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Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.4 Fortaleza Dec. 2011
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
"Seja você mesmo": midia, consumo e subjetividade
"Be yourself": media, consumerism and subjectivity
"Se tu mismo": medios de comunicación, consumo y sujetividad
"Soyez vous-même": médias, consommation et subjectivité
Silvia Pimenta Velloso Rocha
Doutora em Filosofia pela PUC-Rio e professora adjunta da UERJ/Febf. End.: R. São Salvador, 59/1407, Laranjeiras. CEP 22231- 130 - Rio de Janeiro RJ. E-mail: silviapimenta@superig.com.br
RESUMO
A partir do quadro teórico proposto por Foucault, diversos autores vêm analisando a mídia como instância de produção de subjetividades, sublinhando, sobretudo, seu caráter normativo e sua função disciplinar. Esse tipo de análise, entretanto, parece não dar conta de uma característica cada vez mais presente no discurso publicitário contemporâneo, que se afasta de um papel explicitamente prescritivo ou normativo em direção a um discurso "libertário" ou permissivo: trata-se não apenas de propor uma diversidade de estilos e modelos, mas de afirmar a ideia de liberdade e mesmo de subversão dos modelos. Sua estrutura é menos da ordem do seja assim e mais da ordem do "seja como quiser" - ou, em última instância, "seja você mesmo". Se do ponto de vista da normatização o que conta é a adequação a certos estereótipos, o ponto que nos interessa aqui é precisamente aquele em que a própria mídia assume o papel de contestação, de "subversão" ou de crítica aos estereótipos. Recorrendo à reflexão de Slavoj Zizek e a conceitos do próprio Foucault, o artigo procura investigar de que modo esse cenário inscreve o sujeito em uma nova modalidade de controle e por que esse discurso contestador e antinormativo se constitui como um modo de assujeitamento. O "seja você mesmo", que impera na mídia e no discurso publicitário, não indica uma liberdade senão na medida em que aponta um dever: o dever de instituir a si mesmo, de constituir-se como sujeito, de expressar sua "verdade".
Palavras-chave: Subjetividade, publicidade, Zizek, Foucault.
ABSTRACT
Based on the theoretical framework proposed by Foucault, several authors analyze the media as an instance of subjectivity production, stressing, in particular, its normative character and its dis-ciplinary function. This type of analysis, however, does not seem to account for a feature in-creasingly present in contemporary advertising - which moves away from an explicitly prescriptive or normative role towards a "libertarian" or permissive discourse: either proposing a diversity of styles or identities, either assuming itself a "subversive" or "antiestablishment" role. Its structure can no longer be summed by the maxim "be like that", as it operates more and more by the maxim "be as you like" - or, ultimately, "be yourself". If from the standardization point of view what counts is the suitability to certain stereotypes, the point that interests us here is precisely the one in which the media itself assumes a disruptive, "subversive" or stereotypes critic's role Using Slavoj Žižek reflections and some of Foucault's concepts, the article investigates how this scenario places the subject in a new control mode and how this anti-prescriptive rhetoric indicates a new kind of subjection. The "be yourself", that prevails in the media and in advertising discourse, indicates freedom in so far as it implies a duty: the individual must "have an identity", i.e., must constitute himself as a subject and express his "truth".
Keywords: Subjectivity, media, Zizek, Foucault.
RESUMEN
Desde el marco teórico propuesto por Foucault, varios autores han estado analizando los medios de comunicación como instancia de producción de subjetividad, destacando, en particular, su carácter normativo y su función disciplinaria. Este tipo de análisis, sin embargo, no parece tener en cuenta una característica cada vez más presente en el discurso de la publicidad con-temporánea que aleja un papel explícitamente prescriptivo o normativo hacia un "libertario" de discurso o permisiva: no sólo se propone una diversidad de estilos y plantillas, pero para afirmar la idea de libertad e incluso de la subversión de los modelos. Su estructura es menos y pida más orden "como quiera"- o, en última instancia, "be yourself". Si la normalización el punto de vista lo que cuenta es si ciertos estereotipos, lo que nos interesa aquí es precisamente la que los medios de comunicación asume el rol de la contestación, la "subversión" o la crítica de los estereotipos. Mediante la reflexión de Slavoj Žižek y los conceptos de Foucault, el documento pretende investigar cómo este escenario es el tema en un nuevo modo de control y por qué este disruptivo y antinormativo discurso se constituye como una sumisión. El "be yourself", que prevalece en los medios de comunicación y en la publicidad de discurso, no indica una libertad sólo en la medida que apunta a un deber: el deber de establecer a sí mismo, queda sujeto a expreso su "verdad".
Palabras-clave: Subjetividad, publicidad, Zizek, Foucault.
