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Revista Psicologia Política
versión On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.12 no.24 São Paulo ago. 2012
ARTIGOS
Políticas de memória X políticas do esquecimento: possibilidades de desconstrução da matriz colonial
Politics of memory X politics of oblivion: possibilities of deconstruction of the colonial matrix
Políticas de la memoria X políticas del olvido: posibilidades de desconstrucción de la matriz colonial
Soraia Ansara*
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Universidade Estácio de Sá, São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Neste artigo, apontamos, a partir dos estudos sobre a memória política da ditadura militar no Brasil, que a memória oficial tem sido um poderoso instrumento de manutenção do imaginário colonialista marcado pelo discurso oficial que tenta levar ao esquecimento determinados eventos políticos. Utilizando o conceito de colonialidade de poder, de Quijano (2002; 2005) e o conceito de dissenso, defendido por Rancière (1996), procuramos compreender a política da memória como dissenso, questionando o consenso que tem levado a uma política de esquecimento deliberada em toda América Latina. Tratamos de mostrar que existe uma memória política que se manifesta como forma de resistência e luta política fortalecendo a participação e a ação política de movimentos sociais contrapondo-se às "políticas de esquecimento" que foram estabelecidas ao longo da ditadura e do período de redemocratização brasileiro, contribuindo para a desconstrução dos padrões de poder impostos pela matriz colonial.
Palavras-chave: Memória política, Políticas de memória, Políticas de esquecimento, Colonialismo, Colonialidade do poder.
ABSTRACT
In this paper, we point out, from the studies on Memory politics of the military dictatorship in Brazil, that the official memory has been a powerful tool for keeping the imaginary of colonialism by the official discourse that tries to sink certain political events into oblivion. By using the concept of coloniality of power, by Quijano (2002; 2005) and the concept of dissent, defended by Ranciére (1996), we seek to understand the politic of memory as a dissent, putting the consensus in question in order to promote a politic of oblivion throughout Latin America. We try to show that there is a memory politic which manifests itself as a way of resistance and political fight to empower the participation and the political actions of the social movements opposing to a "politic of oblivion" established during the Brazilian dictatorship and redemocratization period which contributes to the deconstruction of the standards imposed by the colonial matrix of power.
Keywords: Memory politics, Politics of memory, Politics of oblivion, Colonialism, Coloniality of power.
RESUMEN
En este artículo, señalamos, a partir de los estudios sobre la memoria política de la dictadura militar en Brasil, que la memoria oficial ha sido un poderoso instrumento de manutención del imaginario colonialista marcado por el discurso oficial que intenta llevar al olvido determinados eventos políticos. Utilizando el concepto de colonialidad del poder, de Quijano (2002; 2005) y el concepto de disenso, defendido por Rancière (1996), procuramos comprender la política de la memoria como disenso, cuestionando el consenso que ha llevado a una política de olvido deliberada en toda América Latina. Tratamos de mostrar que existe una memoria política que se manifiesta como forma de resistencia y lucha política fortaleciendo la participación y la acción política de movimientos sociales en contraposición a las "políticas de olvido" que fueron establecidas a lo largo de la dictadura y del período de redemocratización brasileño, contribuyendo a la deconstrucción de los patrones de poder impuestos por la matriz colonial.
Palabras clave: Memoria política, Políticas de memoria, Políticas de olvido, Colonialismo, Colonialidad del poder.
Introdução1
O estudo da memória política da ditadura militar no Brasil é hoje uma importante referência para compreensão da cultura política brasileira. Ele se insere no âmbito dos conflitos violentos vividos nas últimas décadas pela sociedade latino-americana e seu ulterior processo de democratização. Neste debate, questões como a repressão e resistência; a imposição do esquecimento jurídico provocado pelos processos de anistia que apagam as responsabilidades legais dos repressores; o dilema entre autoritarismo e democracia são pontos importantes para pensarmos, do ponto de vista psicopolítico, as possibilidades de enfrentamento dos conflitos políticos que vivemos na América Latina, particularmente na sociedade brasileira.
Se por um lado, a memória se apresenta como um instrumento de manutenção de um imaginário "colonialista" marcado pelo discurso oficial que enfatiza os feitos dos heróis, produzidos e reforçados pela educação e pela mídia ou mesmo registrados nos documentos oficiais; por outro lado, a memória manifesta-se como forma de resistência e luta política fortalecendo a participação e ação política de movimentos sociais.
Ao nos referirmos a um imaginário colonialista, nos reportamos à herança que o domínio ibérico nos deixou e que Walter Mignolo (2010) denomina "matriz de colonialidade"2, o que diz respeito à lógica de repressão, opressão, despossessão, racismo, que opera até hoje na América Latina.
E isto nos leva à seguinte indagação: em que medida a memória oficial foi ou continua sendo um importante instrumento de propagação desta matriz colonial a que o autor se refere? Ou ainda, em que medida as memórias de resistência das minorias e grupos oprimidos questionam as versões instituídas pela memória oficial?
