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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549X
Rev. psicol. polít. vol.14 no.29 São Paulo abr. 2014
Estratégias de mudança identitária para acesso a bens e serviços sociais na Amazônia
Strategy of identity change for access of social goods and services in the Amazon
Estrategias de cambio identitario para acceso a bienes y servicios sociales en la Amazonía
Stratégies de changement d'identité pour l'accès aux biens et aux services sociaux en Amazonie
Marcelo Gustavo Aguilar Calegare
Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil. mgacalegare@gmail.com
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar um estudo de caso de mudança identitária ocorrido em uma comunidade ribeirinha de várzea no Alto rio Solimões, cujos moradores optaram transformarem-se de caboco amazonense para indígenas das etnias Kokama e Tikuna. A pesquisa realizada foi de cunho qualitativo, com viagens a campo entre 2006 e 2011 em períodos-chave, utilizando-se de pesquisa documental, entrevistas semiestruturadas e diário de campo. Para análise das entrevistas utilizou-se a análise de conteúdo. Apresentamos o processo pelo qual as questões indígenas passaram a ser pauta das discussões comunitárias e tendo como resultado a transformação identitária, destacando as implicações psicossociais dessa mudança. Debate-se que não é um caso de reaparição, reconstrução ou valorização das identidades indígenas, mas de uma estratégia política da comunidade para ter melhor acesso à cidadania. Na discussão final se aponta a desvalorização governamental e a falta de políticas públicas voltadas às comunidades de várzea como contexto impulsionador desse acontecimento.
Palavras-chave: Caboco amazonense, Indígena, Identidade coletiva, Comunidade rural, Amazônia.
ABSTRACT
The aim of this paper is to present a case of identity change occurred in a riverine community in the floodplain of the upper Solimões river, whose residents have chosen to transform their selves from Amazonian Caboco to indigenous of ethnicity Kokama and Tikuna. The research was qualitative, with fieldwork between 2006 and 2011 on key periods, using documentary research, semi structured interview and field diary. For the analysis of the interviews, we used the content analysis. We point out the process by which indigenous issues have become the agenda of community discussions resulting in the transformation of identity, highlighting the psychosocial implications of this change. We debate that is not a case of reappearance, rebuilding or recovery of indigenous identities, but a political strategy of the community to have better access to citizenship. In the final discussion, we indicate to the devaluation and lack of government public policy on the floodplain communities as booster context of this event.
Keywords: Caboco amazonense, Indigenous, Collective identity, Rural community, Amazon.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es presentar un estudio de caso de cambio identitario ocurrido en una comunidad ribereña de varzea del alto rio Solimões, donde los habitantes han decidido transformarse de caboco amazonense para indígenas de las etnias Kokama y Tikuna. La investigación fue de tipo cualitativo, con viajes a campo entre 2006 y 2011 en periodos clave, utilizándose investigación documental, entrevistas semi-estructuradas y diario de campo. Para el análisis de las entrevistas se usó la análisis de contenido. Presentamos el proceso por lo cual las cuestiones indígenas pasaron a ser discutidas en la comunidad y resultando en la transformación identitária, poniendo de relieve las implicaciones psicosociales de ese cambio. Se debate que no es un caso de reaparición, reconstrucción o valoración de las identidades indígenas, pero una estrategia política de la comunidad para lograr mejor acceso a la ciudadanía. En la discusión final se apunta la desvaluación gubernamental y la falta de políticas públicas hacia las comunidades de varzea, como contexto que llevó a ese ocurrido.
Palabras clave: Caboco amazonense, Indígenas, Identidad colectiva, Comunidad rural, Amazonia.
RÉSUMÉ
L'objectif de cet article est de présenter une étude de cas de changement d'identité survenu dans une communauté riveraine d'une plaine inondable sur la rivière Solimões, dont les habitants ont choisi de se transformer de caboco amazonienne pour les indigènes des ethnies Kokama et Tikuna. La recherche était qualitative, avec le travail de terrain entre 2006 et 2011 dans les périodes clés, en utilisant la recherche documentaire, entretiens semistructurés et sur le carnet de terrain. Pour l'analyse des entrevues nous avons utilisé l'analyse de contenu. Nous présentons le processus par lequel les questions indigènes sont devenus l'ordre du jour des discussions de la communauté et a abouti à la transformation d'identité, mettant en évidence les répercussions psychosociales de ce changement. Nous débattons que n'est pas un cas de réapparition, reconstruction ou valorisation des identités indigènes, mais une stratégie politique de la communauté d'avoir un meilleur accès à la citoyenneté. Dans la discussion finales nous faisons remarquer la dévaluation du gouvernement et l'absence de politiques publiques pour les communauté riveraine de plaines inondables comme le le contexte qui a poussé de cet événement.
Mots clés: Caboco amazonienne, Indigène, Identité collective, Communauté rurale, Amazonie.
Introdução
A Amazônia é considerada a partir de múltiplas faces, porém há uma forte tendência de salientar suas características biogeofísicas, tais como: maior floresta tropical do mundo, maior bacia hidrográfica e de reserva de água doce, fonte de inestimável biodiversidade e biotecnologia, entre muitas outras (Ferreira & Salati, 2005). Recentemente, tais considerações têm incluído não apenas seus recursos, mas também os serviços ambientais. Com isso, a Amazônia passou a ser valorizada por ser um imenso reservatório de estoque e sequestro de carbono, essencial ao jogo político e econômico que envolve as mudanças climáticas (Higuchi, N. e col., 2009). Cada uma dessas faces diz respeito a um modo particular de compreender o que é a Amazônia e remonta aos períodos da Conquista (Oliveira, 1994) e exploração desses recursos e, ainda em muitos casos, o "enigma amazônico" (Mendes, 2006) ainda parece estar longe de uma clara elucidação.