RÉSUMÉ
À partir du cadre théorique proposé par Foucault, plusieurs auteurs ont analysé des médias en tant qu'instance de production de subjectivité, soulignant, en particulier, son caractère normatif et sa fonction disciplinaire. Ce type d'analyse, toutefois, ne semble pas représenter une caractéristique de plus en plus présente dans le discours publicitaire contemporain, qui s'éloigne d'un rôle explicitement prescriptif ou normatif vers un discours "libertaire" ou permissif: il ne s'agit pas seulement de proposer une diversité de styles et modèles, mais d'affirmer l'idée de liberté et même de subversion des modèles. La structure de ce genre de discours n´est pas de l'ordre d´une imposition, mais plutôt de l'ordre du "soyez comme vous voulez" - ou, en fin de compte, "soyez vous-même". Du point de vue de la normatisation, ce qui compte, c'est l´adéquation à certains stéréotypes, mais le point qui nous intéresse ici, c´est précisément celui où les médias eux-mêmes assument une rhétorique de "subversion" ou de critique des stéréotypes. En utilisant la réflexion de Slavoj Zizek et de Foucault, l´article se propose d´analyser ce scénario comme une nouvelle modalité de contrôle et un moyen d'assujettissement. Le "soyez vous-même" qui prévaut dans les médias et dans le discours publicitaire n'indique une liberté que dans la mesure où il détermine une l´injoction identitaire : le devoir de s´inventer soi même en tant que sujets et d´exprimer sa "vérité".
Mots-clés: Subjectivité, publicité, Zizek, Foucault.
Introdução
Em um de seus últimos textos, Foucault (1995) apontava a existência de três tipos de lutas sociais: lutas contra a exploração econômica, que separa os sujeitos daquilo que produ-zem; lutas contra a dominação - política, étnica ou religiosa - e; lutas contra formas de sujeição, que subjugam o indivíduo a si mesmo ou o submetem ao controle dos demais. Esses modos de luta ou de resistência não são excludentes, mas tornam-se hegemônicos em certos contextos históricos e sociais e, como aponta Foucault, o mundo contemporâneo tende a assistir o predomínio do terceiro tipo de luta.
A esfera da mídia e o fenômeno do consumo, sendo o campo por excelência de constituição das subjetividades contemporâneas, constituem um campo privilegiado dessas lutas. Diversos autores tem procurado indicar que a publicidade tem não apenas a função ideológica de introjetar crenças e valores - como já sustentavam os autores da Escola de Frankfurt - mas também a função disciplinar de modelar comportamentos e produzir sujeitos. Um dos pressupostos centrais dessa reflexão é que o verdadeiro objeto (na dupla acepção da palavra: "objetivo e coisa") do consumo não são os bens efetivamente adquiridos, nem os valores a eles associados, mas a subjetividade que desse modo é produzida.
As ideias chave de ideologia, alienação e manipulação, que guiam as análises críticas da Escola de Frankfurt e marcam toda uma tradição de estudos sobre a mídia, repousam sobre os elementos da filosofia do sujeito: sujeito do "desejo" (que deve então ser liberado), da "von-tade" (que deve ser emancipada) ou da "consciência" (que deve ser esclarecida). O poder é visto como uma instância fundamentalmente coercitiva e a ação da mídia é da ordem da "misti-ficação" ou da manipulação ideológica - entendida como a imposição de conteúdos sobre um sujeito já constituído.
O pensamento pós-estruturalista de Foucault (1995) constitui uma ruptura com relação a esses pressupostos, na medida em que recusa a hipótese de um sujeito anterior e exterior às práticas discursivas. Sendo um efeito do discurso, o sujeito é produzido: não tem qualquer substância passível de ser reprimida, e nem, portanto, liberada. Para Foucault, o sujeito não é uma instância universal ou a-histórica, mas é o indivíduo dotado de certas formas de experiência de si, socialmente construídas. A crítica da mídia como instância de manipulação dá lugar à análise de mecanismos de constituição da subjetividade.
A mídia é um dispositivo que produz sujeitos, ou seja, indivíduos dotados de certa experiência de si mesmos. Ela atua como um dispositivo (pragmático ou "performativo"), na medida em que constitui modos possíveis das experiências de si. Uma novela, uma entrevista, um blog, um filme ou uma propaganda funcionam como estruturas narrativas, que propõem uma gramática da autoexpressão. Nesse sentido, importa menos o conteúdo do que é aí formulado do que a própria forma de sua enunciação. Desse ponto de vista, não se trata apenas de moldar comportamentos ou introjetar valores em um sujeito existente a priori, mas de constituir a própria subjetividade (Fischer, 1997, 2002). De fato, a partir do quadro teórico proposto por Foucault (1995), diversos autores tem procurado analisar este aspecto da cultura midiática, sublinhando, sobretudo, seu caráter normativo e sua função disciplinar, propondo narrativas exemplares e promovendo a adequação dos sujeitos a posições identitárias determinadas (Gregolin, 2007).
