiar é composta por mitos que, segundo esses autores, são produtos de uma série de crenças e fantasias integradas e compartilhadas por todos os membros da família. Essas crenças não são desmentidas pelos que estão nela implicados, e compõem a particular realidade psíquica da família. Os autores afirmam que os mitos surgem como tentativas de explicação para as indagações e para os conflitos inerentes à experiência humana.
A função do mito é expressar a angústia comum a todos, numa tentativa de aliviá-la, cumprindo um trabalho defensivo e constitutivo da identidade familiar. O mito tem como característica anular o tempo, fazendo parecer como não histórica a crença que o delimita. Na perspectiva psicanalítica, o psicoterapeuta deverá funcionar como aquele que descongela a rigidez defensiva do mito e coloca em marcha a temporalidade. Se o mito não for colocado em palavras, ou interpretado, não cederá em sua força sintomática (Ferreira, 1963; Eiguer, 1995).
Alguns autores, como Eiguer (1995), concebem o sintoma da família como um derivativo do mito familiar. De acordo com essa proposta, pode-se pensar na correspondência entre o enigma, encobertado pelo sintoma, e o mito familiar. Almeida-Prado (1999), em seu estudo sobre essa questão com famílias psicóticas, afirma que a gravidade da patologia familiar enrijece os mitos, dificultando, dessa forma, o processo de separação e de individuação. Tal gravidade acaba impossibilitando a capacidade conjunta de pensar e criar. Assim, a transmissão do mito não passa por um processo de elaboração, compondo-se como um tabu, um não dito, um segredo.
Almeida-Prado (1999) compreende que a sustentação do segredo se dá por meio das fantasias (individuais e mitos familiares). Isso faz com que não seja importante se a origem do segredo foi desencadeada por um fato real ou é derivada de elaborações imaginárias. São as fantasias que determinam o comportamento e os investimentos emocionais da família. A autora ressalta que, na existência de uma base real para a origem do segredo, estão presentes fantasias que, em certa medida, evitaram a confrontação conjunta com sentimentos de amor, ódio, rivalidade, agressividade, desamparo, ciúme, dentre outros.
O sintoma familiar aparece como um sinal da não elaboração desses conteúdos inconscientes, devido a uma manifestação da fragilidade do aparelho psíquico familiar.
Isso ocorre porque o investimento libidinal, destinado a encobrir uma determinada fantasia, sobrecarrega o funcionamento mental compartilhado, dificultando o processo de elaboração. Será no acolhimento e no entendimento do sintoma, daquilo que se faz enigma familiar, que se viabilizará a possibilidade de um trabalho de expressão da fantasia compartilhada. Esta aprisiona a família, fazendo com que ela se sinta incapaz de encontrar outras soluções.
No entanto, o sintoma familiar pode ser representado por um determinado membro da família, cristalizando seu papel de porta-sintoma, cuja relação sujeito-sintoma não ocorre pela correspondência de "tê-lo", e sim de "sê-lo". Na visão de Neuburger (1988), "ser" sujeito-sintoma é ser identificado pelo grupo como o sintoma em si, sendo o portador da doença familiar, que se configura de forma imutável e partilhada por todos. Ser identificado como o sintoma é funcionar como o regulador da homeostase do sistema, e, ao mesmo tempo, denunciar o sofrimento coletivo e não individual.
Portanto, o sofrimento conjunto vem camuflado no sujeito-sintoma, o qual aparece como alvo na queixa inicial e como fator motivante para a busca de uma psicoterapia. Se o psicoterapeuta não tiver uma sensível escuta para a mensagem latente do grupo: "Todos nós sofremos e temos participação na manutenção disso", poderá reforçar a culpa depositada no paciente identificado. Além disso, trabalhará com o discurso a partir da noção linear de causalidade, mas que na verdade pertence ao processo de circularidade.
Quando a singularidade e a autonomia do sujeito são atacadas em nome do "todo", o atendimento individual do paciente identificado se mostrará parcialmente ineficaz, ou extremamente difícil, considerando que a mínima mudança individual implicará em uma transformação grupal. Se a resistência do grupo diante dessa transformação não for concomitantemente trabalhada, o trabalho psicoterapêutico poderá ser sabotado. É preciso uma intensa reflexão por parte do clínico sobre qual tratamento é mais indicado: uma psicoterapia individual ou de família?
Neuburger (1988) afirma que a indicação para a psicoterapia familiar deve ocorrer quando a lógica de pertença do grupo estiver calcada em um equilíbrio cristalizado. Dentro dessa lógica, existe o membro que é o sintoma, mas que não se queixa nem pede ajuda, enquanto a família demonstra sofrimento e desespero, solicitando a ajuda. Em alguns casos, o sujeito-sintoma pode se colocar numa posição de cegueira ao negar - ou não reconhecer - a importância de uma assistência familiar. Isso ocorre, principalmente, quando o que está em perigo são os vínculos familiares e não apenas o estado emocional de um membro familiar. De acordo com esse autor, ter uma escuta a partir da lógica da circularidade implica em um posicionamento ético. O psicoterapeuta deve buscar o entendimento sobre o sofrimento familiar.