Cada uma das imagens formadas influenciou e continua influenciando, à sua maneira, o que se compreende ser esse lugar. Podemos dizer que temos um mosaico variado, que segundo Sá (2000) compõe um acervo polissêmico do imaginário social da Amazônia. De modo geral, esse conjunto de visões se constitui como referências de imaginário exógeno. Somente nas décadas mais recentes o ponto de vista endógeno, daqueles que habitam a região, parece ter tido uma escuta, ainda que bastante tímida. A voz dos que vivem e convivem com esse universo biogeofísico e que, a partir dele, se constituem como povos amazônicos, ainda é um campo que precisa ser aprofundado.
Com vistas a contribuir com a ampliação dos estudos amazônicos, neste artigo apresentamos um aspecto da dinâmica socioambiental muito presente nas últimas décadas e que desencadearam uma reorganização identitária de uma comunidade ribeirinha localizada na mesorregião do Alto Solimões. Conforme será discutido, este processo de mudança identitária é mais fruto de luta por reconhecimento ligada a direitos sociais, como resposta a políticas públicas inexistentes aos habitantes de várzea, do que de um sentimento legítimo de pertencimento a um grupo social pela recuperação de laços culturais. Por questões de sigilo ético, doravante denominaremos essa comunidade de Tururi e seus moradores por nomes fictícios.
Por se tratar de um universo amplo, cabe aqui uma primeira delimitação neste artigo: abordaremos os habitantes não indígenas, normalmente categorizados como "ribeirinho/ caboclo", "campesinato histórico amazônico" ou "povos e comunidades tradicionais" (PCT), dependendo da interpretação teórica adotada. Expliquemos tais termos. O ribeirinho/caboclo designa a formação, caracterização e particularidades de um segmento social visto sob um ponto de vista genérico (Diegues & Arruda, 2001; Lima, 1999; Medeiros, 2004; Ribeiro, 1995). Este tipo ideal serve de modelo para compreender os casos específicos do campesinato histórico na Amazônia - outra interpretação da população amazônica (Fraxe, 2000; Maybury-Lewis, 1997; Quaresma, 2003; Witkoski, 2007). Já PCT foi a nomenclatura inicialmente referida aos habitantes no contexto das unidades de conservação (UCs), mas posteriormente passou a designar os inúmeros grupos sociais brasileiros, autodefinidos por parâmetros próprios e que se enquadram no Decreto nº 6.040/2007 (Arruda, 1999; Barreto Filho, 2006; Diegues & Arruda, 2001; Little, 2004; Vianna, 2008).
A segunda delimitação dada dentro do universo amazônico refere-se à localização geográfica. Esse estudo de caso foi realizado em uma comunidade ribeirinha de várzea localizada à margem esquerda do rio Solimões, na zona rural do município de Tabatinga (AM), distante 1.573 Km via fluvial da capital, Manaus (PTDRS, 2011). O acesso a essa comunidade requer aproximadamente 7 dias de viagem de barco e com os riscos e altos custos próprios de uma região com pouca acessibilidade. Como aponta Little (2004), tais condições têm limitado sobremaneira as pesquisas com essas populações na região amazônica, deixando dessa forma um grande vazio na compreensão dos processos socioambientais vividos por elas.
A terceira delimitação diz respeito à abordagem teórica dada ao estudo, referente à pertinência da Psicologia Política para a interpretação da realidade social amazônica. Trata-se da leitura de processos de construção de identidades coletivas pelas populações locais, como resultado de ações coletivas para obtenção de benefícios comunitários. Para Melucci (1988 citado por Alonso, 2009:65), "a identidade coletiva é uma definição interativa e compartilhada produzida por vários indivíduos e relativa às orientações da ação e ao campo de oportunidades e constrangimentos no qual a ação acontece". Em outras palavras, as pessoas que se reconhecem sob a mesma identidade coletiva compartilham concepções de mundo, valores, metas e opiniões sobre o entorno social e sobre as possibilidades e limites da ação coletiva (Klandermans, 1997, 2001; Prado, 2001; Silva, 2006). Segundo Almeida (1994, 2008b), na Amazônia as identidades coletivas dos PCT são configuradas pelas suas lutas políticas, que ocorrem por meio de mobilizações e formalização de entidades (associações e sindicatos) para reivindicação de direitos.
Resta-nos entender, então, como e porque ocorre a construção dessas identidades coletivas segundo os casos particulares, uma vez que a Amazônia possui dimensões continentais e inúmeros grupos sociais. Diante disso, a quarta delimitação deste texto é de ordem empírica, que constitui o objetivo central deste artigo. Mostraremos o processo de mudança identitária vivida pela comunidade Tururi, onde seus habitantes optaram por deixar de ser caboco amazonense (segundo autodefinição) para serem reconhecidos como indígenas das etnias Kokama e Tikuna, unicamente com a finalidade de terem melhor acesso a bens e serviços sociais. Toda mesorregião do Alto Solimões é marcadamente habitada por 11 dos 66 grupos étnicos do Amazonas, num total de 36 mil indígenas (PTDRS, 2011). Nessa região de aproximadamente 10 mil hectares estão localizadas 33 Terras Indígenas (TI), das quais 22 já estão homologadas e 11 em processos administrativos demarcatórios (ISA, 2012). Outras 7.801 famílias de PCT vivem nessa área ao longo dos cursos d'água e se destacam em suas atividades de pesca e agricultura, reconhecidos como ribeirinhos, mesmo tendo descendência indígena (PTDRS, 2011).