Esse tipo de análise, entretanto, parece não dar conta de uma característica cada vez mais presente no discurso publicitário contemporâneo, que se afasta de um papel explicitamente prescritivo ou normativo em direção a um discurso "libertário" ou permissivo: trata-se não apenas de propor uma diversidade de estilos, uma plasticidade de condutas e modelos, mas, sobretudo, de afirmar a ideia de liberdade e mesmo de subversão dos modelos. Sua estrutura é menos da ordem do "seja assim" e mais da ordem do "seja como quiser" - ou, em última instância, "seja você mesmo". Se do ponto de vista da normatização o que conta é a adequação a certos estereótipos, o ponto que nos interessa aqui é precisamente aquele em que a própria mídia assume o papel de contestação, de "subversão" ou de crítica aos estereótipos. Levada às últimas consequências, esta posição conduz à autoironia ou à autocrítica no próprio discurso publicitário: é o que ocorre no caso da campanha pela real beleza da Dove, cujo comercial mostra uma menina bombardeada por mensagens publicitárias explicitamente "normativas" e disciplinares, culminando com o slogan "converse com sua filha antes que a indústria da beleza o faça". É o que ilustra ainda o slogan da Nike: "Não sou um público-alvo. Sou um atleta".
De fato, quem sustenta hoje o discurso da "emancipação", da conscientização e da liberação é a própria mídia: a publicidade, acima de tudo, nos ensina que o importante é saber o que se quer, ter sua própria identidade, expressar a si mesmo e assim por diante.
Nesse sentido, para além de seu papel clássico (normativo) de impor representações pré-estabelecidas - modelos de conduta, padrões de beleza, valores, visões de mundo etc. - o discurso publicitário contemporâneo opera incitando o consumidor a exercer sua liberdade, expressar a si mesmo e a ter "seu próprio estilo". Nesse sentido, trata-se menos de dizer como o indivíduo deve ser (ou agir) e mais de informá-lo de que o produto em questão expressa sua individualidade e seu estilo.
A palavra "estilo" - ou termos equivalentes como "identidade", "jeito", "personalidade" - aparece aí com uma surpreendente frequência. Essa tendência reflete, por um lado, a atitude politicamente correta e o elogio da diversidade que caracteriza certo senso comum contemporâneo1. Mas ela reflete também um imperativo de individualização que é a própria marca da sociedade de consumo. Como aponta Bauman (1998, p. 42), "a individualização é uma fatalida-de, não uma escolha. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de (...) se recusar ao jogo da individualização está decididamente fora da jogada". Nesse sentido, ser um consumidor não significa submeter-se a padrões pré-estabelecidos, mas implica em primeiro lugar conceber a si mesmo como agente dessa construção de si. Em lugar de implicar uma heteronomia (como na concepção do indivíduo "manipulado", induzido a agir de forma contrária a seus interesses etc.), o consumo supõe ao contrário a autonomia: é justamente na medida em que é livre para consumir, em que é autor de suas decisões, que o sujeito se institui como consumidor.
Esta marca está presente não apenas na publicidade, mas no conjunto de técnicas de si disponibilizadas pela Internet. Estas, por sua própria natureza, colocam-se como espaços vazios a serem preenchidos por narrativas biográficas de conteúdos os mais variados2. Na exibição da intimidade proporcionada pelos blogs, sites de relacionamento e reality shows, na permanente reinvenção de si posta em cena pelo consumo, trata-se de constituir a si mesmo, de saber quem se é, de afirmar sua identidade. Essa injunção pode ser traduzida pela fórmula "seja você mesmo", onipresente na mídia sob diversas variantes (não se reprima, se expresse, descubra seu verdadeiro eu, tenha atitude, etc.), incorporada nos slogans publicitários (just do it, "porque você merece", mostre a sua cara, etc.), e nas políticas de identidade (diga o que você quer, se assuma, exerça seu direito).
A fórmula "seja você mesmo" permite múltiplas leituras. Primeiramente, trata-se de não seguir padrões normativos ou heterônomos (injunção de autenticidade); em segundo lugar, trata-se de não ser um outro (ou "como os outros"): exigência de originalidade; finalmente, trata-se de não ser um indivíduo "qualquer" - vago, informe e indeterminado - mas de atribuir-se um estilo, uma consistência e unidade (a injunção identitária propriamente dita). Ser eu mesmo é cuidar para que meus atos e escolhas reflitam (e simultaneamente, me atribuam) autenticidade, originalidade e identidade.