A função de sustentar a patologia coletiva pertence a qualquer configuração vincular, pois, para Kaes (2005), é necessária no "processo psíquico intersubjetivo". O autor ressalta que a função do paciente identificado é composta por duas dimensões determinantes às quais o sujeito está submetido: a dimensão de um conjunto grupal e a intrapsíquica. A singularidade da formulação desse autor é, justamente, ressaltar que a condição de porta-sintoma envolve a interação entre essas duas dimensões. Supõe-se que haja a participação de um processo intrapsíquico, e não somente dos processos interpsíquicos, para que esse lugar seja ocupado por um dos membros da família.
Kaes (2005) articula dois níveis diferentes da função de depositário da doença grupal, denominando-os de metonímico e de metafórico. No primeiro, o paciente identificado é colocado no lugar do todo, apesar de ser, na realidade, uma parte do conjunto. Esse modo metonímico estaria mais próximo de um funcionamento grupal psicótico, enquanto o nível metafórico se organiza por processos neuróticos.
A formulação do pedido de ajuda é engendrada pelo sintoma. Este é a porta de entrada para o início de uma psicoterapia. O sintoma, como um véu que esconde uma face, esconde as fantasias inconscientes com as quais está profundamente ligado. A família deverá se implicar na reflexão sobre a produção e manutenção de seu sintoma, buscando compreender aquilo que se faz enigma e lhe causa desconforto.
Demanda Familiar Compartilhada
Etimologicamente, a palavra demanda origina-se do latim demandare, cujo significado é recomendar, entregar, confiar. Na língua portuguesa, passou a significar a ação de ir em busca de, dirigir-se para ou requerer algo. Como termo significativo, a palavra é utilizada na área da psicologia clínica, mas também na área económica e jurídica, cada uma determinando seu sentido de acordo com sua práxis. Na psicologia clínica, não há uma formalização teórica sobre o termo, sendo muito mais uma noção pragmática, utilizada pelos psicoterapeutas ao se referirem ao fator motivacional da busca por um tratamento.
De acordo com Rocha (1990) é preciso que haja o desejo de compreender o significado do sintoma e que, inconscientemente, o paciente saiba que esse significado, ainda incompreensível, está no fundo de si mesmo. Diante do incompreensível, o sujeito busca um interlocutor, o psicoterapeuta, para entender aquilo que se faz enigma. Isso se correlaciona ao motivo latente, que corresponderia ao conteúdo ainda inconsciente encoberto pelo sintoma, aquilo que ainda é estranho e que demanda ser desvendado.
O período de entrevistas permite ao psicoterapeuta "situar-se diante do tipo de demanda que lhe faz o entrevistado" (Rocha, 1990, p.30). Entende-se a afirmação de "situar-se" como referente ao trabalho de compreensão e de elucidação do motivo latente, o qual permeia o desejo de transformação psíquica. Contudo, esse desejo se apresenta ambivalente, pois a transformação psíquica pode ser vivenciada como uma ameaça, na medida em que o sintoma foi a "solução" encontrada pelo aparelho psíquico para sobreviver ao conflito (Rocha, 2000; Romagnoli, 2004).
Mannoni (2003) afirma que, na clínica com crianças, o psicoterapeuta irá ajudar a família a articular sua demanda, constituindo-a em palavras, a partir da história familiar. A autora constantemente se perguntava em seus atendimentos com crianças: "O que há de não comunicável em palavras que se transforma em sintoma?" (Mannoni, 2003, p.45). O fundamental, portanto, não é dar significado aos transtornos, e sim ao mundo inconsciente do sistema familiar. Cabe ao psicoterapeuta não levar ao "pé da letra" a queixa para poder ter acesso à dinâmica familiar que permanece oculta e imobilizada no sujeito-sintoma.
A demanda familiar compartilhada envolve as fantasias compartilhadas no "espaço psíquico familiar", conceituado por Kaes (2005). Ao colocar em movimento a queixa sintomática inicial, abre-se um espaço no discurso para que os conteúdos da inter-fantasmatização possam advir. Portanto, esse colocar em movimento permite a retificação da posição de vítima daqueles que se dizem "inocentes" para iniciarem um posicionamento de participantes, diluindo, assim, o discurso culpabilizante e dissociado.
Eiguer (1985) ressalta que o tipo de posicionamento familiar diante do sofrimento conjunto dará uma tonalidade específica ao trabalho realizado nas entrevistas preliminares. O manejo do psicoterapeuta, ao trabalhar a demanda compartilhada, dependerá da singularidade de cada grupo. As famílias cujos membros reconhecem e se responsabilizam pelo sofrimento conjunto se diferenciam das que recorrem à negação e à cisão para enfrentá-lo. O sentimento de responsabilidade na família é, portanto, um indicador de qualidade da saúde psíquica familiar.