Evidentemente ao fazermos uso dos termos colonialismo e colonialidade, o fazemos com certo cuidado, já que estes dizem respeito a análises mais complexas dos sistemas de poder e não podem ser de modo algum tomados de forma apressada e superficial. Aqui nos referimos a eles para fazermos, de forma ainda incipiente, algumas aproximações com os dados de nossa pesquisa sobre a memória política da ditadura militar no Brasil, considerando o que encontramos num primeiro momento na memória de lideranças comunitárias e sindicais por nós entrevistadas.
A pesquisa3 a qual nos referimos foi realizada em três capitais brasileiras (Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo), entre os anos 2003-2005. A partir de entrevistas individuais semiestruturadas com três lideranças comunitárias e três lideranças sindicais de cada cidade – totalizando dezoito entrevistas – procuramos analisar a memória política da ditadura brasileira construída pelas gerações posteriores à ditadura, a fim de perceber quais os significados da repressão/resistência à ditadura que encontramos nos relatos dos entrevistados. Tais relatos, aos quais nos referimos em vários momentos deste artigo, foram organizados de tal maneira que possibilitou a análise das políticas de esquecimento e a proposição dos elementos que podem constituir uma política da memória.
Um aprofundamento das pesquisas sobre a memória política que estabeleça esta relação com o colonialismo e com a "colonialidade do poder" ainda está por fazer e, com certeza, implicaria numa análise mais ampla destas relações que envolvem o próprio conceito de modernidade. Conceito este que, segundo Quijano (2005), está na gênese dos estudos da colonialidade e diz respeito a um conjunto de elementos objetivos e subjetivos que fundaram um modo de existência social, que configuraram a sociedade moderna tal como a conhecemos.
O termo colonialismo nos remete à colonização, à experiência violenta característica da dominação colonial presente nos modelos capitalistas que postulavam o direito de povos colonizarem outros em razão da pseudo-supremacia civilizatória, cultural, bélica, tecnológica, econômica, étnica e social. Em outras palavras, significa tomar posse do território ou região que pertence a outros povos, impondo valores, normas, lógica, cultura etc.. Colonização tem, além disso, o sentido de invadir, dominar, exercer domínio, ou ainda, a supremacia sobre algo ou alguém (Ferreira, 1999; Houaiss, 2001). A colonialidade, segundo Quijano (2002), tem uma "relação visceral" com a colonização, pois esta institui um padrão de poder universal que impõe uma única lógica hegemônica sobre todas as outras culturas, epistemologias, possibilidades e modelos civilizatórios. Dito de outra maneira, colonialidade se refere à imposição de um padrão cultural, epistemológico, de crenças, valores e normas, com o intuito de dominar a partir do seu aspecto cultural, simbólico, imaginário, cognitivo-afetivo. (Figueiredo, 2010).
Para Quijano:
o atual padrão de poder mundial consiste na articulação entre:
1) a "colonialidade do poder", isto é, a ideia de raça como fundamento do padrão universal de classificação básica e de dominação social;
2) o capitalismo, como padrão universal de exploração social;
3) o Estado como força central universal de controle da autoridade coletiva e o moderno Estado-Nação como sua variante hegemônica;
4) o eurocentrismo como força hegemônica de controle da subjetividade / intersubjetividade, em particular no modo de produzir conhecimento. (Quijano, 2002:4)
Este autor problematiza a relação entre modernidade e a "colonialidade do poder", caracterizando-a como um padrão de poder que deriva da ideia de raça, entendendo-a como um constructo proveniente da experiência da dominação colonial que é parte integrante das dimensões mais importantes do poder mundial. Neste artigo, não pretendemos dar conta de todos os aspectos debatidos por Quijano. Mas compreender a colonialidade do poder, a partir de sua análise, como uma estratégia que naturaliza, legitima, por meio de uma aparente normalidade, toda uma gama de valores social e culturalmente construída. Tal estratégia fomenta uma memória oficial que atua como um mecanismo eficaz de propagação das relações de poder invisíveis e mesmo inconscientes que alienam e justificam o "direito" dos colonializadores ou daqueles que tomam arbitrariamente o poder, jogando um papel fundamental na construção do imaginário social.
Neste sentido, uma das manifestações mais evidentes desta colonialidade legitimada pelo regime militar foram os legados da repressão política, do autoritarismo, da impunidade e da naturalização da violência que resultaram das práticas de normalização da sociedade e da política, que também foram responsáveis pelos processos de esquecimento. Estes legados estão presentes ainda hoje na memória de lideranças comunitárias e sindicais como aponta Ansara (2008) em seu estudo "Memória Política Repressão e Ditadura no Brasil". Estamos entendendo que os processos de imposição do poder por meio da repressão/ violência política e da memória oficial são parte integrante da "colonialidade de poder" no sentido proposto por Quijano.
O estudo que realizamos sobre a memória política da repressão no Brasil nos permite compreender esta relação, na medida em que mostra que as estratégias utilizadas pelo regime militar e ao longo de todo processo de democratização impuseram uma memória oficial que tentou levar ao esquecimento determinados eventos políticos, naturalizando, legitimando e normalizando o político, "cobrindo com um véu" os acontecimentos repressivos tendo gerado uma esfera de normalidade, a ponto de muitos brasileiros desconhecerem os fatos e efeitos da ditadura militar no Brasil. Tais estratégias são denominadas por nós políticas de esquecimento.