Além das TI (48% do seu território), essa mesorregião possui cerca de 20% de sua área demarcada como UCs. A questão territorial de uso da terra, sobreposição de UCs com TI e titularidade, tem sido uma preocupação constante que se soma aos demais processos predatórios de exploração madeireira ou pecuária e mineração ilegais (PTDRS, 2011). Em todos esses casos, é visível a dificuldade que o Estado tem em dar a necessária atenção à população da região, além de mostrar as limitações gigantes na proteção dos recursos ambientais que motivaram a demarcação das UCs.
Feitas essas considerações, o texto é organizado a partir da metodologia utilizada e a caracterização de Tururi. Em seguida, apresentamos o processo de construção das identidades coletivas presentes na comunidade e como e porque as questões indígenas passaram a ser pauta das discussões comunitárias, resultando nas ações coletivas que conduziram à transformação identitária de caboco amazonenses para indígenas das etnias Kokama e Tikuna.
Feito isso, destacaremos mais especificamente as implicações psicossociais dessa mudança vivida pelos moradores, para demonstrar que o reconhecimento da nova identidade ainda está carregado de conflitos intracomunitários. Por fim, conclui-se que essa mudança identitária não se trata de um caso de reaparição, reconstrução e/ou valorização das identidades indígenas (Oliveira Filho, 1988, 1994, 1999a, 1999b; Saraiva, 2005, 2008), mas de uma estratégia política que essa comunidade dispunha para ter melhor acesso à cidadania.
Metodologia
A estratégia metodológica seguiu uma abordagem qualitativa (Minayo, 2007), fazendo-se uso da observação participante (com diário de campo), entrevistas semiestruturadas e pesquisa documental. A pesquisa de campo ocorreu ao longo de cinco anos (2006 a 2009 e 2011). Todoesse processo foi submetido ao Comitê de Ética e devidamente aprovado sob protocolo de nº2008.049. Para análise das informações para esse estudo, utilizou-se a análise de conteúdo (Bardin, 1977), agregando os dados compilados àqueles dos demais instrumentos.
O lócus de estudo de caso foi uma comunidade ribeirinha em uma área de várzea, localizada em planícies alagáveis entre os grandes rios na calha do rio Solimões. Nesse tipo de área a floresta é inundada durante alguns meses do ano e os lagos interiores estabelecem uma conexão com a calha principal dos rios. Quando o nível do rio baixa, tem-se grande erosão e, consequentemente o fenômeno da terra caída, que causa mobilidade e até mesmo extinção de povoados. Portanto, essas características físicas forjam por si só um padrão distinto de ocupação humana, densidade populacional e tipo de produção econômica (Alencar, 2005).
Tururi está localizada na zona rural do município de Tabatinga (AM), fronteira tríplice Brasil-Peru-Colômbia, que possui 90% de seu território demarcado como TI. Situa-se em umapequena área não demarcada, circulada pelas TI Évare I e TI Évare II, cujas composições são de índios das etnias Tikuna (maioria) e Kokama. Há quatro comunidades vizinhas fora dessas TIs, sendo duas delas já reconhecidas como indígenas.
Foi oficialmente fundada em 1977, por ocasião do plantio da Santa Cruz, abreviação da religião Associação Missão Ordem Cruzada Católica Apostólica Evangélica - Igreja Madre Central do Brasil (Calegare, 2010; Oro, 1989). Entretanto, os moradores mais velhos relatam habitar a região desde o final do século XIX, atraídos pela extração de borracha. Trata-se de uma comunidade constituída por descendentes indígenas, nordestinos e peruanos.
A situação fundiária da área onde está sediada configura-se como herança com escritura pública, mas não possui título definitivo, pois o órgão competente atual (INCRA) não o concede para áreas de várzea. Pode ser considerada como terra tradicionalmente ocupada, conforme defende Almeida (2008b). O proprietário da terra, S. Jonas, é filho de um dos primeiros moradores da região, que chegou do Ceará em 1908 e em 1925 requereu as terras. S. Jonas é casado com uma descendente de Kokama, o que significa que todos seus filhos e netos têm raízes dessa etnia. Segundo estudo de Calegare (2010), todos os demais moradores da comunidade possuem alguma descendência Tikuna.
Até o ano de 2009, contava com 404 moradores e 57 unidades domésticas, que habitavam 46 casas. Desse total de casas, 39 com apenas uma unidade doméstica e 7 com mais de uma. Adotou-se a definição de Castro (2006), para quem a unidade doméstica é composta pelo núcleo familiar (homem e/ou mulher responsável, mais filhos), idosos e jovens agregados (filhos de criação e compadrio).
Tururi se diferencia das comunidades ao seu entorno pelo alto grau de organização e reivindicação política, o que lhe rendeu algumas conquistas e acesso a bens e serviços sociais a seus moradores. Por conta disso, a infraestrutura comunitária é menos deficitária que das comunidades vizinhas. Existe uma escola, um posto de saúde, uma igreja, um centro comunitário e meia dúzia de casas de farinha, além das habitações das famílias. Há também aparatos danificados (telefones públicos, caixa d'água e flutuantes). Boa parte desses equipamentos sociais foi obtida a partir de reivindicações, conseguidas por meio das associações comunitárias existentes. Há nove distintas lideranças, reconhecidas dentro e fora da comunidade: diretor da religião, presidente da APR (assoc. prod. rurais) e líder comunitário, presidente da AP (assoc. pescadores), proprietário da terra, agente comunitário de saúde (ACS), responsável do projeto de apicultura, responsável da Pastoral da Criança, diretor da escola e cacique.