Muitas famílias, por se sentirem frágeis emocionalmente, desenvolvem defesas tão intensas que resistem ao trabalho de enunciação das fantasias, assim como à responsabilidade pelo sofrimento do grupo. Lemaire (2007) formula que a mobilização de defesas muito rígidas para a sobrevivência do grupo acontece devido ao receio conjunto de que haja um colapso.
O colapso familiar corresponde ao medo muito profundo de que o "si" familiar seja aniquilado e que, por conseguinte, o sentimento de pertença e o mundo interno do grupo sejam também destruídos (Eiguer, 1995). Nesses casos, em que há o receio do colapso, Lemaire (2007) destaca a presença da indiferenciação, do ataque ao pensamento e do ataque aos vínculos. O ataque aos vínculos pode ser entendido como produto de uma relação sádica, a qual é considerada preferível, pois representaria a existência de algum tipo de investimento, sendo melhor do que cair no abismo do rompimento vincular.
Lemaire (2007) ainda observa que essas famílias criam um funcionamento paradoxal, pois querem aliviar a angústia e procuram um tratamento, mas atacam qualquer possibilidade de elaboração simbólica dos conflitos e dos traumas. Elaborar essas questões seria reevocar a experiência traumática, e, assim, modificar a organização dos vínculos, iniciando o processo de indiferenciação.
Em vista disso, a criação, ou não, da demanda familiar compartilhada, durante o período de entrevistas preliminares, é significativa para a formulação do diagnóstico e do prognóstico familiar. Esta corresponderia à disponibilidade interna do grupo para elaborar e transformar seus conflitos. O questionamento sobre a capacidade de uma família para construir a demanda compartilhada precisa ser constante no período de avaliação, pois este é um fator determinante para o manejo do caso.
Embora, durante o período das entrevistas, alguns dos membros familiares afirmem saber a razão de estarem ali presentes, eles questionam a importância de sua presença, por pensarem que não são os provocadores do conflito. Além disso, alguns discordam dos motivos da consulta e dos objetivos psicoterapêuticos a serem estabelecidos. Stierlin et al. (1980) sugerem que, em casos de divergência intensa sobre os conflitos familiares, deve-se ao menos salientar a impossibilidade de construir interesses e motivações comuns a todos, não sendo possível construir nenhum acordo compartilhado.
Eiguer (1985) afirma que a presença desse antagonismo no discurso, quando cada membro da família possui motivações e objetivos próprios, representa uma pseudo-incompatibilidade. Essas divergências, na verdade, estão enredadas em questões intersubjetivas, encobrindo uma interação latente entre as defesas e os desejos do grupo.
Eiguer (1980) também compara as intervenções do psicoterapeuta, nessa etapa inicial, às intervenções de um diplomata. Este lida com conflitos irredutíveis entre nações, buscando promover acordos que não deixam nenhuma das partes totalmente satisfeitas. Mas, apesar da insatisfação, ao final da negociação, existe uma sensação de conformidade, posto que ambas não alcançaram o "pedido inicial" individual.
Em um primeiro momento, pode-se pensar ser ilusório obter um acordo comum do grupo como objetivo de tratamento. Porém, a elucidação da demanda familiar compartilhada está longe de se definir como a construção de um acordo comum. Refere-se à enunciação de questões profundas, que retroalimentam a dinâmica familiar. Uma parcial insatisfação com o tratamento persistirá, porque, assim como na negociação diplomática, não será atendido o pedido de somente aliviar a angústia, sem elaborar o que adoece. As intervenções iniciais do psicoterapeuta visam à realização de uma transformação da posição de vítima da família, conduzindo a uma posição de implicação.
Sugere-se a realização de um trabalho com os conteúdos compartilhados, de modo que se abra um caminho de elaboração e de transformação destes na medida em que os encontros progridem e se viabiliza um espaço de vinculação. Por meio desse espaço, o grupo começa a compreender que a ação de cada membro produz um efeito no conjunto, entrando na lógica da circularidade para gerar o sentimento de responsabilidade compartilhada.
Estudo de Casos: Família Segredo, Família Enigma, Família em Luto
A noção de construção da demanda familiar compartilhada foi desenvolvida a partir de um estudo de casos (Machado, 2010). Na referida investigação, foram analisados três casos de psicoterapia familiar. As famílias que participaram dessa pesquisa foram atendidas no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) de uma universidade da cidade do Rio de Janeiro. Analisou-se o material clínico referente ao início do processo psicoterapêutico (de quatro a oito sessões preliminares), focando a avaliação familiar. Buscou-se compreender o movimento de passagem da queixa manifesta, centrada no paciente identificado, para a demanda familiar compartilhada.