Esta injunção identitária não implica a produção de uma subjetividade fixa ou a manu-tenção de uma identidade estável, pelo contrário: como aponta Rolnik (1997), esse cenário é inteiramente compatível com a multiplicação e a flexibilização de identidades. Em segundo lugar, tal injunção não implica a subordinação passiva do consumidor às mensagens publicitárias, mas ao contrário, promove sua contestação ou mesmo sua recusa. Nessa perspectiva, o bom consumidor (o consumidor "ideal") é precisamente aquele que recusa os modelos estabelecidos e instaura a si mesmo como autor de sua(s) própria(s) narrativa(s) biográfica(s). Daí podemos compreender a presença, cada vez mais aguda, de um discurso de crítica ou subversão no interior do marketing e da publicidade3.
Essa característica antinormativa pode aparecer tanto na afirmação da diversidade do público consumidor ("Dove acredita que a beleza vem em todas as formas, tamanhos e idades"), de sua singularidade ("Você tem seu estilo. A Renner tem todos") quanto na própria recu-sa de submeter-se a modelos (o slogan da Sprite "Imagem não é nada, sede é tudo"). Essa posição implica evidentemente uma injunção: a de que os indivíduos "devem" ter "sua" identida-de (como esclarece o slogan das sandálias Melissa: "seja simples, impar, única. Create your-self.")
No próprio discurso publicitário, surge a ideia de que o mais importante não é o produto, mas a subjetividade que a ele se associa (como no slogan da All Star, "Use a alma pelo lado de fora"). Os produtos são aí apresentados como meras ferramentas destinadas a esta construção de si, tarefa a ser empreendida pelo consumidor (como no comercial do perfume Hugo Boss: It´s just a fragrance - the rest is up to you).
Há muito a publicidade deixou de ser pensada como venda direta do produto (se é que alguma vez ela funcionou de fato desse modo ingênuo) para associá-lo a modelos de compor-tamento ou estilos de vida. Mas, no caso que estamos analisando, além da ausência do produ-to, há também o afastamento de conteúdos identitários específicos: seu objeto é a forma vazia da identidade. Como aponta Safatle (2005), "Não se trata de disponibilizar exatamente conteú-dos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado". (p. 134)
Esta estrutura está presente de modo bem nítido na campanha da Nextel, "Bem vindo ao clube", que apresenta diferentes pessoas descrevendo sucintamente sua narrativa biográfi-ca. Trata-se de pessoas bem sucedidas em suas respectivas áreas, vistas como criativas e inconvencionais (portanto, "com estilo") - e, em alguns casos, célebres (como o artista plástico Vik Muniz, a escritora Fernanda Young e o estilista Oskar Metsavaht). Cada depoimento revela um aspecto - uma idiossincrasia, extravagância ou mesmo uma pequena deficiência - que seria um obstáculo para a realização pessoal e que terminou por desempenhar um papel chave nes-sa realização4. Sem dúvida, esses depoimentos poderiam ser tomados como exemplos norma-tivos de trajetórias de sucesso. Mas a própria diversidade das conquistas apresentadas (ter tido três filhos, expor no MoMA, conciliar a prática do surf com os negócios, etc.) sugere que o sucesso de que se trata não reside no conteúdo das conquistas, mas no fato das pessoas terem sido capazes de "se afirmar" e de serem elas mesmas. Para não deixar margem a dúvidas, cada depoimento termina didaticamente com a fala: "Essa é a minha vida, esse é meu clube".
Outro exemplo particularmente significativo é o comercial da Claro que apresenta a tra-jetória de vida de Wellington Nogueira, fundador da ONG Doutores da Alegria. Enquanto as imagens mostram seu percurso como aprendiz de palhaço, como profissional de circo e final-mente como terapeuta de crianças hospitalizadas, o texto em off descreve sua trajetória paralela (e fictícia) na carreira de advogado desejada por sua mãe. Obviamente, não se trata de instituir tal percurso como exemplo normativo, mas de instituí-lo como exemplo puramente formal de construção biográfica. Em nenhum momento a propaganda faz qualquer alusão ao produto (como vimos, tendência cada vez mais comum na retórica publicitária), mas tampouco vende uma identidade ou estilo de vida. O valor ali veiculado - que poderíamos denominar sua "dimensão pedagógica" - é a noção de que a própria vida é uma narrativa a ser constituída, tendo o sujeito como seu autor e seus atos como matéria prima - como enuncia o slogan que fecha (ainda uma vez, bastante didaticamente) o anúncio: "Você faz suas escolhas. Suas escolhas fazem você".