Embora admitamos que exista um processo de "esquecimento" forjado e legitimado por uma "memória oficial" – que, ao longo dessas décadas, vem ocultando da população brasileira o passado repressivo e um efeito desmobilizador das lutas – provocado pelo medo à repressão – é fundamental destacar a importância de uma consciência política proporcionada pelos movimentos sociais na construção da memória, que é uma verdadeira luta contra o esquecimento, que vem sendo construída pelas classes populares, sobretudo pelas lideranças políticas.
Segundo Connerton (1999), a experiência passada tem uma forte implicação na construção da memória coletiva, já que "as nossas experiências do presente dependem, em grande medida, do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens do passado servem para legitimar a ordem social vigente" (p. 4). Para este autor, as experiências do presente estão ligadas aos objetos do passado, de modo que "viveremos nosso presente de forma diferente de acordo com os diferentes passados com que podemos relacioná-lo" (p. 2). Assim, "a memória coletiva só retém do passado aquilo que está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém, ou seja, a memória de uma sociedade tem o limite da duração dos grupos" (Ansara, 2001:48).
Em nosso estudo, concebemos a memória política enquanto uma memória coletiva4 que foi sendo reconstruída a partir das contradições da sociedade brasileira nos últimos cinquenta anos tratando de elucidar a importância da consciência política nesta reconstrução e apontando como esta tem sido capaz de gerar novas práticas políticas (Ansara, 2001; 2008a; 2008b).
Nesse sentido, o processo de construção da memória política é uma verdadeira luta contra o esquecimento que nos remete ao debate sobre a importância e a necessidade de se elaborar "políticas de memória" que se contraponham às "políticas de esquecimento" que foram estabelecidas ao longo da ditadura e do período de redemocratização brasileiro (Ansara, 2008).
Assim sendo, defrontamo-nos com o grande desafio de pensar políticas da memória que levem em conta as demandas dos movimentos que lutam pela construção de uma memória popular ou, por assim dizer, de uma "memória dos vencidos", ou seja, pelos grupos e minorias que criam novos suportes e "lugares da memória"5, através de seus discursos, manifestações, celebrações, rituais, da organização sistemática de seus arquivos e da luta pela abertura dos arquivos da ditadura. Faz parte da luta por uma memória dos vencidos, a busca incessante pelo esclarecimento das mortes e desaparecimentos políticos ocorridos durante o período da ditadura militar brasileira.
A fim de aprofundar o que entendemos por política da memória, queremos agora fazer uso da crítica que Rancière (1996 a/b) faz à ideia de política, que em nossos dias, é compreendida como consenso que se apresenta como princípio da democracia, mascarando a própria ideia de política e de democracia. Para esse autor, a política não é a maneira como indivíduos e grupos combinam seus interesses e seus sentimentos. Para o autor, a política "É antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível" (Rancière, 1996b:368). Segundo o autor, a ideia de combinar interesses, buscar consensos é uma distorção do conceito de política e da própria democracia. Para Rancière a política só pode ser entendida enquanto "dissenso", pois a política rompe com o jogo normal da dominação, porque não advém naturalmente nas sociedades humanas. Muito pelo contrário, "advém como um desvio extraordinário, como uma ruptura no processo de passagem de uma lógica de dominação à outra, do poder da diferença no nascimento ao poder indiferente da riqueza" (Rancière, 1996b:371).
O que normalmente se entende por política, ou seja, "o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição", ele denomina "polícia". (Rancière, 1996b:372). Nesta ideia de política, que ele chama "polícia", se encontra a ideia de ordem, vigilância e repressão quando se transgride essa ordem. Nesse sentido, a palavra política significa "o conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia" (Rancière, 1996b:372).
Para deixar isso ainda mais claro, este autor resgata a definição de Aristóteles de que o homem é um animal político que se distingue dos outros animais por possuir o "logos", a palavra. A voz (phone) é comum ao homem e aos outros animais, mas somente o homem tem a palavra que lhe permite manifestar o útil, o prejudicial, o justo e o injusto. Assim sendo, somente aqueles que possuem a palavra como "ser falante" participam do mundo político. Recorrendo à fábula de Balanche, que descreve uma cena conflituosa entre plebeus e patrícios, demonstra a existência de dois mundos sensíveis: o mundo dos plebeus que não falam (que é o mundo daqueles que só manifestam ruídos, o mundo daqueles que não têm um nome e, portanto, não estão inscritos na polis) e o mundo daqueles que falam (os patrícios, que têm um nome e que estão inscritos na polis).
Na fábula, os plebeus insistem em provar que eles falam e aí reside o conflito. Isso pressupõe a igualdade de um ser falante com qualquer outro ser falante. Igualdade essa que não se inscreve na ordem social, senão que se manifesta pelo dissenso como "uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável" (Rancière, 1996b:372). Os plebeus começam a falar como seres que têm nome e "[...] instituem uma outra ordem, uma outra divisão do sensível, constituindo-se não como guerreiros iguais a outros guerreiros, mas como seres falantes repartindo as mesmas propriedades daqueles que as negam a eles" (Rancière, 1996a:37-38). Eles constroem a esfera pública através do dissenso, do confronto entre dois mundos distintos:
[...] não um conflito de pontos de vista, nem mesmo um conflito de reconhecimento, mas um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que nele falam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são designados [...]. Cumpre, portanto, fazer com que seja visto, e que seja visto como correlato do outro. (Rancière, 1996b:374)
Partindo dessa ideia, parece-nos clara a importância e a necessidade do conflito para fazer emergir uma cena pública, na qual se exponha a existência dos dois mundos e se estabeleça uma relação que só é possível existir se nos fazemos ouvir, entender, enxergar, ou seja, se nos tornamos visíveis. O político, portanto, apresenta-se como dissenso que desestrutura a ordem social e faz com que o mundo dos sem visibilidade, sem voz e sem poder, ocupe a cena pública tornando visíveis suas necessidades e aspirações.