Processo de Construção das Identidades Coletivas em Tururi
Como esboçado anteriormente, neste texto abordamos um caso empírico da realidade social amazônica (comunidade Tururi) por meio das contribuições oriundas da Psicologia Política. Nesta seção descreveremos como e porque aconteceram os processos de construção das identidades coletivas dessa comunidade ao longo de sua existência, dando ênfase às questões indígenas emergentes nos últimos anos, que fizeram com que seus moradores optassem pela mudança identitária. Além dos motivos e processos psicossociais dessas transformações comunitárias, a descrição dos mesmos tem importância de registro e divulgação de situações vividas em comunidades amazônicas, o que confere o caráter político da produção acadêmica.
Em 1977, foi plantada a Santa Cruz - fato concreto que caracteriza a fundação de Tururi. A chegada dessa religião ao Alto Solimões trouxe profundas mudanças na organização social não só das comunidades ribeirinhas, mas também das indígenas de etnia Tikuna (Oliveira, 1996; Oliveira Filho, 1988; Oro, 1989). Isso significa que nesse momento inicial o motivo de agregação de moradores para a nova comunidade foi religioso, configurando-lhes a identidade de "cruzadores" ou "missioneiros", em contraposição aos "gentios" de outras localidades. Fazer parte dessa religião deu a seus seguidores o sentimento de pertencimento a essa comunidade, pelo menos nos primeiros anos de sua existência. Além disso, a estruturação da direção da religião, por nove membros de uma diretiva, serviu para a organização social da comunidade. Cada novo morador que chegava deveria também seguir na religião e houve casos de expulsão dos que não se submeteram às suas regras (Calegare, 2010). Até o presente os moradores fazem referência a essa identidade ligada à religião.
Além da identidade religiosa, os moradores de Tururi também se reconhecem como "pescadores" e "agricultores", por conta da posição geográfica privilegiada da comunidade que favorece a prática pesqueira e também agrícola. Nos primórdios de Tururi, um grupo de famílias se dedicava mais à primeira e outro à segunda atividade produtiva. Posteriormente, cada um desses grupos familiares tornou-se responsável pela APR e pela AP. Como sugere Calegare (2010), os laços de parentesco, a disputa de poder e os lugares de liderança configuravam diretamente a identidade coletiva dos moradores de Tururi. Até o presente, ao se tratar das categorias de trabalho, os habitantes se reconhecem como pertencente a um ou outro grupo.
No que se refere à identidade coletiva associada à origem cultural-territorial, os habitantes de Tururi se reconhecem enquanto "cabocos amazonenses", conforme identidade autodefinida. Como veremos adiante, essa identificação está em contraposição aos "índios/indígenas", que estão associados a povos incivilizados e de costumes atrasados.
Após a fundação de Tururi, começaram a ocorrer interferências externas não religiosas que marcaram a vida comunitária até hoje. Uma delas é a demarcação das TIs na região, ocorrida nos anos 1980 (Alencar, 2005). Por não querer perder as terras e por não admitir a identificação como índio devido à descendência cearense, S. Jonas fez valer sua autoridade para unir a comunidade e não ceder à demarcação da TI Évare I - postura que só deixou de sustentar em 2009, momento em que houve um apelo coletivo para adesão à TI.
Em 2001, quando vários caciques foram nomeados na região, Tururi também recebeu a nomeação de um cacique. Vale lembrar que em boa parte da Amazônia, especialmente no Alto Solimões, a autoridade indígena superior é denominada tuchaua, enquanto cacique é uma nomenclatura proveniente de tradições culturais exógenas à região. Ninguém sabe como essa nomeação do cacique de Tururi aconteceu, com qual critério e porque ele foi nomeado e não outra pessoa. Segundo contam os moradores, nenhuma pesquisa foi realizada na comunidade para avaliar a quantidade de descendentes tikuna e kokama na comunidade. Os relatos são de que surgiu uma lista vinda de Brasília, nomeando caciques na região.
O cacique nomeado, ainda sem entender o que isso significava, fora convidado a participar de um "estudo" junto com outros 43 caciques recém-eleitos de comunidades dos municípios de Santo Antônio do Iça, Amaturá, São Paulo de Olivença, Benjamin Constant e Tabatinga, onde estão as TI Évare I e Évare II. Este estudo, que começou em 21 de agosto de 2001, com 80 horas de duração ao longo de 10 dias, conferiu-lhe um certificado de "agente multiplicador de educação ambiental". Surpreendentemente, foi durante os dias desse curso que ele se assumiu como cacique da etnia Kokama e tomou conhecimento das vantagens de ser indígena naquela região.
Esse acontecimento se passou num momento em que os moradores de Tururi haviam ganhado força política pela fundação da APR, implementação de polo de educação e fortalecimento do papel do presidente comunitário perante o governo municipal. Ou seja, um momento em que suas ações coletivas passaram a ter maior poder de barganha para obtenção de benefícios à comunidade, exceto na questão de saúde, onde não tiveram grandes avanços.
Investido da nova autoridade, o recém-cacique retorna a Tururi e, com o apoio do diretor da cruzada, apresentou aos moradores as vantagens de se tornarem indígenas, tal como aprendeu junto aos demais caciques no curso. Nesse momento se procedeu apenas um anúncio, sem outras decisões ou ações. Persistia apenas a opinião de S. Jonas em não ceder suas terras, mesmo porque a figura do cacique, nesse momento, não era de prestígio entre os moradores.