A questão aqui é investigar por que e em que medida esse novo cenário inscreve o su-jeito em uma nova modalidade de controle - investigar, portanto, por que e em que sentido esse discurso contestador e antinormativo se constitui como um modo de assujeitamento. Para dar conta dessa questão, vamos recorrer a alguns conceitos do próprio Foucault, mas também ao pensamento de Slavoj Zizek, que, na interseção entre filosofia e psicanálise, propõe uma reflexão sobre o estatuto do sujeito nas sociedades contemporâneas. Embora Zizek se contraponha explicitamente ao pós-estruturalismo, parece-me que podemos aproximar as duas visões na medida em que, em ambos os casos, há a ruptura com uma concepção essencialista do sujeito e uma tentativa de pensar o poder fora do paradigma da coerção. O que ambos sugerem é que as lutas de poder não ocorrem tanto entre indivíduo e sociedade, mas na própria esfera da subjetividade.
Em primeiro lugar, podemos recorrer à reflexão foucaultiana sobre a governamentalida-de, entendida como a estratégia moderna da arte de governar que instaura o próprio indivíduo como instância de controle. A governamentalidade se define como uma ação sobre ações: em vez de agir diretamente sobre as pessoas, trata-se de agir sobre os sujeitos na medida em que são livres, tendo diante de si "um campo de possibilidade onde várias condutas, várias reações e diversos modos de comportamento podem ocorrer" (Foucault, 1997, p.237). Nesse sentido, a liberdade se converte em instrumento de controle: não se trata mais de pensar se o indivíduo é ou não livre para consumir, mas de compreender "a própria liberdade" (entendida aqui como liberdade de escolha) como invenção de um eu moderno - condição de possibilidade do consumidor. Nesse sentido, ser capaz de escolher seu estilo de vida não atesta a liberdade do indivíduo diante das formas de subjetivação dominantes, mas constitui o modo propriamente moderno de assujeitamento.
Outro modo de compreender esse deslocamento é a partir da distinção entre mecanismos disciplinares e mecanismos de controle5. Se a disciplina pode ser entendida como imposi-ção de modelos normativos, o controle se apoia na flexibilidade e na possibilidade de mudança; ou, como afirma Deleuze (1992), se a primeira é da ordem do molde, impondo uma configuração definida e relativamente fixa, o segundo é da ordem da "modulação", que permite adaptações e constantes mudanças; ou ainda, como sugere Bauman (2007), se a primeira remete ao controle dos corpos, o segundo se liga ao controle do espírito - sendo que a ideia fundamental aqui é que a instância de controle se situa no próprio sujeito. A disciplina é o mecanismo fundamental do início da modernidade, tendo como expressão típica a linha de montagem da fábrica fordista, envolvendo comportamentos padronizados e movimentos automatizados. A transição da sociedade de produção para a sociedade de consumo, com suas exigências de flexibilidade, mudança e adaptação, se acompanha do fortalecimento progressivo dos mecanismos de controle.
A contemporaneidade libera o indivíduo dos modos repressivos de controle, mas essa liberação o inscreve nas formulas midiáticas de subjetivação. Como aponta Zizek (2003, p. 105), a "fuga para a privacidade hoje significa adotar as fórmulas de autenticidade privadas propagadas pela indústria cultural". A esfera dos relacionamentos, da busca "espiritual", etc. é um dos campos privilegiados do discurso midiático e das práticas de consumo, como ilustram o fenômeno dos livros de autoajuda, a proliferação de sites de relacionamentos, fórmulas e cursos para casais, aconselhamentos e terapias. É na busca de "autenticidade" - se entendermos esse termo como designando a busca de um estilo de vida próprio e a capacidade de escolher por si mesmo - que o consumidor se revela mais ingenuamente objeto da governamentalidade.
Se levarmos em conta o caráter puramente formal da injunção publicitária, podemos compreender por que a imposição de um padrão específico pode ser intercambiada por outro, divergente ou mesmo oposto. Em Microfísica do Poder, Foucault (1992) apontava que, na mo-dernidade, o controle baseado na repressão foi substituído pelo controle-estímulo, promovendo a adequação do sujeito às fórmulas de subjetivação propostas pelo mercado: "fique nu... mas seja magro, bonito e bronzeado" (p. 147). Mas o caráter plástico do consumidor contemporâneo, como estamos argumentando, implica a substituição de um conteúdo ideal pela forma identitária vazia; assim, como aponta Safatle (2008, p.132), a fórmula de Foucault pode ser perfeitamente substituída por (ou alternar-se com) "seja doente, anoréxico e mortífero". Nesse sentido, compreende-se que uma mesma marca combine retóricas divergentes e mesmo opostas.
Essa injunção identitária tem um caráter intrinsecamente paradoxal: pois ela constitui uma imposição, mas o que ela impõe é, justamente, a "liberdade": liberdade de inventar a si mesmo - de ter uma identidade - que é assim convertida em dever. O consumidor é um homem condenado à liberdade - não no sentido existencial que esta afirmação tem para Sartre, mas no sentido mais prosaico de que está fadado a ter uma identidade.