O estudo de casos se respaldou no entendimento clínico de conteúdos descritos nos relatórios das entrevistas preliminares das famílias e do material projetivo originado da aplicação do Arte Diagnóstico Familiar - ADF (Kwiatkowska,1975). Esse instrumento de avaliação familiar se baseia na criação de desenhos com temas pré-determinados e na observação da interação familiar durante a realização dos procedimentos (Kwiatkowska, 1977, 1978; Machado, Féres-Carneiro e Magalhães, 2008). Em todos os casos, os nomes dos participantes foram substituídos, assim como alguns detalhes secundários à história também foram modificados para que as identidades das famílias fossem preservadas. Os três casos selecionados ilustram diferentes queixas e problemáticas familiares durante o período de entrevistas, assim como o trabalho de avaliação com famílias e suas vicissitudes. Os casos foram atendidos pela equipe de Família e Casal do SPA, em co-terapia, entre os anos de 2006 e 2008, tendo os pacientes assinado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a utilização do material clínico em ensino, pesquisa e publicação.
Família Segredo
Era composta por Pedro (37 anos), casado há mais de dez anos com Helena (25 anos). Nessa família, o filho mais velho de Pedro, Daniel (12 anos), nascido de seu primeiro casamento, era criado por parentes próximos devido à sua conflituosa relação com Helena. Mas, apesar de não morar na casa do pai, convivia muito com este e com os irmãos. O filho do meio, Pedro Filho (10 anos), provinha de uma relação extraconjugal de Pedro. Por fim, o filho caçula, Renato (6 anos), era o único filho biológico do casal.
A queixa inicial tinha como foco o pedido de ajuda para efetuar a revelação de um segredo relativo aos vínculos parentais com Pedro Filho, tendo em vista que o menino era apenas filho consanguíneo de Pedro, e não sabia "nada" sobre sua verdadeira origem. A manutenção desse segredo estava provocando desavenças entre os cônjuges, e entre Helena e os filhos, gerando a sensação de enfraquecimento dos vínculos e o temor de desagregação familiar. Pedro foi quem procurou o SPA, mencionando sua vontade de contar "o segredo", mas que não conseguia fazê-lo, pois temia os efeitos de sua revelação.
O processo de avaliação familiar ocorreu em quatro sessões com dois psicoterapeutas, durante o período de um mês e meio. Nesse período, observou-se que a dinâmica do grupo se caracterizava pela manutenção de um jogo interacional de inclusão/exclusão. Esse jogo se revelava por meio de actings outs, colocando, por vezes, os psicoterapeutas em impasses que desencadeavam um desequilíbrio no enquadre.
O casal se conheceu quando Helena era ainda adolescente, havendo uma diferença de idade significativa entre eles. À época, Pedro já era um jovem adulto com um filho recém-nascido de seu primeiro casamento. Namoraram por um período curto de tempo, decidindo rapidamente morarem juntos. Após uma breve separação, fato contestado por Helena, Pedro teve um encontro com outra mulher, com a qual gerou Pedro Filho. Esse processo de gravidez permaneceu encoberto durante as entrevistas, não ficando claro se era ou não resultado de uma traição. Com um mês de nascido, a mãe biológica de Pedro Filho o entregou para o pai criar, mudando-se sem avisar seu destino. Desde então, Helena e Pedro nunca mais a encontraram nem souberam notícias, mas tinham receio de que ela reaparecesse.
O pai tinha o medo manifesto de que o filho se revoltasse contra Helena, embasando seu temor na crença de que sua mulher o tratava de modo diferenciado, punindo-o mais frequentemente do que Renato, o filho biológico do casal. Pedro também sentia um forte sentimento de culpa, desencadeado por seu dilema de revelar o segredo ou ocultá-lo, responsabilizando-se por esse conflito. A mulher discordava sobre a desigualdade alegada pelo marido, pois tinha criado o menino desde bebê e afirmava: "não os trato sempre de forma diferente". Porém, temia que a "mãe verdadeira" dele aparecesse querendo levá-lo embora. Ela também, ao contrário do marido, acreditava que, de alguma maneira, o filho já sabia alguma coisa sobre o segredo.
Os três irmãos demonstravam, nas entrevistas, um intenso entrosamento e muita cumplicidade. Conheciam e comentavam o que cada um gostava de fazer e com que gostavam de brincar no dia a dia. Era claramente perceptível, no aqui e agora do setting, a integração fraterna que relatavam. Observou-se que, entre eles, os afetos circulavam de forma lúdica e amistosa, contrariando os argumentos de Helena, que supervalorizava as brigas entre eles e sentia dificuldade em impor regras e limites.