Ainda nos dias que seguiram ao curso, um cacique da comunidade vizinha, mandado pelo representante da FUNAI, foi até a comunidade para testar alguns conhecimentos do recémcacique na língua tikuna - na gíria, como nomeiam os não indígenas da região. Um quadro lhe foi apresentado com as seguintes figuras de animais: tracajá, tartaruga, peixe-boi, tambaqui, pirarucu, anta e cotia. Pelo fato dele ter convivido com tikunas em alguns períodos de sua vida, ele sabia essas palavras e erra somente a figura da anta. Dessa forma o cacique kokama foi aprovado como indígena, pelo teste na língua tikuna.
Em 2002, alguns representantes de distintas entidades indígenas da região foram à comunidade incentivá-los a se tornarem indígenas, pois assim conseguiriam benefícios como: medicamentos, posto de saúde, motores de canoa, entre outros. A ênfase maior foi para aqueles relacionados ao atendimento à saúde. A oposição de S. Jonas ainda persistiu, mas a simpatia dos moradores foi despertada pela facilidade de acesso a benefícios.
De acordo com os registros comunitários, em 2003 diferentes entidades visitaram a comunidade. Autoridades de órgãos governamentais realizaram levantamento fundiário das comunidades da região para avaliar os títulos de propriedade das terras (INCRA e FUNAI). Também foi feito levantamento dos lagos, pescado e inventário da vegetação (IBAMA). Isso aconteceu porque era política do governo estadual da época estimular a criação de UCs ou TIs como formas de preservação do meio ambiente e, para tanto, eram necessários tais levantamentos. Além, disso alguns grupos de pesquisas também iniciaram seus estudos (Alencar, 2005; Chaves e col., 2003).
Pelo fato de não ter sido garantida indenização a S. Jonas, este não aceitou que suas terrasfossem anexadas à TI Évare I. Como nos conta o próprio, ele não tinha garantias de que receberia qualquer retorno financeiro e, por isso, não queria entregar as terras. No entanto, uma parte significativa dos moradores passou a se interessar pelos benefícios que teriam ao tornarem-se indígenas.
Na efervescência da movimentação de representantes de entidades indígenas na região, alguns moradores de nove comunidades vizinhas se reuniram em Tururi, durante três dias, para se organizarem e terem mais força política de barganha perante a FUNAI/FUNASA. Isso porque até esse momento não tinham obtido nenhum benefício, uma vez que já possuíam caciques reconhecidos em suas comunidades. Dada a aprendizagem anterior de que com uma entidade formalizada (APR e AP) é possível lutar por benefícios junto ao governo, no dia 02 de setembro de 2003 esses moradores fundaram a AMCICT (Assoc. Moradores das Comunidades Indígenas Kokama e Tikuna), com o devido protocolo no CNPJ. Com tal formalização, acreditavam que seria mais fácil fazer pedidos e reivindicar direitos. O primeiro presidente dessa entidade foi um morador de Tururi (descendente Kokama), filho de S. Jonas.
Em 2005, segundo um documento da diretoria de assuntos fundiários da FUNAI, houve registro de reivindicação de Tururi e da comunidade vizinha para identificação enquanto TI. No entanto, não existem registros comunitários e nem conhecimento das autoridades comunitárias a respeito desse requerimento.
Em nossa primeira viagem a campo, em 2006, o presidente da AMCICT foi reconhecido como uma liderança de Tururi pelos moradores, enquanto o cacique não foi lembrado. O primeiro abandonou seu cargo ainda esse ano, pois a entidade não vinha conseguindo obter o retorno esperado. Por outro lado, pela atuação do cacique fora da comunidade, em 12 de junho desse mesmo ano seu filho foi nomeado como conselheiro local do polo tipo II, ligado ao Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Solimões (DSEI-AS).
Ainda em 2006, a comunidade decidiu se tornar indígena, em reunião comunitária. Há controvérsias de quando esta se torna oficialmente aldeia indígena, isto é, reconhecida pela FUNAI. Não há registro em ata dessa decisão e, por isso, alguns moradores afirmam que a decisão foi tomada oficialmente em 2007, outros dizem que foi em 2008 e outros até mesmo em 2009. S. Jonas continuou se opondo a isso e, por ser a liderança mais importante nesse assunto, não foi tomada nenhuma atitude de mudança para TI.
Em 03 de fevereiro de 2007 foi inaugurado o posto de saúde de comunidade (de alvenaria), fruto das reivindicações comunitárias perante o poder público local. Já havia na comunidade um ACS. Nos anos seguintes à inauguração desse posto, sua administração passou a ser compartilhada entre o governo local e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Com isso, foi nomeado também um Agente Indígena de Saúde (AIS).
Em 2008, a comunidade passou a receber educação bilíngue, conforme documentos da secretaria municipal de educação. Devido esse fato, um professor especializado da língua kokama passou a morar na comunidade. Regulada pela Constituição de 1988 e, posteriormente, pela nova Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, as escolas em aldeias indígenas tornaram-se diferenciadas, apontando para uma autonomia, mantidas por meio de associações organizadas pelas próprias aldeias. No caso de Tururi, esse processo não ocorreu pela intervenção interna, e sim externa.
Um fato importante, ocorrido entre 2007 e 2008, cativou a maioria dos moradores a perceber os benefícios de serem indígenas: D. Elisa, uma descendente tikuna, adoeceu e foi levada para Brasília para realizar tratamento de saúde, por meio da FUNASA. Dizem que o translado Tabatinga-Manaus-Brasília, mais as despesas adicionais, custaram em torno de R$ 54.000,00, sem ônus algum à enferma. Diante disso, a pressão sobre S. Jonas aumentoumuito e fez com que ele, em 2009, cedesse sua propriedade para ser anexada à TI Évare I. Até 2011, não havia notícia sobre indenização ao proprietário ou de integração à referida TI.