A essa injunção identitária vazia corresponde a multiplicação e a proliferação de identi-dades: ao liberar o indivíduo da expectativa de corresponder a padrões preestabelecidos, a publicidade potencializa o princípio de renovação e substituição que define a sociedade de consumo: como aponta Zizek (1999a, 505), "[a fórmula] 'seja realmente você (mesmo)' tem como contrapartida a injunção de cultivar a reconfiguração permanente, segundo o postulado pós-moderno da plasticidade indefinida do sujeito...". O espaço por excelência dentro do qual o indivíduo pode ser "ele mesmo", evidentemente, é o mercado, com suas diferentes modalidades de configuração identitária. E se o indivíduo dispõe de múltiplas maneiras de ser ele mesmo é porque este é seu modo peculiar de assujeitamento.
Podemos relacionar essa injunção identitária às transformações que Zizek, partindo de Lacan, identifica no próprio supereu, que deixa de funcionar como uma instância repressora e passa a ordenar diretamente o gozo. De fato, o caráter fundamentalmente repressor do supereu, tal como apontado por Freud, aplica-se sobretudo ao contexto da sociedade de produção, que marca a primeira fase do capitalismo. O mundo contemporâneo assiste, ao contrário, a um discurso de incitação ao gozo, de que o consumo (e a publicidade) constitui o paradigma6.
Dito de outro modo, o supereu se caracteriza pela injunção ao dever - injunção mera-mente formal, que independe de seu conteúdo. Ora, no mundo contemporâneo, em que o imperativo do gozo substitui a lei simbólica da proibição, essa injunção remete cada vez menos à esfera do dever e cada vez mais à esfera do prazer. Ela não funciona no registro da "permissividade" - indicando aquilo que o sujeito pode fazer - mas segundo o modo da "prescrição", indicando aquilo que se deve fazer. Ao instaurar um prazer compulsório, o conceito de supereu dissolve, em última instância, a própria oposição entre prazer e dever. Em lugar do imperativo kantiano "você pode (agir moralmente) porque deve", temos a sua inversão: você "deve" (ter prazer) porque pode.
Se fizermos um contraponto entre a posição de Foucault e a de Zizek, identificamos uma aparente divergência: pois o primeiro caracteriza a contemporaneidade pela passagem da "norma" para a liberdade do "autogoverno"; o segundo identifica a passagem de uma instância permissiva para a prescritiva. Mas essa oposição é apenas aparente7: pois, segundo Zizek, o que o superego prescreve é, justamente, a liberdade. O que ele nos ordena é, precisamente, escolher. E o dever que ele nos impõe é o de ter prazer.
Esta passagem nos permite compreender a diferença fundamental que existe entre o "posso ser eu mesmo" - ou seja, a possibilidade que o indivíduo tem de afastar-se eventual-mente de modelos sociais estabelecidos, caracterizando certo "desvio padrão" dos modos de subjetivação dominantes - e o "devo" ser eu mesmo: injunção que implica a autoanálise e auto-vigilância constantes, a percepção de que cada escolha, cada atitude expressa algo a seu res-peito, e que este conjunto de escolhas converge para um "efeito sujeito", por cuja produção, manutenção e eventuais transformações o individuo é responsável8.
Do mesmo modo que o supereu contemporâneo se caracteriza por uma injunção ao go-zo (e não mais por sua interdição), as formas contemporâneas de produção de subjetividade se definem por uma injunção à individualidade (e não mais pela adequação a formas pré-estabelecidas)9. Estes dois aspectos se revelam como faces de uma mesma moeda: pois se o gozo pode ser entendido como a obtenção de uma plenitude imaginária, a plenitude de que se trata aqui é a do próprio "eu". Os modos de gozo proporcionados pela mídia incitam o individuo a coincidir consigo mesmo, aceder à sua verdade, alcançar a consistência ontológica, fazer de si mesmo um objeto pleno e "dar a ver" essa plenitude.
O pensamento de Zizek também nos ajuda a compreender o deslocamento presente nas formas contemporâneas do poder, a partir da distinção entre poder totalitário e poder autoritário: o primeiro se constitui pela coerção pura e simples, e prescinde de legitimações; o segundo, ao contrário, procura legitimar-se se apoiando na própria vontade dos sujeitos. Não ordena diretamente, mas transfere para o indivíduo a escolha - que por esse motivo constitui necessariamente uma "escolha forçada". Nos sistemas totalitários, a lei social funciona como o próprio supereu, que ordena diretamente o gozo (Zizek, 1999b).