A dinâmica geral da família girava em torno de uma rede de segredos sobrepostos, a partir de uma série de não ditos que afetavam as interações e os vínculos familiares. Havia também a presença de subsistemas bem delimitados, representado no jogo rígido de inclusão-exclusão, como o que ocorria entre Renato e o pai, os quais sempre se sentavam próximos e cochichavam na sessão. Pedro Filho se sentava ao lado de Helena, apresentando um comportamento retraído ao esconder, na maior parte do tempo, seu rosto com as mãos. Quanto a Daniel, ignorava a presença da madrasta, não falando com ela em nenhum momento.
Na sessão de devolução, na qual seria estabelecido o contrato psicoterapêutico, somente o pai compareceu, comentando que a mulher se recusou a ir e impediu os filhos de participarem também. Cabe ressaltar que essa atitude foi aceita por Pedro, sendo este, portanto, também responsável pela ausência do grupo. Falou do peso de guardar o segredo e prometeu revelá-lo no final de semana. "Vou pegar o garoto, levá-lo para passear e contar, pois já não aguento mais". Justificou não ter feito isso antes devido à falta de tempo. Essa família não aderiu à psicoterapia.
Ao longo das entrevistas, observou-se que o não dito sobre a filiação de Pedro Filho acobertava outras incógnitas e conflitos que faziam parte da organização do "si" familiar. Inconscientemente, o grande segredo, impossível de ser revelado, sinalizava a fragilidade do vínculo conjugal, cuja estruturação era inundada por sentimentos de desamparo. Omissões e muita ambivalência apareciam como defesas e resistências da família ao se deparar com o desamparo e com o esvaziamento afetivo.
O investimento libidinal se dirigia à manutenção do padrão de inclusão-exclusão, e não ao fortalecimento dos laços. Acabar com o segredo era acabar com a identidade que eles conheciam, e isso seria vivenciado pelo grupo como um colapso do "si" familiar. A construção da demanda familiar compartilhada, simbolizando um posicionamento participante do grupo na manutenção dos conflitos, foi "excluída" pela Família Segredo, talvez pela impossibilidade de assumir a realidade psíquica e, assim, poder modificá-la. Mesmo com os psicoterapeutas procurando destacar o investimento afetivo presente no grupo, ele era denegado por seus membros.
Família Enigma
Era formada por Fernanda (48 anos), casada há 23 anos com Celso (49 anos). Desse casamento, nasceram dois filhos, Hugo (18 anos) e Amanda (15 anos). A queixa inicial enfocava no pedido de ajuda psicopedagógica para a filha. A indicação fora feita pela escola dela, devido a problemas de aprendizagem. A queixa manifesta se centrava no fato de Fernanda achar sua filha (Amanda) muito imatura. A menina apresentava problemas de relacionamento social na escola, e ainda brincava com bonecas e com meninas muito mais novas do que ela.
O processo de avaliação familiar ocorreu em seis sessões, durante o período de um mês e meio. Inicialmente, Fernanda se queixava da filha, comentando sobre sua imaturidade e sobre um possível diagnóstico de dislexia. Contudo, esse assunto não foi mais comentado nas entrevistas. Relacionou a dificuldade de Amanda em lidar com o crescimento e com a morte de um tio-avô materno, de muita importância afetiva para Fernanda. A mãe se responsabiliza por isso, confessando não ter lidado bem com essa perda e ter passado seu sentimento para a filha. Na época, não considerou a idade da filha e lhe disse como desabafo: "Nasce, cresce e morre".
O casal relatou conflitos sexuais após o nascimento dos filhos e momentos de crise. Três anos após o nascimento de Amanda, "Celso arrumou uma mulher". Fernanda se sentiu traída, pois haviam combinado que quando um quisesse ter uma relação extraconjugal deveriam avisar um ao outro, e ele não cumpriu o acordo. Sentia-se culpada por esse fato passado, dizendo que "70% é minha responsabilidade". Celso, diante desse relato, teve uma reação de concordância e de arrependimento, abraçando a mulher quando ela se emocionou com a lembrança dos fatos.
O convívio familiar era conflituoso. Celso e Hugo brigavam muito, sendo agressivos e gritando um com o outro. Hugo era descrito pelos demais membros do grupo como uma pessoa chata, implicante e autoritária. Apesar disso, Fernanda sempre intervinha a favor do filho nas brigas em família, fazendo chantagem para acabar com as discussões. "Vão me levar para o hospital, tenho pressão alta". Celso tentava colocar limites para os filhos, mas se sentia impotente com seu insucesso e excluído do lugar de "chefe de família".
Amanda também era descrita como briguenta, sua relação com o irmão não era amistosa. A família mencionou um episódio no qual Hugo tentou enforcar a irmã num momento de raiva, des- culpando-se posteriormente. Celso só soube do fato durante as sessões, mostrando-se bastante contrariado por ninguém ter-lhe contado.