Somente em 2011, por meio de cadastro realizado pelo cacique, se procedeu o censo de todos os moradores, para identificá-los segundo as etnias Kokama ou Tikuna. Uma vez preenchido e entregue tal documento, a comunidade se tornaria oficialmente indígena, segundo relata a liderança local. O critério de identificação de cada morador em uma ou outra etnia foi simplesmente pelo sobrenome das famílias.
Implicações Psicossociais da Mudança Identitária
Como pudemos observar, em Tururi o processo de transição à identidade indígena não aconteceu pela necessidade de reconhecimento étnico ou reconstrução do "ser indígena", tal como refere Saraiva (2005, 2008). Tornar-se uma comunidade indígena foi, nesse caso, impulsionada pelas lutas por acesso a bens e serviços sociais - mais especificamente pelo acesso ao atendimento à saúde. Nesta seção apresentamos as implicações psicossociais desse processo de mudança identitária, que não foi aceito facilmente por todos moradores. Ou seja, o reconhecimento da identidade indígena está carregado de conflitos intracomunitários decorrentes da negação da cultura indígena e da aceitação de benefícios sociais inerentes aos povos indígenas. Vejamos o que relata S. Davi a respeito desse assunto:
É uma mudança meio complicada, por uma parte, porque fica difícil mas no próprio instante torna mais fácil, principalmente na saúde. Fica difícil, inclusive porque pra gente se adaptar. Porque o índio tem aqueles costume deles, daí pra gente se adaptar no costume do índio fica meio difícil, mas aos poucos a gente vai se acostumando. [Que costumes são esses?] É porque o índio tem, principalmente, a festa da moça nova1 , ai você vai ter lá uma festa, os índios vão ter que, dançar, né, mas na tradição deles. Os índios sempre costumam permanecer nu. Então, pra gente, costuma representar essa parte ai através do índio, nós vamos ter que fazer imitar esse processo deles. Porque tem alguém pra representar a comunidade. Alguém pra representar a comunidade através dessa parte ai. Por isso que eu digo, porque nem todos querem representar a comunidade se pintando, vestindo como traje de índio, né, por isso que fica difícil essa parte ai, da mudança. [E a parte fácil?] A parte fácil é através da saúde. Porque acontece um problema na comunidade da parte de saúde, que a comunidade não dá jeito, a gente tem os agentes, leva pra Belém do Solimões. Lá é um polo. E se em Belém do Solimões não dá jeito, tem o transporte diretamente de Belém a Tabatinga. Se em Tabatinga não tem jeito, já remete para Manaus. Isso ai é por conta da Funai. Quer dizer, da Funasa, né.
A referência feita aos costumes indígenas é aos da etnia Tikuna, cujas comunidades e contingente numérico no Alto Solimões são bastante expressivos - especialmente após a demarcação de TI. Como se observa no trecho acima, os costumes indígenas são vistos com ressalva pelos moradores, o que mostra claramente que a transformação da comunidade não é uma recuperação da cultura indígena. Por outro lado, vê-se que o acesso ao atendimento diferenciado à saúde é o grande impulsionador da mudança identitária. Isso mostra como a construção da identidade coletiva é carregada de antagonismos entre aqueles que se reconhecem como sujeito coletivo. Como apontam Johnston, Laraña e Gusfield (2001), é por meio do processo de interação, negociação e conflito sobre as distintas definições da situação que os membros de um grupo constituem o sentido de "Nós", na sua relação com o entorno.
Para os moradores de Tururi, a convivência com os tikunas da região lhes fez construir as seguintes imagens, como descreve S. Marcos:
Eles gostam de se pintar, eles não tem vergonha do que eles são, se ele disser que não é não, se ele não achar o senhor simpático, não gostar do senhor, ele não vai dizer que não quer o senhor lá, vai lhe expulsar, não vai querer o senhor de maneira nenhuma. Se no caso ele quiser bater, espancar, eles vão fazer isso mesmo. Onde eles convivem, eles não vão querer que ninguém meta a mão. Se eles tiverem no lago, o senhor não vai pescar, na área que eles moram o senhor não vai botar um anzol para pegar um peixe, não vai fazer nada, porque se eles lhe pegarem eles vão lhe tomar, bater ou no caso antes eles podiam até matar as pessoas jogavam na água e tomavam tudo. Antes era assim, agora com a FUNAI que o pessoal chegou aqui botando lei, a lei do branco tinha que ser, a lei do Tikuna eles maneiraram mais, então assim hoje eles não são mais bem agressivos, mais ainda são. Quando eles fazem as festas entre eles mesmos se matam, se furam ali, se cortam, às vezes morrem enforcados se uma mulher não quiser mais ele, ele vai se enforcar, tomar veneno.
Diante dessas percepções, os moradores não gostam de serem identificados como indígena, associado diretamente à cultura da etnia Tikuna - em oposição ao branco/civilizado. Todos se referem com estranheza à gíria e à festa da moça nova, dizendo que não querem adotar tais costumes na comunidade. As mulheres são as que expressam maior estranheza. Por tais colocações, fica claro que o reconhecimento dos moradores de Tururi segundo a identidade indígena é carregada pelos antagonismos acima expostos, fruto dos conflitos psicossociais inerentes à assunção do status de indígena.