O "seja você mesmo", que impera na mídia e no discurso publicitário, não indica uma liberdade senão na medida em que aponta um dever: o dever de instituir a si mesmo, de constituir-se como sujeito, de expressar sua "verdade". Isso é precisamente o que define o assujeitamento, tal como formulado por Foucault (1995):
Esta forma de poder emerge em nossa vida cotidiana, categoriza o indivíduo, o marca por sua própria individualidade, une-o a sua própria identidade, lhe impõe uma lei de verdade que ele tem que reconhecer e que ao mesmo tempo, outros devem reconhecer nele. É uma forma de poder que constitui sujeitos individuais. (pp. 234-235)
Livre para consumir (e aqui vale lembrar que o consumo consiste não apenas na aquisi-ção de bens e serviços, mas remete a toda ação pautada pelo paradigma da livre escolha), livre para escolher sua identidade, o indivíduo permanece, no entanto, (mas justamente por isso) amarrado à forma da constituição identitária. O consumidor é um demiurgo, e as identidades são sua matéria prima.
Ora, coincidir consigo mesmo é algo que o sujeito, por definição, não pode fazer - tanto na perspectiva pós-estruturalista de Foucault quanto na perspectiva psicanalítica adotada por Zizek. No primeiro caso, porque o sujeito é um modo de relação do indivíduo consigo mesmo a partir de formas socialmente instituídas (as "tecnologias do eu" historicamente dadas) e não existe fora dessas formas. No segundo caso, porque o sujeito é descentrado com relação a si mesmo e se institui a partir de uma falta de fundamento. "Ser um sujeito" é manter-se numa dada relação com essa falta, relação tornada possível pela mediação da ordem simbólica.
O que se contrapõe à injunção de ser eu mesmo não é a opção aparentemente oposta de "ser como os outros", mas a concepção de que o próprio sujeito é sempre "outro" com rela-ção a si mesmo, ou seja, incapaz de instituir uma identidade que exclua toda alteridade. Outro modo de dizer que nenhum modo de subjetivação é plenamente bem sucedido, que não somos jamais totalmente "sujeitos". Posição que implica evidentemente renunciar à crença de que se é alguma coisa a priori, permanecendo aberto para este "não saber" e para o "não ser" que ele implica.
Em suas últimas obras, Foucault (2004) desenvolve a noção de uma "estética da exis-tência", caracterizada pela busca de modos de vida singulares. Ao contrário de outras formas de organizar a conduta - como as leis e as normas - uma estética da existência não pretende determinar o que é transgressão ou desvio; ela é eminentemente "positiva", na medida em que não se reporta ao dever e não aspira à universalização, mas propõe a criação de estilos de vida singulares, constituindo uma linha de fuga às formas de subjetivação socialmente impostas. O mundo contemporâneo, com seu caráter permissivo, sua celebração de estilos de vida e seu elogio da pluralidade parece se constituir em um cenário favorável à proliferação dessa prática. Mas a questão que se pode colocar é: até que ponto essa busca constitui de fato uma "liberação" dos modos de subjetivação capitalistas ou em que medida ela reflete a própria lógica identitária da cultura midiática e da sociedade de consumo? Pois se a lógica do consumo não consiste em impor modelos disciplinares ou modos de vida pré-estabelecidos, mas reside na imposição puramente formal de um modo de subjetivação calcado na identidade, as formas de subjetivação contemporâneas não fazem mais do que reforçar essa lógica. Nesse caso, em lugar de uma estética da existência, assistimos a um "supermercado de estilos"10.
Este é, segundo Zizek, um dos equívocos do pensamento pós-estruturalista (mas poderíamos precisar aqui: de uma certa leitura do pós-estruturalismo), que concebe a desterritorialização do sujeito - sua fluidez e plasticidade - como uma "linha de fuga" para a subjetividade, sem ver que essas características já pertencem à própria estrutura do capitalismo:
Longe de possibilitar toda espécie de subversões, o sujeito disperso, plural e descons-truído que marca a teoria pós-moderna - o sujeito predisposto a modos de gozo particulares e inconsistentes - não faz mais que designar "a forma de subjetividade que corresponde à última versão do capitalismo". Talvez seja hora de reviver a intuição marxiana sobre o capital como poder último de "desterritorialização", que desfaz toda fixação a uma identidade social, e conceber o "capitalismo de nosso tempo" como uma época em que a fixidez tradicional das posições ideológicas (autoridade patriarcal, papéis sexuais determinados, etc.) tornou-se um obstáculo para a corrida desenfreada ao consumo na vida cotidiana. (Zizek, 1993, p. 152)
Pode-se questionar até que ponto as críticas de Zizek ao pós-estruturalismo são perti-nentes (pois Deleuze e Guattari, os autores visados na passagem acima, apontam já em O Anti Edipo a desterritorialização como característica do próprio capitalismo); pode-se, inclusive, discutir se é possível falar de "pós-estruturalismo" em geral. Mas essa crítica sublinha um problema legítimo: a dificuldade de se formular uma proposta de resistência quando a resistência se torna estratégia de marketing, e o impasse que recai sobre o projeto de criar novas formas de subjetivação quando esta criação se torna, ela mesma, apropriada pelos mecanismos identitários. Numa célebre passagem de O Sujeito e o Poder - obra evocada no início deste artigo, referindo-se justamente aos modos de sujeição identitária discutidos acima, Foucault (1995) afirma: "Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos (...) Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposta há vários séculos" (p. 239). Mas o que fazer quando a própria recusa se torna mercadoria?