A reflexão de Rancière (1996), nos permite compreender as políticas da memória como dissenso, como o questionamento do consenso que tem levado a uma política de esquecimento deliberada em toda América Latina, que ao longo dos processos de democratização, produziram "esferas públicas de memória real" através de "reconciliações nacionais, anistias oficiais e fabricação de consenso, ou ainda do silêncio procurando estabelecer formas de memória consensual coletiva" (Perrone, 2002:110).
A normalização do político na América Latina sacrifica a memória do 'outro' vencido, e busca apagar até o seu traço de legitimidade. "Ainda que o consenso faça referência à memória, não é capaz de praticá-la, tampouco é capaz de expressar seus tormentos, a única via de acesso e liberação emocional da lembrança". (Perrone, 2002:102)
A ideia do dissenso é um elemento fundamental e necessário à elaboração de políticas da memória que possam se contrapor a uma memória oficial e consensual que tende a apagar as lutas de resistência da nossa sociedade, impondo saberes e imaginários coletivos que acabam sendo assimilados pelos indivíduos negando a esses mesmos indivíduos e à sociedade, especialmente às classes populares, o direito ao passado.
Vale ressaltar, que a política da memória não pode se confundir com as políticas de preservação do patrimônio histórico, nem tampouco com a institucionalização da memória, senão se converteria em história. Grosso modo, poderíamos dizer, apoiados em Decca, que a história é uma representação do passado e uma operação intelectual que rompe os vínculos coletivos da memória, na medida em que se cristaliza na escrita da história oficial. A memória, por sua vez, é um fenômeno sempre atual que mantém os vínculos entre o que foi vivido e o eterno presente, ou seja, "A memória é a vida, sempre guardada pelos grupos vivos e em seu nome, ela está em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento" (Decca, 1992:130). Para este autor, "[...] a memória histórica6, ao longo de nosso século, foi sempre o instrumento de poder dos vencedores, para destruir a memória dos vencidos e para impedir que uma percepção alternativa da história fosse capaz de questionar a legitimidade de sua dominação" (p. 133).
Nesse sentido, memória e história se opõem, enquanto a memória procura reforçar o sentimento de identidade de um grupo, a história desfaz identidades (Decca, 1992). Não estamos deslegitimando a história, entretanto, não podemos deixar de assinalar que a oposição entre ambas suscita um paradoxo, muito bem apontado por Decca que diz: "Se a sociedade histórica destrói as bases da memória coletiva espontânea, ela ao mesmo tempo desenvolve uma percepção histórica que, diante do perigo da perda definitiva do passado, começa a recriar deliberadamente lugares de memória" (Decca, 1992:131). Ou seja, existe uma luta por criar "lugares de memória", uma reivindicação dos grupos sociais pelo direito ao passado.
De alguma maneira, é nesta luta por criar "lugares de memória" que parece se inserir as políticas de memória. Neste sentido, elas (as políticas da memória) são essencialmente provocadas pelas demandas dos movimentos que lutam pela construção de uma memória popular ou, por assim dizer, de uma "memória dos vencidos", ou seja, pelos grupos e minorias que criam novos suportes e lugares da memória, através de suas narrativas, de suas celebrações, de seus rituais e da organização sistemática de seus arquivos.
Instaura-se, portanto, uma luta política na qual se confrontam memórias contra memórias envolvendo uma disputa de sentidos sobre aquilo que ocorreu no passado. Em outras palavras, é um confronto entre distintas memórias antagônicas e diferentes versões do passado.
A memória histórica 'oficial' tem sido produzida pelos diferentes equipamentos sociais no sentido de apagar os vestígios que as classes populares e os opositores vão deixando ao longo de suas experiências de resistência e luta num esforço contínuo de exclusão dessas forças sociais como sujeitos que forjaram e estão forjando também uma outra história, nunca narrada oficialmente". (Coimbra, 2001:51)
As Políticas de Esquecimento
Ao estudarmos a memória política da ditadura militar brasileira, inevitavelmente nos remetemos a uma realidade comum a vários países da América Latina que viveram simultaneamente sob ditaduras militares e nos demos conta de que os regimes pós-ditatoriais neste continente promoveram, por meio de seus aparelhos repressivos, políticas de esquecimento que foram estabelecidas, como aponta Huyssen (2000), através de "reconciliações nacionais e anistias oficiais" e "através do silêncio repressivo" (Huyssen, 2000:16), ou ainda, através da fabricação de consensos, que produziu formas de memória consensual coletiva.