Tais colocações ficam mais explícitas ao observarmos o movimento de identificação dos moradores com outras identidades coletivas da comunidade. Entre 2008 e 2009, muitos moradores identificados como pescador ou agricultor, por conta do histórico da APR e AP, das disputas familiares e de poder, passaram a querer se identificar prioritariamente como caboco amazonense. Isso porque na comunidade as manifestações concretas da presença indígena passaram a ser cada vez mais cotidianas: o AIS, a educação bilíngue kokama, visita de indígenas de comunidades locais. Esse fortalecimento da identidade de caboco amazonense demonstra que o processo de construção da identidade coletiva indígena não é consensual. Tem como força motriz o acesso a benefícios sociais, e não uma reconstrução do modus vivendi indígena, como ocorre com outros grupos e em outras regiões (Almeida, 2008a, 2008b; Oliveira Filho, 1994, 1999a, 1999b; Saraiva, 2008).
Já o kokama, por ter uma língua e hábitos semelhantes ao do civilizado segundo relatam os moradores, não é igualado a indígena. Kokama é simplesmente Kokama. Dentro do contexto das disputas familiares e de luta por direitos, podemos entender melhor essas identificações. O relato de S. Alcimar ilustra essa trama:
A gente criou um vínculo no momento com a FUNAI sobre a medicação, porque a medicação pelo SUS em Tabatinga nós não temos uma medicação boa, todo tempo a gente vêm sofrendo da medicação por parte de Tabatinga, e através da Associação nós entramos com a FUNAI em Belém do Solimões e conseguimos levar o paciente. Porque graças a Deus no momento, através do apoio que atingimos com a FUNAI, já salvamos a vida de muitas pessoas aqui que não tinha como nós salvarmos, e através da FUNAI a gente levava a pessoa a chegar até Manaus e salvava sem a comunidade gastar nenhum centavo. [Que vínculos foram esses?] É de a gente se aliar com Belém do Solimões e aí eles davam a assistência para nós de medicação. No momento nós estamos repassando à comunidade um apoio indígena agora. [Como assim?] É porque a comunidade, a gente pensava que ela tinha 100% indígena, mas na realidade ela não tem 100% indígena, ela tem uns 40% indígena e 60% Kokama, e aí mas só que o Kokama e o indígena estão trabalhando igual, um pelo outro, aí vai ser repassado o Kokama agora, mas pegando toda a documentação, todo o recurso de Belém do Solimões pela FUNAI.
A associação referida é a APR. Seu líder é também o presidente comunitário e descendente kokama. Nas disputas por destaque comunitário, ele refere que os Kokama e os indígenas estão trabalhando juntos. Os indígenas é a referência aos Tikuna, que se acreditava que todo morador possuía alguma descendência. Com a eleição do cacique esse quadro começa a mudar. Como inicialmente o cacique foi classificado como da etnia Kokama, recuperou-se a raiz dessa etnia entre os moradores.
Enfim, essa transformação identitária vem trazendo uma nova configuração à organização social da comunidade, às tramas familiares e à redefinição de lideranças. Especialmente no que se refere às identidades coletivas, ainda é cedo para fazer prognósticos a respeito da recuperação de tradições indígenas (Kokama ou Tikuna), que venham a reconstruir o ser indígena dos moradores dessa comunidade. O que vale lembrar é que a identidade indígena assumida por eles é a forma de reconhecimento perante o poder público, que lhes confere um status legal e benefícios sociais.
Desvalorização dos Habitantes das Várzeas Amazônicas
O caso de Tururi não se trata do ressurgimento de uma etnia não classificada pelos viajantes ou órgãos governamentais, tal qual ocorreu no nordeste brasileiro (Oliveira Filho,1999b). Nessa comunidade seus moradores são descendentes de nordestinos, peruanos, Kokama e Tikuna - etnias da região que resistiram à Conquista e ciclos econômicos. Tampouco estamos diante de uma situação de luta por acesso a terras, que explicita a reivindicação de uma situação fundiária - o direito pela posse de terras garantido por constituição, como aponta Barreto Filho (2004, 2006) - como é o caso de muitas etnias indígenas no Brasil, que lutam pela garantia de uso de recurso naturais e reprodução social (Oliveira Filho, 1994, 1999a). Essas pessoas também não estão passando por um processo de reconstrução do ser indígena, como descreve Saraiva (2005, 2008), vinda do interior da vida comunitária. Talvez com o tempo isso venha acontecer, mas ainda é cedo para prognósticos.
O que fica bem claro é que a recuperação dos laços ancestrais indígenas vem ocorrendo, neste momento, como um mecanismo político para obtenção de bens e serviços sociais. Colocado de outra forma, foi a maneira que os moradores dessa região amazônica encontraram para enfrentar uma violência estatal que, por não reconhecê-los e contemplá-los em políticas públicas adequadas, os deixa à margem de direitos sociais básicos.
Tomando o contexto em que Tururi se insere, vemos que o poder público local muitas vezes é negligente com sua população, fornecendo-lhe serviços apenas a partir de mobilizações, reivindicações e lutas políticas. De um modo mais amplo, Alencar (2005) mostra que as políticas dos municípios do Alto Solimões voltadas às comunidades rurais expressam claramente desvalorização e descaso com essas populações. E entre as comunidades de terra firme e as de várzea, estas últimas são as que menos recebem a atenção do poder público. As comunidades de várzeas dificilmente recebem investimentos de melhoria de serviços sociais na área da saúde, educação ou infraestrutura (saneamento, água tratada, tratamento de lixo, pavimentação, etc.). Como lembra a autora, tais comunidades conseguem obter algum benefício somente pela força política de pressão à administração pública.