A família reagia diante de qualquer atitude um pouco mais amadurecida de Amanda. Isso era expresso, sobretudo, pela mãe. Qualquer comportamento que aludisse à individualidade ou à independência de Amanda era desqualificado. Quando ela manifestou sua pretensão de morar sozinha aos 25 anos, os pais ficaram mobilizados com a declaração. Sempre que falava sobre o crescimento dos filhos, Fernanda chorava, possivelmente, porque o crescimento representava a perda de controle sobre eles.
Na sessão de devolução, todos compareceram e se mostraram interessados em refletir sobre o que fora observado pelos psicoterapeutas. Foi pontuado o intenso mecanismo de cisão na família, ilustrado no fato de Amanda representar os aspectos destrutivos no discurso familiar e Hugo, os aspectos positivos. E, quando havia tentativa de integração, eles aniquilavam a possibilidade de diferenciação. Também ressaltaram a identificação de Amanda com Fernanda, que denunciava, com suas atuações, os conflitos da mãe.
A família concordou com as pontuações realizadas pelos psicoterapeutas, mas apresentou um comportamento passivo diante delas, não produzindo novas associações nem procurando se aprofundar nas questões levantadas. Celso retomou o motivo inicial do pedido de ajuda, centrado no fato de Amanda necessitar de um trabalho psicopedagógico. Isso os levou a fazer uma reflexão sobre a queixa inicial e perceberem o quanto estavam gostando daquele espaço em família, manifestando o desejo compartilhado de dar continuidade ao tratamento. Houve, portanto, adesão à psicoterapia de família.
Pode-se pensar que a demanda familiar compartilhada girava em torno da impossibilidade de os membros se individualizarem, mantendo a pertença ao grupo. Já na primeira entrevista, Fernanda menciona a dificuldade da filha em aceitar a morte de um tio. Ela se sente culpada, pois, em sua fantasia, acredita ter influenciado a filha com suas palavras: "Nasce, cresce e morre". Talvez, para essa família, o crescer e se individualizar fosse vivenciado como uma morte, não havendo possibilidade de se viver separado.
Percebe-se que essa questão acompanha a Família enigma como um mito centrado na impossibilidade de haver "enigmas" incompartilháveis pertencentes à singularidade do sujeito. Um exemplo para o entendimento dessa suposição foi o contrato verbal conjugal, estabelecido por Fernanda e Celso, no qual ambos deveriam falar um para o outro quando desejassem ter relações extraconjugais. Parece que esse tipo de acordo onipotente tem como intenção se defender do imprevisível, do incontrolável, do enigma do outro diferente de mim. O crescimento dos filhos e a vida íntima de todo sujeito é algo incontrolável, mas são encarados, paradoxalmente, nessa família, tanto como uma ameaça quanto como algo necessário.
Família em Luto
Era composta por Pilar (50 anos), casada há 23 anos com Lúcio (52 anos), um militar aposentado. Eles tiveram dois filhos, o mais velho é Tadeu (21 anos), e o mais novo, Luiz, falecera há quatro anos, acometido por câncer. Pilar procurou o SPA, indicada pelo colégio de Tadeu, que os orientou a procurar uma psicoterapia de família. O processo de avaliação familiar ocorreu em oito sessões. Foi um período de avaliação extenso devido aos constantes atrasos da família.
A queixa inicial se centrava no comportamento violento e muito tímido de Tadeu, que apresentava histórico de intervenções psiquiátricas. Ele passava por sucessivas avaliações médicas sem se incomodar ou questionar, o que tomava um tempo significativo de sua vida e da de sua mãe. Devido a seu comportamento introspectivo, ficava muito tempo isolado em seu quarto, tendo medo de sair de casa, e, quando voltava da rua, trancava todas as janelas da casa. Os acessos de raiva eram direcionados à mãe, por isso, Pilar temia por sua segurança. A mãe relatou episódios em que o filho jogou objetos pela janela do apartamento, como cadeiras e colchões.
O pai de Lúcio falecera cerca de oito meses antes de seu casamento. Após o falecimento do pai, ele passara a ser o provedor de sua família de origem. Portanto, o casamento de Lúcio não agradava à sua mãe. Devido à desaprovação da família de Lúcio, ele e Pilar fugiram e foram morar em um bairro distante. O início da união foi conturbado, pois Lúcio queria continuar com o estilo de vida de uma pessoa solteira: saindo com os amigos, indo a bares sozinho, e deixando Pilar em casa. Voltava bêbado e falando bobagens, agredindo-a física e verbalmente. Na opinião de Pilar, Lúcio criou uma vida independente da vida familiar, não avisando para onde ia nem quando voltava, sendo igual ao sogro falecido.
Tadeu ficava acordado esperando o pai voltar para casa. Quando presenciava as agressões, ficava nervoso, saindo de casa sem rumo. Apesar disso, a família relatava que o filho tinha um bom relacionamento com o pai, pois este o ajudava a estudar, e até a olhar para as pessoas diretamente nos olhos. No entanto, Tadeu era agressivo com a mãe, sobretudo nos momentos em que o pai não estava em casa. Implicava com ela, "remexendo as gavetas". Lúcio duvidava do relato de Pilar, acreditando nela somente quando via objetos quebrados dentro de casa.