I. A fabricação de consensos ou de memória consensual coletiva, segundo Perrone (2002), são formas de recuperação da harmonia nacional utilizada pelos governos pósditatoriais como estratégia para apagar o passado e promover o esquecimento. Isso faz parte de uma política do esquecimento, que pode ser mais bem entendida como Rancière (1996) denomina "polícia", que se estrutura para manter a "harmonia nacional", ocultando os crimes cometidos pelas ditaduras e apagando da memória as lutas de resistência desenvolvidas contra essas ditaduras.
II. Podemos dizer que uma das estratégias desta política de esquecimento foram os processos de anistia. Ricoeur (2003) aponta que os processos de anistia, ao buscarem a paz cívica, reconciliando os inimigos proporcionaram uma harmonia social provocando o esquecimento institucional. Nesse sentido, a anistia vai além do esquecimento jurídico, ou seja, põe fim a todos os processos em andamento e suspende todas as ações judiciais, impedindo a apuração dos crimes políticos e apagando a memória como se nada houvesse acontecido.
Ora, esquecer esse passado traumático, indesejado, é querer impedir que a sociedade conheça o arbítrio e a violência política instaurada pelas ditaduras militares. Essa política de esquecimento parece ter sido muito eficaz, haja vista que se iniciou durante o próprio regime militar com o ocultamento dos assassinatos de presos políticos que eram divulgados como sendo "suicídio", balas perdidas, atropelamentos ou assassinatos pelos próprios companheiros.III. Manipulação política e ideológica: enquanto os atos de violência se proliferavam por todo o país, o regime militar utilizava a manipulação política e ideológica para ocultar da população estes acontecimentos. Tal manipulação está bem presente na memória das lideranças sindicais e comunitárias, e como elas próprias apontam, era praticada através dos meios de comunicação oficiais, da escola formal, do futebol, com toda a ênfase que se deu à Copa do Mundo de 1970 (que ofuscava os acontecimentos), da imposição pelo medo, do milagre econômico e do patriotismo pregado pelo regime.
IV. A queima de arquivos: entre os elementos que fazem parte da política de esquecimento, está a queima de arquivos – muitos dos arquivos da época foram destruídos no final da ditadura – inclusive, em 2004, foi divulgada pela imprensa uma denúncia da queima de arquivos na base aérea de Salvador na Bahia, fatos estes também presente na memória das lideranças sindicais e comunitárias.
V. Impunidade: podemos dizer que essas políticas de esquecimento foram criadas ao longo da ditadura militar e continuaram sendo alimentadas durante todo o período de transição à democracia, por meio da impunidade, uma vez que o Brasil não puniu os torturadores e assassinos do período, como ocorreu em outros países da América Latina. E, apesar de o governo brasileiro ter reconhecido a sua responsabilidade sobre os crimes praticados na ditadura, esse reconhecimento não atingiu aqueles que morreram nos confrontos com a polícia e os que cometeram suicídios motivados pelo regime, ou seja, não foi extensivo a todas as vítimas do regime.
Essa política de esquecimento está revestida da "colonialidade do poder" no sentido proposto por Quijano, pois é uma estratégia que busca esconder os atos repressivos e a violação dos direitos humanos praticada pelo Estado, atribuindo um caráter de normalidade aos acontecimentos como se estes não houvessem ocorrido; estabelecendo relações de poder impositivas como sendo naturais, invisíveis e mesmo inconscientes, alienando e falsamente justificando a ditadura como necessária para a "manutenção da ordem social".
Tal política é justamente contrária à política da memória que defendemos, visto que, qualquer ação de combate ao esquecimento institucional deve, necessariamente, passar pela elaboração de políticas públicas concretas contra a violência e em favor dos direitos humanos, garantindo, fundamentalmente, à população brasileira, o direito ao passado e, portanto, o direito à memória.
Políticas da Memória: A luta contra o esquecimento
Quando falamos em política da memória, propomos expandir a natureza do debate público trazendo à luz a memória política das classes populares que se contrapõe, claramente às versões instituídas e fixadas pela história oficial, rompendo com o caráter ideológico e alienante da memória oficial e possibilitando o fortalecimento das esferas públicas da sociedade civil.
Para isso, destacamos os elementos que apareceram nos discursos dos entrevistados que, a nosso ver, devem fazer parte das políticas da memória traduzindo-se em uma nova forma de ação política:
a) A Memória de Resistência das Classes Populares
Um primeiro aspecto de fundamental importância para elaboração de políticas da memória é reconhecer que existe uma memória de resistência construída pelas classes populares.
Por meio dos discursos dos entrevistados, percebemos que existe uma memória construída pelos movimentos sociais que visivelmente irrompe dos subterrâneos da história como uma memória de resistência.
Essa memória está alicerçada na efetiva participação política que se dá nos espaços de luta cotidiana e na importância do conhecimento do passado para as lutas atuais. Seus discursos apontaram a fundamental importância dos espaços de participação política como meio eficaz para conhecer criticamente o passado e resistir ao autoritarismo, à violência e à repressão. São memórias que "[...] se contrapõem ao caráter destruidor, unificador e opressor da memória coletiva nacional. [...]", ou seja, "a memória entra em disputa" (Pollak, 1989:4).