Tal qual tivemos a chance de vivenciar pelo contato e conversas com os políticos da região, os órgãos municipais não investem na melhoria das condições de vida dessas populações por julgarem que elas moram em um ambiente inadequado. Há uma crença compartilhada de que existem lugares melhores para morar, como a terra firme, onde se pode plantar o ano todo e praticar agricultura extensiva e criação de gado. Em Tururi foi feita proposta das autoridades para que os moradores se mudassem para uma área de terra firme, mas a grande maioria deles recusou tal oferta. Essa situação pode ser resumida da seguinte maneira:
Deliberadamente deixa-se de investir nas localidades para forçar a saída de moradores. Tal descaso também expressa a falta de valorização desse modo de vida, já que o morador da várzea é visto quase sempre como alguém a ser transformado. A falta de políticas voltadas para assistir os moradores da várzea, em casos de perdas materiais, evidencia essa desvalorização do morador da várzea e a maneira como o poder público lida com os problemas causados por fenômenos naturais, apontando para uma naturalização dos problemas que eles vivenciam quase todos os anos (Alencar, 2005:72-73).
Por tais colocações, vemos que as discussões de desenvolvimento sustentável e de dimensões de sustentabilidade parecem passar longe desses municípios amazônicos. Como aponta Simonian (2007:33), "no que se refere à Amazônia propriamente dita, as propostas de políticas públicas sequer indicam uma preocupação mais adequada aos critérios que definem sustentabilidade". O reflexo disso é que a valorização do modo de vida dessas pessoas continua a ser desconsiderada nos planos governamentais e em boa parte das políticas públicas voltadas à região (Chaves, 2009).
Pelo caso de Tururi, notamos que as autoridades locais estão longe de tentar executar projetos que visem ao pleno desenvolvimento do ser humano (Mendes & Sachs, 2007), ao envolvimento sustentável (Viana, 2007) ou às liberdades instrumentais e substantivas (Sen, 2000). Mais do que culpabilizar os agentes dos órgãos públicos pela negligência declarada - o que não os isenta da responsabilização - podemos perceber que ainda vivemos sob uma racionalidade que cinde sociedade e natureza, que considera o progresso material como indicador de desenvolvimento e que desconsidera formas diferentes de conhecer e de viver. Isso não significa que não sejamos capazes de tentar transformar essa situação. As discussões a respeito do desenvolvimento sustentável têm indicado para o rompimento de algumas verdades cristalizadas, gerando novos sentidos e práticas sociais (Calegare, 2010). No entanto, ao efetivar esses ideais em ações supostamente transformadoras, podemos observar que as dificuldades delas alcançarem seu objetivo ainda são grandes.
Seriam necessários projetos educativos e de atualização voltados aos agentes governamentais locais? Como valorizar as populações das várzeas amazônicas, que possuem estilo de vida particular e têm o direto de quererem buscar o bem-estar nesses ambientes? Que tipo de projeto de desenvolvimento e reorganização social é adequado a essas populações? Ideias de dispositivos práticos de como proceder para propiciar a qualidade de vida dessas populações não faltam, como indicam Sachs (2002, 2004), Mendes (2006), Mendes e Sachs (1997). Fica então uma derradeira pergunta: se os moradores de Tururi tivessem recebido assistência diferenciada do poder público, teriam eles optado por se tornar indígena?
Conclusão
O estudo de identidades coletivas na Amazônia é pertinente à Psicologia Política por trazer à tona a dinâmica psicopolítica dos povos da região. Dessa maneira, se está contribuindo para elucidar a realidade social amazônica segundo o ponto de vista endógeno, isto é, dos PCT locais. Além disso, amplia-se a compreensão das ações coletivas desses grupos, expressas por estratégias de luta por reconhecimento. Como resultado, é possível questionar as formas de reconhecimento que o poder público vem adotando para os amazônidas e, por sua vez, apontar caminhos à elaboração de políticas públicas adequadas a esse contexto socioambiental.
Neste artigo buscamos mostrar que as identidades coletivas dos moradores de Tururi indicam um processo dinâmico de constituição do sujeito coletivo (pertença ao "Nós" - cada autodefinição específica) em ações coletivas (a luta por direitos, bem-estar, reconhecimento), materializadas em distintas formas de representação política (APR, AP, AMCICT, etc.). Essa estratégia de luta por reconhecimento é semelhante em muitos outros casos na Amazônia. Como ressalta Almeida (1994, 2008b), os distintos PTC amazônicos vêm conduzindo suas lutas políticas por meio de mobilizações e entidades formalizadas, o que configura suas identidades coletivas. De acordo com Acevedo e Guerra (1994), Chaves (2001, 2009) e Chaves, Barros e Fabré (2008), tais mobilizações e organização em associações/sindicatos estão diretamente relacionadas ao acesso pleno à cidadania, isto é, à obtenção de benefícios sociais e o reconhecimento enquanto cidadãos.
O caso de Tururi revela que ao não reconhecer os moradores de comunidades de várzea por meio de políticas adequadas, o poder público reforça o sentimento de invisibilidade vivenciado por essas populações. Muitos PCT têm encontrado formas de serem reconhecidos enquanto cidadãos por meio da formalização de entidades, o que em tese facilita o acesso a bens e serviços sociais e aumenta o poder de barganha política. Para os moradores de Tururi, restou aderir ao status de indígenas, por possuírem estes um reconhecimento diferenciado e leis especiais, conforme dita a Constituição de 1988. Isso demonstra o quanto o desenvolvimento social está ainda longe de ser efetivado de maneira justa e igualitária na Amazônia.
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Recebido em 31/10/2013
Aceito em 06/12/2013
1 A festa da moça nova é o ritual de passagem da jovem tikuna à vida adulta (Oliveira, 1996; Oliveira Filho, 1988).