A timidez profunda do filho foi explicada pelos pais com diferentes argumentos. Pilar achava que Tadeu era parecido com a família paterna, enquanto Lúcio a acusava de não dar carinho ao filho e de tê-lo prendido demais em casa. Na opinião do pai, Tadeu era como se fosse duas pessoas, uma alegre que ouvia música e dançava, e outra silenciosa, pensativa e retraída.
O nascimento de Tadeu foi descrito como um fato que mudou a vida do casal, pois eram jovens e Pilar teve que abandonar sua profissão para cuidar do filho. Luiz nascera muitos anos depois de Tadeu, após várias tentativas fracassadas, e sua criação fora diferente, porque os pais não admitiam mais interferências nem conselhos da família. Constantemente, os pais ressaltavam a diferença entre a personalidade de Tadeu e de Luiz (o filho falecido). Este era lembrado como muito diferente do irmão, pois tinha muitos amigos, era alegre e gostava de compartilhar seus brinquedos.
Luiz, ao nascer, precisou ficar na incubadora durante alguns dias porque era muito pequeno e frágil. Segundo Lúcio, os médicos lhe informaram que o bebê estava doente (com "câncer") e por isso eles não iriam ficar juntos por algum tempo. O pai recebeu a notícia com desespero, não sabendo qual decisão deveria tomar. Preferiu não contar para a mulher, por vê-la muito nervosa diante da hospitalização de Luiz, acreditando que, dessa forma, preservar-lhe-ia de sofrer ainda mais. Lúcio pensou que o médico tinha se equivocado no diagnóstico, ao ver o filho recuperando o peso e manifestando melhora. Esqueceu-se até mesmo do comentário médico sobre a doença do filho.
No entanto, durante os quatro anos de vida de Luiz, parecia que os pais compartilhavam inconscientemente uma excessiva proteção. Pilar deixava o filho dormir com ela todas as noites porque não queria se afastar dele, o que causava irritação em Lúcio. O pai achava que os irmãos deveriam dormir juntos porque, se algo acontecesse a um deles, o outro estaria lá para apoiá-lo. No entanto, nunca havia comprado uma cama para Luiz. Quando a doença se manifestou, Luiz estava com quatro anos de idade, e rapidamente ficou muito debilitado.
No hospital, onde Luiz ficou internado durante três meses, explicaram a gravidade de sua doença. Ele foi reinternado alguns dias depois da alta. Durante os períodos de internação, Pilar não se sentiu apoiada pelo marido. Ele raramente visitava Luiz e suas visitas duravam pouco tempo, gerando brigas entre o casal. Lúcio passou a beber mais com a morte do filho, na tentativa de esquecer sua dor. Acreditava carregar um imenso peso por ter se calado para preservar a mulher.
Na sessão de devolução, os psicoterapeutas ressaltaram a dificuldade dos membros da família de conversarem a respeito das várias perdas sofridas por eles e das dificuldades de conviver com as frustrações e os sofrimentos. Consequentemente, fechavam- -se e se isolavam uns dos outros. Quanto às questões conjugais, ressaltaram a falta de companheirismo e comunicação. Pilar se ressentia por sair sozinha, considerando-se uma "viúva de marido vivo". Tadeu comentou que ficava dando apoio à mãe após a morte do irmão, ajudando-a na organização da casa. Essa afirmação não foi reconhecida por Pilar, que desqualificou o propósito de ajuda do filho. No final do processo de avaliação familiar, foi pontuado que a alegria e a força que existiam em Tadeu deveriam ser incentivadas a aparecer. Foi percebido um grande investimento do grupo na busca de um fortalecimento dos vínculos. Houve, portanto, adesão à psicoterapia de família.
No período de entrevistas, foi possível trabalhar os não ditos, cujos efeitos eram a impossibilidade da família de elaborar os lutos. Poder metabolizá-los implicaria em desenterrar os segredos, as mentiras e a fragilidade emocional diante das frustrações e das perdas, pois naquilo que "feria", parafraseando Pilar, "deveria ser colocado uma pedra por cima". Contudo, se a ferida não for tratada, pode originar uma infecção. Essa infecção estava para além da queixa manifesta, sendo o elo em comum que motivava todos a construírem a demanda familiar conjunta.
O luto mal elaborado da morte de Luiz aparecia como um assunto recorrente nas entrevistas e os dados dos desenhos convergiam para essa temática. A compreensão do luto como demanda familiar tem como embasamento a afirmação de Arzeno (1995) de que um diagnóstico consiste na investigação das recorrências e das convergências presentes no caso. Tadeu, de modo metonímico (Kaes, 2005), era colocado no lugar do todo; era ele em seus actings outs que manifestava a raiva (ao jogar os móveis pela janela) e remexia os conteúdos engavetados pertencentes ao sistema familiar. Os sentimentos que deveriam circular entre todos os membros grupo encontravam voz em Tadeu.