Para concluir, podemos sugerir que não se trata apenas de inventar novas formas de responder à pergunta "quem somos nós?", mas de por em questão a própria pergunta: "por que" devemos responder (ou mesmo saber) quem somos nós? A intensa preocupação com a identidade surge como sintoma de uma forma contemporânea de neurose, se seguirmos a caracterização proposta por Kehl (2005): a adesão imaginária a uma fantasia, qualquer que seja ela.11 Ao propor a vida como permanente construção identitária, as práticas de si postas em cena pela publicidade e pelo consumo revelam-se como diferentes modos de sustentar essa fantasia.
Podemos indicar ainda que a construção de si e a obsessão com as narrativas biográficas aparecem como sintomas de uma forma contemporânea de crença no sujeito: narrar a si mesmo, inclusive e, sobretudo, se essas narrativas se dirigem ao próprio sujeito, é um modo de reafirmar continuamente sua identidade e atribuir-se uma consistência imaginária. Esse fenômeno, longe de constituir uma diluição do sujeito - como sustentam alguns teóricos da pós-modernidade - indica na verdade seu deslocamento para modos de subjetivação menos disciplinares e mais plásticos. Se o homem contemporâneo se liberta de narrativas pré-estabelecidas, está mais do que nunca amarrado à necessidade de constituir essas narrativas, instituindo-se simultaneamente como seu autor. O que se reafirma nesse processo é a existên-cia de um sujeito autor de sua biografia, forma contemporânea de assujeitamento.
Referências
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Recebido em 15 de dezembro de 2009
Aceito em 14 de junho de 2011
Revisado em 21 de outubro de 2011
1 Aliás, como apontam Hardt e Negri (2005, p. 170), não há nada mais inclusivo ou politicamente correto do que o discurso do marketing e do consumo, já que quanto mais "diferenças" houver, maior o número de nichos de mercado.
2 Nesse sentido, remeto o leitor às análises realizadas por Sibilia (2003, 2004).
3 Klein (2006, p. 109) explora amplamente a apropriação da subversão por parte da publicidade e do marketing, o que possibilita, por exemplo, que não apenas Che Guevara, mas também Mao e Lênin apareçam como ícones de estilo e tenham seus rostos estampados em produtos de vestuário.
4 A título de exemplo, transcrevo a seguir o texto de Vik Muniz: "Quando era pequeno, eu não tinha brinquedo, mas nem por isso deixei de brincar. Purê de batata, pra mim, era massa de modelar; um prato era uma tela, o molho era a tinta. Aí, a brincadeira virou arte, que hoje é vista no MoMA, no Metropolitan, na Tate, no Reina Sofia, no Pompidou. E se meus pais tivessem me enchido de brinquedos, onde eu estaria?"
5 Distinção nem sempre clara, pois, como sublinha Revel (2002, p. 16), o próprio Foucault recorre ao termo "controle" em dois sentidos distintos: o primeiro, mais amplo, que engloba os mecanismos disciplinares; e um segundo mais específico (e formulado posteriormente) em que se distingue destes e a eles se contrapõe.
6 Seguindo a análise de Zizek, teóricos como Safatle (2008, 2005) e Fontenelle (2005) analisam as implicações desse fenômeno diretamente no campo do consumo.
7 O que não implica, evidentemente, que esta convergência se estenda ao conjunto das duas reflexões.
8 Vale observar que essa mudança corresponde à passagem, analisada por Zizek, do poder autoritário para suas formas totalitárias. (Zizek, 1999b)
9 Isso constitui uma tendência e não significa, evidentemente, que as formas disciplinares estejam ausentes.
10 A expressão foi inicialmente proposta por Polhemus (1994), popularizando-se em seguida.
11 O objetivo de uma análise não é tornar a novela neurótica mais consistente, ou substituí-la por uma outra melhor, e sim dispensar o sujeito desta necessidade constante de explicar-se, que sustenta sua fantasia. (Kehl, 2005).