Ao falar da ditadura militar, nossos entrevistados (lideranças comunitárias e sindicais) apontam a repressão imposta pelo regime militar no Brasil e destacam que os movimentos sindicais e populares se organizaram e lutaram contra a repressão assumindo os riscos de serem torturados ou mortos. Para eles, o conhecimento do passado e o exemplo daqueles que lutaram contra a ditadura, ainda permanece entre as pessoas que estão na luta hoje, e garante a continuidade da história sem a possibilidade de volta a esse passado ditatorial. Para a maioria dos sindicalistas e lideranças comunitárias, a vitória contra a ditadura é atribuída à classe trabalhadora, visto que os movimentos sociais iniciaram sua força de organização na ditadura e tinham um poder de atuação muito mais forte que em nossos dias. Para eles, a força que mobilizava os que lutaram contra a ditadura era também mais eficaz porque o "inimigo" (o regime militar com suas técnicas repressivas) era concreto, visível. Eles afirmam que se os movimentos daquela época enfrentaram "exércitos" e "derrubaram a ditadura", os movimentos hoje podem ser capazes de derrubar o neoliberalismo. Nesta perspectiva, o espírito de luta do passado, que mobilizou o povo para derrubar a ditadura, é uma referência que potencializa os movimentos para derrubar algo ainda maior que é o capitalismo e o neoliberalismo, cuja estratégia se apresenta numa forma sutil de dominação, tornando difícil identificar contra o quê se está lutando, coisa que, segundo eles, era clara no período da ditadura. Fato é que "no processo de participação política, os sujeitos tomam consciência de seu passado, da sua realidade social e política construindo uma memória politica que os potencializa e os mobiliza a participar das lutas políticas" (Ansara, 2008b:55).
Em suas memórias, estão presentes as formas de repressão impostas pelo regime militar que impediam qualquer tipo de luta ou expressão política dos movimentos sindicais e populares contra o regime, e a coragem dos militantes que assumiam o risco de serem torturados ou mortos.
As memórias construídas no interior dos movimentos sindicais e sociais são memórias construídas por aqueles que normalmente estão predispostos a agir contra os aparelhos repressivos, provocando uma ruptura com o cotidiano, contestando o conformismo político, a submissão ao poder e a defesa da ordem que justifica a repressão. São memórias subterrâneas, esquecidas ou silenciadas que, segundo Pollak (1989), esperam o momento certo para emergir e que muitas vezes não são capazes de vir à luz espontaneamente.
Nesse sentido, as memórias coletivas, principalmente advindas das minorias, das classes populares, apresentam-se como uma memória política capaz de produzir cenas polêmicas e paradoxais que revelam a contradição entre a "memória oficial" e as memórias subterrâneas e, como sugere Paoli (1992:27), recriam "a memória dos que perderam não só o poder, mas a visibilidade de suas ações, resistências e projetos".
b) Abrir os Arquivos da Época da Ditadura
É interessante destacar que a cada dia aumenta a pressão para que sejam abertos e revelados os arquivos da ditadura militar e, nesse sentido, as Comissões de Mortos e Desaparecidos Políticos, as Comissões de Direitos Humanos, ONGs, os Grupos Tortura Nunca Mais (GTNM) têm mobilizado, por meio de campanhas e outras manifestações, pela anulação do decreto de sigilo 4.553/2002, que impede a abertura dos arquivos da ditadura no prazo de 50 anos.
Ressaltamos, portanto, que a abertura dos arquivos da ditadura é um direito à memória que permite às vítimas e aos seus familiares terem acesso às informações que lhes dizem respeito e que estão sob o poder sigiloso do Estado a fim de que as violações aos direitos humanos sejam apuradas pela justiça.
A insistência dos grupos de Direitos Humanos e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos para que se investigue e se revele as mortes e os desaparecimentos do período da ditadura militar jamais será em vão, pois diz respeito à nossa história, à nossa cultura e à formação das gerações atuais e das futuras gerações.
Tornar público à população as atrocidades cometidas contra os que se opunham ao poder é dar um basta à violência política do Estado, possibilitando a denúncia da grave violação aos direitos humanos, a não repetição dos erros do passado, a não ocultação dos fatos e informações relevantes para a consolidação da democracia e a transparência no relacionamento entre Estado e sociedade.
c) A Necessidade de Reparação: não à impunidade
Para além da luta pela abertura dos arquivos é necessária a reparação dos danos e perdas das vítimas da violência política no Brasil, bem como aos seus familiares que não cessam em querer dar aos seus entes queridos o direito de serem enterrados com dignidade. Cabe ressaltar, que indenizar os que foram diretamente lesados ou aos seus familiares, bem como punir os responsáveis pelas atrocidades cometidas durante o regime militar no Brasil, faz parte dessa reparação e significa para a sociedade brasileira dizer não à impunidade!
A impunidade é também responsável pela continuidade da violação dos direitos humanos, haja vista que o fato de não se punir os responsáveis pelas torturas demonstra a ineficácia do Estado em solucionar os atos de violação aos direitos humanos que ocorreram ao longo de todo período repressivo. Estamos nos referindo aqui à demora em tornar públicos os arquivos da ditadura militar e punir aqueles que praticaram torturas e assassinatos de militantes contrários ao regime, já que muitos desses torturadores permanecem impunes, inclusive ocupando cargos de confiança em governos municipais, estaduais e federais, conforme vem sendo denunciado pelo Grupo Tortura Nunca Mais – RJ.