Considerações Finais
Infere-se que o trabalho de construção da demanda familiar compartilhada caracteriza a especificidade do período de entrevistas com famílias, o qual é permeado por fantasias inconscientes compartilhadas. Ao expressar as motivações latentes no "aqui e agora", por meio do intercâmbio de associações de pensamentos, cria-se uma mobilização conjunta que favorece a transformação da passagem ao ato, viabilizando-se a simbolização do sentimento de corresponsabilidade.
Evidentemente, o trabalho de enunciação dos conteúdos latentes e, consequentemente, de construção da demanda familiar compartilhada não são tarefas fáceis nem restritas às entrevistas preliminares. Considerar que todas as questões familiares poderiam vir à tona nas entrevistas preliminares seria um pensamento onipotente. As questões emergem ao longo do tratamento, determinadas pelo timing da família. Mas, para tal, é preciso que, desde o início, seja criada uma abertura para a lógica da circularidade e da intersubjetividade.
Atribui-se a efetivação de uma mudança de posicionamento familiar a dois aspectos observados nas duas famílias que aderiram ao tratamento. O primeiro seria a preservação da função do aparelho psíquico compartilhado de conter a agressividade. O segundo aspecto seria a preservação da manifestação de afetos amorosos, o que favorece a percepção inconsciente de que os vínculos sobrevivem aos "ataques" dos conflitos entre os membros da família. Em certa medida, o sujeito, para modificar-se, precisa sentir que o ambiente irá suportar o desequilíbrio causado por sua transformação individual. A mudança do sujeito promove um reposicionamento dele diante do grupo, sendo necessário que este sobreviva à desorganização, a fim de que seja assegurada a permanência dos vínculos.
Nos dois últimos casos (a Família Enigma e a Família em Luto), a agressividade presente na dinâmica familiar não era sentida como destrutiva do "si" familiar. Possivelmente, a preservação mínima das funções do aparelho psíquico familiar (Ruffiot, 1981) assegurava o sentimento de continuidade da família e a continência de suas manifestações afetivas amorosas.
Quando se procura entender a desistência da Família Segredo em aderir à psicoterapia familiar, muitas variáveis podem ser enfatizadas. Todavia, chama atenção, especificamente, a impossibilidade do sistema para reconhecer a consistência dos afetos, entendendo-se como afeto tanto os aspectos amorosos quanto os agressivos. Ressalta-se que a agressividade não era suportada por eles, ela era expressa por meio do silêncio referente ao desentendimento entre madrasta e Daniel, e por meio da intolerância parental com relação às brigas cotidianas entre os irmãos.
Compara-se o "si" familiar das famílias em sofrimento a uma casa que precisa ser reformada, necessitando que paredes sejam derrubadas e quebradas para oferecer uma modernização, gerando a sensação de casa nova. Porém, algumas partes da casa precisam ser preservadas, como as vigas e as colunas, pois são elas que mantêm de pé a estrutura. Pretende-se, com essa analogia, pensar que a viga e as colunas do "si" familiar são os investimentos libidinais. Eles sustentam o sentimento de pertença, assegurando a sensação de continuidade dos vínculos na família. Para que a casa seja reformada, é preciso estar minimamente preservada a capacidade de reconhecimento desses investimentos libidinais. Assim, mantém-se o investimento no "si" grupal para que possa haver uma "reforma" menos ameaçadora, apesar de tantos conflitos existentes na vida intersubjetiva. Caso contrário, a reforma psíquica será vivenciada como implosão dos vínculos.
Postula-se a ideia de que, no período de avaliação, se for identificada uma intensa indiferenciação, uma não manifestação de sofrimento pelo paciente identificado, ou um latente temor ao colapso familiar, deve-se privilegiar a escuta dos conteúdos intersubjetivos subjacentes à queixa. Esse trabalho levará os membros da família a perceberem o quanto são participantes da produção do sofrimento e o quanto estão fragilizados como conjunto. A escuta da intersubjetividade implica uma questão ética na avaliação do pedido de ajuda terapêutica. E a passagem da queixa à demanda possibilita a vinculação da família ao tratamento.
Torna-se pertinente desenvolver outros estudos sobre o período de entrevistas preliminares com famílias devido às suas inúmeras vicissitudes e à sua interface com outras modalidades clínicas, como psicoterapia individual de crianças, adolescentes e adultos. As particularidades da técnica, inerentes à psicoterapia de família, devem também ser discutidas, visando fornecer subsídios para a clínica com famílias.
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Recebido em 11 de agosto de 2010
Aceito em 05 de dezembro de 2010
Revisado em 15 de dezembro de 2010