Apurar os fatos, resgatar a trajetória dos mortos e desaparecidos deste período recente é importante, não apenas do ponto de vista do direito de seus familiares obterem uma satisfação dos governos sobre como e porque morreram seus filhos, pais, irmãos ou companheiros, mas também para esclarecer como os fatos realmente aconteceram e não como o regime militar quis que fossem contados.
d) Preservar a Memória da Ditadura
Outro aspecto importante para as políticas da memória apontado pelas lideranças sindicais e comunitárias é a necessidade de se fazer um trabalho de preservação da memória da ditadura.
Para os entrevistados, os movimentos sociais são um lugar de memória, pois muitos deles conheceram esse período por meio de sua participação política.
Eles destacam que os movimentos sociais e as comunidades têm essa preocupação de preservar a memória e criam espaços memoriais que se convertem em verdadeiros "lugares da memória". Como exemplo, apontam as celebrações organizadas na Vala Comum do Cemitério de Perus pelos grupos locais, comunidades, Igreja, Movimentos de Direitos Humanos, em cujo lugar se reflete sobre as vítimas do regime militar no Brasil. O fato de existir a vala comum não proporcionaria a memória do que aconteceu naquele lugar, mas seu caráter celebrativo, ou seja, a sua rememoração coletiva e as atividades em torno do tema é que possibilitam a construção de uma memória coletiva da ditadura militar.
Os exemplos apontados confirmam a importância e a necessidade de se elaborar políticas que busquem, como sugere Perrone (2002:109), "criar e manter espaços memoriais que ajudem a construir e alimentar uma memória coletiva" que questione as versões instituídas como memória oficial e, ao mesmo tempo, compreender que a construção de uma memória política traz à cena pública as tensões existentes entre a História e as histórias dos indivíduos, o global e o local, o privado e o público, o Estado e os Movimentos Sociais.
e) Combate à Repressão Policial: não à criminalização da sociedade
Nossa pesquisa apontou que ainda convivemos com os legados da ditadura militar, entre eles a estrutura policial que permanece igual à do período militar, pois ainda nos deparamos com o uso de torturas e espancamentos por parte de policiais, por abuso da autoridade policial através de ameaças, constrangimentos, agressões físicas. Embora exista a liberdade de manifestar-se publicamente, é comum a utilização da repressão policial para conter greves, despejar famílias, por meio dos batalhões de choque contra a população civil. A polícia utiliza práticas violentas contra a população, agindo com preconceito contra negros e pobres, quase sempre considerados "suspeitos". Em nome do "combate ao crime organizado" a polícia viola os direitos individuais dos pobres, invadindo a intimidade de milhares de pessoas com uma covardia assombrosa. Basta verificar as denúncias desses casos, nos órgãos de defesa dos direitos humanos, que encontramos várias incidências deles.
Essa violência bruta, típica da ação policial, é um atentado contra a democracia e fundamentalmente contra os direitos humanos e por isso deve fazer parte das políticas da memória, que devem dar pistas para banir da sociedade brasileira esse legado. É necessária a elaboração de políticas públicas concretas contra a violência e em favor dos direitos humanos, garantindo, fundamentalmente, direitos sociais a toda a população brasileira, especialmente às classes marginalizadas que constantemente são vistas como classes perigosas7 e/ou criminosas.
f) Desmontar os Mecanismos de Institucionalização da Memória Social
Entre as questões a serem pensadas nas políticas da memória está a necessidade de desmontar os mecanismos de institucionalização da memória social.
Se naquilo a que chamamos políticas de esquecimento estavam "a escola", a "manipulação política e ideológica" que atuaram fomentando a mentira e ocultando os fatos – que Martín- Baró (1998) denomina "mentira institucionalizada" – as políticas da memória também devem atuar neste campo "ideológico" fazendo um trabalho, como diria Martín-Baró, de desideologização: "Desideologizar significa rescatar la experiência original de los grupos y personas y devolvérsela como dato objetivo, lo que les permitirá formalizar la conciencia de su propia realidad verificando la validez del conocimiento adquirido" (Martín-Baró, 1998:302).
Desafio grande, mas necessário, que poderá ser possível por meio do resgate desta memória política ocultada ao longo dessas décadas e que precisa urgentemente ser "publicizada", levada ao debate público escancarando a realidade, provocando o dissenso e rompendo com as formas de memória consensual. Para isso, é fundamental o trabalho de memória desenvolvido pelos movimentos sociais, pelas entidades de classe, pelos Departamentos do Patrimônio Histórico, pelas Comissões de Direitos Humanos, pelo Grupo Tortura Nunca Mais e também pela pesquisa acadêmica que podem e devem contribuir na elaboração de políticas de memória.
Portanto, consideramos de fundamental importância a elaboração de políticas da memória que procurem tornar público o que a história oficial ocultou nos períodos de repressão política, abrindo os arquivos da época da ditadura, reconhecendo e indenizando as vítimas da repressão, condenando os que aplicaram tortura e violaram os direitos humanos, bem como incluir a política de preservação do patrimônio cultural e histórico que deve garantir, em todos os níveis, o direito ao passado e à cultura a toda população, reconhecendo, inclusive, os espaços memoriais populares.
Quiçá o dissenso provocado pelas memórias construídas pelos grupos que questionam as versões instituídas possa atuar como um processo de desideologização rompendo com a lógica de dominação e podendo fazer parte do processo de "descolonização8" à que Mignolo, 2010 se refere, se assim podemos dizer. Isso significa enfatizar outras maneiras de contar a história, outras formas de organização da vida e dos saberes, bem como a produção de novas subjetividades que não carreguem a herança dos padrões coloniais de poder que seguem vigentes na sociedade.
São questões que emergem do dilema entre autoritarismo e democracia, que apontamos no início deste artigo e que podem suscitar do ponto de vista psicopolítico possibilidades de enfrentamento dos conflitos políticos que vivemos na América Latina, particularmente na sociedade brasileira.
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Endereço para correspondência
Soraia Ansara
E-mail: soraiansara@hotmail.com
Recebido em: 13/01/2011
Revisado em: 27/05/2011
Aceito em: 18/11/2011
* Mestre e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Atualmente é docente no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil e da Universidade Estácio de Sá, São Paulo, SP, Brasil.
1 Este artigo é uma versão revista do trabalho apresentado na mesa redonda "Ditadura e colonialismo na América Latina", que teve lugar na terceira edição dos Diálogos Latino-Americanos – Brasil, nos dias 04, 05 e 06 de setembro/2010, no III Congresso Ciência e Profissão.
2 Termo utilizado por Mignolo em entrevista ao Globo, Prosa e Verso (p. 3). A matriz colonial de poder gestada no século XVI, que caracterizou os processos de independência permanece a mesma, tendo sido reproduzida pelos criollos. A nosso ver, esta mesma estrutura violenta e opressora seguiu operando ao longo dos regimes militares pautada na lógica de repressão e opressão.
3 O critério de escolha destas três capitais não se pautou na representatividade estatística de uma dada "amostra" da população e sim nos significados atribuídos aos eventos políticos por parte de algumas categorias sociais que pertencem a um lócus que consideramos de grande importância para um estudo na perspectiva psicopolítica. Lócus este constituído por lideranças sindicais e comunitárias (adultos que não viveram a repressão e que são engajadas politicamente). Escolhemos São Paulo por ter sido uma das cidades que sofreu grande impacto no período da repressão no Brasil e por considerá-la emblemática do eixo Rio-São Paulo, onde se localizavam os principais centros de repressão política e onde ocorreram as maiores movimentações políticas na época; a cidade de Belo Horizonte, por ser considerada o berço do golpe militar e, pelo menos, uma cidade do sul brasileiro, Curitiba, que teve um impacto um pouco menor que as capitais do sudeste brasileiro, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Cabe ressaltar que todas as entrevistas respeitaram as normas éticas do Comitê de Ética na pesquisa, tendo os sujeitos assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
4 Tomamos por base o conceito de Maurice Halbwachs (1925, 1950), que entende a memória coletiva como um fenômeno social, ou seja, como um processo social de reconstrução do passado e não como resultado de processos individuais ou subjetivos. Neste processo, há uma relação intrínseca entre a memória e a sociedade na qual são enfatizadas as estruturas coletivas da lembrança.
5 Lugares da memória é uma expressão utilizada e desenvolvida por Pierre Nora em seu livro: NORA, P. (1984). Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard. Para Nora, os "lugares de memória" nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas. Diante da perda definitiva do passado é preciso criar lugares de memória.
6 Para Decca (1992) a "memória histórica está definitivamente datada, ainda que possa ressurgir em nome de outras bandeiras e outras lutas" e "está ligada a afirmação do Estado Nacional e até muito recentemente era controlada pelos jogos insinuosos do poder que estabeleciam a história oficial" (p. 134-135). Cabe diferenciar aqui que Martín-Baró utiliza a ideia de memória histórica num sentido absolutamente oposto ao de Decca, visto que para Martín-Baró (1998) "a memória histórica não está vinculada a nenhum tipo de controle de poder, muito pelo contrário, está diretamente vinculada ao processo de conscientização que permite as pessoas e grupos sociais [...] asumir lo más autentico de su pasado, a depurar lo más genuino de su presente y a proyectar todo ello en un proyecto personal y nacional" (Martín-Baró, 1998:171) e, nesse sentido, perceber tudo aquilo que oprime e marginaliza o povo latino-americano.
7 Sobre a noção de "classes perigosas" ver Coimbra, Cecília. (2001). Operação Rio: O mito das classes perigosas. Niterói: Intertexto/Oficina do Autor.
8 Mignolo defende que "só a descolonização do ser e do saber levará a um câmbio do horizonte econômico e político. Precisamos concretizar o "sonho descolonial", segundo o qual as instituições estão a serviço da vida, em vez de por as pessoas a serviço das instituições. Esta fórmula é a base da retórica moderna e da lógica do colonialismo (duas caras da mesma moeda), da qual precisamos nos desprender a fim de permitir mudanças radicais.